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terça-feira, 16 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27222: Felizmente ainda há verão em 2025 (34): Mata-mouros e outros apelidos e alcunhas, raros, exóticos, pícaros, brejeiros, etc. - Parte I




"Santiago, foi um dos quatro primeiros apóstolos que seguiram Jesus e seu primeiro mártir, foi mandado degolar pelo rei Herodes. Os seus restos mortais foram levados para a região galega de Compostela, tendo aí nascido o maior centro de peregrinação da Europa cristã, Santiago de Compostela. A imagem existente na igreja Matriz de Castelo Rodrigo representa um guerreiro a cavalo lutando com um mouro já dominado e debaixo das patas do cavalo, normalmente designado de Santiago “Matamouros”.

Fonte: Adapt de: Aldeias Históricas de Portugal > Santiago, Mata Mouros, Castelo Rodrigo | Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1. O termo ficou no léxico da língua portuguesa: "mata-mouros" (nome masculino, de dois números) é o "indivíduo que exagera os seus feitos e valentias", sinónimo de fanfarrão, ferrabrás, valentão...

E ficou também na toponímia e na antroponímia: referências históricas apontam para a existência de indivíduos com este apelido, como "Fernão Domingues Mata Mouros" e "Alberto Mata Mouros de Resende da Costa", sugerindo que, embora raro, o apelido tem raízes antigas nosso território. 

Há também relatos anedóticos da presença de famílias com este apelido na região do Algarve, uma zona de forte influência muçulmana e palco de inúmeros confrontos durante a "Reconquista".

A toponímia portuguesa também conserva a memória destes tempos, com exemplos como a "Quinta de Mata Mouros" em Silves, no Algarve, um local histórico que hoje alberga uma adega. Em Espanha, na Extremadura, Badajoz, há o município Valle de Matamoros.; e haverá maisde 3,3 mil indivíduos, com este apelido, de acordo com a Geneanet ,

Rara ou incomum, a expressão  chegou todavia aos nossos dias como apelido de família (ou sobrenome), erm Portugal. A origem deve ter sido por alcunha, e não por via patronímica (nome do pai), toponímica (nome do lugar de nascimento) ou outra.

 Encontrámos, na Net, pelo menos duas figuras públicas portuguesas com este apelido:
  • um senhor, Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas no XV Governo Constitucional (entre 2002 e 2005);
  • uma senhora, antiga  juiza conselheira  do Tribunal Constitucional, há uns atrás.
 
Fomos também encontrar na Guiné um Luís Mata-Mouros Resende Costa, colono, branco, 36 anos de idade, natural de Bissau, ligado ao comerciante Benjamin Correia em meados dos anos 50. 

O apelido "Mata-mouros", carregado de conotações históricas da "Reconquista Ibérica", revela-se de rara presença em Portugal e é praticamente inexistente nos restantes países lusófonos.  

(i) Origem e significado histórico

O termo "Mata-mouros" é uma alusão direta às batalhas travadas durante a chamada Reconquista Cristã da Península Ibérica, que se estendeu por séculos (séc. VIII- séc. XV), acabando com a conquista do reino de Granada, o último reino mouro, em 1492 (o ano da descoberta do "Novo Mundo").

A expressão  significa literalmente"aquele que mata mouros". Era frequentemente usada como epíteto,  alcunha ou cognome, atribuído a guerreiros que se destacavam pela sua bravura nos confrontos com os muçulmanos do Al-Andalus.

Esta designação está intrinsecamente ligada à figura de Santiago Maior, o apóstolo padroeiro de Espanha e de Portugal, frequentemente representado na sua faceta de "Santiago Matamoros" (ou "Mata-mouros"). 

A iconografia do santo a cavalo, brandindo uma espada sobre mouros caídos (vd. imagem acima), tornou-se um símbolo poderoso da cruzada cristã e inspirou a toponímia e, nalguns casos, a antroponímia.

Em Portugal, a palavra "mata-mouros" adquiriu também um significado figurado: por exemplo, o Dicionário Priberam  define-o como  o indivíduo fanfarrão, ferrabrás ou valentão, uma derivação curiosa que reflete a transformação de um epíteto de guerra numa expressão popular.

(ii) Presença em Portugal: um apelido raro mas notável

Apesar da sua forte carga histórica, o apelido "Mata-mouros" é pouco comum em Portugal. A sua raridade é atestada pela dificuldade em encontrar famílias com este nome em listas telefónicas e a ausência de referências em  bases de dados genealógicas.

A pesquisa da IA em bases de dados e registos "online" do Brasil, Angola, Moçambique e outros países de língua portuguesa também não revelou  a presença do apelido "Mata-mouros".  

A ausência do apelido "Mata-mouros" nos PALOP e no Brasil pode ser explicada pela sua origem muito específica e ligada a um contexto histórico-geográfico que não se transportou da mesma forma durante o período da colonização. As peregrinações a Santiago entraram em decadência acelerada já em meados do séc. XIV (com a "peste negra", a crise demográfica, as guerras, etc.). A formação da sociedade brasileira,  colonial e escravocrata, em contrapartida, vai dar-se num contexto diferente, com outras influências e dinâmicas na atribuição de apelidos.

Em suma, o apelido "Mata-mouros" é uma herança direta da chamada Reconquista em Portugal, um testemunho onomástico de um passado de conflitos e da construção de uma identidade nacional. A sua raridade contrasta com a força da sua simbologia. 


2. Felizmente ainda é verão, apesar da "rentrée" para muitos (a escola, o trabalho, as vindimas, as consultas médicas, etc.). Nós, entretanto, vamos continuando por Candoz por mais uma semana. (*)... 

E vamos blogando...Existem ainda outros apelidos portugueses igualmente raros, exóticos ou de origem curiosa que refletem episódios históricos, lendas, factos anedóticos,  toponímias ou devoções religiosas pouco comuns.


(i) Devoção religiosa e santoral:

 apelidos como "dos Anjos", "das Dores", "do Rosário", "de São João", "dos "Santos",  "de Todos os Santos", “da Anunciação” ou até... "Cara d'Anjo"!... eram usados como complemento de nome, especialmente por mulheres, religiosos ou conversos para evidenciar devoção, refúgio ou proteção sobrenatural; as nossas "Marias" têm quase todas um santo ou uma santa por detrás do nome: a minha mãe era "Maria da Graça",  uma das minhas irmãs "Maria do Rosário", há muitas "Marias de Fátima", etc. 

(ii) Toponímicos exóticos

alguns apelidos derivam de lugares muito pequenos, aldeias desaparecidas ou microtopónimos pouco conhecidos (exemplos:  “Xabregas”, “Alcaçovas”, “Mosteiro”, "Matacões',  ou “Miragaia”, usados para indicar origem rural ou urbana invulgar).

(iii) Apelidos-epíteto ou de alcunha

da Idade Média, herdaram-se apelidos derivados de alcunhas descritivas, físicas ou até jocosas, como “Espadana”, “Buzina”, “Melro”, “Passarinho”, “Queimado”, “Valente”, “Foge”, “Parvo”, “Quebra-Costas”, “Caçador”; ou outros e outras, talvez de origem mais recente,"Mata-frades", "Piça", Minorca", "Caga-tacos", "Meia-Leca", "Mata-pintos", "Fala-baixo", etc.

(iv) Apelidos de conotação guerreira ou étnica

além de "Mata-mouros", encontram-se registos raros como “Mata-cães” (às vezes associado a confrontos com populações mouriscas), “Mouro”, “Mourão”, “Mourisco”, "Judeu", "Mulato", "Cigana", "Preto",  “Cristão Novo” (para os convertidos), e ocasionalmente “Castelhano”, "Galego, "Alemão", "Francês "ou  “Inglês” para estrangeiros integrados.

(v) Hagiotoponímicos raros:

 existem apelidos tirados de santos ou mártires pouco comuns localmente, como “Santa Bárbara”, “Santo Amaro”, “Santo Tirso”, "Espírito Santo", ou ainda, por justaposição, “Santidade”.

Muitos destes apelidos começaram como alcunhas, marcas de devoção, ou indicações de origem, e só mais tarde se fixaram como sobrenomes de família. Os contextos de nomeação variavam amplamente, desde motivos de sobrevivência (mouros,  judeus, escravos africanos que foram obrigados a converter-se e adotar nomes cristãos), percursos de peregrinação (“Santiago”, “Compostela”, “Peregrino"), até sátira, história pessoal ou identificação local, a alcunha ("apelido", em português do Brasil) funcionando como uma verdadeira "etiqueta" que não precisa(va) de ser colada á testa.

Em resumo, "Mata-mouros" junta-se assim a lista de apelidos históricos insólitos em Portugal, muitos deles provenientes de episódios da "Reconquista", da escravatura, da perseguição aos mouros e aos judeus,  da cristianização forçada (1497), inquisição ou de eventos locais marcantes. 

