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quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18890: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): Junto às dunas

Um pôr- do- sol em Espinho


1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 14 de Julho de 2018 enviou-nos mais uma memória da sua guerra.


Outras memórias da minha guerra

31 - Junto às dunas

Pintura do mar de Paramos

Sempre que sinto necessidade de espairecer as ideias ou de relaxar o físico, vem-me à cabeça a proximidade do mar, da sua brisa iodada, do ruído musical das ondas, das areias e das suas dunas. E quase instintivamente me encaminho para lá, para as proximidades de Espinho. É pena que agora, por questões de saúde, não possa resistir ao vento e à baixa temperatura e tenha que regressar, grande parte das vezes.

Ali chegado, instintivamente, faço o meu zapping panorâmico sobre o mar azul, verde ou prateado e deleito-me a olhar as ondas, ora lentas, sussurrantes e preguiçosas, ora apressadas, resmungonas e revoltadas. Sempre as compreendi e sempre as aceitei como são. É que são milhões e milhões de anos de experiência que não podemos nem devemos sequer contestar. De seguida, olho a praia, nua ou quase, seca ou molhada, ao longo do horizonte, seja na direcção de Espinho, Aguda, Silvalde ou de Esmoriz. Quase sempre vislumbro algum casal de humanos, aparentemente em relação amorosa. Digo “aparentemente”, porque no meu tempo o amor parecia-me uma coisa mais forte.

Passadiço a ser engolido pelas areias das dunas

Desta vez, apesar de já estarmos em fins de Junho, ainda é raro apanhar um dia de sol aberto. Havia optado por Paramos. Respiro fundo várias vezes, absorvendo aquele ar salgado da brisa do norte, inigualável, com que me identifico a “snifar” desde criança. Dali, junto à Capela de S. João, aproveito o passadiço de madeira e sigo na direcção de Esmoriz. Todavia, já se me torna difícil chegar à Barrinha, àquela zona beneficiada pelo programa Polis Litoral Ria de Aveiro. Os melhoramentos são bem evidentes, mas nunca capazes de nos fazer reviver aqueles belos tempos dos anos 60.

A Barrinha de outrora está assoreada e cheia de arbustos

Por vezes, quando me sinto mais forte, sigo pela margem direita (norte) da Barrinha, passo pela zona outrora mais isolada (apesar de descoberta e bem visível, os “espreitas” rastejavam até junto dos carros) e sigo, aproximando-me do ao antigo Bar Motel e do actual Restaurante Hélice, nas instalações do Aero Clube de Espinho, onde se come um excelente Bacalhau Assado com Broa.

Por falar em comer, tenho que referir também o Restaurante Casarão, propriedade do Camarada da Guerra na Guiné, Orlando Santos, especializado aqui, em Polvo à Lagareiro e grelhados de peixe.

Restaurante do camarada Orlando, com o GACA 3 ao fundo

Pois, desta vez, limitei-me ao trivial: caminhar calmamente numa distância de aproximadamente uns 500 metros e deixar-me envolver pelas dunas onde, outrora saboreava horas de enlevo e de enredo, de mais ou menos intensidade. Por mais que me esforce, nunca vejo as mesmas dunas desse tempo. Estas, que aparentam ser iguais, não me conseguem mostrar os sítios mais ou menos côncavos onde muitas vezes me abriguei. Também são belas e acolhedoras. Porém, mesmo familiares das outras, já serão de outra geração e possivelmente também bem acolhedoras como as suas antepassadas.

Plantas rastejantes nas dunas

Enquanto os tufos de estorno continuam a abanar-se na sua luta permanente pela detenção das finas e esvoaçantes areias, cardos, cactos e chorões, sobressaem bem posicionados e bem protegidos pelos ventos agrestes.

Noutro tempo, quando embebidos nos enredos amorosos,“ouvíamos” e mostrávamos apreço às habituais dissertações poéticas das nossas companheiras. Elas, num nítido ritual de inocente sedução, mostravam-nos plantas, conchas, búzios e flores de vários tamanhos e matizes. Recitavam poemas e frases profundas, todavia, qual o instinto matador do macho latino, a nossa sensibilidade de momento exponenciava-se obcecada e exageradamente, através do “tesão” e do acumular de esperma nos “reservatórios”, já doridos de tanto encherem.

