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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26206: (De) Caras (225): Duas fotografias, girândola e fastígio das recordações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Há manhãs de sorte, falo por mim, comprei na D. Amélia da Feira da Ladra estas duas fotografias que irão depois para um arquivo. A primeira levou-me à minha chegada à Guiné, o barco da mancarra que me levou a Bambadinca parou exatamente naquele ponto onde está a embarcação que veio recolher esta unidade, bem curioso é o contraste entre o caminhar destes homens e a ondulação dos arrozais; na segunda fotografia quem captou a imagem terá sido um homem com muita sorte, apanhar o rebentamento de uma granada enquanto desfilam militares num curso de água, segundo o que vem no reverso a caminho do Sambuiá, santuário que veio a revelar-se quase inexpugnável, outras lembranças me ocorreram, de leituras e conversas, mas o mais importante é deixar esta imagem no nosso blogue.

Um abraço do
Mário



Duas fotografias, girândola e fastígio das recordações

Mário Beja Santos

Chego à Feira da Ladra ao despertar do dia, o meu fornecedor de livros, quando aparece, é imediatamente procurado por gente que vive da venda de livros em segunda mão, eu apareço ali como um outsider, olhado um tanto de viés. Antes de ele chegar, vou conversar com a D. Amélia, uma senhora que já me vendeu um lote de fotografias que devem ter pertencido ao capitão de uma das duas companhias que estavam na Guiné entre 1959 e 1961 e que mais recentemente me vendeu um lote de correspondência dos irmãos Barbieri Cardoso. Regra geral, só encontro correspondência ou fotografias de Angola e Moçambique, mas naquela manhã havia um lote bem gordinho de fotografias em que se escrevia no reverso Porto Gole, 1971, indiscutivelmente fora pertença de um jovem de bigodaça farta que por ali viveu um bom tempo, posiciona-se à porta de todos os edifícios, em viaturas, no abrigo, no refeitório, são imagens com que ele seguramente contou dar sossego à família, não há para ali nenhum sinal de guerra declarada.

Passei os olhos por todo o monte de imagens e de repente surgiu esta, a mente levou-me até ao princípio da tarde do dia 2 de agosto de 1968, o barco da mancarra que me levou até Bambadinca aqui atracou, lembro-me, como se fosse hoje daquele caminho que se palmilhava até chegar a terra firme, orlado por terrenos cultivados, guardo a lembrança de tudo, mas quem entrava e saía era população civil, com sacos e animais, gente de todas as idades. Imagem esmaecida, o Geba perdeu cor, e lá ao fundo vê-se o Quínara, que sempre sonhei visitar, e que nunca aconteceu. Coisa curiosa, deixara-se de circular por terra entre Jugudul e Porto Gole, as minas anticarro eram muitas, as emboscadas também, morrera a circulação naquela estrada que passava perto do Enxalé, S. Belchior, Mato de Cão, subia até Missirá, e pela ponte do Gambiel podia-se viajar até Bafatá. Enfim, o Geba era a estrada por onde se ia até Porto Gole, Enxalé, Xime e Bambadinca. Tudo mudará em novembro de 1969, com a inauguração do porto do Xime. Mas a circulação pelo Geba era vital para todos estes aquartelamentos, incluindo os do Leste, de Bafatá para cima.

Não mais voltei a Porto Gole, em 1990, 1991 e 2010 fui até Missirá por aquela estrada, com o alcatroamento já muito danificado, regressei a Enxalé e percorri todo o regulado do Cuor. Mas lembro-me que da estrada se via perfeitamente o monumento comemorativo à passagem de Diogo Gomes, em 1456. Deu-me pare recordar Porto Gole, acho que a fotografia tem o seu encanto com aquelas ondulações do arrozal e aqueles grupos de combate que não sabemos se vêm de uma operação ou para ela partem.

Porto Gole, 1971
Monumento alusivo à passagem de Diogo Gomes em 1456

Continuo a remexer nos maços de imagens que a D. Amélia tem na banca. Há mais fotografias da Guiné, são triviais, estou absolutamente convicto que na generalidade dos casos serviram para sossegar famílias, metem gente sorridente com cobras mortas, refeições e exibem-se cervejas, gente a ler aerogramas. É nisto que pego nesta segunda fotografia, diz enigmaticamente a caminho do Sambuiá, posso estar equivocado, mas iniludivelmente uma boa imagem com o rebentamento de uma morteirada, nunca vira até agora nada de parecido, um instantâneo tão violento. Enquanto olho demoradamente a fotografia, lembro as conversas que tenho tido com o Belmiro Tavares, que por ali andou, e que refere mesmo que numa operação a Sambuiá houve um desastre com uma equipa de morteiros, um acidente estúpido. Mais recentemente, numa carta do tenente Barbieri para o irmão ele refere uma operação no Sambuiá em tom perfeitamente crítico. Por ali passou Gérard Chaliand, um historiador das revoluções, em 1964, na companhia de Amílcar Cabral, passaram depois por Dugal e internaram-se no Morés. Acho que esta imagem nos faltava, valeu a pena ter começado a manhã de compras com estas duas imagens e a gratificação das recordações quem em mim as acompanha.
A caminho do Sambuiá, sem data
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Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26074: (De) Caras (224): Maurício Saraiva, cofundador e instrutor dos Comandos do CTIG, cmdt do Gr Cmds Fantasmas - Parte II: Um dos momentos mais dramáticos que vivi, na sequência da terrível emboscada com mina A/C, em 28 de novembro de 1964, na estrada de Madina do Boé para Contabane, perto de Gobije (Antóno Pinto, ex-alf mil, Pirada, Madina do Boé e Béli, 1963/65)

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24304: Historiografia da presença portuguesa em África (367): Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Naquele ano de 1943 Vitorino Magalhães Godinho dava à estampa o Vol. I de "Documentos Sobre a Expansão Portuguesa", vinha na sequência da "A Expansão Quatrocentista Portuguesa", era uma historiografia pioneira, logo na introdução o eminente historiador avisa os leitores quais sãos as fontes que ele consulta, é uma história sem aspetos miraculosos nem vulgaridades, e mostra-se mesmo oposto à vulgata ultranacionalista no final da sua introdução: "Entre o ideal medievo da religiosidade e cavalaria, e o ideal moderno na razão, da experiência e do lucro, a atividade de descobrir, conquistar e colonizar, exerce-se no plano da prática metódica, da cobiça, da preocupação com o destino da alma, da aventura raciocinada, do impulso da força das armas e da tenacidade do desbravamento do solo. A economia mercantil da expansão cristaliza em vários pontos na agregação senhorial, o pensamento técnico articula-se às conceções teóricas mas não rasga os moldes básicos das ideias antigas. Daí o interesse largamente humano da história da expansão portuguesa. Como as cidades italianas e flamengas dos séculos XI a XIV, como a Holanda e Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, Portugal e Espanha nos séculos XV e XVI queriam a norma e são o quadro das transformações económicas e políticas." Nascia assim a historiografia moderna, um tanto em contraponto com a carga mitológica que envolvera a Exposição do Mundo Português, alguns anos antes.

Um abraço do
Mário



Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (2)

Mário Beja Santos

Na sua juventude, aquele que se virá a credenciar como o mais importante historiador dos Descobrimentos portugueses, Vitorino Magalhães Godinho, publica duas obras que serão a alavanca da sua assombrosa investigação, no arranque da década de 1940: A Expansão Quatrocentista Portuguesa e os Documentos Sobre a Expansão Portuguesa. Logo na introdução do Vol. I de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, o historiador deixa bem claro que sabe ao que vem, pauta-se pela evidência científica, não vai haver fantasia nem batalhas de Ourique nem as invenções da historiografia de Alcobaça, alerta-nos para as fontes do seu estudo: as narrativas (crónicas, relações); fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias); documentos diversos, obras técnicas (tais como roteiros, regimentos náuticos, tratados cosmográficos e náuticos). E elenca o conjunto de todas estas fontes que pretende compulsar para o seu trabalho.