3. Durante a guerra colonial na Guiné, era frequente usarmos alcunhas para melhor identificar,  "marcar" ou "etiquetar" os nossos camaradas: muita gente tinha alcunhas: 

  • desde os superiores hierárquicos (Caco Baldé,"Aponta, Bruno!,  Pimbas, Alma Negra, Gasparinho, Bagabaga, Major Elétrico, Coronel 11, Trotil...); 
  •  até aos milicianos e praças ("Tigre de Missirá", "Pato da Bolanha", "Mec-Mec", "Chico", Chicalhão", "Pastilhas", "Caga-tacos", "Meia-leca","Meia-foda",  "Mouraria", "Bolha d'Água", "Parte-punho", "Cara de Cu", "Quatrocentos", "Aguardente", "Tempo Embrulhado", etc., até ao "Se-te-vens" (corruptela do nome de uma marca de cigarros, por que era conhecida a esposa de um  camarada nosso), etc. ) (**); 
Temos vinte tal postes com referências a "alcunhas".

4. Também existem, no português europeu, apelidos e alcunhas de natureza pícara, brejeira, maliciosa, erótica ou até pornográfica, em Portugal, e  especialmente no Alentejo, onde o calão e o humor popular têm longa tradição. 

Estes apelidos são herança oral e, muitas vezes, só circulam localmente, sendo raros em documentação oficial, mas ainda estão vivos na memória coletiva (veja-se o  incontornável "Tratado das Alcunhas Alentejanas", 4ª ed., Colibri, 2002, da autoria de Francisco Martins Ramos e Carlos Alberto da Silva).

Francisco Martins Ramos (1943-2017) era antropólogo, natural da Amareleja. O Carlos Alberto da Silva é sociólogo da saúde e também antigo professor da Universidade de Évora.

Exemplos de Apelidos e Alcunhas Pícaras do Alentejo

  • Bicha/Galhofo/Maricas: termos que circulam como apelidos depreciativos devido à sexualidade ou maneiras.
  • Calhandro(a):  não tem conotação sexual, mas designa alguém "atiradiço", insinuação de promiscuidade ou pouca vergonha;
  • Galdéria: mulher de reputação duvidosa ou de vida sexual livre, às vezes usada como epíteto familiar;
  • Escalda: “Rapariga muito quente nos bailes”, apelido para mulher considerada fogosa ou promíscua;
  • Javardice/Javardo(a): usado para pessoas consideradas desleixadas ou de hábitos sexuais libertinos, pode ser alcunha direta;
  • .Joana dos Moços: mulher que teve vários filhos de diferentes pais — insinuação maliciosa sobre a sua vida íntima;
  • Lambança: conversa atrevida, mexericos de natureza sexual, também pode ser usada como apelido para quem gosta de "porcaria";
  • Langonha: sgnifica esperma (sémen), também usada em sentido jocoso;
  • Meia-Foda: muito comum, usada para designar pessoa de baiza estatura, mas também associada à situações ambíguas ou mal resolvidas em matéria sexual (igual a "meia-leca", na tropa);
  • Minete: calão direto para sexo oral (=cunilíngua),  ocasionalmente designando alguém atrevido;
  • Ó Punheta: usado como exclamação, mas também como alcunha para alguém dado à masturbação ou simplesmente irreverente (equilavente a "parte-punho", na Guiné, no calão da tropa);
  • Pai do Cu: alcunha dada a homens considerados sexualmente libertinos, mulherengos ou, segundo usos, alvo de pilhéria por algo relacionado com sexo anal ou escatologia; tornou-se célebre nas aldeias porque existiam mulheres que, sendo vítimas de violência doméstica, gritavam: “Valha-me o Pai do Cu!”.
  • Pandarilho/Pandelero/Panasca: são variantes antigas e regionais para homem afeminado ou homossexual, por vezes maliciosamente aplicadas ou sentido pejorativo;
  • Passarola: termo popular para órgãos genitais femininos (=vagina; "pito", no Norte), usado como alcunha, servindo de mote trocista ou para atribuir a alguém fama de devasso;
  • Pentelho/Pintelho: pèlo púbico,pormenor insignificante, pessoa irritante, aborrecida,importuna;
  • Pixa, Gaita, Pau, Piça, Picha d'aço: diversos calões penianos conferidos como alcunha a, por exemplo, jovens atrevidos, mulherengos ou simplesmente alvo de chacota;
  • Prenha: mulher grávida fora do casamento;
  • Tronga: mulher da vida/prostituta;
  • Zorra: prostituta ou mulher de reputação duvidosa; "filho de zorra": bastardo, filho natural, filho de padre (em Trás-os-Monres).

 

Complementarmente, consulte-se também o "Dicionário do Calão e Expressões Idiomáticas", de José João Almeida (Editora Guerra & Paz, 2019; vd também aqui, em Projeto Natura | Universidade do Minho).

Muitos destes termos da linguagem informal, da gíria ou do calão foram (e são usados ainda) como alcunhas entre amigos, conhecidos ou inimigos para marcar uma diferença, ironizar, satirizar hábitos de alguém ou, simplesmente, como herança do falar local, muitas vezes não se sabendo sequer qual a sua origem.

Existem casos de famílias que ficaram conhecidas na aldeia durante gerações por uma alcunha deste tipo, independentemente do apelido registado no cartório paroquial ou na conservatória do registo civil.

Em contextos mais fechados e tradicionais, alguns destes apelidos podem ser mais ou menos ofensivos, dependendo do contexto,  do tom ou da confiança entre os interlocutores. Nalguns casos, são "formas carinhosas de tratamento"; "ó meu Cara de Cu â Paisana!!... 

A presença, existência ou sobrevivência destes nomes evidenciam o lado irreverente, humorístico e, por vezes até, transgressor da cultura rural  alentejana, onde o dito popular, a sátira e a oralidade são ferramentas de convivência social e de criação identitária. (***)

Muitas destas alcunhas alentejanas com conotação sexual, pícara, erótica ou maliciosa fixaram-se oralmente e, por vezes, até integravam o quotidiano rural. 

De um modo geral, refletem o humor, o descaramento, a verve ou o olhar picante da cultura popular da região e estão extensamente documentadas por  sociólogos, etnógrafos e outros estudiosos dos usos e costumes, etc.
 
 Deve ainda acrescentar-se que muitas destas alcunhas surgem do contacto diário, de episódios de alcova ou de determinadas  condições sociais (do trabalho à infidelidade conjugal,  do lazer e das festas  à sexualidade).

A atribuição era (e é) frequentemente pública e marcava para sempre um indivíduo ou família na pequena comunidade rural, fechada como, por exemplo, Aldeia Nova de São Bento (***).

Há grande criatividade, ironia e até  intencionalidade social: reforçar a moralidade coletiva pela sátira, pela provocação ou pelo controle do comportamento sexual.

Estas alcunhas testemunham a riqueza, a ousadia, a espontaneidade e a criatividade o falar popular alentejano, fazendo parte de uma tradição de oralidade onde o erótico e o pornográfico convivem com o burlesco, o pícaro, o brejeiro e o satírico.

(Continua)

(Pesquisa: LG  + Assistente de IA /Gemini, ChatGPT)

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

___________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 13 de setembro de 2025  > Guiné 61/74 - P27216: Felizmente ainda há verão em 2025 (33): A natureza tem horror ao vazio... Reflexões, mais ou menos melancólicas, no dia seguinte à primeira vindima de Candoz

(**) Vd. poste de:

5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20706: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (4): Alcunhas

28 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16141: In Memoriam (258): Soldado Ilídio Fidalgo Rodrigues, o "Esgota Pipas" da CCAÇ 2382, morto por um estilhaço de um projéctil IN (Manuel Traquina, ex-Fur Mil)

6 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27160: Humor de caserna (211): a Maria-tira-cabaço, uma história pícara de Empada... (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


Guiné > Ingoré > 1968 > O 1º cabo aux enf José Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler, no início da sua comissão que o levaria do Cacheu (Ingoré) até ao Sul, às regiões de Quínara (Buba, Empada) e Tombali (Quebo, Mampatá, Chamarra). A Daimler tinha nome de guerra: Massiel... a fogosa cantora espanhola que vencera, em 1968, o Festival Eurovisão da Canção, interpretando a canção "La, la, la". (Lembram-se ? "Todo en la vida es como una canción / Te cantan cuando naces / Y también en el adiós"... La, la, la".)


Foto (e legenda): © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.




Zé Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos; foi noutra incarnação
1º cabo aux enf, CCAÇ CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)



1. Já sabíamos que o nosso veteraníssimo Zé Teixeira (um histórico da Tabanca Grande, régulo da Tabanca de Matosinhos) era um excelente contador de histórias, incluindo histórias pícaras...

Ele tem uma ligação umbilical à Guiné e à sua gente. Por favor, vejam este delicioso microconto como um ato de ternura... em tempo de guerra.

Também sabemos que o exército, no nosso tempo, era púdico e forreta, nem camisinhas de Vénus distribuía ao pessoal... E muito menos Vénus em carne e osso... (Mas a verdade é que a Vénus acompanha todos os exércitos do mundo desde que a Eva e o Adão foram expulsos do paraíso  e depois que o Caim matou Abel.)

Em contrapartida, sempre nos ensinaram, desde a recruta, que a tropa manda...desenrascar! Em Ingoré, em Aldeia Formosa, em Mampatá, em Empada, etc., era isso o que acontecia...