Dunas na direcção de Esmoriz

É claro que as dunas sempre nos deram uma ideia de extensão não arável, de areias mortas e de deserto.
Mais tarde, em pleno deserto do Kalahari, testemunhei a imensidão de vida e beleza que nelas podemos verificar.
E é isso que agora muito valorizo. Agora há tempo de sobra, a sensibilidade alterou-se e o “tesão” foi-se (afastando), deixando-nos ocupados na conquista de algumas boas… fotos.

Chorões das dunas de Paramos

Feita a caminhada/passeio, dirijo-me ao pequeno Bar improvisadamente instalado na parte mais alta da praia. Devido à brisa fresca, sentei-me de costas para o mar, encostado à divisão protectora e virado para o “nosso” GACA 3.

Agora, recordo as histórias ali vividas onde, algumas delas se relacionavam fortemente com as redondezas do Quartel. E delas, hoje, devo destacar esta, que segue.

Foi naquele Sábado, 23 de Junho do ano de 1966. Era a véspera do S. João, início de fim-de-semana propício aos maiores “desenfianços”. Eu estava de Sargento-Dia ao Batalhão, mas não faltei aos famosos festejos da noitada "imbiqueta". Junto ao Apeadeiro de Paramos, haviam instalado um altifalante voltado para o Quartel que, desde o início da tarde, botava música popular em elevados decibéis, aparentemente arranhados pela areia entranhada nas ranhuras dos discos vinil.
Cerca das 15H00 entrou o Comandante Calejo que deixou indicações para que o Piquete reunisse às 16H00.

A notícia bem correu, mas o pessoal, maioritariamente, não apareceu. Para não fazer estragos, o CMDT deu uma hora ao jovem Oficial de Piquete, para ter a “chance” de mandar regressar ao Quartel os dançarinos que estavam em gostosa actuação.
Mesmo assim, informados da situação, os dançarinos, garbosamente vestidos à sua moda (sapatos e camisa civil e calças e boinas da tropa), agarrados às moças, gozam o Estafeta com divertidas respostas em voz alta:
- Diz ao Aspirante que somos velhinhos. Temos 31 meses e estamos à espera da peluda;
- Explica a esse morcon que a velhice é um posto;
- Que faça queixa ao Comandante;
- Que traga a namorada p’rá gente.

Tocou a Piquete, mas às 17H15, continuavam em falta 3 militares – o trio que continuava inebriado no bailarico de S. João.
Sei que foram castigados e que, perante tal desobediência, seguiram para uma Unidade de Mobilização.

Praia sul, junto à capela

Ao regressar à actualidade/realidade, verifico que, na minha frente, uma jovem trintona, bastante nutrida e de biquíni pouco “suficiente”, se fora sentar em atitude aparentemente provocadora.

De pernas abertas, com as avantajadas mamas quase saídas do biquíni e pousadas sobre a pequena mesa, com os cotovelos a protegê-las, ela, agarrava afincadamente, com as duas mãos, um enorme corneto-gelado castanho, que lambia gulosamente, em posições diversas. Ao mesmo tempo que lhe escorriam pingos do gelado derretido pelo rego das mamas, ela sacudia a madeixa de cabelo que lhe ia entrando pelo canto da boca.
Eu não queria ser influenciado pela “actuação” da rapariga. Porém, pensei:
- Será que o meu Don Quixote, apesar de capado, resistiria a tal espectáculo?

JFSilva da Cart 1689

Praia sul de Paramos

Capela de S. João de Paramos e um pôr-do-sol

Passadiço sobre as dunas de Silvalde, na direcção de Espinho
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18807: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O anjo excomungado

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17030: Estórias avulsas (87): Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

GACA 3 - Companhia de Instrução


1. Em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2017, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) fala-nos do seu começo nas fileiras no Exército Português.


Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 

A cidade de Espinho era detentora de uma unidade militar denominada Grupo de Artilharia Contra Aeronaves, (GACA3) unidade na qual me apresentei para começar a cumprir o serviço militar, ficando adstrito à 1.ª companhia.

