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segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22937: Notas de leitura (1413): A utopia de André Álvares d’Almada, Revista Sintidus, nº. 1, de 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
Saudemos o aparecimento da revista Sintidus, aqui se junta a referência para ter acesso ao seu conteúdo total. Privilegiou-se a chamada de atenção para o artigo de Raul Mendes Fernandes para as motivações narrativas de André Alvares d'Almada e o seu "Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde", aquele que será o mais belo documento de apresentação da Senegâmbia, no final do século XVI. Este marinheiro e mercador, Cavaleiro da Ordem de Cristo sonhava que Filipe II apoiasse o povoamento da região com gente vinda de Cabo Verde e lança o seu canto da sereia: afastamento das nações rivais, aproveitamento das riquezas, criação de uma nova classe de proprietários rurais naquele ponto da África Ocidental. As coisas não correram de feição, mas a narrativa é um dos documentos literários mais empolgantes de tudo quanto se escreveu na língua portuguesa.

Um abraço do
Mário



A utopia de André Álvares d’Almada

Beja Santos

A revista "Sintidus", cujo primeiro número saiu em 2018, é uma nova publicação científica na Guiné-Bissau e vale a pena conhecer-lhe os objetivos e ter acesso à versão online para aquilatar da sua importância (ver SINTIDUS).

Chamou-me a atenção o artigo “A viagem do olhar de André Alvares d’Almada”, da responsabilidade do investigador Raul Mendes Fernandes (ramefes@gmail.com). Com base na antropologia social, o cientista disseca as motivações que levaram, em 1594, o Capitão Álvares d’Almada, natural de Santiago, a publicar o "Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde" desde os Rios de Sanagá até aos Baixos de St.ª Ana; de todas as Nações dos Negros que há na dita Costa, e dos seus Costumes, Armas, Trajes, Juramentos e Guerras. É consensualmente a mais luminosa das narrativas daquilo que se convencionou chamar literatura de viagens do século XVI, é uma obra com mensagem, bem intencional, e aquele viajante, marinheiro, soldado, quase etnógrafo e mercador do século XVI é uma verdadeira prestação de contas endereçada a Filipe II de Espanha e I de Portugal. Homem do seu tempo, Almada pretende convencer o monarca que só há vantagens em povoar uma parte do território da África Ocidental que dá pelo nome dos Rios de Guiné do Cabo Verde com os habitantes das ilhas de Santiago e Fogo, e daí o acervo informativo luxuriante, uma quase monografia escrita em viagem sobre reinos, conflitos e guerras, modos de vida, organização da produção e comércio nos ditos Rios da Guiné.

Almada sabe que o Brasil está a ser colonizado e que Madrid tem os olhos postos nas minas de Potosi, esta “carta de sedução” tem um móbil que é a sugestão implícita de que se pode construir uma zona intermediária entre a Índia e Portugal e utilizar a força de trabalho dos escravos africanos, os moradores de Santiago seriam os agentes da civilização e do negócio, eles iriam jogar um papel estratégico entre a Europa, a Índia e o Brasil. Pretende demonstrar que o povoamento até à Serra Leoa acrescentaria fé e fazenda, embargaria o caminho à concorrência estrangeira. Isto na lógica de que ainda vigorava a divisão do mundo decorrente do tratado de Tordesilhas. Recorde-se que este homem nascido em Santiago era um militar que se distinguira na defesa desta ilha contra ataques dos corsários, recebera o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Almada sonha com a cristandade e vê nesta região que também pode ser conhecida por Senegâmbia um processo de deslocação atlântica da economia oeste-africana, região onde o fluxo de escravos está no auge, segundo os números que o investigador adianta, a região designada por Senegâmbia e Ilhas Atlânticas era a maior fornecedora de escravos do continente africano, ao longo do século XVI terá fornecido aproximadamente 150 mil escravos. Este tráfico conhecerá profundas alterações com o crescimento de outros fornecedores como a Costa de Ouro, Baía de Benim e Baía do Biafra. Diz o autor que Álvares d’Almada testemunha as fortes ligações que os mercadores Mandingas estabeleciam com o comércio de longa distância no interior do continente, fala no Mandimança, o imperador negro a quem todos os negros da Guiné dão obediência, descreve ao pormenor os mercadores, as suas trocas comerciais e os mercados ao longo do Rio Gâmbia. Descrições cuidadas, como a que faz dos mercadores Mandingas:
“Este ouro, que aqui trazem, vem o mais dele em pó, e dele em peças e muito fino. Estes mercadores são bem entendidos, assim nos pesos como no mais. Trazem balanças mui subtis, marcetadas de prata, e cordões de retrós. Trazem os escritórios pequenos de couro cru, sem fechos, e nas gavetas trazem os pesos, que são de latão da feição de dados; e o marco é como uma maçã de espada. Trazem este ouro em canos de penas grossas de aves, e em ossos de gatos, escondido tudo em atilhos metidos pelos vestidos. Desta maneira, porque passam por muitos reinos, e são roubados muitas vezes, sem embargo de trazerem as cáfilas capitães e gente de guarda; e há cáfila que traz mais de mil frecheiros”.