Se a Massiel não vinha à Guiné, a malta tinha uma varinha de condão e transformava um bocado de lata (uma Daimler da II Guerra Mundial) num fetiche: "erotizava-se" a viatura... A "Massiel" ajudava a "climatizar os pesadelos" da rapaziada... Aliás, a G3 era a nossa "namorada"...

Já as Marias de Empada (e havia-las um pouco por todo o lado), que nunca poderiam vencer nenhum festival da Eurovisão, essas, souberam tirar partido da situação de guerra e da economia de guerra. Puseram um anúncio na morança: "Maria tira cabaço di tuga"... E, ao que parece, não faltava procura!

Um comércio pouco honesto, perguntarão alguns ? Tão ou mais do que a guerra!, responderão outros... Claro que era ilegal... Mas a polícia de costumes assobiava para o lado. E a cama das Marias de Empada estava sempre quente!

Não sabemos o que lhes aconteceu, às Marias de Empada, a seguir à independência, mas é muito provável que tenham sido acusadas de "colaboracionismo" pelos novos senhores da guerra... "Partir catota com os tugas" era um ato contrarrevolucionário aos olhos dos "libertadores" como o 'Nino' Vieira...

Enfim, a cada um a sua moral... e a sua polícia de costumes!



Humor de caserna > A Maria tira cabaço di brancu


por Zé Teixeira 



Quando chegamos a Empada, lá aparece a Maria, mais a irmã, a dar-nos as boas vindas. Rapidamente se soube da sua arte e mestria em tirar cabaço a branco e satisfazer as necessidades a quem já sabia da poda, para desgraça da nossa jorna, já de si tão pequena e que se esvaía na cerveja e agora tínhamos a Maria.

Um alferes, a quem não foi contada a história da pequena, tenta o engate e, zás!, arranjou namorada que até ia ao quartel, durante o dia, prestando-se para todo o serviço. 

Ninguém lhe podia tocar, era a namorada do alferes, durante o dia, mas, à noite, zumba que zumba com toda a gente que tivesse uns patacõezitos para gastar. Até faziam fila e a irmã dava uma ajuda.

Houve cenas engraçadas com a Maria-tira-cabaço. Um camarada e amigo,  encabaçado, tinha vontade e.… inexperiência, vergonha, medo, falta de jeito, etc. Então foi meter uma cunha a outro companheiro para pedir à Maria para o atender bem. Este foi, meteu a cunha e gozou... de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco tinha de ser bem pago!

Tanto quanto pude apreciar até o 'Nino' sabia da sua vida, pois num célebre ataque ao cair da noite, as primeiras canhoadas foram para a casa da Maria, só que os brancos que lá estavam eram velhinhos e voaram ao sentirem o som das saídas do canhão.

O pobre do alferes é que, quando soube, rebentou de raiva. E foi uns dias depois, quando foi à sua procura na morança, um dia ao fim da tarde (talvez a fosse convidar para jantar): encontrou o lugar ocupado e gente à espera..
.

(Revisão / fixação de texto: LG)
___________________

Nota do editor LG:

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27086: Humor de caserna (209): um "fermero" que em Empada ganhou fama de curandeiro, milagreiro e... abortadeiro (Zé Teixeira, Matosinhos)



1. Para animar o nosso querido (mas fugaz) mês de agosto de 2025, o Zé Teixeira mandou-nos algumas das suas histórias picarescas e brejeiras.  Ficam bem na série "Humor de caserna" (*).

Recorde-se que o José Teixeira 

(i) é régulo da Tabanca de Matosinhos;

(ii) ex-1.º cabo aux enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iii) é um histórico da Tabanca Grande, que integrou a partir de 14/12/2005; 

(iv) tem c. quatro centenas e meia de referências no blogue; 

(v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

(vi) é gerente bancário reformado; 

(viii) escritor, poeta, contista, além de escutista...


A brincar, a brincar, o Zé Teixeira, que conhecia bem a população a quem prestava cuidados de enfermagem, levanta aqui neste microconto (com o título original, "As vitaminas abortivas") algumas questões sensíveis como a promiscuidade sexual, a violência sobre as mulheres (no seio da família patriarcal), a saúde reprodutiva,  a interrupção da gravidez, o acesso aos cuidados de saúde etc.,  nas regiões de Quínara e de Tombali, em plena guerra colonial.



Humor de caserna (209) >  Um "fermero" que em Empada ganhou fama de curandeiro,  milagreiro e... abortadeiro!

por Zé Teixeira
 


Em Empada uma das coisas mais gostosas que a tropa gostava de fazer era ir até à Fonte Frondosa  apreciar as bajudas no banho... 

À falta de melhor e com um bocadinho de sorte aparecia uma ou outra que vestia apenas o fato que a mãe lhe tinha dado ao nascer. Para alguns camaradas virgens aquilo era sopa da boa.

A Fátma, mais uma das muitas Fátmas que conheci na Guiné, abeirou-se de mim:

 
 Fermero, parte quinino pra matá minino que na tem na bariga !

 − Como ?

− Minha tio brinca e faz minino na bariga di mim. Tem pacensa, parte quinino !

− Quinino ká tem, vai na mudjer grandi, ele trata di ti.

− Nega mesmo, mudjer grandi ká na tem quinino. Tu tem quinino.

− Olha, vou pensar nisso, passa amanhã pela enfermaria.

− Tem de ser hodje. Parte quinino.

Seguiu-me até à enfermaria e eu, sem saber o que fazer para afastar a chata, que ainda por cima era daquelas poucas feias que por lá apareciam e de quem todos nós nos afastávamos.

Bem, para grandes males grandes remédios. Se estava grávida, nada como lhe dar uns comprimidos de vitaminas. Mal não faziam. Talvez o milagre se desse...

Quinze dias depois, lá fui eu até à fonte passar um pouco de tempo e treinar uns apalpos, nem sempre bem sucedidos, quando a Fátma aparece. 

− Estou tramado, aí vem a chata…

Qual quê !, ao ver-me, desata a correr para mim, toda contente.

− Fermero, minino na vai. “Coisa” (#) na tchega mesmo. Tu, bom pessoal.

Ganhei mais uma amiga e juntei à fama de curandeiro e milagreiro, mais uma: a de... abortadeiro!

Zé Teixeira

30 de julho de 2025

(#) Menstruação

domingo, 13 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27014: (Ex)citações (436): "Filhos de Tuga"... e o caso do meu mano, meu amigo, meu herói, militar de carreira, falecido em 2021 (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69; Vila do Conde)



Guiné > Região de Gabu > CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > Fonte de Nova Lamego > O Virgílio Teixeira posando com uma bajuda e lavadeira do Gabu. 

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem enviada pelo Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69; natural do Porto, vive em Vila do Conde; gestor e empresário reformado; tem 205 referências no nosso blogue para o qual entrou em 19/12/2017):


Data - quinta, 3/07/205, 17:46
Assunto - Os filhos de tuga, restos de tuga, filhos do vento...


Falamos do 1º episódio da reportagem sobre os "Filhos de Tuga" (ontem na RTP1).

Ontem, foi da Guiné, suponho que os dois próximos sejam de Angola e Moçambique.

Para mim, ficou muito aquém da expectativa, salve-se ao menos de não falar da guerra e dos comentários dos ex-turras, hoje, guerrilheiros , como no passado com outros comentários, designadamente do Furtado. Fiquei enojado com isso.

Isto já foi passado noutras noutros reportagens, os filhos do Vento, foi assim que passei a conhecer a Isabel Levy, viúva do Pepito, que na altura nada me diziam.

Alertei toda a gente conhecida para ver o programa, alguns fizeram, outros nem viram a mensagem, ou então pelo titulo apagaram logo, pois não era sobre coisas da nossa juventude, como concertos, festivais, festas de verão, e outras modernices dos 18 aos 58 anos.

Já conhecemos a temática, e pelo que já li e vi de comentários vários, chego à conclusão que estas iniciativas têm em vista, por um lado, conhecerem os seus pais, por outro lado, obterem a cidadania de Portugueses, e as regalias inerentes, que a meu ver, no quadro de então, eram todos portugueses.

Não gosto que uma pessoa seja filha de pai incógnito, quando muitas vezes já sabem quem é o pai verdadeiro, e agora há os testes ADN que não deixam margem para dúvidas.

A verdade é que ainda hoje, em pleno Século XXI, ainda nascem muitas crianças sem pai (registado) , filhos de pai incógnito! Pai há, só que não querem dar o seu nome, por muitas e variadas razões, e outros não têm a certeza disso, nem querem ser submetidos aos testes ADN.

Mas isto é filosofia, e as entidades responsáveis que cuidem destas situações, no mínimo, tristes e degradantes, para os filhos acabados de nascer e pela vida fora.

Por isso não é, de facto, de estranhar, pois num cenário de conflito de guerra, não há leis, a não ser a da própria consciência de cada um.

Nas nossas guerras de África, e nas outras de séculos passados, quantos são os que fazem o papel de filhos do vento?

Como aprendi na instrução primária, no planeta Terra haviam 4 raças - Brancos, Pretos, Amarelos e Mongóis.

Não havia brancos mais brancos que outros, não haviam pretos com cor mais clara, os Amarelos eram de toda a Ásia, e os Mongóis, eram uma raça superior com os seus impérios. Não sei mais nada.