Na minha passagem pelo GACA3, ficou na minha memória um episódio entre mim e um Tenente,  por uma suposta falta de respeito, segundo ele por não fazer a continência que lhe era devida, onde mostrou todo o "poder" dos galões que usava, obrigando-me a fazer flexões sobre uma poça de água, ficando eu todo encharcado, pois chovia imenso nesse dia, e sem farda para continuar a instrução já que tinha utilizado a outra durante a manhã, que estava molhada e a secar. O dito oficial ainda não estava satisfeito com o castigo aplicado e, vai daí cortou-me o fim-de-semana, o que me provocou uma certa revolta interior.

Mas, com atitude deste oficial, comecei a aprender o que era a imposição do serviço militar obrigatório e tudo o que lhe estava subjacente, porque queiramos ou não, havia oficiais naquela época que abusavam da patente para enxovalhar e espezinhar o seu semelhante, dando assim prazer ao seu ego.

 Abel Santos no GACA 3, é o terceiro a partir da direita na fila de baixo.

Abel Santos no RAP 2, é o primeiro à direita.

Passado o tempo de recruta, fui colocado no Regimento de Artilharia Pesada 2, ao tempo sediado em Vila Nova de Gaia, onde me apresentei a 28 de Abril de 1967, para me especializar em atirador, sendo colocado na 3.ª companhia - 3.º pelotão.

Durante o tempo passado no RAP2 analisei que as chefias tinham uma postura diferente em relação aos seus subordinados, em relação ao que se passou comigo no GACA3, talvez por serem milicianos, ou tinham mandado às malvas a educação nacionalista. O que sei, é que souberam reunir à sua volta aqueles rapazes incutindo nas suas mentes o sentido da amizade e solidariedade, construindo assim uma família de grande fervor castrense.

O Batalhão que estava a ser formado, do qual não me recordo do número, foi mobilizado para Angola, tendo eu ficado no RAP2, e adstrito à Companhia de Comandos e Serviços (CCS) até ser mobilizado para a Guiné. Apesar da instrução ministrada durante a especialidade ser dura, não dando tréguas ao pessoal, mas que aproveitei ao máximo, pois mais tarde usufrui dessa preparação na frente de combate.

No dia 20 de Junho de 1967 estando eu na formatura para o almoço, o comandante da CCS, Tenente Campos, convocou-me para uma reunião no seu gabinete pelas 14 horas, o que me levou a ficar desconfiado que algo se estava a passar, e coloquei a pergunta; estou mobilizado? Respondendo com um gesto de cabeça que sim, e após insistência minha me diz que o meu destino era a Guiné.

A cidade de Penafiel no distrito do Porto era ao tempo detentora de uma unidade militar denominada Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, (RAL5) na qual me apresentei, ido do RAP2, no dia 21 de Junho de 1967, sendo colocado na CART 1742 “ Os Panteras” sob o comando do saudoso capitão Álvaro Lereno Cohen.

 Antigo RAL 5 de Penafiel

Chegado a Penafiel, a CART já lá não se encontrava, estando a aguardar embarque no Regimento de Infantaria n.º 6 na cidade do Porto, para onde me dirigi, apresentando-me a 22 de Junho, sendo incorporado no 4.º grupo de combate - 3.ª secção do Alferes Magalhães.

Caros camaradas, assim foi o meu começo nas fileiras do Exército Português, ao qual ainda hoje me orgulho de ter pertencido.

Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16643: Estórias avulsas (86): O velho problema da falta de meios nas Transmissões (José Luís Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista, 2ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16125: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Memórias de guerra ou guerra de memórias?

1. Em mensagem do dia 16 de Maio de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mais uma das suas "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias  da minha guerra

23 - Memórias de guerra ou guerra de memórias?

Não fora o miserável vencimento de Cabo Miliciano, aquele Verão de 1966 teria sido um dos melhores de sempre.
Estava “hospedado” em Espinho, uma das melhores estâncias de veraneio do País, perto de casa e dos amigos, bem servido pelo serviço hoteleiro do GACA 3 e dispondo das excelentes oportunidades de “desenfianço”; estava eu a viver uma tropa “peluda” sem igual. Aquele meio ano de praia contínua, recheado de oportunidades amorosas e de abundantes convívios, afastou-me da ideia que ainda havia muito tempo de tropa por cumprir.