É uma leitura sem rival, parece que regista tudo, ou é espião ou máquina registadora: como se vestem os mercadores mouros, as armas, as mercadorias dos circuitos de troca e atinge o seu apuro quando pretende imprimir à sua narrativa a configuração de que aquele mundo é paraíso terreal, e situa-se aqui aquele que será porventura o seu parágrafo emblemático:
“Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos, muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, canas-de-açúcar, muitos palmares, muita madeira excelente. Povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil, porque no Brasil não há mais do que açúcar, e o pau, e algodão; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar, há ferro, muita madeira para os engenhos, e escravos para eles”.

Segue-se a descrição dos reinos, de quem neles vive, não se esquece da navegabilidade dos rios, que há água potável, mas também animais, o que constitui a farmacopeia africana.

Como refere em conclusão o autor, a utopia de Almada construiu-se a partir da crença de que o Brasil era um sonho incerto, Sua Majestade bem podia apostar na ocupação territorial daquela ditosa Senegâmbia, assim afastaria as nações rivais, podia contar com segurança na economia esclavagista e criar uma nova classe de proprietários rurais.

A “carta de sedução” ficou para a História como documento inexcedível como observação e apresentação a um monarca de um novo mundo próspero ao seu alcance. Só que a utopia foi frustrada, o mundo deu outras voltas. E escreve o investigador: “O testemunho que nos deixou Almada revela de forma percursora uma nova visão sobre os homens e a natureza que passaram a figurar na sua narrativa como recursos a serem explorados. Neste sentido Almada é um autor moderno”.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22927: Notas de leitura (1412): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19958: Notas de leitura (1194): “Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao; Nota de Rodapé Edições, 2015 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Tive a felicidade de conhecer o Dr. Mamadú Jao em 2010, em visita ao INEP, de que era diretor, entreguei-lhe uma lembrança valiosa que me for transmitida pelo nosso confrade Humberto Reis: todas as cartas da Guiné Portuguesa, na escala de 1:50.000, as cartas com que trabalhávamos. O INEP ainda não se recompusera da tragédia da guerra civil, por ali se tinha aboletado a tropa senegalesa, que se aquecia com fogueiras alimentadas com documentos históricos, perda irreparável do património guineense, até os livros à venda estavam chamuscados.
Este trabalho do antropólogo dá-nos uma visão particular das respostas de organizações tradicionais num contexto de crise aguda em que as mulheres são as grandiloquentes protagonistas.

Um abraço do
Mário


Resistir à crise em Bissau: as estratégias dos Mancanhas (1)

Beja Santos

“Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao, Nota de Rodapé Edições, 2015, corresponde a um estudo de uma etnia e de uma etnicidade confrontado um processo social dentro de um estado frágil e num tempo em que se fala de globalização e desenvolvimento global – afinal, há organizações civis de sociedades que asseguram aquilo em que o Estado e as promessas globais estão ausentes.

Estudar os Mancanhas, como vivem e sobrevivência num país profundamente instável, tem outros aliciantes: alargar o debate sobre a sociedade civil até entender o real desempenho das sociedades étnicas e como estas ajudam a superar os fracassos cumulativos de modernização. Mamadú Jao é um nome proeminente nas ciências sociais da Guiné-Bissau, é antropólogo, foi investigador do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau durante mais de duas décadas, exercendo mesmo as funções de diretor. Foi professor universitário e atualmente é oficial do Fundo das Nações Unidas para a População. De há muito que se sentia aliciado para um estudo sobre as sociétés Mancanhas, as organizações informais de base comunitária. Reparou que os diferentes técnicos associados a programas de desenvolvimento rural não conheciam este tipo de organizações, que ele considera uma lacuna que prejudica qualquer projeto de desenvolvimento.

Tratando-se de uma obra de caráter científico, organiza a sua obra com a seguinte estrutura: a vida socioeconómica da Guiné-Bissau; debate à volta de conceitos para a abordagem do tema em estudo, tais como desenvolvimento, etnia, setor formal/informal, pobreza, crise, capital social, rural/urbano, entre outros; análise dos aspetos relacionados com a vida socioeconómica e política dos Mancanhas; análise do contexto socioeconómico criado na Guiné-Bissau com a adesão do país ao Programa de Ajustamento Estrutural; exame das formas concretas de ação da população Mancanha na cidade de Bissau que serviram de atenuantes face à difícil situação económica e social que a Guiné-Bissau vem enfrentando há décadas, o enfoque centra-se sobre as sociétés, um nome genérico a que os Mancanhas dão às suas organizações de base comunitária.