É exatamente neste vol. I, publicado pela Editorial Gleba em 1943 que Vitorino Magalhães Godinho retoma o estudo da Relação dos Descobrimentos da Guiné, atribuído a Diogo Gomes e que tinha sido publicada em 1900 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. No texto anterior, deu-se conta do essencial da visão de Diogo Gomes de Sintra quanto ao projeto henriquino, refere o funeral do Infante, e passa agora ao serviço do rei D. Afonso V. Em 1462, viaja de novo para a terra dos Barbacins e conta como ele e António da Noli, no regresso a Portugal, encontram ilhas, ele é o primeiro a pôr o pé em terra na ilha a que passou a ter o nome de Santiago. “Havia ali grande pescaria. Em terra, porém, achámos muitas aves estranhas e rios de água doce. As aves esperavam-nos sem fugir, assim as matávamos com paus. Havia aí muitos patos. Também era grande a fartura de figos. E depois vimos a ilha da Canária que se chama Palma, e em seguida fomos à ilha Madeira. E querendo ir a Portugal com o vento contrário fui às ilhas dos Açores e António da Noli ficou na ilha da Madeira; com melhor tempo chegou a Portugal antes de mim, e pediu ao rei a capitania da ilha de Santiago, que eu descobrira; e o rei deu-lha, a ele e ele a conservou até morrer.”

Segue-se a descrição que faz das ilhas do mar oceano do Ocidente. Começa assim: “Ouvi eu, Diogo Gomes de Sintra, que algumas caravelas da armada do rei João de Portugal que foram a África contra os Serracenos, apanhando vento contrário, não puderam resistir à tormenta, correram e viram algumas ilhas. Contentes de ver terra, e julgando ali encontrar algum refúgio daquela tormenta, foram a uma ilha, agora chamada Lançarote, e acharam-na despovoada”. Falará sobre as ilhas Canárias, descreverá Tenerife, Palma e assim chegamos à Madeira, primeiro Porto Santo e depois Madeira, referirá o seu povoamento. Seguidamente, espraia-se sobre o descobrimento das ilhas do Açores, referindo exclusivamente Santa Maria e S. Miguel. Há uma nota curiosa de Diogo Gomes de Sintra sobre esta ilha, e que tem a ver com a Ordem de Cristo, de que o Infante D. Henrique era administrador e de onde arrecadava meios para as suas expedições:
“Não muito tempo depois, o Infante D. Pedro, irmão do Infante D. Henrique, pediu a seu irmão esta ilha de S. Miguel, que lhe foi dada no temporal e no espiritual, que assim ficou como as outras ilhas da Ordem de Cristo, dando de todas a dízima, o que o pontífice Eugénio confirmou, e onde fez menção que todas as ilhas descobertas no mar oceano eram do senhor Infante e da Ordem de Cristo.”

Recordo ao leitor que Vitorino Magalhães Godinho denuncia confusões e equívocos, sobretudo comparando a sua Relação com a Crónica da Guiné de Zurara. E releva questões suscitadas pelo descobrimento do arquipélago de Cabo Verde: “O descobrimento do arquipélago de Cabo Verde tem-se atribuído quer a Diogo Gomes quer a António da Noli quer a Cadamosto. Na Relação, a viagem de Diogo Gomes na companhia do genovês data de 1462; ora a viagem do veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António da Noli, cuja viagem deve ser anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs ser erradamente o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica e que Diogo Gomes acompanhasse António da Noli, não parece de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o rei não lhe concederia a capitania de Santiago.”

Mas há outros comentários que me parecem dignos de apreço. Exemplos:
“Está por analisar a função e valor das ilhas na economia portuguesa do século XV. A Madeira tornou-se o centro de valiosíssima experiência económica pelo cultivo da vinha, cana do açúcar e trigo; as suas madeiras foram primaciais na construção naval”; ”Provavelmente o arquipélago açoriano fora já conhecido no século XIV, talvez devido às navegações do reinado de D. Afonso IV. Acumulam-se as incertezas quanto ao descobrimento ou reconhecimento no século XV. A carta régia de 2 de julho de 1439 autoriza ao Infante o povoamento de sete ilhas açorianas e declara que já anteriormente D. Henrique mandara lá deitar ovelhas. Gaspar Frutuoso di-las descobertas por Gonçalo Velho em 1432, mas o globo de Nuremberga, de Martim Behaim data o reconhecimento de 1431, e a carta maiorquina de Gabriel Vallseca de 1427, atribuindo-o a Diogo de Sunis (Sines ou Sevilha?). Corvo e Flores foram encontradas em 1452 por Diogo de Teive”; “A obscuridade que envolve a figura do Regente (Infante D. Pedro) não nos permite avaliar a amplitude da sua ação, quer nos Descobrimentos quer na colonização; por aqui vemos que esta o preocupou e, embora arrojado, não é ilícito aventar que lhe deve decisivo impulso (cujos traços houve depois o cuidado de apagar)”.

Finda aqui o trabalho sobre a Relação de Diogo Gomes de Sintra, no estudo seguinte Vitorino Magalhães Godinho debruça-se sobre o Infante D. Henrique, a sua antologia inclui textos de Zurara, Duarte Pacheco, João de Barros, Damião de Góis, para além de apresentar várias cartas. O jovem historiador abria uma nova faceta na investigação e pela primeira vez oferecia-se ao leitor não iniciado a possibilidade de acesso a documentação fundamental sobre este período da Expansão Portuguesa.


Estátua de Diogo Gomes na cidade da Praia, Cabo Verde
Estátua de Diogo Gomes na fortaleza de Cacheu
Vitorino Magalhães Godinho na juventude
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24279: Historiografia da presença portuguesa em África (366): Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24279: Historiografia da presença portuguesa em África (366): Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Não deixa de ser uma fascínio e provocar uma grande admiração folhear estes documentos de expansão portuguesa coligidos por Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), obra da sua juventude, este data de 1943, serão publicados ainda 2 volumes, em 1944 e 1956, uma trilogia que é hoje uma raridade bibliográfica. Neste primeiro volume, aquele que se irá consagrar como o maior historiador português dos Descobrimentos procede ao levantamento das fontes que se propõe estudar e comentará um acervo de documentos, hoje reconhecidamente de valor irrefutável, tudo à volta do projeto henriquino. A escolha da Relação de Diogo Gomes tem extrema importância a vários títulos: primeiro, vemos o historiador a cortar cerce em confusões de Diogo Gomes, mostrando haver poucas coincidências entre o seu relato e o de Zurara; segundo, tratando-se a Relação de Diogo Gomes o primeiro escrito na contemporaneidade do Infante D. Henrique, revela os conhecimentos científicos da época, caso de se pensar que o Senegal era o braço ocidental do Nilo, tudo dentro de uma lógica do mundo concebido por Ptolomeu; terceiro, Vitorino Magalhães Godinho deixa bem claro que o Infante D. Henrique tem a alma de um cruzado, de um empreendedor comercial e o desejo de espalhar a fé, as informações que vai obtendo das sucessivas viagens seguramente que lhe terão dado conta que o islamismo já tinha forte difusão, a despeito de um grande espaço destinado à cristianização, junto dos povos animistas. Esta Relação é muito mais do que uma curiosidade, tudo começa em Ceuta e nas ilhas do mar oceano do Ocidente, resolvido o diferendo das Canárias, aposta-se no povoamento da Madeira e dos Açores.

Um abraço do
Mário



Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1)

Mário Beja Santos

Na sua juventude, aquele que se virá a credenciar como o mais importante historiador dos Descobrimentos portugueses, Vitorino Magalhães Godinho, publica duas obras que serão a alavanca da sua assombrosa investigação, no arranque da década de 1940: A Expansão Quatrocentista Portuguesa e os Documentos Sobre a Expansão Portuguesa. Logo na introdução do Vol. I de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, o historiador deixa bem claro que sabe ao que vem, pauta-se pela evidência científica, não vai haver fantasia nem batalhas de Ourique nem as invenções da historiografia de Alcobaça, alerta-nos para as fontes do seu estudo: as narrativas (crónicas, relações); fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias); documentos diversos, obras técnicas (tais como roteiros, regimentos náuticos, tratados cosmográficos e náuticos). E elenca o conjunto de todas estas fontes que pretende compulsar para o seu trabalho.