E quando chegou a mensagem de que deveria ir a Lamego prestar provas para os “Rangers”, ainda restou a esperança de que não ficaria lá, em virtude das más provas que iria prestar. Porém, de nada valeram aquelas simulações de fraqueza, pois o destino estava traçado: ficar em Lamego e obter o melhor aproveitamento, porque seria, inevitavelmente, mobilizado.

Decorriam, ainda, os festejos da Sr.ª da Ajuda, naquele final de Setembro, quando entrei para o comboio, precisamente ali diante do picadeiro, onde tantas vezes nos deleitávamos com o desfilar das maiores belezas da nossa juventude. Naquela viagem até Lamego, agora já para frequentar o curso, em que não me relacionei com ninguém, tive tempo para analisar a nova situação e tomar sérias decisões.

Naquele tempo não era nada fácil sair do CIOE de Lamego, durante os fins-de-semana. As poucas “dispensas-surpresa” e a dificuldade de ligação dos transportes até casa, não davam hipóteses do “tal” gozo de fim-de-semana. Este isolamento veio favorecer a decisão de desligar quaisquer relações amorosas que pudessem evoluir ou manter compromissos.

Assim, todas as folgas seguintes foram aproveitadas para o gozo descontraído em convívios, onde se procurava também afastar a guerra do pensamento. É certo que já pensava na necessidade de correspondência amistosa, mas estava decidido a nem sequer vir a ter “madrinha de guerra”.

Porém, num Domingo em que alterámos o circuito das visitas às jovens do interior de St.ª Maria da Feira, muito simpáticas especialmente nos magustos que nos proporcionavam, rodámos em sentido contrário, seguindo de Canedo para Lever, entrando no leste de Vila Nova de Gaia, e assentámos em Crestuma, junto ao Rio Douro, para petiscar sável e lampreia. Ao sairmos do tasco da Mariazinha, bem comidos e bem bebidos, trazíamos maiores motivações para as habituais investidas “piropeiras”. Por sorte, logo ali de frente, no Largo do Torrão, estava um grupo de belas jovens, que até pareciam estar à nossa espera. Ao fim de poucos minutos, já o grupo de pretensos galãs se dividia em conversas directas, entre fortuitos casais. Foi nessa altura que quando dei por mim, já subia pela estrada da Mouratinha, acompanhado pela “mais bela do grupo”.

Poucos dias depois, ao descer pela primeira vez, por Crestuma abaixo, pude admirar melhor as belezas naturais que a tornam uma das mais belas e mais admiradas. Parar no adro da Igreja Matriz, e olhar o Rio Douro e as suas margens, especialmente para junto da foz do seu afluente Rio Uíma, é uma sensação ímpar, inexplicável e muito emotiva. Em Fiães, uns 12 km a montante, conhecia muito bem o Rio Uíma. Foi nele que aprendi a nadar e a pescar umas trutas. Porém, nunca tinha ido a Crestuma, nem imaginava a sua grandeza intrinsecamente ligada ao rio da minha terra.

Ó terra de lenda,
Paninho de renda
Bordado por mãos de fada!
Tão bela e garrida
És a minha vida
Ó minha terra adorada!
Crestuma formosa,
Meu botão de rosa,
No perfume e no feitio,
Talvez sejas pobre
Mas és a mais nobre
Das terras da beira-rio.

Extracto de poema de Eugénio Paiva Freixo, consagrado poeta Crestumense.

Embora, inicialmente, tudo parecesse normal, o certo é que, desta vez, o espectro da guerra trazia efectivamente preocupações acrescidas. Agora, que pouco tempo faltava para ir para a Guiné, sentia que, afinal, a minha determinação de finais de Setembro fora involuntariamente ultrapassada. Já havia sido atraído por belas raparigas, com destaque para loiras, olhos verdes, mamas salientes, boas pernas, tudo do melhor, em corpos fortes e sorridentes. Porém, de repente, parece que esses predicados foram esquecidos, para valorizar outros encantos que só o coração compreende. Era chegado o amor. Enfim, o costume de quem se apaixona.