O investigador começa por nos dar o quadro geral do país, desde a caraterização socioeconómica e política, aprecia a situação política nas zonas libertadas e no período da independência com bastante detalhe, questiona o modelo de desenvolvimento para concluir que as diferentes propostas políticas desde a independência até à liberalização redundaram em fracasso.

Segue-se um capítulo dedicado à problemática do desenvolvimento e dos conceitos que lhe gravitam à volta, trata-se de um enquadramento teórico rigoroso e abrangente onde o autor aborda o desenvolvimento alternativo, o desenvolvimento participativo, o desenvolvimento sustentável, o desenvolvimento humano e o desenvolvimento solidário. Nesta aceção, revela estratégias possíveis de vivência e sobrevivência, o papel da economia informal, o binómio rural-urbano, e dentro desta linhagem de conceitos chegamos à etnia onde ele se detém em várias definições de que há vantagem em mencionar duas, a de Anthony D. Smith: “… existe grupo étnico na medida em que este é designado, ou se designa a si mesmo, por um nome colectivo, em que possui uma história comum, uma mesma cultura, a mesma religião, uma mitologia própria, uma noção de solidariedade, uma referência ou um território…”; e a de estudiosos da antiga União Soviética, para os quais as etnias “representam grupos humanos consolidados, que se criaram ao longo da história num território determinado e que possuem características linguísticas, culturais e psíquicas comuns e relativamente estáveis, assim como a consciência de si (a consciência da sua identidade e da diferença em relação a todas as demais formações similares fixadas num nome de designação colectiva)”.

Feito este enquadramento, chegamos à história dos Mancanhas. André Álvares de Almada, na sua obra “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de 1594, abre luz ao grupo étnico Brâme ou Buramo, confinam com os Felupes, povoando uma região do rio de S. Domingos. Deste antigo grande tronco Brâme derivaram Manjacos, Mancanhas e Papéis. Estudiosos do tempo da Guiné Portuguesa referiram a existência das localidades do território Brâme, correspondentes a povoações que ao tempo davam pelo nome de Pelundo, na atual região dos Manjacos, e Bula e Có onde existe uma elevada percentagem de Mancanhas. Para o autor o processo de desintegração do “império” Brâme terá começado nos últimos anos do século XIX. Há dados sobre as transações comerciais no território Brâme, são conhecidas as suas feiras. E o autor observa: “Este tipo de feiras semanais, também conhecidas como lumo, não só continua a existir na Guiné-Bissau, mas também expandiram-se vastamente por todo o território nacional. Contudo, o funcionamento de algumas dessas feiras sofreu algumas alterações. Por exemplo, na região dos Brâmes (Manjaco, Mancanha e Pepel), verificaram-se alterações em algumas localidades. É o caso de Bula (região dos Mancanhas). Antigamente o dia de lumo variava todas as semanas – por ordem decrescente, entre o primeiro e o sexto dia; atualmente, fixou-se o sábado como dia de lumo. Já em Canchungo (região dos Manjacos) mantém-se a regra antiga: a rotatividade através dos seis dias da semana e por ordem decrescente".

O autor assevera que as explicações sobre a origem e a história étnica dos Mancanhas baseia-se ainda muito em contos e lendas e exemplifica com trechos saborosos. O espaço Mancanha está confinado à atual superfície do setor administrativo de Bula, que representa cerca de 15% do território da região de Cacheu e 3% da superfície da Guiné-Bissau. No censo da população de 1950, a percentagem dos Mancanhas era de cerca de 5%, atrás, por ordem de importância das etnias Papel, Mandinga, Manjaco, Fula e Balanta. O autor dá-nos igualmente conta dos fluxos migratórios nacionais e internacionais, causas da emigração, e assim chegamos à organização sociopolítica deste grupo étnico.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15167: Notas de leitura (761): “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo-Verde”, de André Álvares d’Almada (1594) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
A nossa Guiné, na passado remoto, dava por vários nomes: Etiópia Menor, Terra dos Negros, Grande Senegâmbia, Guiné do Cabo Verde, entre outras designações.
Um euroafricano, o capitão André Álvares d’Almada percorre-a desde o rio Senegal até à Serra Leoa, fica este documento memorável, de rara beleza etnográfica que permite localizar onde estavam os povos que hoje ocupam a Guiné-Bissau e ver como há etnias, caso dos Beafadas e até dos Nalus que tinham muito mais importância do que na atualidade.
Esta versão foi editada pelo Ministério de Educação, merecia uma reedição e ampla divulgação na República da Guiné-Bissau, é um testemunho da aproximação dos povos, uma carta de amor sem rival.

Um abraço do
Mário


Uma importante edição de “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo-Verde”, de André Álvares d’Almada (1594)

Beja Santos

É uma edição cuja leitura se recomenda a todos aqueles a quem custa desbravar narrativas em português antigo. A capa desta edição é linda, traz um pormenor do mapa da Guiné publicado em Nuremberga, em 1743, A Vida na África Ocidental, segundo J. C. Reinsperger. O texto é modernizado por alguém que sabe da poda, António Luís Ferronha, tudo no âmbito do Ministério da Educação a propósito das comemorações dos Descobrimentos portugueses, 1994.

