1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2022:
Queridos amigos,
Naquele ano de 1943 Vitorino Magalhães Godinho dava à estampa o Vol. I de "Documentos Sobre a Expansão Portuguesa", vinha na sequência da "A Expansão Quatrocentista Portuguesa", era uma historiografia pioneira, logo na introdução o eminente historiador avisa os leitores quais sãos as fontes que ele consulta, é uma história sem aspetos miraculosos nem vulgaridades, e mostra-se mesmo oposto à vulgata ultranacionalista no final da sua introdução: "Entre o ideal medievo da religiosidade e cavalaria, e o ideal moderno na razão, da experiência e do lucro, a atividade de descobrir, conquistar e colonizar, exerce-se no plano da prática metódica, da cobiça, da preocupação com o destino da alma, da aventura raciocinada, do impulso da força das armas e da tenacidade do desbravamento do solo. A economia mercantil da expansão cristaliza em vários pontos na agregação senhorial, o pensamento técnico articula-se às conceções teóricas mas não rasga os moldes básicos das ideias antigas. Daí o interesse largamente humano da história da expansão portuguesa. Como as cidades italianas e flamengas dos séculos XI a XIV, como a Holanda e Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, Portugal e Espanha nos séculos XV e XVI queriam a norma e são o quadro das transformações económicas e políticas." Nascia assim a historiografia moderna, um tanto em contraponto com a carga mitológica que envolvera a Exposição do Mundo Português, alguns anos antes.
Um abraço do
Mário
Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (2)
Mário Beja Santos
Na sua juventude, aquele que se virá a credenciar como o mais importante historiador dos Descobrimentos portugueses, Vitorino Magalhães Godinho, publica duas obras que serão a alavanca da sua assombrosa investigação, no arranque da década de 1940: A Expansão Quatrocentista Portuguesa e os Documentos Sobre a Expansão Portuguesa. Logo na introdução do Vol. I de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, o historiador deixa bem claro que sabe ao que vem, pauta-se pela evidência científica, não vai haver fantasia nem batalhas de Ourique nem as invenções da historiografia de Alcobaça, alerta-nos para as fontes do seu estudo: as narrativas (crónicas, relações); fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias); documentos diversos, obras técnicas (tais como roteiros, regimentos náuticos, tratados cosmográficos e náuticos). E elenca o conjunto de todas estas fontes que pretende compulsar para o seu trabalho.
É exatamente neste vol. I, publicado pela Editorial Gleba em 1943 que Vitorino Magalhães Godinho retoma o estudo da Relação dos Descobrimentos da Guiné, atribuído a Diogo Gomes e que tinha sido publicada em 1900 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. No texto anterior, deu-se conta do essencial da visão de Diogo Gomes de Sintra quanto ao projeto henriquino, refere o funeral do Infante, e passa agora ao serviço do rei D. Afonso V. Em 1462, viaja de novo para a terra dos Barbacins e conta como ele e António da Noli, no regresso a Portugal, encontram ilhas, ele é o primeiro a pôr o pé em terra na ilha a que passou a ter o nome de Santiago. “Havia ali grande pescaria. Em terra, porém, achámos muitas aves estranhas e rios de água doce. As aves esperavam-nos sem fugir, assim as matávamos com paus. Havia aí muitos patos. Também era grande a fartura de figos. E depois vimos a ilha da Canária que se chama Palma, e em seguida fomos à ilha Madeira. E querendo ir a Portugal com o vento contrário fui às ilhas dos Açores e António da Noli ficou na ilha da Madeira; com melhor tempo chegou a Portugal antes de mim, e pediu ao rei a capitania da ilha de Santiago, que eu descobrira; e o rei deu-lha, a ele e ele a conservou até morrer.”