É exatamente neste vol. I, publicado pela Editorial Gleba em 1943 que Vitorino Magalhães Godinho retoma o estudo da Relação dos Descobrimentos da Guiné, atribuído a Diogo Gomes e que tinha sido publicada em 1900 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Que importância se pode conferir a tal relação? É o único documento publicado por um navegador ou explorador contemporâneo do Infante D. Henrique, Diogo Gomes (ou Diogo Gomes de Sintra) está bem identificado como o colaborador do Infante, tendo exercido atividades de responsabilidade no reinado de D. Afonso V. O debate que ainda hoje persiste sobre a autoria da Relação é se teria sido ditada a Martinho de Boémia ou por este redigida e/ou modificada.

Chama logo à atenção a forma como arranca o texto:
“De que modo foi achada a Etiópia austral, a qual se chama Líbia inferior, além da que Ptolomeu descreveu, agora chamada Guiné pelos descobridores portugueses, a qual descoberta referiu Diogo Gomes, almoxarife do Paço de Sintra, a Martinho de Boémia, ínclito cavaleiro alemão (o historiador refere que ao tempo ainda não havia nenhum estudo crítico sobre a Relação de Diogo Gomes). A Relação começa sempre com o início do projeto henriquino, as viagens ao rio do ouro, as expedições conduzidas por Nuno Tristão e António Gonçalves, a procura do caminho para Tombuctu, as viagens de Gonçalo de Sintra e Dinis Dias que foram para além da Ponta da Galé, a construção da fortaleza de Arguim, novas armadas com Gil Eanes, Lançarote de Lagos, Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra, as capturas de gente africana, prosseguem as expedições, já se está no país dos Jalofos, mais adiante passa-se o rio de S. Domingos e o rio Grande (o Geba) “e tivemos ali grandes correntes do mar, e na enchente faz grande ímpeto, o que chama o macaréu, porque então não há âncora que possa aguentar. Por esse motivo outros capitães e homens deles temiam muito, julgando que era assim todo o mar além, e me rogavam que voltasse. E a meio da maré ficou o mar bastante manso, e vieram os mouros da terra nas suas almadias e nos trouxeram as suas mercadorias, a saber: panos de seda ou algodão, dentes de elefante e uma quarta de malagueta em grão. E parámos aí, nem passámos além por causa das correntes do mar. E quando veio a maré cheia aconteceu-nos a nós como antes e assim nos voltámos a donde nos saímos”.

Descreve os palmares, os animais, volta a referir os elefantes e menciona as tocas dos crocodilos. Retornam viagem para o promontório de Cabo Verde, passam obrigatoriamente pelo rio Gâmbia, por ele navegam, vão estabelecendo relações com a população local, há quem os informe de que estavam cristãos em Cantor, falam-lhes de grandes cidades comerciais com abundância de ouro, caravanas de camelos trazendo mercadorias de Cartago ou Tunes, de Fez e do Cairo, Diogo Gomes vai obtendo informações sobre os reis, o comércio, sabe da existência do grande senhor chamado Batimansa, havia também um rei chamado Nomimans bastante hostil aos cristãos, Diogo Gomes mandou-lhe presentes, o rei apresentou-se, falaram de religião e o rei informou que só cria no Deus vivo e uno, queria ser batizado, escreveu uma mensagem ao senhor Infante para que lhe mandasse sacerdote e um fidalgo que o instruísse na fé e que lhe mandasse um açor, ave de caça, porque se admirou muito quando lhe disse que os cristãos traziam na mão uma ave que apanhava as outras aves.

No regresso vai contactando embarcações portuguesas e gente em terra. Tudo contando ao Infante D. Henrique, deu particular atenção ao que lhe dissera o rei Nomimans. “O Infante tudo fez, e mandou para ali o sacerdote parente consanguíneo do cardeal, Abade de Souto da Casa, para que ficasse com aquele rei, e o industriasse na fé.”

E dá-se a morte do Infante em Lagos, em 13 de novembro de 1460, será depois transladado para Santa Maria da Batalha. “Dois anos depois, o senhor rei Afonso armou uma grande caravela, onde me mandou pôr capitão; levei dez cavalos comigo e fui à terra dos Barbacins, ali há dois reis. O rei deu-me poder sobre as margens daquele mar, para que quaisquer caravelas que encontrasse em terra de Guiné fossem sob minha autoridade ou domínio, porque ele sabia que ali estavam caravelas que levavam espadas e outras armas aos mouros, ordenando-me que as tomasse e lhas trouxesse a Portugal (a bula de Eugénio IV de 25 de maio de 1437 concedera autorização aos portugueses para comerciar com os mouros, excetuando, porém, a venda de armamento). Com a ajuda de Deus, em doze dias cheguei a Barbacins”.

E descreve quem encontrou e dá-nos uma noção dos termos dos resgates: os mouros vendiam sete negros por um cavalo. Refere adiante que foi com António da Noli de regresso a Portugal. “E porque a minha caravela era mais veleira que a outra, cheguei eu primeiro a uma daquelas ilhas, onde vi areia branca, e, parecendo-me bom o porto, lancei a âncora e o mesmo fez António. E disse-lhes que queria ser o primeiro a pôr pé em terra, e assim fiz, e nenhum indício de homem vimos aí”. Observa Vitorino Magalhães Godinho que o descobrimento do arquipélago de Cabo Verde era atribuído a Diogo Gomes ou António da Noli ou a Cadamosto. Na Relação a viagem de Diogo Gomes em companhia do genovês é de 1462; ora a viagem do veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António da Noli, cuja viagem deve ter sido anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs erradamente ser o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica, e que Diogo Gomes acompanhasse António da Noli, não parecesse de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o rei não lhe concederia a capitania de Santiago, como o próprio Diogo Gomes informa.

Trata-se de um belíssimo texto e vale a pena acompanhá-lo até ao fim.

(continua)

Estátua de Diogo Gomes na cidade da Praia, Cabo Verde
Estátua de Diogo Gomes na fortaleza de Cacheu
Vitorino Magalhães Godinho na juventude
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
A sorte não favorece só os audazes, há bancas da Feira da Ladra onde se podem descobrir pepitas, esta conferência de António Júlio de Castro Fernandes tem muito que se lhe diga, recordo que em 1955 ele produziu, e seguramente que não era um exclusivo para a administração do BNU, um documento bem encorpado sobre a situação da Guiné e já numa previsão de mudanças geoestratégicas e geopolíticas, queixando-se da falta de qualidade dos funcionários da administração e da estagnação económica, baseada numa avidez de duas ou três culturas, de fraquíssima qualidade, só de puro escoamento em Portugal, escreveu para quem o quis ler que a Guiné em termos socioeconómicos e culturais tinha que dar uma grande volta. O que não aconteceu. Seguramente escalado para se dirigir à administração colonial, aos empresários locais, adoçou o discurso, nada de temores com subversões (houve quem previsse que os tumultos nacionalistas podiam começar pela Guiné), e vendeu a receita tão cara aos dirigentes do Estado Novo que a nossa presença em África era uma especificidade em prol da civilização ocidental e da mensagem cristã. No ano seguinte a esta alocução de fé e da inabalável crença do Estado Novo de que não haverá política de abandono, a subversão estará em marcha.