Ferronha recorda-nos que este precioso documento etnográfico só foi publicado em 1841. Se o bilhete de identidade da chegada dos portugueses à Guiné passa pela crónica de Gomes de Eanes de Azurara, seguir-se-ão duas obras fundamentais, o Tratado de André Álvares d’Almada, capitão crioulo natural de Santiago, Cabo Verde, e a Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné e Cabo Verde por André Donella, transcrição e anotação de Avelino Teixeira da Mota, Lisboa, 1977. Alguns estudiosos criticaram a narrativa Almada por conter episódios de intensa ferocidade, mostrado constantemente a cultura africana e as leis que banalizavam a escravatura. Acontece que quando os portugueses chegaram a África há muitos séculos que se praticava aqui a escravatura e Ferronha diz corretamente que “o comércio de escravos português só foi possível porque, de facto, existia essa escravatura, senão não poderia ter a amplitude que teve”.

No prólogo, André d’Almada recorda-nos a proliferação de reinos e de idiomas: “em cada espaço em menos de 20 léguas há duas e três nações, todas misturadas, e os reinos uns pequenos e outros grandes, sujeitos uns aos outros, e com as suas ceitas e costumes e as leis do seu governo”. Relembra-se ao leitor que esta Guiné aqui retratada nos finais do século XVI vai do rio Senegal até à Serra Leoa, era a chamada Terra dos Negros ou Grande Senegâmbia, André d’Almada por ali andou metido nos rios, “informei-me bem de todas as dúvidas, assim de nossos homens práticos nas ditas partes, como dos próprios negros, colhendo deles notícias das coisas acontecidas nas mesmas (…) o que disser, ainda que incompleto será na verdade”.


Fala em primeiro lugar dos negros jalofos, ainda no princípio do século XX se escrevia com a maior das naturalidades que no território que é hoje o Senegal viviam os jalofos, lembre-se que o capitão Teixeira Pinto recorreu dos préstimos de um bravo guerreiro, o jalofo Abdul Indjai, que receberá como prémio os regulados do Oio e do Cuor, mais tarde será severamente punido devido às suas práticas despóticas. Almada descreve detalhadamente o reino do Gran-Jalofo, narra barbaridades, atos de selvajaria, é muito cuidado no pormenor: “Estes negros andam vestidos com umas roupetas a que eles chamam camisas, de panos de algodão, pretos e brancos, da maneira que querem. As roupetas são degoladas dos mantéus, e as mangas chegam até aos cotovelos, e as camisas compridas que ficam dando um palmo por cima dos joelhos; e uma maneira de calças muito atufadas, digo calções muito avelutados, estreitos e justo por baixo nas pernas, os quais ficam dando por debaixo dos joelhos como os nossos; trazem as pernas nuas e nos pés umas alpercatas de couro cru…”. Ficamos a saber que havia cavalos, criação de gado vacum e cabrum e que os jalofos mandavam nos Fulas tratados por Fulos, “homens robustos bem-dispostos, a cor amulatada, os cabelos corredios, e ainda que algum tanto crespos trazem as barbas crescidas”. É neste território dos jalofos que Almada considera que está a terra mais sadia de toda a Guiné: “Correm nela muito bons ares. Há muito bons mantimentos, vacas, cabras, lebres, coelhos, gazelas, uns animais grandes como veados”.

Fala em elefantes, leões e onças. Nesse tempo já as perdizes eram conhecidas chocas. Como é pormenorizado fala na tinta que que se tingiam as roupas, dizendo que era a mesma com que se fazia o verdadeiro anil na Índia Oriental e descreve minuciosamente todo esse processo de fabrico. Ficamos igualmente a saber que da ponta de Cabo Verde (território continental) para baixo andam por ali ingleses e franceses adquirindo coiros, marfim, cera, âmbar e ouro entregando ferro e outras mercadorias que trazem de Inglaterra e França. A presença portuguesa desde esta ponta de Cabo Verde até ao rio da Gâmbia já era praticamente nula. No comércio feito por portugueses, entregavam-se cavalos, vinhos, bretanhas (tecidos finos de linho ou de algodão), contaria da Índia, entre outras mercadorias. A seguir ao reino dos jalofos vinham os Barbacins, aqui se entregavam cavalos para resgatar escravos, o principal rio da região é o rio da Gâmbia, Almada descreve o reino de Borçalo, fala da organização familiar, dos escravos e dos judeus: “Não sei de onde procederam. É gente formosa, principalmente as mulheres. Os homens são abastados de narizes”. Salta depois para o reino da Gâmbia, já estamos em território Mandinga, aqui faz-se resgate de ouro entregando-se manilhas de cobre. Acrescenta dados preciosos sobre os Mandingas que estarão presentes no Rio Grande e em S. Domingos. Vieram depois os Fulas e sujeitaram os Mandingas, como rolo compressor, com um exército espantoso, destruíram e assolaram tudo, “passando pela terra dos Mandingas, Cassangas, Banhuns e Buramos (Brames), que eram mais de 150 léguas, atravessando tudo até chegar ao Rio Grande, a terra dos Beafares (Beafadas) onde foram os Fulas rotos e vencidos”.