Segue-se a descrição que faz das ilhas do mar oceano do Ocidente. Começa assim: “Ouvi eu, Diogo Gomes de Sintra, que algumas caravelas da armada do rei João de Portugal que foram a África contra os Serracenos, apanhando vento contrário, não puderam resistir à tormenta, correram e viram algumas ilhas. Contentes de ver terra, e julgando ali encontrar algum refúgio daquela tormenta, foram a uma ilha, agora chamada Lançarote, e acharam-na despovoada”. Falará sobre as ilhas Canárias, descreverá Tenerife, Palma e assim chegamos à Madeira, primeiro Porto Santo e depois Madeira, referirá o seu povoamento. Seguidamente, espraia-se sobre o descobrimento das ilhas do Açores, referindo exclusivamente Santa Maria e S. Miguel. Há uma nota curiosa de Diogo Gomes de Sintra sobre esta ilha, e que tem a ver com a Ordem de Cristo, de que o Infante D. Henrique era administrador e de onde arrecadava meios para as suas expedições:
“Não muito tempo depois, o Infante D. Pedro, irmão do Infante D. Henrique, pediu a seu irmão esta ilha de S. Miguel, que lhe foi dada no temporal e no espiritual, que assim ficou como as outras ilhas da Ordem de Cristo, dando de todas a dízima, o que o pontífice Eugénio confirmou, e onde fez menção que todas as ilhas descobertas no mar oceano eram do senhor Infante e da Ordem de Cristo.”
Recordo ao leitor que Vitorino Magalhães Godinho denuncia confusões e equívocos, sobretudo comparando a sua Relação com a Crónica da Guiné de Zurara. E releva questões suscitadas pelo descobrimento do arquipélago de Cabo Verde: “O descobrimento do arquipélago de Cabo Verde tem-se atribuído quer a Diogo Gomes quer a António da Noli quer a Cadamosto. Na Relação, a viagem de Diogo Gomes na companhia do genovês data de 1462; ora a viagem do veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António da Noli, cuja viagem deve ser anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs ser erradamente o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica e que Diogo Gomes acompanhasse António da Noli, não parece de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o rei não lhe concederia a capitania de Santiago.”
Mas há outros comentários que me parecem dignos de apreço. Exemplos:
“Está por analisar a função e valor das ilhas na economia portuguesa do século XV. A Madeira tornou-se o centro de valiosíssima experiência económica pelo cultivo da vinha, cana do açúcar e trigo; as suas madeiras foram primaciais na construção naval”; ”Provavelmente o arquipélago açoriano fora já conhecido no século XIV, talvez devido às navegações do reinado de D. Afonso IV. Acumulam-se as incertezas quanto ao descobrimento ou reconhecimento no século XV. A carta régia de 2 de julho de 1439 autoriza ao Infante o povoamento de sete ilhas açorianas e declara que já anteriormente D. Henrique mandara lá deitar ovelhas. Gaspar Frutuoso di-las descobertas por Gonçalo Velho em 1432, mas o globo de Nuremberga, de Martim Behaim data o reconhecimento de 1431, e a carta maiorquina de Gabriel Vallseca de 1427, atribuindo-o a Diogo de Sunis (Sines ou Sevilha?). Corvo e Flores foram encontradas em 1452 por Diogo de Teive”; “A obscuridade que envolve a figura do Regente (Infante D. Pedro) não nos permite avaliar a amplitude da sua ação, quer nos Descobrimentos quer na colonização; por aqui vemos que esta o preocupou e, embora arrojado, não é ilícito aventar que lhe deve decisivo impulso (cujos traços houve depois o cuidado de apagar)”.
Finda aqui o trabalho sobre a Relação de Diogo Gomes de Sintra, no estudo seguinte Vitorino Magalhães Godinho debruça-se sobre o Infante D. Henrique, a sua antologia inclui textos de Zurara, Duarte Pacheco, João de Barros, Damião de Góis, para além de apresentar várias cartas. O jovem historiador abria uma nova faceta na investigação e pela primeira vez oferecia-se ao leitor não iniciado a possibilidade de acesso a documentação fundamental sobre este período da Expansão Portuguesa.
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24279: Historiografia da presença portuguesa em África (366): Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1) (Mário Beja Santos)