Um abraço do
Mário



Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas

Mário Beja Santos

Nome sonante do Estado Novo, economista, banqueiro, membro do Governo, Presidente da Comissão Executiva da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes era grande conhecedor da realidade económica da Guiné. Queria lembrar ao leitor o documento que assinou pelo seu punho em 1955 e enviado à administração do BNU, a que ele pertencia, documento que parcialmente transcrevi no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", o BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019, onde revela que não se pode perder mais tempo numa atitude de desenvolvimento, estavam previstas grandes alterações em torno da colónia, era um risco não mudar o estado das coisas. Se o leitor estiver interessado tem o documento integral à sua disposição na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A conferência que ele vai proferir em 23 de abril de 1960 direciona-se para três temas: Portugal na Guiné; presente e futuro da Guiné; e condicionalismo político. Não traz nada de novo acerca do descobrimento da Guiné, a não ser não ter referenciado Nuno Tristão como o primeiro a chegar à região, mas sim Diogo Gomes, em 1456. Refere sumariamente a colonização e dirige-se ao auditório falando do presente e do futuro. Estamos em 1960, na fronteira norte está a República do Senegal que então fazia parte da Federação do Mali. “Sobre vários aspetos, a Guiné Portuguesa é um país singular, que se destaca pelas características próprias entre as paisagens do Sudão e o grande planalto da Guiné Superior, com a sua particular estrutura de terras baixas, irrigadas por rios largos e numerosos, um território meio continental e meio insular.”

Dá-nos uma água-forte do mosaico étnico, e discreteia sobre a economia, baseada na agricultura. “O ponto fraco do sistema reside na monocultura, não em sentido literal porque, na área da província, há três ou quatro culturas com relevante valor económico. Assim, temos: a mancarra em Farim, Bafatá e Gabu; a palmeira de azeite em Cacheu, Geba e Arquipélago de Bijagós; o arroz em Mansoa, Catió, Fulacunda, Bissau e São Domingos. É visível que a agricultura guineense está concentrada em número restrito de produtos: o amendoim, o coconote e o óleo de palma, que são artigos de exportação; o arroz e o milho, de consumo interno. O primeiro problema que se põe é o de transitar para um esquema em que os produtos cultivados sejam mais numerosos e em que as explorações evoluam no sentido da policultura. É preciso imprimir à economia agrícola da Guiné características de variedade e flexibilidade que lhe faltam. As grandes culturas tradicionais correspondem a direções que estão certas e bem pode dizer-se que têm sentido funcional. O arroz e o milho são os produtos-base da alimentação do indígena. As oleaginosas são o ouro da província. Mas não só podem aclimatar-se outras culturas como aquelas são suscetíveis de adquirir maior extensão. Há que vitalizar e enriquecer um sistema que se enquistou na rotina, sem que nela encontrasse um equilíbrio salutar.”

E tece considerações sobre os problemas da qualidade, o amendoim era de baixa qualidade, o óleo de palma dificilmente colocável no estrangeiro, a mancarra ia acarretar o empobrecimento dos solos, impunha-se sanear e valorizar a agricultura da Guiné, que se encontrava num quadro de estagnação. A indústria da Guiné pouco representava, as suas trinta e tantas unidades fabris eram complementares da lavoura. E espraia-se sobre os planos de fomento, a recuperação de terras para o arroz, um programa de regularização e dragagem do rio Geba, a construção de pontes sobre o Geba, o Corubal e o Cacheu, a conclusão da ponte do cais de Bissau e dos cais de Catió e Cacheu. Faz sempre menção ao I Plano de Fomento e ao II, onde se previra a instalação de uma estação agrária para aproveitamento dos terrenos alagados, ribeirinhos do Geba.

E assim se chegou à questão mais delicada, o condicionalismo político, socorre-se de um punhado de lugares comuns para falar da África Negra, do nacionalismo africano, pretende que fique claro que o continente não é nem homogéneo nem uniforme, da ebulição dos novos Estados parece que se deseja um regresso às origens, renasceram ódios, é intensa a hostilidade ao Ocidente, e faz uma observação de caráter pessoal:
“A África é de tal modo complemento da Europa que bem podemos admitir a hipótese de, passado algum tempo, se refazer a colaboração que está na ordem natural das coisas e arrefecer e apagar-se o ímpeto agressivo de um racismo negro que é de criação puramente artificial, produto da propaganda dos agitadores mais do que a expressão autêntica de uma aversão hereditária. Ouvimos por toda a África o tambor da guerra. Nem a África pode organizar-se unitariamente, porque nela não há fator de unidade, nem sequer lhe é possível organizar-se pela simples transformação dos territórios coloniais em Estados autónomos.”

E o político que abraçou o nacional sindicalismo e que se entusiasmou pelo corporativismo e é um peso pesado da União Nacional dá conta à audiência do que fará Portugal. Não se percebe como os responsáveis do Ocidente querem fazer frente à invasão comunista, parece que todos querem descolonizar e recomendam a descolonização a quem não a quer fazer, porque há a especificidade portuguesa. “Não conhecemos os equívocos em que outros tropeçam porque, dentro das nossas fronteiras, nos territórios portugueses, o nacionalismo só tem um sentido. Não há, no nosso Ultramar, nacionalismo que não seja português ou, se o preferirmos, que não seja nacional. Nós vivemos à margem dos equívocos em que outros se transviam. Como eles, nós não temos nações negras dentro dos limites em que se exerce a soberania portuguesa. Na nossa África, é efetiva a presença de uma nação, a Nação Portuguesa. Não corremos o risco de nos desnortearmos, ao ponto de nos atormentar as vigílias a ideia de que dominamos e recusamos o direito à vida a nações escravizadas. A nossa experiência africana é mais larga que a dos outros povos, mais longa e mais rica de conteúdo.”

Está dado o mote para avisar a audiência, os meios de comunicação e a opinião pública em geral de que não iremos praticar a política do abandono, a renunciar ao que é irrenunciável. E evoca-se a lição da história:
“Começámos por nos aventurar pelas rotas do Atlântico Sul e do Índico, lutando com as tempestades em frágeis caravelas, a dobrar os promontórios, de mandar as aguadas, aprender a conhecer o litoral do grande continente. Depois, fundámos os nossos estabelecimentos da costa. Desde logo nos aventurámos através do sertão inóspito, ganhando palmo a palmo a terra e as gentes alma a alma. É que, para nós, colonizar não era apenas criar balcões de comércio ou mesmo fazendas prósperas. Era serviço de Deus e da Pátria. Fomos em África soldados e missionários, mercadores e lavradores, mas fomos, acima de tudo e na mais larga acessão da palavra, homens humanizando outros homens.”

E na sua alocução não deixa de mencionar os valores materiais e morais da Civilização Ocidental e Cristã. E termina a sua conferência com o apelo à energia firme; a aceitação voluntária de sacrifícios e riscos, vivia-se a hora em que se propunha a Portugal o problema de sobreviver ou não sobreviver na sua dimensão mundial. Havia que estar unidos e confiar nos chefes e na aliança inquebrantável de todos os portugueses de boa vontade. Sagaz, não menciona uma só vez a erupção do nacionalismo africano na Guiné ou a subversão latente, não havia que descolonizar porque éramos todos portugueses. Bem silenciou as tensões já existentes, deverá ter considerado que era a comunicação adequada para comemorar a epopeia henriquina. No ano seguinte, tudo começará a ser diferente.

Imagem da época da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, projeto do arquiteto Jorge Chaves, teve intervenções no interior de um jovem que seria um grande nome das artes plásticas portuguesas, José Escada
Desenho de António Júlio de Castro Fernandes, por Almada Negreiros, 1932
António Júlio de Castro Fernandes, retrato a óleo de Maluda, 1975
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23271: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (24): Cacheu, restos que o império teceu... - Parte I


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Uma das 16 peças de artilharia que defendiam a entrada do rio Cacheu.

