Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Guiné 61/74 - P19958: Notas de leitura (1194): “Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao; Nota de Rodapé Edições, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2016:
Queridos amigos,
Tive a felicidade de conhecer o Dr. Mamadú Jao em 2010, em visita ao INEP, de que era diretor, entreguei-lhe uma lembrança valiosa que me for transmitida pelo nosso confrade Humberto Reis: todas as cartas da Guiné Portuguesa, na escala de 1:50.000, as cartas com que trabalhávamos. O INEP ainda não se recompusera da tragédia da guerra civil, por ali se tinha aboletado a tropa senegalesa, que se aquecia com fogueiras alimentadas com documentos históricos, perda irreparável do património guineense, até os livros à venda estavam chamuscados.
Este trabalho do antropólogo dá-nos uma visão particular das respostas de organizações tradicionais num contexto de crise aguda em que as mulheres são as grandiloquentes protagonistas.
Um abraço do
Mário
Resistir à crise em Bissau: as estratégias dos Mancanhas (1)
Beja Santos
“Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao, Nota de Rodapé Edições, 2015, corresponde a um estudo de uma etnia e de uma etnicidade confrontado um processo social dentro de um estado frágil e num tempo em que se fala de globalização e desenvolvimento global – afinal, há organizações civis de sociedades que asseguram aquilo em que o Estado e as promessas globais estão ausentes.
Estudar os Mancanhas, como vivem e sobrevivência num país profundamente instável, tem outros aliciantes: alargar o debate sobre a sociedade civil até entender o real desempenho das sociedades étnicas e como estas ajudam a superar os fracassos cumulativos de modernização. Mamadú Jao é um nome proeminente nas ciências sociais da Guiné-Bissau, é antropólogo, foi investigador do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau durante mais de duas décadas, exercendo mesmo as funções de diretor. Foi professor universitário e atualmente é oficial do Fundo das Nações Unidas para a População. De há muito que se sentia aliciado para um estudo sobre as sociétés Mancanhas, as organizações informais de base comunitária. Reparou que os diferentes técnicos associados a programas de desenvolvimento rural não conheciam este tipo de organizações, que ele considera uma lacuna que prejudica qualquer projeto de desenvolvimento.
Tratando-se de uma obra de caráter científico, organiza a sua obra com a seguinte estrutura: a vida socioeconómica da Guiné-Bissau; debate à volta de conceitos para a abordagem do tema em estudo, tais como desenvolvimento, etnia, setor formal/informal, pobreza, crise, capital social, rural/urbano, entre outros; análise dos aspetos relacionados com a vida socioeconómica e política dos Mancanhas; análise do contexto socioeconómico criado na Guiné-Bissau com a adesão do país ao Programa de Ajustamento Estrutural; exame das formas concretas de ação da população Mancanha na cidade de Bissau que serviram de atenuantes face à difícil situação económica e social que a Guiné-Bissau vem enfrentando há décadas, o enfoque centra-se sobre as sociétés, um nome genérico a que os Mancanhas dão às suas organizações de base comunitária.
O investigador começa por nos dar o quadro geral do país, desde a caraterização socioeconómica e política, aprecia a situação política nas zonas libertadas e no período da independência com bastante detalhe, questiona o modelo de desenvolvimento para concluir que as diferentes propostas políticas desde a independência até à liberalização redundaram em fracasso.
Segue-se um capítulo dedicado à problemática do desenvolvimento e dos conceitos que lhe gravitam à volta, trata-se de um enquadramento teórico rigoroso e abrangente onde o autor aborda o desenvolvimento alternativo, o desenvolvimento participativo, o desenvolvimento sustentável, o desenvolvimento humano e o desenvolvimento solidário. Nesta aceção, revela estratégias possíveis de vivência e sobrevivência, o papel da economia informal, o binómio rural-urbano, e dentro desta linhagem de conceitos chegamos à etnia onde ele se detém em várias definições de que há vantagem em mencionar duas, a de Anthony D. Smith: “… existe grupo étnico na medida em que este é designado, ou se designa a si mesmo, por um nome colectivo, em que possui uma história comum, uma mesma cultura, a mesma religião, uma mitologia própria, uma noção de solidariedade, uma referência ou um território…”; e a de estudiosos da antiga União Soviética, para os quais as etnias “representam grupos humanos consolidados, que se criaram ao longo da história num território determinado e que possuem características linguísticas, culturais e psíquicas comuns e relativamente estáveis, assim como a consciência de si (a consciência da sua identidade e da diferença em relação a todas as demais formações similares fixadas num nome de designação colectiva)”.
Feito este enquadramento, chegamos à história dos Mancanhas. André Álvares de Almada, na sua obra “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de 1594, abre luz ao grupo étnico Brâme ou Buramo, confinam com os Felupes, povoando uma região do rio de S. Domingos. Deste antigo grande tronco Brâme derivaram Manjacos, Mancanhas e Papéis. Estudiosos do tempo da Guiné Portuguesa referiram a existência das localidades do território Brâme, correspondentes a povoações que ao tempo davam pelo nome de Pelundo, na atual região dos Manjacos, e Bula e Có onde existe uma elevada percentagem de Mancanhas. Para o autor o processo de desintegração do “império” Brâme terá começado nos últimos anos do século XIX. Há dados sobre as transações comerciais no território Brâme, são conhecidas as suas feiras. E o autor observa: “Este tipo de feiras semanais, também conhecidas como lumo, não só continua a existir na Guiné-Bissau, mas também expandiram-se vastamente por todo o território nacional. Contudo, o funcionamento de algumas dessas feiras sofreu algumas alterações. Por exemplo, na região dos Brâmes (Manjaco, Mancanha e Pepel), verificaram-se alterações em algumas localidades. É o caso de Bula (região dos Mancanhas). Antigamente o dia de lumo variava todas as semanas – por ordem decrescente, entre o primeiro e o sexto dia; atualmente, fixou-se o sábado como dia de lumo. Já em Canchungo (região dos Manjacos) mantém-se a regra antiga: a rotatividade através dos seis dias da semana e por ordem decrescente".
O autor assevera que as explicações sobre a origem e a história étnica dos Mancanhas baseia-se ainda muito em contos e lendas e exemplifica com trechos saborosos. O espaço Mancanha está confinado à atual superfície do setor administrativo de Bula, que representa cerca de 15% do território da região de Cacheu e 3% da superfície da Guiné-Bissau. No censo da população de 1950, a percentagem dos Mancanhas era de cerca de 5%, atrás, por ordem de importância das etnias Papel, Mandinga, Manjaco, Fula e Balanta. O autor dá-nos igualmente conta dos fluxos migratórios nacionais e internacionais, causas da emigração, e assim chegamos à organização sociopolítica deste grupo étnico.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)
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