Cada vez mais preso a esta relação, procurava então que ela não pudesse provocar as indesejáveis mazelas. Assim, embora o amor estivesse bem presente neste relacionamento, procurou-se evitar compromissos de maior responsabilidade. Ficou, todavia, a ligação permanente, até o que a guerra decidisse.


Crestuma é uma pequena povoação ribeirinha, situada na margem esquerda do Rio Douro, junto à foz do Rio Uíma. O seu nome provem da aglutinação das palavras Castelo (Crastrum) e Rio Uíma (Umia) – Crastumia - Crestuma. No dizer de historiadores e arqueólogos que se têm dedicado ao estudo das origens de Crestuma, o morro do Castelo (Parque Botânico) já foi ocupado na idade do ferro (I milénio a.C.). Aí se terá instalado na elevação, um povoado indígena, similar a tantos outros castros da região.

Na sequencia das guerras púnicas, os romanos aproveitaram a estratégia dos cartagineses que os atacaram pelo norte de Itália e, retaliando, entraram pela Península Ibérica. Atacaram Mérida e chegaram a Lisboa em 218 a.C..

Em 137 a.C, já os romanos dominavam as margens do Douro, controlando e desenvolvendo as actividades mineiras. O filão aurífico que já havia sido bem descoberto, estendia-se desde as proximidades de Póvoa de Varzim, seguindo por Valongo, Melres, Lomba, Arouca, até Castro Daire.

Estudos recentes levaram à descoberta de um Cais Romano em Crestuma, de onde partiam valiosas cargas para Roma. Mais recentemente, constata-se que também já havia ali uma certa tradição na arte de fundição.

Também se apontam os inúmeros moinhos, muito antigos, concentrados no Rio Uíma, como prova de que eram utilizados para moerem também pedras, para se apurarem os minerais mais valiosos.

A.C. da Cunha Morais

Independentemente deste longo período de domínio romano, revemos testemunhos de intensa actividade industrial, especialmente nos sectores da Metalurgia e do Têxtil. Para que se compreenda a força industrial de Crestuma, basta referir que foi ali que se fundaram estes respectivos sindicatos nacionais.

Canhões fabricados em Crestuma

Ali se fabricava armamento de guerra. Hoje ainda são visíveis canhões usados na guerra civil, entre D. Miguel e D. Pedro.

Na primeira metade do século XX, esta pequena povoação possuía cerca de 40% de toda a indústria de Vila Nova de Gaia.

Fundição de Arcos de Ferro e Verguinha, fundada em 1793. Mais tarde (e até hoje) Companhia de Fiação de Crestuma.

As empresas, que gozavam de um certo proteccionismo colonial, exportavam os seus produtos com relativa facilidade. Acontecia, até, que havia produtos, cujo monopólio de produção, se cingia a empresas de Crestuma.
Como reflexo desta actividade, vivia-se em Crestuma em franco ambiente de cidade, onde nem o cinema faltava, quase diariamente. As belezas naturais, de onde se destacava a Quinta da Estrela, faziam atrair grupos de visitantes. Por sua vez, os industriais locais, que gozavam de grande prestígio, recebiam as personalidades mais importantes que visitavam o Porto.


Gago Coutinho visita Crestuma quando da sua homenagem no Porto

Já na Guiné, eu enviava fotos para a namorada, onde se realçavam os panos duros que as indígenas usavam, especialmente quando as mães prendiam crianças nas costas ou em outras cargas. Foi nessa altura que fui esclarecido que esses tecidos que chegavam a todos os cantos da Guiné, eram fabricados em Crestuma.

Mais tarde, em 1975, quando já vivia em Crestuma, em casa dos meus sogros, embora trabalhasse na fábrica de fundição, acompanhava, ao de leve, a actividade da fábrica de tecelagem, onde trabalhava a minha mulher.

Com a independência da Guiné, verificaram-se algumas alterações nesse relacionamento comercial, para onde se exportava mais de 80% da produção. Nada ficaria como antes.