"Os trabalhos de recuperação do antigo forte colonial foram desenvolvidos de Janeiro a Março de 2004, com recursos da ordem de cem mil Euros, disponibilizados pela União das Cidades Capitais de Língua Oficial Portuguesa (UCCLA). Visando assegurar a sua utilização como área de lazer e cultura, além de promoção do turismo, foram promovidas a reurbanização de seu interior, onde foram instalados diversos equipamentos de lazer e recolocadas as estátuas dos navegadores portugueses Gonçalves Zarco e Nuno Tristão, os primeiros europeus a atingir as costas da Guiné, no século XV. Nas antigas edificações de serviço foram instaladas uma biblioteca e salas de convívio." (Fonte: Wikipedia)


Fpto nº 1A > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > "O forte, de pequenas dimensões, apresenta planta na forma de um rectângulo, com 26 metros de comprimento por 24 metros de largura, com pequenos baluartes nos vértices. As muralhas, em pedra argamassada, apresentam cerca de quatro metros de altura por um de espessura. Encontrava-se artilhado com dezasseis peças. O Portão de Armas, com mais de um metro e meio de largura, é o seu único acesso." (Fonte: Wikipedia)


Foto nº 2 > Guiné -Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI)    > Hoje funciona como depósito de alguma estatuária colonial... como é o do que resta da estátua, em bronze, do governador Honório Barreto... Veio de Bissau, ficava justamente no centro da Praça Honório Barreto, perto do Hotel Portugal, hoje Praça Che Guevara.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Restos da estátua de Teixeira Pinto, o "capitão-diabo" ...Estátua, em bronze, da autoria do professor de Belas Artes, o escultor Euclides Vaz (1916-1991), ilhavense. Encontrava-se no  Alto do Crim, antigo parque municipal, onde agora está a Assembeleia Nacional. (*)

 

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) >   O que resta da estátu, também em bronde, do Nuno Tristão:  erigida por ocasião do 5º centenário do seu desembarque em terras da Guiné (1446), a estátua ficava no final na Av da República, hoje, Av Amílcar Cabral... Esta artéria, a principal avenida de Bissau no nosso tempo, vinha da Praça do Império ao Cais do Pidjiguiti, tendo no final a estátua de Nuno Tristão; no sentido ascendente, ou seja, do Pidjiguiti para a Praça do Império, tinha à esquerda a Casa Gouveia, por detrás da estátua, e mais à frente, à direita, a Catedral.


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) >  Restos da estátua de Diogo Gomes, que até à Independência, estava em Bissau,  frente à ponte cais de Bissau...


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial do Estado Novo, o pedestal na ponte cais de Bissau (agora vazio) da estátua do Diogo Gomes ainda lá estava em há meia dúzia de anos, tal como a inscrição, um exerto do canto VII dos Lusíadas, "Mais mundo houvera"... 

O pedestal é obra do Gabinette de Urbanização do Ultramar (GUU). A estátua, entretanto removida em 1975 para o forte do Cacheu, deve ser da autoria do escultor Joaquim Correia, autor de monumento análogo que ainda hoje está de pé na cidade da Praia, Cabo Verde. 

Esta e outras estátuas (Honório Barreto, Nuno Tristão, Teixeira Pinto) faziam parte de "um escrupuloso programa de 'aformoseamento' do espaço público", integrado nas comemorações do 5º centenário do desembarque de Nuno Tristão. na altura do governo de Sarmento Rodrigues (1945-48). 

No entanto, a colocação das estátuas destas figuras históricas da colonização só será efetuada na segunda metade da década de 1950 [Vd. Ana Vaz Milheiro - 2011, Guiné-Bissau. Lisboa, Círculo de Ideias, 2012. (Coleção Viagens, 5), pp. 32-33].

Obrigado ao Patrício Ribeiro, o "nosso último africanista" que resiste, desde 1984, à usura (física e mental)  do tempo, da história, dos trópicos, no país, a Guiné-Bissau, que ele escolheu para viver e trabalhar,  e que se lembra, de vez em quando,  de nós e realimenta as nossas "geografias emocionais"  do tempo de soldadinhos de chumbo do Império... 

As fotos acabaram de chegar, ainda estão frescas, mas há mais para uma segunda parte. (***). O Patrício diz-me,  sempre dsicreto e  lacónico, que "sim, todas a fotos, foram tiradas no domingo passado, em Cacheu onde estive a trabalhar. Umas são  sobre o porto do Cacheu e outras sobre a "fortaleza do Cacheu". 

Eu que não sou especialista em arquitetura, muito menos militar e colonial, confesso que são sei distinguir um forte, uma fortaleza e um fortim...Com cerca de  624 metros quadrados de área total, e muros "altos de 4 metros", aquilo parece-me mais um "castelo de areia" do meu tempo de praia, quando eu era menino e moço e construía "castelos de areia"... Mas, enfim, lá cumpriu a sua missão, mal ou bem, não podendo nós, todavia, esquecer que o seu passado "esclavagista"  como tantos outros pontos da costa africana ocidental... 

PS - Patrício, fico feliz por teres trabalho (tu e os teus "balantas"), mas preocupado por teres de trabalhar ao domingo, como, de resto, muito boa gente... Em primeiro lugar, também precisas de descansar. Por outro, não respeitando o Dia do Senhor, ainda corres o risco de seres transformado, como o ferreiro, em "dari" (o nome afetuoso que os guineenses chamam ao nosso "primo" chimpanzé). Nestas coisas, é bom estar com Deus, Alá e os bons irãs...

2. Faça-se a devida pedagogia destas fotos, para os iconoclastas de todo o mundo, e de todos os quadrantes político-ideológicos, mas também para os nossos "saudosistas do Império", leitores do nosso blogue...  Aproveito para citar um comentário do nosso querido amigo Carlos Silva (a quem desejamos rápidas melhoras), e que é um dos nossos camaradas que melhor conhece (e ama) a terra e a gente da Guiné-Bisssau (****):

(...) "A estátua de Teixeira Pinto estava situada no Alto de Crim, onde actualmente está situada a Assembleia Nacional.

O monumento com o busto de Teixeira Pinto creio que situava-se na baixa de Bissau, próximo da catedral e foi inaugurado em 1929 pelo Governador Cor Leite de Magalhães. (...)
 
Quanto às estátuas que refere o Armando Tavares da Silva, presentemente estão as 3 dentro da Fortaleza do Cacheu. Pelo menos estavam em Abril de 2019, mas antes estiveram fora da fortaleza, mas próximo da mesma,  das quais tenho fotos dos anos 90 e de 2001 e de outros anos.

Falei com vários altos dirigentes, incluindo com o falecido Presidente Interino Manuel Serifo Nhamadjo sobre este tema e todos concordam que as estátuas fazem parte da História do país, mas não há vontade política para fazer seja o que for.

Para mim, os pedaços das estátuas estão lá na fortaleza de castigo e para lembrar o colonialismo.

E duas estátuas já foram à vida, a do Comandante Oliveira Mozanty que estava em Bafatá, da qual tenho fotos de 1997, toda partida, mas que já foi para a sucata, embora continue por lá o pedestal em granito preto com relevos e muito bonito.

A outra era a de Ulisses Grant, presidente dos EUA que arbitrou o caso de Bolama entre Portugal e os Ingleses. Esta também foi para a sucata." (...)


(***) Último poste da série > 7 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23238: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (23): Bafatá... e as nossas "geografias emocionais"

(****) Vd. poste de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21747: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (80): busto do capitão Teixeira Pinto, em Bissau, c. 1943 (Armando Tavares da Silva)

sexta-feira, 4 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23048: Notas de leitura (1425): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Felizmente, têm evoluído nas últimas décadas os trabalhos de investigação sobre a presença portuguesa na chamada Senegâmbia, há que destacar as pesquisas e estudos de Maria Emília Madeira Santos, Eduardo Costa Dias, José da Silva Horta. Nesta obra coordenada pelo professor Luís Albuquerque, o seu último grande trabalho, Maria Emília Madeira Santos debruça-se sobre os lançados na costa da Guiné, define-os com rigor, mostra a natureza do seu comércio, exemplifica com alguns lançados que tiveram prosperidade, dá voz aos dois principais autores que registaram esta presença e que foram Francisco Lemos Coelho e André Alvares de Almada. Foi sol de pouca dura, a concorrência inglesa, francesa e holandesa subtraiu-lhes a influência. Mas fazem parte do nosso património histórico pois não há estudo sobre a presença portuguesa que possa iludir estes pontas de lança internacionais, intérpretes de linguagem diversa, trocadores de produtos e muito mais, aproveitavam-se da fragilidade da presença da Coroa, mestiçaram-se e porventura estão entre os principais responsáveis por se ter falado português desde os séculos XV e XVI na Senegâmbia.