Este amaranhado de povos ao longo de séculos, foram se misturando, dando origem, hoje, a uma multiplicidades de raças e cores inimagináveis.

A maioria dessas pessoas oriundas de guerras entre povos bárbaros e afins, não faltando as árabes e muçulmanos, hindus e chineses, somos uma amálgama de várias origens, eu próprio com pele mais escura, até chego a confundir a minha raça.

Portanto das relações havidas, sejam elas forçadas ou consentidas, entre raças que nem imaginamos, saíram filhos, todos com mãe, mas muitos sem o nome dos pais, nem se sabiam quem eram.

Não me repugna que hajam ainda tantas pessoas na nossa ex-África, e províncias ultramarinas, que não conhecem os pais. Não acredito muito na tese de violência sexual, da qual nasceram tantas crianças. Não é de uma relação apenas que nascem logo filhos, na maioria são de relações prolongadas, e com consentimento de ambas as partes. Não havia proteções e o tempo não dava para isso, a avidez carnal ultrapassa tudo isso. Claro que nós, como gente eventualmente mais adiantada, devíamos ter esse cuidado, mas quem vai pensar nisso...

Sem fazer juízos de valor, acho que há aqui um entendimento, seja por razões culturais, económicas ou outras, tal como acontece aqui, nas nossas cidades e aldeias, com as várias casas de prostituição, só que está tudo mais evoluído.


Sem pudor nenhum, falo de um caso na minha familia, nem sequer o vou esconder, o meu irmãos mais velho um ano e meio, já falecido (**), era pior que esse algarvio (o Camarinha!, não me lembro do nome): o meu irmão enrolou-se com uma rapariga, que eu conhecia, por sinal irmã de uma outra com quem partilhei algum tempo, nada mais, e vai daí sai um filho, isto é uma filha, que dizem ser muito parecida com ele, meu irmão.


Mas não era só o meu irmão que ia lá vasculhar, outros seus amigos faziam o mesmo nas mesmas ocasiões, eu estou de fora.

Então a menina vai fazer queixa ao meu pai, que era de uma inflexibilidade e responsabilidade impecável.

Não sei os pormenores, mas o caso foi passando e o meu irmão sempre disse que pode ser ele ou dos amigos, devidamente identificados, mas ela, porque o meu irmão era já militar de carreira, lhe interessava mais, e a criança nunca teve o nome de nenhum pai. Ingrata situação.

Passaram décadas, o meu irmão morreu, a noticia percorreu rápido, pois era tudo muito perto. O meu irmão teve mais dois filhos, menina e menino, fora de casamento, mas ele normalmente os perfilhou.

Mas havia outro filho, de outra mulher, era o primeiro da série, que ele perfilhou, mas nunca casou com a mulher.

Sou mais tarde acusado por esta primeira e pelo filho, que o meu pai o adorava e queria que ele fosse para a Academia Militar, era a cara do meu irmão, mas que a mãe se opôs, e sou acusado de ser o responsável por este desvio, nem me passou pela cabeça. O rapaz foi sempre muito acarinhado pelos avós, em especial o meu pai, mas também a minha mãe e irmãos. Eu respeitava a outra e nunca interferi e vi que ele batia a bola mais pela nova do que pela primeira.

Quando o meu irmão morreu, também fui acusado, pela minha cunhada e filhos, de nunca ter tido uma vida mais perto deles, quando afinal os últimos vinte anos antes da sua morte, nós falávamos todos os dias, pessoalmente, no Norte Shopping do Porto. Mas não nos visitava lá em casa, ao contrário de os receber e bem na minha. Ele foi sempre, e tal como escrevi no ramo de flores no seu funeral: "Ao meu irmão, meu herói, meu amigo» . Nunca te esquecerei!

Mas não fica por aqui, as relações com o meu irmão eram ótimas e há coisa que só ele e eu sabemos, mais ninguém.

Mas a mulher por inveja, e não vejo mais, passou a não se dar connosco, depois de ter sido eu mesmo, a introduzi-la na minha familia, os filhos seguiram as pesadas da mãe. Morreu o homem sem a gente se ver algum tempo antes.

Passados uns tempos, ele morreu a 9 de Maio de 2021, por doença prolongada, a nossa familia toda fez-se representar condignamente no seu funeral, com bandeira e guarda de honra, fotografei tudo.

Neste ano, ou fins do ano passado, sou confrontado com um mail, de uma pessoa que se identificou com o nome e morada, dizendo que era o meu cunhado, marido da alegada filha do meu irmão, e que estavam muito zangados por o meu irmão nunca ter ido visitar o neto e filha, etc....

Refutei tudo, e perguntei que tenho eu a ver com isso, porque não o fizeram diretamente com o meu irmão enquanto ele era vivo?

Foi uma conversa de lá para cá e vice versa, sem se chegar a nada.

Nunca percebi como esse senhor arranjou o meu email pessoal, sem nunca nos conhecermos . Fiquei a pensar que terá havido conversas com ele, meu irmão, antes de morrer, mas com a intervenção da minha cunhada, sua mulher e dos seus filhos, que chutaram a bola, dando o meu email! Felizmente não deram o telefone.

Espero que o caso esteja encerrado, mas admito que o meu irmão tenha muitas culpas no cartório, sempre lhe disse, mas era tipo tarado, não tenho outras palavras. Já a nossa vizinhança, ele teria os seus 15 ou 16 anos, era o terror das raparigas vizinhas, amigas ou não da nossa casa.

Deus o tenha em paz.

Eu gostava e continuo a gostar dele, sem limitações. Há um Poste dessa data com fotos, que pode ser consultado (**).

Teve vários problemas disciplinares na tropa - era do quadro - por causa e sempre das mulheres e dos seus desenfianços.

Em 1969 quando eu regressei , tive de o safar de muitas coisas, utilizando ainda o meu cartão de alferes, junto do Quartel General e o seu comandante, nosso amigo e vizinho passado.

Foi sempre muito respeitador da nossa familia, em especial a minha mulher à qual ele tinha elevado respeito, e vice versa.

Nunca fomos de beijinhos, íamos a muitos sítios os quatro, mas sempre nos cumprimentávamos de mão, jamais houve beijos.

Então quando eu cheguei e face ao que eu lhe contava da Guiné, ele ficou com a ideia, talvez não clara, que não era terreno para ele. Tinha sido mobilizado para lá como Técnico de Radio Transmissões, era um especialista que aprendeu em Paço de Arcos.

Ele já tinha tido dois anos na Índia, 6 meses como prisioneiro, depois em Angola durante 28 meses, percorreu de lés a lés, foi o responsável pela primeira chamada via rádio de Cabinda para o meu Pai.

Confrontado como nova mobilização para a Guiné, arranjou um esquema altamente sofisticado, de modo a nunca ter ido, mas com contornos do arco da velha.

Passou à disponibilidade em 1969, pela minha mão, com a Pensão de Invalidez respectiva. Mais tarde veio a pensão de prisioneiros, uma bela molhada de massa. Vitalicia, pois ainda a mulher usufrui dela. Coincidências sem explicação.

Quando ele esteve como prisioneiro na Índia ainda não tinha conhecido a sua futura mulher, mas ela teve direito também à pensão.

Conclusão, após esta confusão que lancei aqui:
  • não há crime nenhum de ter filhos sem os perfilhar;
  • há culpas de carácter também reprováveis,
  • muitos filhos de Tuga, nem os Tugas os conhecem nem sabem;
  • outros sabem e nada fazem;
  • são opções, depois de uma vida feita com outra familia;
  • reprovo fundamentalmente as violações, sejam quais forem as situações, o homem não é um animal....

Lamento profundamente aqueles que vivem e morrem ser ter os nomes dos pais, nem sequer os conhecerem.

Abraços, 

Virgilio Teixeira

_____________


(**) Vd poste de 9 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22186: In Memoriam (394): Jorge Oscar Machado Teixeira (1941-2021), 2º srgt QP, radiomontador, DFA, reformado, irmão mais velho do nosso camarada Virgílio Teixeira, e que esteve prisioneiro na Índia, em 1961/62

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26522: Humor de caserna (104 ): "Ontem fui ao Pilão, o que não quer dizer que fui às p..." (Bissau, 16 de dezembro de 1973, in: António Graça de Abreu, "Diário da Guiné", Lisboa, Guerra e Paz, 2007).




Guiné-Bissau > Bissau >  Planta de Bissau (edição, Paris, 1981) (Escala: 1/20 mil) > Posição relativa do bairro do Cupelon,. ou "pilão", como diziam os "tugas".. Fica(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia, portanto paredes meias com o QG/CTIG, em Santa Luzia... O Pilão fazia parte das nossas geografias emocionais...





Capa do Livro Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura. 
Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.


1. O nosso camarada António Graça de Abreu (ex-alf mil, no CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, jun 1972/ abr 74), enviou-nos há muitos anos (há 17)  alguns excertos (e depois cópia integral do seu "Diário da Guiné", com autorização de reprodução no nosso blogue).

Há uma entrada sobre o Pilão. Merece ser reeditada depois da "crónica" do Abílio Magro sobre os seus "desastrados" patrulhamentos nocturnos naquele bairro...