Após várias deslocações do meu cunhado Augusto à Guiné, foi acordada uma parceria, ou apoio, para implantação de uma unidade de tecelagem na ilha de Bolama. Desse acordo resultou a vinda de uma equipa de guineenses, para aprenderem a trabalhar com os teares e outras máquinas, enquanto se ia construindo a fábrica em Bolama (1).

Essa equipa era composta por 5 elementos, onde se destacava um idoso, conhecedor de fabrico em tear manual, mas os outros 3 de tecelagem nada sabiam. Vinham acompanhados por uma senhora, ainda jovem, que parecia exercer funções de Comissária Política. Eles estavam instalados numa casa do senhor. Marques, no Largo do Torrão, junto à foz do Rio Uíma e comiam no Restaurante Marujo, de Fioso. A senhora estava instalada em nossa casa. Todavia, parecia sempre ausente, muito ocupada com os seus contactos de interesse, aparentemente, guineense. Telefonava muito e ausentava-se amiúde. Nos intervalos, lia e fazia relatórios. Ela parecia ocupar lugar de grande importância na governação.

Talvez devido a condicionalismos de ordem financeira, ou, talvez, devido à delicadeza da nova situação económica, eu via o meu sogro bastante apreensivo e muito cauteloso com este relacionamento. Parecia estar sempre disponível para ela.

Apesar da distância que ela parecia querer manter, logo que a conversa se proporcionou, naturalmente, falámos da Guiné.

Tudo bem enquanto falei das belezas dos Bijagós, da estadia no Quartel General de Bissau, dos mergulhos na piscina de Bafatá e dos tempos (de descanso) em Canquelifá. Porém, quando referi que a minha Companhia era de Intervenção, que estivera em vários locais, mas que o Batalhão estivera sempre em Catió, ela aproveitou logo para lembrar e enaltecer os seus bravos camaradas que derrotaram e rechaçaram todas as investidas das tropas coloniais.

Quando lhe disse que estivera no Oio, o local onde mais sofrera e que entráramos em Samba Culo (2), ela contrariou de novo, alegando que as tropas coloniais nunca lá tinham conseguido chegar. Seguidamente enumerou vários combates, alguns deles com a minha Companhia (as datas coincidiam), mas, pelo exagero dos seus heróicos relatos, nem parecia tratar-se dos mesmos.

Tentei amenizar o seu entusiasmo, lembrando que as NT utilizavam as notícias como fonte de propaganda e que, também, exageravam ao darem notícias, o que eu considerava normal em tempo de guerra. Ela retorquiu e reafirmou que os seus relatos eram reais e que o PAIGC não tinha serviço de propaganda mas sim serviço de informação.

Lembrei que eu ouvira na Rádio eles referirem que no ataque a Catió (3), haviam destruído 3 das 4 casernas do quartel. Ela quase nem me deixou acabar, para reafirmar que sim, que tinha sido verdade. Acrescentei que as granadas se dispersaram pela bolanha e que só uma caíra dentro do quartel de Catió, onde eu estava, e nem rebentara. E que uma outra rebentara na povoação Fula, tendo um estilhaço sido tirado de uma nádega, a uma mulher. Porém, mesmo assim, a Senhora Comissária continuou a reafirmar que tinha sido verdade.

Perante tanta convicção e estando eu à mesa com os meus sogros, em sua casa, não me restou outra alternativa que calar-me e aguardar que o assunto fosse esquecido.

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Notas do autor:

1 – Porque as vi embaladas, penso que chegaram a ser enviadas algumas das máquinas para Bolama (Torcedores, Dobadoras, Encartadeiras e Teares de Banda). Porém, após algumas visitas de inspecção ao edifício, humidade e clima, o projecto esfumou-se.

2 - Op. Inquietar II. No dia 6 de Julho de 1967, após cerca de 4 horas sob emboscada IN, a CART 1689 entrou em Samba Culo, onde descobriu um depósito de armas e munições. O êxito desta Operação veio a consagrar a esta unidade com a Flâmula de Honra em Ouro, atribuída pelo CTIG. http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/04/guine-6374-p8078-outras-memorias-da.html

3 – O referido ataque a Catió, foi na noite do dia 6 de Junho de 1968.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16054: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (23): Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda (Recordações de infância)