Um abraço do
Mário



Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (2)

Beja Santos

Em 1989, as Publicações Alfa deram à estampa o maior empreendimento editorial da responsabilidade desse grande historiador dos Descobrimentos que foi Luís de Albuquerque, falecido em 1992. Foram seis volumes que abonam a sapiência deste investigador e revelam a sua portentosa capacidade de coordenar projetos científicos de grande envergadura. É precisamente no segundo volume que Luís de Albuquerque e prestigiados colaboradores referem a contextualização histórica do primeiro período da presença portuguesa na Senegâmbia.

A Terra dos Negros possuía ingredientes pouco convidativos à fixação de populações, o Infante D. Henrique concluiu que a presença portuguesa exigia dois elementos básicos: boa comunicação com os chefes locais, com o repúdio a atos hostis e a constituição de empórios ou feitorias que dessem apoio a atos de missionação (no caso da Guiné se revelaram dececionantes). Como escreve na obra a investigadora Maria Emília Madeira Santos, uma boa parte das atividades económicas e de relacionamento deveu-se não às iniciativas do Coroa mas a um punhado de aventureiros que passou à História com o nome de “lançados”. Observa a investigadora que desde o princípio do século XVI, pioneiros portugueses registaram presença nesta região entre o cabo Verde e a Serra Leoa (mais ou menos o território que ficará conhecido como Senegâmbia Portuguesa), ignoravam a subordinação ao governador e às autoridades estabelecidas na ilha de Santiago de Cabo Verde. A Coroa tinha uma prioridade: povoar as ilhas de Cabo Verde, escala estratégica para a navegação atlântica, na míngua de povoadores estimulou a vinda de escravos. E assim foi decidido que podiam os vizinhos da ilha de Santiago navegar com os seus navios e mercadorias nesta Senegâmbia, mas apenas lhes era permitido movimentar os produtos do arquipélago, que se reduziam, naquela época, a algodão e cavalos. E para proteger Cabo Verde proibia-se rigorosamente a fixação de portugueses naquele ponto da costa ocidental africana. Mas houve vozes insubmissas, homens de diversos estratos sociais, aventureiros, renegados e cristãos-novos que se lançavam na terra firme, estabelecendo ali residência e ocupantes de comércio de produtos vários, isto sem prejuízo de manter relações comerciais com as ilhas. Ficaram conhecidos pelo nome de lançados, tangomãos, tangomaus ou tangumans. Havia judeus neste grupo, expatriados a partir de 1496. Segundo o Capitão Francisco de Lemos Coelho, que ali viveu e comerciou demoradamente, os judeus portugueses lançados na costa da Guiné “eram assaz vituperiados dos mais moradores e negros da terra e pagavam mais tributos que os brancos; e tudo sofriam por viverem em liberdade em sua lei”. Havia entre estes lançados gente rica. Foi o caso de Diogo Henriques de Sousa, que, no início do século XVII, se estabeleceu no porto de Guinala, não longe do Rio Grande, terra dos Beafadas. Outro exemplo de lançado que aqui enriqueceu foi o de Sebastião Fernandes. Viveu na povoação de Guinala com muitos navios e cabedal, foi para Cacheu com 18 embarcações onde levou 1800 negros com muito marfim e algum âmbar.

A investigadora cita o Capitão André Alvares de Almada quando este escreveu acerca dos muitos negros que “sabem falar a nossa língua portuguesa e andam vestidos do nosso modo. E assim muitas negras ladinas, chamadas tangomãs, porque servem os lançados. E estas negras e negros vão com eles de uns rios para os outros e à ilha de Santiago e a outras partes”. Havia dois tipos de acusações que impendiam sobre os lançados: faziam concorrência ao resgate de embarcações portuguesas, eram apelidados de ladrões, traidores; e viviam fora da alçada da Igreja, dedicados ao tráfico da escravatura durante vinte ou trinta anos, sem se confessarem. Os lançados para regressar ao reino tinham que pagar metade dos bens que traziam, eram igualmente obrigados a entregar dez cruzados ao Hospital de Todos os Santos de Lisboa. Mais diz a investigadora que os lançados ocupavam-se no comércio de troca entre mercadorias europeias e produtos africanos, mercadorias vindas da Europa em grande variedade. Em troca, compravam couros, marfim, cera, goma, âmbar, algália, anil, ébano, escravos e ouro. Fixavam-se de preferência na costa ou nas margens dos rios, tudo faziam para viver na melhor convivência com os reis africanos.

Esta atmosfera de resgates ir-se-á alterar com a presença dos franceses, primeiro, ingleses e holandeses, depois, a partir do terceiro quartel do século XVI. Até aí, está historicamente comprovado, no cabo Verde e angra de Bezeguiche, os portugueses comerciavam com os jalofos islamizados, e umas léguas abaixo no porto de Recife, aqui viviam os portugueses e os brancos “filhos da terra”. A presença judaica ganhou enorme expressão, são estudos efetuados por Eduardo Costa Dias e José da Silva Horta, todo o comércio no porto de Ale e no porto de Joale. O rio Gâmbia, navegado pelos portugueses desde o século XV, quando foi subido até Cantor por Diogo Gomes, podia navegar-se com navios com 80 a 90 toneladas por 130 léguas. Aqui se contatavam os Mandingas que falavam da cidade de Tombuctu e das feiras de ouro. Francisco Lemos Coelho, que exercia funções em Cabo Verde e conhecia palmo a palmo a costa da Guiné deixou-nos relatos memoráveis desta presença portuguesa no comércio do Gâmbia e da Senegâmbia em geral. A concorrência aos portugueses foi devastadora, tornou-se sumamente difícil o controlo dos navios negreiros saídos para as Américas. Cacheu tinha uma fortificação de pau-a-pique que só veio a ser substituída por uma fortaleza de pedra em 1641 com o governador Gonçalo Gamboa de Ayala, a praça passou a ter capitão-mor, oficiais de justiça e uma guarnição militar. Nem tudo era mantida nas melhores condições, como escreveu Francisco Lemos Coelho em 1669: “Consta a povoação de Cacheu de duas ruas, uma posta ao longo do rio, que chamam a Direita, e outra por detrás, que chamam de Santo António; do princípio está a modo de um bairrozinho, que chamam Vila Fria, em a qual primeira casa é de Sua Majestade em que assiste o capitão-mor, que não tem mais forte, que o nome, está a dita casa com um cerco de mangues que é a muralha, a que chamam tabanca, a casa é de adobes, coberta de palha com um grande terrado em que está a fazenda por amor do fogo, que se chama combete, e semelhante a esta são todas as da povoação, que tem pela banda do mar uma plataforma com camisa de pedra e cal em que está a artilharia que lhe põem capitães-mores…”

Os lançados judeus tinham uma relação especial com a Flandres, dado que certamente ali tinham familiares e amigos expulsos de Portugal no reinado de D. Manuel.

Os lançados em geral acabaram, a partir do final do século XVI, por estar menos ligados aos portugueses. Viviam em núcleos mais ou menos isolados, sem lei, sem justiça e sem religião, estabeleciam relações de convivência com as populações locais, pagavam mais ou menos diretamente o acolhimento e a permissão de comerciar. Com os europeus entabulavam ligações comerciais de acordo mútuo que os tornaram intermediários entre a Europa e regiões dos rios da Guiné e Serra Leoa, tornando-se pontas de lança internacionais, este papel só foi possível desempenhar pela aceitação local e pela fraqueza do poder da Coroa Portuguesa na região.