Temos apenas umas trinta e tal referências sobre o Pilão: famigerado, para uns; triste, para outros, vergonhoso, para os mais puritanos e conservadores... Houve um presidente da Câmara municipal de Bissau, o major Matos Guerra, que por volta de 1966 o quis arrasar (segundo  o comerciante Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai", vereador na altura) ... Ainda bem que prevaleceu o bom senso... (A ideia teria partido do próprio Governador e Comandante-Chefe, Arnaldo Schulz: alegava-se que o Pilão era umn "ninho de terroristas.)

O Pilão existia no nosso tempo...Era um bairro de gente honesta, como todos os nossos bairros populares... Mas ficava já fora do asfalto, com ruas de terra batida e moranças, mais ou menos alinhadas, em geral feitas de adobe, com cobertura de colmo, umas, as mais pobres, ou de chapa de zinco, as dos menos pobres... 

Em 1970, deviam morar em Bissau umas 70 mil pessoas, com a tropa incluída... (Não sabemos quantas no Pilão ou Cupelom)... 55 anos depois é preciso multiplicar por sete a população dos bissauenses...

Em 1973, quando o António Graça de Abreu passou por lá (como quase todos passámos, não havia museus nem monumentos para visitar  nas horas de cultura e lazer da nossa tropa), era mais ou menos equivalente ao nosso Bairro Alto dos anos 50, só com a diferença de que aqui havia "casas de passe" (proibidas pela hipocrisia da época a partir de 1963)... 

Dizer que o Pilão era um gigantesco bordel é um insulto parar os seus habitantes da época... E para as NT. E que se cortavam cabeças de "tugas", era outra enormidade... Que havia alguma animação noturna por aqueles lados, havia, e às vezes alguns distúrbios: não vale a pena negar, escamotear, branquear a realidade de uma prostituição, tolerada, a começar pelas autoridades militares e civis...e pelo próprio PAIGC (viviam lá simpatizantes e militantes, dizia-se)...

Nunca houve cabeças cortadas no Pilão, e a própria prostituição fazia parte da economia de guerra exercida sobretudo por cabo-verdianas, fugidas da miséria das ilhas...Como em todos os teatros de guerra...

Infelizmemnte não há estudos sobre esta realidade dita marginal... e eu até agora ainda estou â espera de descobrir a letra (já não digo a música) do Fado do Pilão, à semelhança do fado do Bairro Alto...

Mas demos a palavra a um dos nossos mais cronistas dessa época.


Diário da Guiné > Bissau, 16 de Dezembro de 1973

Ontem fui às p...!

Nestes dias em Bissau, com tanta tropa à solta, anda tudo num magnífico regabofe. Para estes homens, o fim da Guiné é a loucura. Aqui no “Biafra”, de madrugada ainda havia alferes a cair de bêbados, entrando pelos quartos em gritarias e choradeiras de pasmar. Não deixavam ninguém dormir.

Ontem o meu serviço foi fazer companhia ao alferes Tomé, meu antigo companheiro de quarto em Teixeira Pinto e em Mansoa. Era o seu último dia na Guiné, embarcou hoje para Lisboa no avião dos TAM e passou comigo as horas da derradeira festa guineense.

Fomos os dois até lá baixo à cidade, depois jantámos, bebemos bem e, entre pesaroso e alegre, o Tomé desatou a contar-me as suas aventuras com uma prostituta cabo-verdiana que o andava a encher de ilusões, ou o Tomé a ela. 

A rapariga gostava dele, sempre que vinha de Mansoa a Bissau ia visitá-la, de sexta para sábado dormiu a noite toda em casa da beldade, a menina desembrulhava-se em bolanhas de ternura e desdobrava-se em arrozais de dignidade. Existiria qualquer coisa de verdade nesse relacionamento oblíquo. A rapariga deve ter adivinhado no Tomé um homem que não lhe comprara apenas prazer para vinte minutos e talvez tenha gostado dele. 

Ontem o Tomé foi-se despedir e levou-me para eu conhecer a pérola dos seus sonhos reais. A moça tinha bom aspecto, pequena, redonda, um rosto suave e sorridente onde não se adivinhava o labor da mais velha profissão do mundo. O Tomé abraçou-a, entrou na casa dela e dedicou-se de imediato aos prazeres carnais, ia pela última vez comer o chocolate claro da sua princesinha.

Eu fiquei cá fora, à espera, aí uns quarenta e cinco minutos encostado a um monte de sucata, a carcaça desfigurada de um carro velho. Entretive-me a olhar à volta. Estava no Pilão, um bairro de Bissau habitado por muita miséria e alguma prostituição. 

O lugar é sujo, tem pouca luz e dizem os entendidos que é perigoso à noite. Ontem, sábado, havia muita tropa branca a fazer as despedidas da Guiné, à procura dos últimos prazeres do sexo negro ou mulato para levarem como recordação para Portugal. As prostitutas do Pilão trabalhavam heroicamente. Na casa em frente, vi uma mulher aviar três gajos em pouco mais de meia hora, entravam, saíam uns atrás dos outros. 

Não sou propriamente um puritano mas tudo aquilo com exceção da rapariga do Tomé, parecia boa menina me deixou um travo a desgosto, desconforto e imundície.

Enquanto esperava, uma das prostitutas meteu-se comigo. Chegou saracoteando-se dentro de um vestidinho vermelho, dengosa, um perfume barato, meloso, agarrou-me no braço e disparou: 

− Vá, amor, vem f...! 

Disse-lhe: 

− Não posso, já f.... 

Resposta pronta: 

− Vai apanhar no c... !

Andei pelo Pilão a cirandar junto às putas mas não fui às putas, não faz parte dos meus hábitos. E não segui o interessante conselho da prostituta do perfume oleoso e reles. Apanhar no c... também não faz parte dos meus hábitos. (...)

 

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos: MR / LG)
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Nota do editor LG:

Ultimo poste da série >  23 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26521: Humor de caserna (103): Conversa de barbeiro na metrópole: "Cuidado com o Pilão, um gajo entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!" (Abílio Magro, ex-fur mil, CSJD/QQ/CTIG, set 734 / set 74)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26369: Humor de caserna (93): o guardador das vacas do Enxalé que violou... a bezerrinha do furriel enfermeiro (João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)

 



Guiné >  Zona Leste > Pel Caç Nat 54 > Enxalé > Agosto de 1966 >  Vacas compradas em Bissá, pelo comandante da CCAÇ 1439, cap Pires.

Foto (e legenda): © José António Viegas  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do João Crisóstomo   [(foto abaixo à esquerda com a Vilma): (i) é um luso-americano, natural de Paradas, A-dos-Cunhados, Torres Vedras; (ii) conhecido ativista de causas que muito nos dizem, a todos nós, portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes; (iii) Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, tendo sido alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): (iv) vive desde 1975 em Nova Iorque, depois de ter passado por Inglaterra e Brasil; (v) é casado, em segundas núpcias, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun; (v) tem mais de 250 referências no nosso blogue;  (vi) está aqui "atabancado" desde 26 de julho de 2010 (nº 432)].

 
Data - 9 jan 2025 02:40  

Assunto .- Humor de caserna

Caro Luís Graça,

Certos postes, uns mais que outros, como os teus recentes postes sob o tema "humor de caserna” (e dentre estes, sem desprimor para os outros, tenho de destacar os relacionados com os baseados nos feitos e vida do "alfero Cabral”) ocasionam sempre resultados por vezes inesperados. 

De repente vejo-me a reler (pela terceira ou quarta vez) as “Estórias Cabralianas”, ou outros livros que me tocam por dentro e por fora. E não é a primeira vez que isso sucede: neste caso porque Missirá foi quartel general para tantas “estórias" e histórias, esta tem-me levado a reler os livros do Beja Santos, o livro do Abel Rei, e outras fontes que me fazem vaguear por essas terras por onde também andei. 

Por acaso até mais cedo que a maior parte destes nossos camaradas: eu estive lá em 1965 a 1967 ; o José António Viegas, em 1966; o Abel Rei esteve em 1967/68; e o Beja Santos de 68/69, o Jorge Cabral, em 1970/71, o que me faz “sénior" senão na intensidade de experiências vividas, pelo menos na escala cronológica.

Mas desta vez a minha vagueação andou mais por Porto Gole e por Enxalé, sede da minha companhia, a  CCAÇ 1439. E comecei-me a lembrar de coisas que lá vivi, algumas delas más, mesmo muito más; e outras boas, algumas muito boas. Boas, no sentido de bom ambiente e camaradagem que lá experimentei. 


Vilma e João (2013)


Lembro que a nossa companhia era muito diversificada quanto a crenças, valores e costumes. E havia uma compreensão grande e aceitação por parte de todos das posições dos outros, mesmo que estas fossem completamente diferentes das suas. Eu verifiquei e experimentei isso várias vezes. 

 Mas entre as "outras boas” …"muito boas mesmo”, lembro-me de algumas que ainda hoje me fazem rir. Hoje de manhã foi uma destas ocasiões.