Descreve os hipopótamos a quem chama cavalos-marinhos: “têm a feição do corpo como de boi, e o corpo maior de um cavalo; e as mãos curtas, e tão curtas, que os negros nos seus arrozes, para que os não comam, fazem uns tapumes de madeira muito baixa, e não podem passar por cima dela por causa das mãos. E têm as unhas fendidas, repartidas em duas partes como as dos bois e a cabeça curta os dedos grandes, de palmo e mais, e menos tortos”. Ao tempo, os Mandingas tinham uma inegável importância política e territorial, Almada contextualiza a situação: “Este Reino dos Mandingas é muito grande, porque corre por este rio acima mais de 200 léguas; e está povoado todo de gente de uma banda e da outra. Pela banda do Norte se tem muitas léguas pelo Sertão até partir com os Jalofos, e quase que estão todos de mistura. E pela banda do Nordeste vai por cima dar na terra dos Beafares; e pela banda de Leste vai partir com os Cassangas e Banhuns”.

É a partir do capítulo sétimo do seu Tratado Breve que entramos propriamente na descrição do que é hoje a Guiné-Bissau: Felupes, reino do Casamansa, Brames, Bijagós, o Rio Grande (de Buba) terra de Beafares, os reinos dos Nalus, Bagas e Coquolins, e a partir do capítulo catorze já estamos no Cabo da Verga, no Reino dos Sapes, ou seja, entramos na Serra Leoa, na época ninguém tratava este território com qualquer associação ao que é hoje a Guiné Conacri.

Esta edição do Tratado Breve merecia uma reedição pela qualidade da modernização do texto e pelas notas elucidativas. É trabalho já feito pelas notas elucidativas pelo Ministério da Educação, é trabalho desbravado. Insista-se que é o bilhete de identidade da Guiné, um texto belíssimo, um esforço etnográfico meritório para quem não tinha ainda os ensinamentos teóricos operatórios de análise das sociedades. E quem escreveu este documento de importância irrefragável era um produto dos novos tempos, um euroafricano, alguém que vinha de Santiago e que se maravilhava com a espetacular Terra dos Negros.
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Notas do editor:

Vd. postes de:

30 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)
e
3 de janeiro de 2014 Guiné 63/74 - P12539: Notas de leitura (549): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15154: Notas de leitura (760): "O colonialismo português", Coleção Estudos Africanos, Edições Húmus Lda., 2013 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12539: Notas de leitura (549): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
A observação deste capitão da Ilha de S. Tiago está centrada no norte e no centro da Guiné, como hoje a conhecemos. É verdade que todo o relato começa no alto Senegal e findará na Serra Leoa. No que tange ao território atual as descrições começam no rio de S. Domingos, passam pelos Bijagós, e depois entusiasma-se com o reino dos Beafadas, a etnia então mais poderosa no Sul.
Temos aqui a descrição do comércio e dos seus povos. Ficamos a saber que havia pequenos elefantes e leões e o tão cobiçado anil, e havia mesmo ouro. Descrição poderosa, por vezes galvanizante.
Assim como a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, é o encontro com a história, este Tratado que marca o início das belíssimas narrativas sobre os povos da Guiné.

Um abraço do
Mário


Tratado breve dos rios da Guiné: A “cédula pessoal” do encontro luso-guineense (2)

Beja Santos

Se é verdade que o bordão do historiador é a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, a obra que marca o encontro entre os nautas portugueses e os povos da Guiné é esse fabuloso documento intitulado “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde”, da responsabilidade do capitão André Álvares de Almada. O relato começa com a descrição dos Jalofos, do rio de Sanagá, o tal rio que separa os mouros da terra dos negros. Impressiona a sua linguagem detalhada e clara, como segue exemplo: “Este Reino dos Jalofos era muito grande, e estava debaixo da obediência de um Rei muito poderoso, o qual era entre esta nação como Imperador, e quando se falava nele se dizia o Gran-Jalofo. Tinha outros reis que lhe davam obediência e pagavam tributos. Mas como o tempo costuma a desfazer a uns e levantar a outros, muitas vezes de nada, assim foi com este do Império dos Jalofos”. Desce ao pormenor falando dos seus costumes e trocas comerciais, outro exemplo: “As mercadorias que levam os nossos a estas partes são cavalos, vinhos, bretanhas, contaria da Índia chamada da fémea limpa e boa, e o cano de pata, que é a mesma contaria comprida, outra da mesma contaria redonda, do tamanho de uma avelã e maior. Toda esta contaria é estimada entre eles é o tesouro e joias que eles têm. Estimam também o ouro; compram algumas peças feitas, vinta-quatreno vermelho, grão, margarideta, continha de Veneza, papel, coral miúdo, e búzio miúdo, o qual corre como dinheiro para gastos. Nesta costa se acha muito âmbar, e o rei do sertão dela tem muita quantidade dele, porque de todo o que acham os negros lhe dão sua parte, e tem tanta quantidade que tem dentro dos seus paços um modo de casa de barro, como forno de cozer pão, e o tem cheio dele e em muita estima”.