Cena de uma aguada. Representa um dos variados aspetos do relacionamento entre os europeus e os africanos. Gravura extraída da obra setecentista “Relation du voyage de Mr. De Gennes au Detroit de Magellau”
Ilustração extraída da revista “O Mundo Português”, n.º 6, junho de 1934
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23041: Notas de leitura (1424): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22102: Historiografia da presença portuguesa em África (258): Diogo Gomes, um navegador e diplomata do século XV, na publicação "Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais", edição do Ministério das Colónias, Junta de Investigações Coloniais, 1950 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Quando qualquer um de nós chegava à cidade de Bissau era confrontado com umas estátuas de figuras seguramente muito importantes, mas que inteiramente desconhecíamos, ou quase. Nem Diogo Gomes ou Honório Pereira Barreto nos provocavam assombro. Chegada a independência, num ato de repúdio da presença colonial, removeram esta estatuária, por vezes aos pedaços, para o interior da fortaleza de Cacheu. Bem devem estar arrependidos, goste-se ou não fazem parte da identidade guineense, de algum modo simbolizam a navegação portuguesa até àquelas paragens, seguramente que hoje os guineenses já sabem que Honório Pereira Barreto foi o seu pai-fundador, não tivesse ele andado a comprar por conta própria e em nome da Coroa o que comprou e só por um bambúrrio da sorte é que na Convenção Luso-Francesa de maio de 1986 é que a superfície da Guiné ficou como está. Demorei muito tempo a aperceber-me da importância de Diogo Gomes e acho que ninguém perde em saber que ele tentou o expediente diplomático criar boas relações comerciais com o Mandé, o Império Mandinga, numa época tumultuosa de desmembramento de impérios.

Um abraço do
Mário


Diogo Gomes, um navegador e diplomata do século XV

Mário Beja Santos

O então Comandante Teixeira da Mota, no contexto da Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, edição do Ministério das Colónias, Junta de Investigações Coloniais, 1950, publicou a sua comunicação sobre Diogo Gomes, primeiro grande explorador da Gâmbia, 1456.

Observa o historiador que esta viagem de Diogo Gomes é apenas conhecida através do relato que o navegador, muitos anos mais tarde, fez a Martinho da Boémia, e que Valentim Fernandes registou na sua compilação de notícias acerca da África Ocidental.

Começaram a explorar o Canal do Geba, até perto da confluência Geba-Corubal e observaram os efeitos do macaréu. Regressaram até ao Atlântico e encetaram a exploração do Gâmbia, viajaram até Cantor. Estabeleceram relações pacíficas com o chefe local, o Niomimansa, além de outras relações comerciais. O objetivo de Diogo Gomes era procurar o Preste João e também procurar o Mandimansa com o objetivo político e económico de estabelecer comércio aurífero do Sudão, foram expetativas mal-sucedidas. Estabeleceram-se relações amistosas com os Mandingas do Baixo e Médio Gâmbia e do Baixo Geba – foi este o primeiro contato pacífico com súbditos do imperador do Mali, cuja fama lendária corria então na Europa. Em Cantor havia um grande mercado aurífero, esta rota continuou a ser seguida pelos tempos fora. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII os portugueses não deixaram de lá ir à procura sobretudo de ouro.

Outro investigador, Carlos Manuel Valentim, publicou um seu trabalho intitulado Os Primeiros Contactos Diplomáticos entre a Europa e a África Subsariana, a viagem de Diogo Gomes em 1456 nos Anais do Clube Militar Naval, abril-junho 2007. Tem uma muito bem urdida introdução onde se contextualiza algumas das razões para a expansão portuguesa. Refere em concreto o esgotamento do modelo económico comercial europeu, as pestes e as guerras, sobretudo a Guerra dos Cem Anos, tudo vai convergir para que se estabeleça na Europa no final do século XIV o reconhecimento da importância do comércio marítimo e o afã em procurar novos mercados, havia uma grande procura de metais preciosos, assim nasce o projeto henriquino. Havia o mito do Preste João, detentor de um poderoso reino, com sede para oriente do rio Nilo, iria desde a Índia até ao Atlântico africano, era um soberano lendário que governaria um povo de cristãos, havia pois que o encontrar e estabelecer contactos.

As navegações portuguesas alcançaram a chamada África Negra em 1444, ultrapassara-se a Mauritânia. Nestas primeiras viagens para Sul da Costa Ocidental Atlântica, quando se avistou o rio Senegal, pôs-se logo a hipótese de estar em presença do rio Nilo, havia a ilusão de que se tinha achado um braço daquele grande rio. Graças às viagens, ia-se apurando as caraterísticas políticas e sociais da região. Transmitia-se pela documentação que nesta área vigorava uma federação de Estados liderada por um senhor poderoso, o Grão Jalofo. A chegada dos europeus vai ser contemporânea do desmoronamento da construção política desta área compreendida entre o vale do Senegal e o vale do Gâmbia, bem como o Futa-Toro. Os navegadores falam genericamente da Senegâmbia e transmitem a importância dos eixos comerciais aqui existentes. A etnia predominante é a Mandinga, é o reino Mandé, compreendendo os vales do Senegal e do Gâmbia, autónomo do Mandimansa.

Uma das primeiras descrições que temos desta grande via hidrográfica é-nos dada por Diogo Gomes, um homem da Casa Senhorial do Infante D. Henrique. É ele que estabelece uma aliança em nome do Infante D. Henrique com o rei do Niomi, estabelecerá acordos pacíficos com um conjunto de régulos e submeterá no Cabo Verde continental o Bezeguiche, inimigo tradicional dos portugueses. Diogo Gomes desempenhou um papel muito ativo na recolha de informações e no reconhecimento hidrográfico e etnográfico de toda a área a sul de Cabo Verde.

Na segunda viagem à região surge a primeira menção direta ao uso do quadrante: “Eu tinha um quadrante quando fui a essas paragens e escrevi na tábua do quadrante a altura do polo ártico, achando melhor do que uma carta. É verdade que numa carta se vê a rota de navegar, mas se alguma vez se introduz um erro, nunca se volta ao ponto primitivo”. Importa esclarecer que com este instrumento de medição Gomes obtinha as “alturas” da Polar, comparando os seus valores com base no local de referência (Lisboa, Lagos ou Madeira, por exemplo).

Continua em discussão se este relato foi transmitido por Diogo Gomes oralmente a Martinho da Boémia ou se foi escrito pelo seu próprio punho. Das viagens que efetuou, sabe-se que com Gil Eanes e Lançarote de Freitas participou na expedição militar de 1445 à ilha de Tider, não longe de Arguim. Dá pormenores valiosos da subida do rio Gâmbia até Cantor em busca de informações sobre o comércio do ouro e das vias que ligavam as regiões auríferas do Senegal, do Alto Níger e do entreposto comercial de Tombuctu às rotas sarianas que desembocavam no litoral marroquino.

Os portugueses descobriram que não tinham condições para capturar escravos, era-lhes mais proveitoso obter acordos com os senhores locais para conseguir a mão-de-obra desejada. Foi graças a esses acordos que o resgate se manterá florescente. No litoral, os portugueses trocavam cavalos por escravos e subiam o rio Gâmbia até às feiras de Cantor para desenvolver um ativo comércio de ouro. No seu relato, Diogo Gomes que capitaneava uma esquadra de três navios lembra a sua ligação ao senhor Infante e as instruções que dele recebeu para ir mais além do que pudesse. Possivelmente, no regresso desta exploração, tocou o arquipélago de Cabo verde, cujo descobrimento reclama para si, na companhia do italiano Antonio de Noli. Falecido o infante, Diogo Gomes reforça a sua ligação à corte e será nomeado almoxarife de Sintra.