Estávamos a caminho do ginásio, que eu a Vilma frequentamos (ela pelo prazer da natação e sauna;  e eu porque a minha velhice exige exercícios terapêuticos aquáticos). 

 A Vilma, enfermeira de profissão, que agora,  além de ser minha esposa,    acumula os encargos de chofer, deu comigo a rir sózinho e perguntou-me qual a razão. 

Contei-lhe então que há poucos dias, nos vários telefonemas que fiz para dar um abraço de Boas Festas, vim a saber que alguns dos meus colegas na Guiné estão, como me sucede a mim, duma maneira ou outra experimentando os efeitos da idade. E que me veio à memória uma história engraçada de um deles, que por acaso até era o furriel enfermeiro da Companhia. E vi que a curiosidade dela, enfermeira, arrebitou imediatamente. Aqui vai a "estória" para a série... "Humor de caserna". JC

PS - A "cena" passa-se no Enxalé ( que a Vilma agora já "conhece", pelos contactos com camaradas e pelas muitas vezes que dele falo).


Humor de caserna > o guardador das vacas do Enxalé que violou... a bezerrinha do furriel enfermeiro

por João Crisóstomo 


O furriel enfermeiro da CCAÇ 1438, como profissional era extraordinário, com conhecimento práticos muito além dum simples enfermeiro, sendo-lhe creditado ter salvo a vida a vários camaradas que,  se não fora os seus vastos conhecimentos de enfermagem (até de operações cirúrgicas de emergência não tinha medo), teriam perecido  ("lerpado") mesmo antes da chegada dos helicópteros. 

Como homem,  era muito calmo, sem grandes exuberâncias, aparentemente introvertido, mas sempre amigo de toda a gente e, como tal,  respeitado por todos. Nunca da sua boca se ouvia uma palavra menos respeitosa.

No Enxalé havia um terreno onde se cultivavam vegetais para suprir a sua muita falta na cozinha. Outras faltas tentavam-se solucionar, comprando galinhas e mesmo vacas nas tabancas vizinhas.

 O nosso capitão Pires fazia questão de ser ele a  negociociar quando se tratava de comprar vacas, ou bezerras, que geralmente eram compradas na tabanca dos balantas na região de Bissá. E nestas ocasiões fazia-se acompanhar pelo furriel enfermeiro. Não sei se este era o encarregado do tal terreno para cultivo de vegetais e do cuidado das vacas por nomeação ou se ele mesmo se tinha oferecido para essa tarefa. 

A verdade é que se notava que o fazia com prazer, com todos os cuidados para que as suas vacas pudessem pastar à vontade e até fossem protegidas do calor e outras intempéries quando elas sucediam.

Depois da "ida à feira",    por vezes sucedia haver 3 ou mais vacas no Enxalé ao nosso cuidado. E era frequente ver o nosso enfermeiro tratando as suas vacas,  parecia mesmo  com compaixão, sobretudo para com as mais jovens, sabendo do destino que as esperava.

Para isso ele tinha como ajudante um rapaz dos seus 14 ou 15 anos que havia sido capturado aos "turras" e agora “pertencia” à nossa companhia.

Lembro uma dessas ocasiões em que haviam duas vacas na altura,  no Enxalé. Um dia, não me lembro quantos éramos , mas sei que eu e o tal furriel enfermeiro fazíamos parte dos muitos, próximos ou junto ao bar , uns fumando e cavaqueando, outros, como eu, bebendo a nossa cerveja Cristal ou outras libações. 

 E como sucedia frequentemente veio à baila, na conversa entre o pessoal, o assunto  das bajudas, lavadeiras, e suas relações com o pessoal.  E foi então que um soldado que acabara de fazer o seu turno de sentinela,   se saiu com o inesperado: que "o rapaz,  o ajudante na lida e cuidado das vacas, com certeza ainda não tinha conseguido bajuda própria, pois ele o tinha visto a descarregar a sua tensão de jovem frustrado, montado num das vacas ao seu cuidado.”

A reação foi uma risada pela maior parte dos que ouviram o acontecido. Outros pareceram prestar pouca atenção; entre estes o nosso enfermeiro, mas, que de repente, como que a despertar dum sonho, perguntou num súbito berro : 

  Qual delas , qual delas ?!...

E ao ouvir que a sua bezerrinha de estimação tinha perdido a virgindade e sido ela o objeto da predileção do seu ajudante, o nosso pacato enfermeiro, correndo e rugindo de raiva, gritava : 

– Ai seu filho da p*ta, seu grandessíssino c*br*o,  que te vou matar!!!...

João Crisóstomo

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título: LG)

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7 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26357: Humor de caserna (92): "Então a senhora não me conhece ?!...Foi-me buscar a Bambadinca quando eu fui ferido!"... (Maria Arminda Santos, ex-ten grad enfermeira paraquedista, FAP, 1961/70)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico


Contos com mural ao fundo >  Ciúme patológico

por Luís Graça (*)


A Nucha ainda estava bastante combalida quando tu, na semana seguinte, lhe telefonaste. Por mero acaso, numa daquelas vezes em que te lembravas de fazer a ronda dos amigos que viviam longe.  (Gostavas de saber, de viva voz, que  a malta "ainda ia estando por cá",  se bem que já com a saúde "remendada"...   Tudo isto antes da pandemia, tragédia que mudou para sempre as nossas vidas. )

A Nucha estava viva, graças a Deus. Mas tinha tido um “acidente de percurso” (sic), nesse princípio de verão de 2017. Desconfiaste do eufemismo...

− Acidente ?!...

− Num ataque de ciumeira, o meu ex tentou estrangular-me!

− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não posso acreditar!...

− Desculpa, 
 nestes anos todos nunca te cheguei a falar dele, e da nossa relação!...Mas tu conheceste-o, uma vez na Casa da Música.
 
Sentiste que ela precisava de desabafar.  Nada, afinal,  como ter um velho amigo (e confidente). A 300 km de distância. Longe mas sempre ao alcance de um clique. 

Ainda os telemóveis não faziam videochamadas. Pelas fotos que ela te mandou,  dava para perceber a gravidade da agressão de que fora vítima… Trazia um colar cervical.

Segundo as suas queixas, sofrera diversas contusões no pescoço, mas também na couro cabeludo e no peito. Felizmente não havia vértebras cervicais partidas.

Logo que pudeste, em meados de julho desse ano, arranjaste um pretexto para estar com ela
. Tinhas uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitaste para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.

A Nucha era uma das “mães-fundadoras”  da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**). Juntavam-se às quintas feiras.  
Tu havias entrado neste grupo, como "observador-participante", justamente através da Nucha e do seu projeto local de promoção do envelhecimento ativo e saudável. 

−  Deixou-se ir abaixo com esta história toda, anda deprimida 
− confidenciou-te uma das pessoas do grupo que lhe estavam mais próximas. 

Mas, não faltaram logo, à boa maneira nortenha, as manifestações de afeto e de solidariedade, por parte dos caminheiros e demais amigos.  O  “caso” tornara-se público, contra a sua vontade. 

A Nucha fora vítima de violência doméstica. Disso ninguém tinha dúvidas. Algumas pessoas do grupo estavam chocadas, umas mais do que outras.

− Uma brincadeira, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros com quem falaste ao telefone.

Ninguém achou graça nenhuma  à subtil insinuação desse caminheiro. "Brincadeira" ?!... Para mais vinda  de alguém que, no passado, também fora vítima de violência conjugal. Neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental. 

Enfim, o termo “brincadeira” não estava isento de uma conotação algo machista.

− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas?! 
− comentava uma amiga dela.

Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que ela te apresentara uma vez como "amigo" ) contaram-te que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.

A Nucha apresentava, pelas fotos que tu viste,  claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com escoriações ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).

− Patológico ?... Dizem-me que o ciúme é o fogo que alimenta, a lume brando, o amor.

− Todo o ciúme é patológico!... Não me lixes − asseverava ela.

A verdade é que a Nucha ficara muito afetada, física e psicologicamente. 

“In extremis” conseguira libertar-se das mãos do agressor, e chamar o 112. O INEM veio com a polícia. O  fulano acabou por cair em si e deu-se por “culpado”. (Até por que era um homem "educado, culto e inteligente", disse o advogado no tribunal.) 

A Nucha foi levada, à meia noite, para o Hospital de São João,   tendo estado dois dias em observação e depois em tratamento.

Compreensivelmente, ela nunca mais quis voltar à casa da Foz. Nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes.  Incumbiu, p
ara essa tarefa, uma amiga, que morava para os lados da avenida da Boavista. 

A Nucha voltou, de vez, para o seu apartamento na Rua da Alegria. 

− Os 50 metros quadrados da sua ilha preferida.

Costumava dividi-los  com o confortável casarão da Foz, nomeadamente no outono e inverno, estações mais "tristonhas".

− Na primavera e no verão, preciso de sentir na pele a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores… 

A Nucha confidenciara-te que nunca mais  poderia viver por detrás de uma serra!.,. Detestava o rosmaninho e a urze, aromas de uma infância em que decididamente não fora feliz!

O juiz impôs ao agressor,  como medida de coação, o simples termo de identidade e residência... Aguardou o julgamento em liberdade...


− É a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe... Pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista 
−  comentou-se no grupo que, em peso,  foi solidário com a Nucha.