Dos Jalofos passou à descrição dos Barbacins, depois o reino da Gâmbia, chega então à barra de S. Domingos, descreve os Falupos (Felupes), o reino de Casamansa, o reino dos Buramos (Brames), que confina com os Balantas, e ao Beafares. A navegação prossegue até ao reino dos Bijagós e à terra dos Beafares, a descrição é cuidadosíssima: “Este Beafares não tem as suas casas aldeadas como as outras nações, senão afastadas algum tanto umas das outras, e as fazem segundo a pose de cada um, e no lugar onde as fazem vivem ali os parentes todos juntos, reconhecendo ao mais velho a quem dão obediência; e por isso em alguns casos de Juízos e Leis que entre eles há, sendo condenados algumas vezes os maiores a perdimento de bens e liberdade, se cativa uma geração. Vivem apartados em casas de taipa cobertas de palhas, às quais, como cá se chama entre nós Quintas, chamam eles Polonias, e há algumas de alguns fidalgos muito grandes de muitas casas”. Álvares de Almada revela uma atenção enorme sobre as culturas, hierarquias sociais, está atento às inclemências do tempo: “Esta terra de Biguda é toda coberta de muitos matos e arvoredos; chove nela muito; dão grandes trovões; caem muitas pedras de corisco. Usa Nosso Senhor com estes Gentios de sua misericórdia grandemente, porque lhes dá água em abastança e muitos temporais, e o inverno com tanta temperança que não pode mais ser; porque ainda que chova muita água, logo torna o tempo sereno e bom; e desta maneira cria a terra muito. E ainda que esteja o tempo claro, arma-se uma nuvenzinha pequena, que vai-se fazendo maior; e quando se não precatam começam de roncar os trovões; dá um grande pé-de-vento, e antes de dar há de acalmar o outro que ventava de antes; e dando o vento dura por espaço de um quarto de hora ou mais; deixa-se descarregar tanta água que não há pode-la esperar; tanto que choque que logo cessa o vento e dura a água uma hora ou duas; depois torna a esclarecer tudo e a fazer sol; e por isso tem tão boas novidades”.

Estamos portanto em pleno Sul da atual Guiné, e começa a descrição dos reinos dos Nalus, Bagas e Coquolins, descreve o comércio do rio grande de Buba, com todo o detalhe: os Nalus vendem escravos, esteiras finas, pequenos dentes de marfim, eram terras em que se matavam muitos elefantes e segue-se uma descrição pormenorizada: “Estes negros, não sei porque arte, se metem debaixo dos elefantes com umas azagais muito largas e grandes, e metendo-se dão-lhes com aquela arma e as mais vezes que podem, e acolhem-se. Começa o elefante de correr a uma e a outra parte, e vão-lhe caindo as tripas delgadas, e com as mãos e pés as vão trilhando e quebrando até que morre. Vai o negro pelo rasto do sangue dar com ele morto. Desfazem-no; dão ao rei o que tem dali, que são as mãos e pés e a tromba; o mais comem eles. Perguntando algumas vezes a alguns negros como se metem debaixo daquele animal tamanho e tão espantoso; respondiam que comiam mesinha para isso. Seja como for, eles o fazem; descreve os búfalos, o gado vacum, fala em onças e leões, a terra destes Nalus é grande, o comércio era feito por povo entreposto, os Beafares. Outra preciosidade para o comércio era o anil, tintas muito procuradas e explica a técnica a partir de árvores como hera e que vão trepando pelas outras árvores e têm as folhas largas: “E os negros, no tempo, apanham estas folhas e as pisam, e fazem uns pães como de açúcar, assim grandes, enfolhados com as folhas de cabopa, e vêm os nossos navios carregarem-se destas tintas, que é um grande trato, para o rio de S. Domingos. E já nos outros anos, governando a Rainha D. Caterina, que Deus haja, se mandou carregar e trazer à cidade de Lisboa uma caravela destas tintas, para as experimentarem, isso levou a Cádis parte da tinta. Não sei de que modo a acharam, mas sei que da ilha de S. Tiago se levou por muitas vezes a tinta que se nela faz a Sevilha e a Cádis e a acharam boa e da erva de que se faz o verdadeiro anil”. Fica-se igualmente a saber que esta tinta era levada para o rio de S. Domingos e utilizada pelos Brames e os Banhuns, e mesmo comercializada no Casamansa, resgatada por escravos.