Teixeira da Mota e Carlos Valentim convergem quanto à importância de Diogo Gomes, um dos mais inteligentes e ativos obreiros do Infante D. Henrique e um dos maiores navegadores e exploradores da sua época.
O que resta da estátua de Diogo Gomes, na Fortaleza de Cacheu
Carta náutica de Fernão Vaz Dourado incluída num atlas desenhado em 1571, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Américo Vespúcio numa gravura contemporânea
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22031: Historiografia da presença portuguesa em África (257): A "Expansão portuguesa na Guiné", por Maria Archer; em "O Mundo Português", revista de atualidades do Império, edição da Agência Geral das Colónias, abril de 1946 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16042: Nota de leitura (835): Os navegadores que antecederam a nossa chegada à Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
É preciso saber muitíssimo da historiografia dos Descobrimentos e ter um raro talento de comunicar para o leigo e Luís de Albuquerque recebeu o prémio de consolação com esta edição extraordinária, injustamente esquecida. Faz parte, este empreendimento, dessa década saudosa em que o Círculo de Leitores se transformara na mais importante oficina editorial da cultura portuguesa. Cingimos a recensão às navegações que levam, em concreto, ao conhecimento das terras da Guiné, Diogo Gomes fala no Rio de S. Domingos, o relato é inequívoco sobre a nossa presença, pela primeira vez chegava-se por barco a um território que irá ser conhecido como a Grande Senegâmbia.

Um abraço do
Mário


Os navegadores que antecederam a nossa chegada à Guiné

Beja Santos

“Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses, Séc. XV e XVI”, pelo historiador Luís de Albuquerque, foi um dos grandes acontecimentos editoriais de 1987, empreendimento do Círculo de Leitores, edição comemorativa do V Centenário dos Descobrimentos Portugueses. Raras vezes se editou com tantíssima qualidade, com tanto rigor e acerto gráfico, numa comunicação científica bem acessível ao leitor indocumentado. Neste primeiro volume, Luís de Albuquerque convida-nos a conhecer o Infante D. Pedro, o das Sete Partidas do Mundo, Gil Eanes, João Fernandes, Nuno Tristão, Diogo da Azambuja, Diogo Gomes, Diogo Cão, Pêro da Covilhã, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Martim Lopes, Pedro Álvares Cabral, Gaspar Corte-Real, Duarte Pacheco Pereira, D. Francisco de Almeida e António Fernandes. E o autor começa por perguntar: “Por onde andaram os portugueses dos séculos XV e XVI? Que caminhos seguiram e que dificuldades encontraram? Que novidades trouxeram ao conhecimento de uma Europa inquieta mas interessada?”.

Gil Eanes, natural de Lagos, foi o primeiro que passou o Cabo Bojador e lá tornou outra vez, com Afonso Gonçalves de Baldaia, escreve Azurara na Crónica da Guiné. Gil Eanes era escudeiro do Infante D. Henrique e em 1433 segue numa barca com a incumbência de dobrar o Bojador, o que não aconteceu, não chegou mais que às ilhas de Canária. Temos nova tentativa e Gil Eanes, como disse uma vez o poeta João José Cochofel “abriu a porta ao mistério”, em 1434. As caravelas vão continuar a partir de Lagos, uma dessas viagens tem como Capitão Lançarote, cavaleiro e almoxarife de Lagos, a exploração da costa africana sistematiza-se. Azurara, na sua Crónica encontra três razões para estas armadas: eram viagens exclusivamente de reconhecimento, em que se procurava navegar além do ponto antes atingido; viagens em que por ordem expressa de D. Henrique, ou do seu irmão D. Pedro, os navegadores eram obrigados a cumprir determinadas missões de reconhecimento; eram viagens que tinham por único objetivo o comércio, o assalto a populações ribeirinhas e a captura de escravos. Gil Eanes deu o primeiro passo para essa grande aventura do saber geográfico.

O que sabemos de Nuno Tristão é o que sobre ele escreveu Azurara. Iniciou-se nas navegações em 1441 ou 1442. A Nuno Tristão foi entregue uma caravela armada com um mandado do infante de passar além da Pedra da Galé o mais longe que pudesse, assim se continuava a exploração da costa ocidental africana e a captura de mouros ou de negros. Nuno Tristão encontrou-se com Antão Gonçalves, no Rio do Ouro. O facto foi assinalado na cartografia com o topónimo Porto do Cavaleiro, pois Antão Gonçalves foi aqui armado cavaleiro por Nuno Tristão.

Em 1443, Tristão parte com a incumbência de navegar para Sul do Cabo Branco, regressa sem ter alcançado a tal missão, e em 1445 ou 1446 dirigiu-se numa caravela para a Ilha das Garças, não longe de Arguim. Azurara informa-nos que a sua caravela chegou até uma terra que “viram acompanhada de muitas palmeiras e outras árvores grandes e formosas”. À procura de presas em terra, desembarcaram dispostos a assaltar uma povoação, tudo irá correr mal, muitos irão morrer envenenados por flechas. Esta é a primeira viagem de que há notícia segura do regresso ter sido feito pelo largo do Atlântico, para contornar ventos e correntes, nas carreiras da Guiné, da Mina e da Índia. Assim se descobria a “volta pelo largo”, fundamental para o domínio do Atlântico.

Observa Luís de Albuquerque que Diogo Gomes representa o caso típico do navegador, mercador e aventureiro português do século XV que andou pelo mar desde os tempos do Infante até os de D. João II, e que teve a boa sina de contar as suas aventuras ao alemão Martinho da Boémia, que as registou para a posteridade, designada por Relação. D. Henrique deu-lhe o comando da armada, era uma frota constituída por várias caravelas, mais uma vez com a missão de perlustrar a costa até o mais a Sul que lhes fosse possível. Passaram para além do rio de S. Domingos (identificado como o rio Cacheu por Teixeira da Mota) o Rio Francaso, “para lá do Rio Grande”, onde sofreram grandes correntes em consequência do macaréu, temos aqui descrições de enorme vivacidade. Procurou o local onde fora chacinado Nuno Tristão e subiu o rio até Cantor, e aí procurou informações sobre Tombuctu, o importante nó das caravanas de mercadores que por terra se aventuravam até ao interior de África. E recolheu dados com interesse para o conhecimento geográfico. Contudo, o texto da Relação presta-se em inúmeras especulações, Gomes acompanhava-se de um guia que falava as línguas da Senegâmbia, o que era de estranhar. Nas suas incursões encontrou-se com o chefe Batimansa e fala-se no batismo, no cristianismo e outros aspetos que os historiadores classificam como insólitos, tomam como altamente problemática estas súbitas conversões ao catolicismo. Datará de 1458 a primeira tentativa de cristianização dos povos africanos.


A segunda viagem de Diogo Gomes data de 1462 ou 1463. Em 12 dias chegou à Terra dos Barbacins, encontrou duas caravelas saídas de Portugal, eram mercadores que transportavam cavalos, animais muitos apetecidos dos negros. Diogo Gomes regressa a Portugal na companhia de um genovês, António da Noli. Pelo caminho descobrem a ilha de Santiago, aqui também os historiadores se dividem. Pela Relação descobre-se um dado importante quando se escreve: “E eu tinha um quadrante, quando foi a estes países, e escrevi na tábua do quadrante altura do polo ártico, e achei aí melhor do que na carta. É certo que na carta aparece o caminho de navegar, a rota do navio, mas muitos erros juntos nunca levam ao propósito principal”. Fica-se a saber que Diogo Gomes dispunha de um instrumento para medir alturas de estrelas mas também de uma carta náutica. No regresso, Diogo Gomes vai subindo na escala social, torna-se escudeiro real e depois Juiz dos Feitos das Coutadas e Caças da Serra de Sintra, mais tarde Juiz de Sisas de Colares e por último Cavaleiro da Casa Real. Pelos seus registos de aventuras, embora redigidos por outrem, passou a ser um caso único entre os seus companheiros do século XV. E certo e seguro viu a Guiné tal como nós a conhecemos.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16033: Nota de leitura (834): Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)