Sobretudo as mulheres não escondiam a sua indignação:
 
− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas... Pelo menos, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo e da classe social da vítima e do agressor.
 
Mas, afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha ?...  O "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico   nortenho.

Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum,  fotojornalista, que to apresentou:

− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)

− Por acaso, já nos tínhamos visto antes...

Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.

Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca,  com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De
 resto, ele sabia  tratar-se de uma amiga tua de longa data.  

O tribunal condenara-o a a 30 dias de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos corporais e morais, à Nucha.

Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.

O  Vaz C...  era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas,  professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia.  (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)

Também eram muito raros 
os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha".  A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias...O  IRS faziam-no sempre em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso,  ela nunca quis conhecer.  

Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça,  inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.

Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas  aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro",  em suma.

Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pela segurança e condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Nas despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar.

 De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogio que ele próprio fez, na conversa que teve contigo. 

A Nucha confirmou-te que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.  Adorava o "Alvarinho" da sua terra...

Não, não  era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. 

A casa na Foz ("um casarão", integrada agora num condomínio fechado) já vinha de família, mas fora remodelada. O pai tinha sido um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário). E dera-se bem com as obras públicas do Estado Novo.

− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...

Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte,  ligado à indústria transformadora.

Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)

− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... 
Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.

E prosseguiu o teu interlocutor (que parecia ter necessidade de falar do seu passado):

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. 

Com um prognóstico tão reservado, toda a gente entrou  em pânico. Ele era muito centralizador, para não dizer autocrata. Gostava sempre de ter a última (e decisiva) palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". 

- Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, eu não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão.  Este regressara  à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado". 

Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão... E confessou-te, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudara com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine". Acusavam-no  de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nada benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o rei (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...

O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de  dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração... 

Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar" e de sobretudo de "resolver problemas práticos sem grandes equações".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, 
ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

 Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e confidente do "Velho", e um homem, afinal, poderoso. 

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. 

E arrematou: 

− A única coisa boa que me aconteceu nestes últimos oito anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabei de a perder, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher. Perdi completamente a cabeça, meu Deus!

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompos-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendeste, ou deduziste,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...

Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso... 

Respeitaste o seu silêncio, levantaste-te, despediste-te dele... e nunca mais o voltaste a encontrar.

Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação... 

 − Um relação que tinha tudo para ser tranquila e até feliz − assegurou-te o engenheiro,  quase no fim da conversa (que foi mais um monólogo).

Eis,  em resumo,  alguns excertos de longas conversas que tiveste, entretanto, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminara num já longínquo mês de junho de 2017:

− De qualquer modo, houve uma punição legal e uma reparação material… A justiça é sempre relativa.

− O tanas, minha querida!... Ele teve uma pena suspensa, caricata, e foi obrigado a indemnizar-te por danos físicos e morais…mas isso para ele foram "peanuts".

− De mal o menos… Se eu fosse uma verdadeira lutadora, como a minha vizinha Maria da Fonte, ter-me-ia esforçado por provar que vivíamos juntos a maior parte do ano, em união de facto… Por uma questão de orgulho, não o fiz… Bloqueei!... Nunca me tinha visto num tribunal, com montes de gajos a despirem-me, mentalmente, de alto a baixo!

− Ias pôr em causa o teu autoconceito de mulher livre e independente ?!

− Posso estar a ser burra, mas assim foi-me mais fácil varrê-lo completamente da minha vida e das minhas memórias…

− ?...

− Sou uma mulher do Minho… de pêlo na venta e nas pernas!... Nisso sou uma cópia, a papel químico,  da minha mãezinha, que era capaz de ser má como as cobras, quando lhe pisavam os caules!

− Que disparate!

− ... Legalmente não houve violência… doméstica! Não éramos um casal, o juiz deve pensado que eu era um cabra, julgou o caso como uma simples agressão corporal…

−… na cama!

− Foi tudo muito sórdido!... Ele [o Vaz C…] tinha massa, arranjou um advogado, conhecido aqui na praça, que lhe limpou  a barra...

− E inverteram-se os papéis, não ?!

− Sim, às tantas, eu é que era a má da fita, a fria e astuta Eva que ludibriara o pobre e indefeso Adão!... Tive de reconstituir não sei quantas vezes a cena dessa maldita noite!...

−  Tens de ma repetir para eu poder defender-te quando as pessoas vêm insinuar que fizeste uma cena de teatro só para provocar o teu ex...

− Foi o que o advogado dele procurou demonstrar perante o juiz, passando da defesa ao ataque… A minha advogada era uma jovem, minha conhecida, que estava mais atrapalhada do que eu!...

A Nucha reforçou-te a ideia de que o tipo afinal tinha uma dupla personalidade:

 − Sabes, ele era um tipo misterioso… E deixa-me, desde já,  falar dele como sendo um fantasma do passado!... Pensava que o conhecia minimamente, que estupidez a minha!...Vivi com um animal estranho, durante oito anos, se não foram oito, anda por lá perto, com muitos intervalos pelo meio entre a casa da Foz e a da rua da Alegria…

− Ele falou-me em tiros de G3, deu a entender que andou na guerra colonial… Não quis aprofundar o assunto, seria indelicado da minha parte...

− Sim, ele esteve na Guiné, entre 1963 e 1965, se não erro… Não sou boa em datas. Regressou com 25 anos e só depois é que acabou o curso de engenharia, faltava-lhe um ano ou coisa assim… Deve ter apanhado a crise estudantil de 62… Não te sei dizer.

− Nasceu portanto em 1940 ou por aí…

Sim, ele era mais velho do que a Nucha uma boa dúzia de anos… Ela era de 1952.

− Falava-te da guerra ?

− Pouco ou muito raramente... Sim, quando fomos à Guiné-Bissau, ou melhor, à ilha de Orango, no arquipélago dos Bijagós… Fomos de avioneta, diretamente de Dacar para Orango… Em rigor, não estivemos na parte continental da Guiné-Bissau. Nesses dias, que adorei, vi os estranhos hipopótamos que vivem tanto em água doce como salgada, e que vão desaparecer com a subida do nível do mar, daqui a algumas décadas… Sim, nesses dias, ele falou-me por alto de algumas recordações do tempo da Guiné… Tinha estado em Bubaque, em 1964, numas curtas férias…

− Mas nunca te falou em episódios de guerra ?!... De um prisioneiro que terá tentado fugir e que ele terá abatido à queima-roupa...

− Não... Acredito que não deve ter sido fácil para ele. Mas eu também não queria saber nada sobre esse passado obscuro. E muito menos da merda da guerra!...  

− Deve ter tido também um divórcio litigioso… E deve ter havido, aí, no passado dele, mais episódios de violência doméstica, não ?!

− É bem possível, mas era assunto tabu entre nós. Nunca falámos da ex-mulher dele. Nem eu queria ouvir falar dela, nem de filhos e netos... Afinal, também sou ciumenta, como toda a gente.

− Estranho, não ?!,,, O passado de cada um de nós é sempre uma caixinha de Pandora...Percebi que também perdera os pais, ainda relativamente cedo…

− Sim, num estúpido acidente automóvel, nas vésperas de Natal quando iam para Viana do Castelo. Há uns trinta e tal anos. Ele é que ia a conduzir. Os velhotes iam atrás. Ficaram esmagados pelo embate de um camião TIR, que ficou sem travões…

− Não o amavas assim tanto…

− Vamos lá a ver: habituámo-nos à companhia um do outro. Tínhamos, de facto,  algumas coisas em comum. Por exemplo, éramos cinéfilos, adorávamos o cinema italiano do pós-guerra... Ele era um gajo culto, para os padrões burgueses do Porto… Gostava de ir ao teatro, gostava de ouvir um bom concerto sinfónico, etc. Não discutíamos política... Ele ia a missa, eu não...Sempre respeitei as suas convicções... Mas, amor, amor… É uma palavra demasiado forte que eu não gosto de pronunciar em vão… 

E depois de retomar o fôlego, a Nucha lamentou: 

- Andei toda a vida à procura do grande amor da minha vida, como quem joga no Euromilhões… Desisti, olha, agora jogo à raspadinha...  

− Somos utópicos…

− Somos mas é estúpidos, pelo menos nós, as mulheres, somos mais estúpidas do que vocês…

− Não digas isso, estás ainda magoada ao fim deste tempo todo.

− O meu sexto sentido, a minha inteligência emocional, o meu faro de felina... falharam redondamente desta vez… Aliás, têm falhado bastas vezes. Afinal, nunca acertei com os gajos que passaram pela minha vida, ou pela minha cama, que são coisas que deveriam ser completamente distintas!

− Não, quando se tem vinte anos!... 

− Sim, nessa altura o sexo era tudo… E ainda não havia, felizmente, a Sida!.... Mas já tínhamos a pílula, ao menos… Nós, as mulheres!...  Lembras-te ? Dizíamos que era o "amor livre"!...

− Mas, afinal, ainda o odeias, ao teu último ex ?