A viagem no que é a Guiné-Bissau está praticamente a findar. Refere ainda os Bagas, muito atraiçoados isto é matavam à traição, com ritos absolutamente selvagens: “E em os matando cortam-lhes as cabeças e dançam com ela. E depois as cozem e tiram a carne toda, e limpas de carne e miolos bebem por elas, servindo-lhes de púcaros. Nisto não há dúvida. E quantos mais vasos tiver um negro em sua casa mais honrado é. E hão de entender que não hão de ser somente de brancos, se não de quaisquer pessoas que eles possam matar. Suas armas são umas azagais de uns ferros largos e compridos. Usam espadas, frechas e adargas de verga e rota boas. Têm suas almadias, que navegam de uma parte para a outra, e de rio em rio ao longo da terra”.

E assim se chega ao Cabo da Verga, dobrado chega-se ao rio das Pedras, o reino dos Sapes, vamos ter descrições até à Serra Leoa, assim descrita: “Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos; muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, limoeiros, canas-de-açúcar, muitos palmares, e muita madeira excelente. Povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil, porque no Brasil não há mais do que açúcar, e o pau, e algodão; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar; há ferro, muita madeira para os engenhos, e escravos para eles”. Texto sugestivo em que Álvares de Almada sugere ao rei que venha gente da Europa e de Cabo Verde para aqui, aqui há riqueza, é melhor deixar empresas duvidosas e povoar território fértil até à Costa da Malagueta. E assim se despede de El Rei, com o desejo de ver esta terra povoada de cristãos.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Impossível estudar a história da Guiné sem apreciar a primeira peça historiográfica, o "Tratado breve dos rios da Guiné".
É incompreensível como nunca se tenha feito uma reedição com o português actualizado. É um documento cheio de detalhe, como se o autor, à luz dos conhecimentos actuais, possuísse a preparação de etnólogo e etnógrafo. Percorreu a muito pouco definida Senegâmbia, vê-se que sabe do que está a falar, desde a economia à religião. Dá para entender a frágil presença portuguesa, tirante alguns pontos dos rios, tudo pelo diverso comércio, percebe-se a importância do tráfico de escravos. asseguro-vos que nada há aqui de enfadonho, é uma peça historiográfica que deve encher de orgulho portugueses e guineenses.

Um abraço do
Mário


"Tratado Breve dos Rios de Guiné": 
A “cédula pessoal” do encontro luso-guineense (1)

Beja Santos

Em 1594, o capitão André Álvares de Almada, natural da ilha de S. Tiago escrevia o documento mais importante sobre o encontro luso-guineense: "Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde"; desde o rio de Sanagá até aos Baixos de St.ª Ana; de todas as Nações de Negros que há na dita Costa, e dos seus costumes, armas, trajes, juramentos e guerras. Elementos mais valiosos, riqueza documental assim, não existiam na nossa historiografia. No entanto, o trabalho de André Álvares D'Almada andou esquecido. Deve-se a Diogo Köpke, em 1841, relevando trabalho de ter preparado a edição do Tratado, feita à base de um manuscrito que estava recolhido na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Em 1946, no âmbito das comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, dava-se à estampa a edição nova do tratado.

Não percamos tempo naquilo que toda a gente sabe: a Guiné que aqui se descreve ia desde o alto Senegal até à Serra Leoa; a Guiné do Cabo Verde tem a ver não com o arquipélago mas com o cabo do mesmo nome, em território continental; Álvares de Almada percorreu a costa e entrou em diferentes rios, diz no prólogo que foi pelo rio Gâmbia 150 léguas; e os primeiros capítulos registam exatamente povos que não ocupavam o território que foi o da Guiné portuguesa e é hoje o da Guiné-Bissau, os Jalofos, o reino dos Barbacins e Mandingas, o reino da Gâmbia, o território dos Arriatas e Falupos, e por fim o reino do Casamança. É nesta complexidade de observações que se encontram elementos de indiscutível importância, mas para o conhecimento mais alargado de toda a região.

É a partir do chamado reino dos Buramos (não esquecer a então influente etnia Brame) e dos Falupos do rio de São Domingos que estamos chegados ao território atual. Diz o cronista: “A primeira povoação está com 8 léguas de entrada ao longo do rio de S. Domingos, chamado pelo nome de Farim. As casas da dita povoação são de taipa, como as de Casamança, com grandes cercas de paus fincados a pique feito um muro de palha a que chamam Tapadas”. Aqui havia artilharia numa fortificação para defender este território das intrusões de ingleses e franceses, forte mandado edificar por Manuel Lopes Cardoso, vizinho da ilha de S. Tiago. A povoação ao lado do forte teria 700 a 800 pessoas e imperava a fé cristã. Os ingleses e franceses queriam comerciar couros, cera e marfim. E tece um comentário: “Os negros nesta terra, os cortesãos que andam da corte dos reis com quem tratam os nossos, andam vestidos com umas roupetas compridas e uns panos cingidos, e por debaixo desses panos trazem uma pele. Os mais do sertão andam nus. As armas que trazem são espadas curtas, facas, azagais, adargas, frechas”. O rei dos Buramos ia ao forte assistir à missa, a presença cristã ao tempo era incontestável. E o autor insiste na necessidade de se fundar na ilha de S. Tiago uma casa de religiosos para vir aqui missionar. S. Domingos era terra dos Banhus, aqui havia uma aldeia grande e se praticava o tráfico de escravos. Temos aqui descrições primorosas sobre usos e costumes, descrevem-se também Casangas, caçadores de elefantes e explica a arte da caça. Observa que no rio de S. Domingos há mais escravos que em todos os outros da Guiné, porque nele participam Banhuns, Buramos, Casangas, Jabundos, Falupos, Arriatas e Balantas. Ficamos a saber que os Buramos são bons e serviçais escravos, e que limam os dentes.

E segue-se a descrição dos Bijagós e dos seus costumes: são muito guerreiros, pelejam com os Buramos e Beafares, não há rei entre eles, fazem as suas povoações ao longo do mar, atravessam muitas vezes mais de dez léguas e vão até o Rio Grande, terra dos Beafares e fazem grande destruição. Os homens não fazem mais que três coisas – guerra, fazer embarcações e tirar o vinho das palmeiras; as mulheres fazem as casas, e as searas, pescam e fazem todo o mais serviço que fazem os homens em outras partes. Os aspetos de retenção do pitoresco são de um grande observador, serve como exemplo: “As mulheres andam despidas da cinta para cima; trazem um modo de saias feitas das folhas da palma, que dão por cima dos joelhos. As paridas trazem os filhos nos braços, atados numas correias de couro cru, que trazem ao pescoço, com que sustentam e têm as crianças (…) Os negros Bijagós são mui pretos, deles gentis homens; não furam as orelhas; as mulheres sim. Alguns limam os dentes de maneira que fiquem abertos e não agudos”.

O registo muda agora de orientação, vai para o Rio Grande, Terra dos Biafares: “Esta terra dos Beafares é muito grande, e assim como é grande há muitos reis, uns metidos pelo sertão, outros ao longo do rio. No reino de Guinala, que é a primeira pernada, anda o reinado em duas gerações, na dos fidalgos e na dos plebeus. Há tempos que herdam os fidalgos e entram no reinado, e há tempos que herdam os plebeus – ferreiros ou sapateiros. E sabem os que governam quando cabe a qualquer destas gerações. E entram no reinado sem guerra nem dissensões, porque não elegem para haver de ser rei senão um muito velho, e nunca os fazem mancebos; e estes velhos vivendo muito os matam”. Depois de dizer que os Beafares são grandes ladrões, descreve a roupa: “Estes negros andam vestidos em umas camisas compridas que lhes dão pelos joelhos, e uns panos cingidos até meia perna, e por debaixo deles trazem umas peles de cabra curtidas sem cabelos”. A missionação é inexistente: “O bispo da ilha de S. Tiago manda todos os anos visitar neste rio como faz no de S. Domingos, mas nenhum fruto resulta de tal visitação. Se se pode dizer, tenho para mim que a causadora de viverem da maneira que vivem. Falo nisto outra vez, porque me pesa ver entre cristãos tanto desamparo. Nesta aldeia dos nossos estiveram no ano de (15)84 uns frades carmelitas descalços que com o seu modo de vida e doutrina faziam grande fruto; por onde me parece que por falta de quem pregue a Doutrina e Palavra de Deus não há hoje nestas paragens muita Cristandade”.

E o cronista discorre sobre a fixação de gentes, o comércio de escravos e a pacificação dos autóctones: “Não deixará de alterar-se o preço dos escravos e das outras mercadorias povoando-se esta terra, mas é necessário que se acuda mais ao serviço de Deus que ao proveito dos homens. Digo isto porque depois que os nossos se aldearam e se puseram todos a par do forte, compram-se os escravos e o mais que na terra há por mais preço do que soia ser; porque antigamente estavam afastados, aposentados em casas de fidalgos uma légua e meia, uns dos outros, e lhes acudia mais resgate, e não abatiam uns aos outros, e eram guardadas suas pessoas dos seus hóspedes e dos seus parentes. Hoje saindo os nossos fora da aldeia tratam-nos os negros mal, e não são seguros como dantes, dizendo que querem estar por força na sua terra. Chamo tratar mal, se fizerem os nossos ou seus escravos qualquer desaguisado não o sofrem os negros, e sobre isso há muitas brigas, e às vezes mortes; o que não era dantes”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12511: Notas de leitura (547): "Portugal em África", por Richard Pattee (Mário Beja Santos)