− Se queres que te seja franca, tenho-lhe um pó danado. Só consigo fazer o luto de uma relação, através do ódio… Ainda não deixei de o odiar, acredita... E não quero encontrá-lo nunca mais, o que é difícil para quem vive numa cidade provinciana como o Porto. Evito, por exemplo, ir à Foz, e aos locais que frequentávamos... Felizmente que ele não vai ao Parque da Cidade... Nem temos praticamente amigos comuns...Vivi meses enclausurada como uma monja...

− O amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda… Mas como é que se risca uma pessoa da nossa vida ?... Foram oito anos de vida juntos…Ou em que andaram juntos.  Vocês partilhavam algumas coisas boas da vida: as galerias de arte, Serralves, a Casa da Música, o teatro, o cinema, a música, a boa comida, as viagens…

− Até o nosso álbum de fotografias destrui, num acesso de raiva, as férias “maravilhosas” que ele me proporcionou na ilha do Príncipe ou na ilha de Orango… Queimei todas as fotos em que aparecíamos juntos. É assim que eu faço o luto de uma relação quando as coisas acabam mal por culpa dos gajos…

− Parece-me que o teu ódio também é contra a injustiça da justiça, digamos, falocrática, não ?!

A Nucha fez questão de te acompanhar ao comboio, apanharam o metro até Campanhã. Pelo caminho foi-te então contando, mais descontraída, o que se passara nessa noite de junho de 2017…

Vieste no comboio, de regresso a Lisboa, a tentar reconstituir, por escrito, o longo monólogo que a Nucha teve na cama com ele, o Vaz C…, e que terá sido o “móbil do crime”… Ou pelo menos a gota de água que fez transbordar o copo de uma relação já há muito desgastada pela usura do tempo, da rotina e do medo do futuro… 

(...) "Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa! [começou ela a contar ao Vaz C..., os dois já deitados na cama]... Um Mastroian
ni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava muita parecença com o Mastroianni quando novo... (Como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.)

"Em boa verdade, já nos tínhamos encontrado antes, uma vez, em Barcelona, há uns poucos anos atrás, recordava-me do seu nome... Era o último da lista, o Zacarias, mas nem ele reparou em mim nem eu nele. Também era mais novo e desconhecido.  E eu era já uma cinquentona nesse tempo... 

"Desta vez, em Lisboa,  ele era a estrela da companhia. Intelectualmente brilhante, fisicamente atraente. O encontro foi de dois dias, 5ª e 6ª. No primeiro dia, à noite, houve o tradicional jantar de gala, oferecido pela organização. O sítio não podia ser mais romântico e inspirador, no terraço coberto de um hotel de charme, um antigo palacete do séc XVIII, revestido a fabulosos azulejos da época, e que milagrosamente sobrevivera ao terramoto... Com vista para a Baixa e o estuário do Tejo, estás a ver ?!... A noite estava perfeita, com uma temperatura já de verão, e Lisboa estava em festa com a proximidade dos santos populares.

"Comeu-se bem e bebeu-se melhor, sabes como são os estrangeiros quando vêm cá, a Lisboa ou ao Porto, em negócios ou trabalho, gostam de juntar o útil ao agradável, o dever e o prazer. São muito trabalhólicos mas à noite tiram a gravata e o casaco, o mesmo é dizer, a máscara. O ambiente era descontraído, e desinibido, e havia uma tremenda carga de energia positiva no ar. 

"Os trabalhos, no dia seguinte, só recomeçavam às 10h00, por alteração de última hora do programa. Esperava-se a presença do ministro. Ainda fomos ao Bairro Alto, mais para ver o ambiente e andar um pouco a pé. Depois regressámos ao hotel, que não era longe, estávamos alojados no mesmo sítio, e por coincidência no mesmo piso. Como estava sem sono e, em boa verdade, sentia-me 'very, very free, cool, happy', uma sensação que há muito não experimentava. 

"Apesar da nossa diferença de idades, para aí uns vinte, o Mastroianni quis ser gentil comigo, ficou mais tempo na conversa, bebemos o último copo 'para a sossega' (fez ele questão de mo oferecer!), acabámos por subir juntos, no elevador, despedimo-nos com um beijo e eu aí..., tive uma sensação estranha, um impulso irresistível: agarrei, qual leoa, com as duas mãos, aquela cabeça de Apolo e,  zás!, ..."

(...) "Foi nesse preciso momento que o gajo [ela estava agora a referir-se ao Vaz],  o cabrão que estava a ler, a um canto da cama, a fingir que me ouvia, saltou como o tigre da Malásia, ferrou-me o pescoço com os dentes, tapou-me a boca com uma mão, puxou-me os cabelos com a outra, e deu um urro que ecoou pela casa toda: 'Cala-te, sua caaaaa... braaaaaa...!'... 

"E tentou estrangular-me, quase até à asfixia total...

(...) "Tive uma fração de segundo de lucidez para perceber o que estava a acontecer e que ele me ia matar... Foi aí que consegui, num derradeiro esforço hercúleo de mulher minhota, libertar a minha perna esquerda e dar-lhe uma joelhada fortíssima no baixo ventre. 

"Deu um urro de morte: 'Sua....caaaaa... braaaaa, filha de uma ganda puuuuu...ta!!!".

"E, 'in extremis', largou-me, desistiu, bloqueou, caiu exausto na cama, teve um ataque de choro, histérico ...  

(...) "Sim, consegui chamar o 112...Saltei da cama, cheia de dores, num estado miserável, desgrenhada, a roupa rasgada, pedi socorro ao 112... 

"Não ofereceu resistência quando chegou a polícia... Só voltei vê-lo no tribunal.   O processo correu célebre.

" Cabra, eu?!... O gajo ficou completamente desvairado com a cena que eu estava a contar, em voz alta, mais para mim do que para ele... Uma verdadeira fantasia erótica, se queres que te diga!...Mas na sua imaginação pornográfica ele viu-me agarrada ao grego, a rebolar na cama de gozo!... 

"O gajo tratou-me como uma puta, privativa, a quem pagava, de vez em quando,  uns jantares em restaurantes de luxo, só para eu ser dele!

"Fantasia erótica ?!...Não vou dizer que não estava excitada... Sim, se calhar até era capaz de ir para cama com ele, mas fiquei por ali, peguei-lhe na cabeça com as duas mãos, como uma mãe faria a um filho, dei-lhe um longo beijo de boas noites ... e de despedida!... 

"No dia seguinte, trocámos olhares cúmplices, algo embaraçados, como  dois tímidos adolescentes, acabou a conferência, ele apanhou o avião para Atenas e eu o comboio para o Porto... Nem sequer sei onde mora!...

"No fundo, fiquei com uma pena danada de não ter  dormido com ele nessa noite, única, irrepetível! E ainda hoje não sei por que é que não o fiz... 

"Muito provavelmente porque ele não me deu  'luz verde'... Sou muito intuitiva nestas coisas, dou muito importância ao comportamento não verbal dos meus parceiros... Senti atração por ele, não senti atração dele por mim...

"Sim, o meu Apolo não estaria nos dias dele... Os deuses são caprichosos... tão ou mais que os humanos... Ou então ele era um falso deus, uma merda de sedutor, um daqueles gajos que têm medo das mulheres inteligentes e dominadoras...

"Claro que eu fui completamente idiota ao contar esta história do Olimpo ao meu ex... Se calhar até fui cruel, sem intenção de o ser... Ou, se calhar, inconscientemente, eu quis provocá-lo, testar os seus limites de racionalidade, pôr á prova o amor dele...  

"Dir-me-ás, também tu, que, antes de seres meu amigo, és macho, que as mulheres não podem brincar com o fogo... Se calhar foi por  isso que os homens, com medo, nos roubaram o fogo!... É um dos mitos mais antigos da humanidade!

"Que parva que eu fui!... Afinal, uma mulher não pode ter desejos, não pode ser proativa em matéria de sexo...E muitos menos se tiver cabelos grisalhos... Uma gaja aos 65, era a idade  que eu tinha na altura, em 2017, não pode desejar um homem, vinte anos mais novo... Grego, lindo com o Apolo!... 

"Sabes uma coisa ?!... Tenho reconhecer que estou velha e acabada, não tenho a pedalada dos miúdos de hoje, como os que são (ou foram) meus alunos". (...)

Não voltaste a ver a tua amiga Nucha desde a vossa última conversa, em Campanhã. Meteu-se, entretanto, a maldita pandemia... E, pior do que tudo, a Nucha sofreu, entretanto,  um surto psicótico, esteve internada em psiquiatria, um irmã dela, mais nova, veio ao Porto buscá-la... 

Vive hoje triste, apática, solitária, numa casa de repouso em Terras de Bouro... Por ironia, voltou aos montes da sua infância raiana, cobertos de rosmaninho e de urze. Coisa que já não a incomoda,  felizmente, para ela, que perdeu o olfato. E também já não sai nem ninguém a visita para além da família mais próxima...

Quanto a ti, tu nunca foste a Terras de Bouro. Nem sabias exatamente onde era, antes de ires ao Google... Mas ficaste  devastado ao saber do fim desta história de uma mulher que tanto acreditara, em vida, na arte e na ciência  da promoção do envelhecimento ativo e saudável.


© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.
Última revisão: 19 de outubro de 2024
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'

(**) Vd. poste de 18 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros