sábado, 24 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15285: Manuscrito(s) (Luís Graça) (67): As intermitências do amor no país sem pátria... Pensando na minha amiga de Alex, M..., nascida em Angola, "retornada", que hoje faz anos... Mas também no poeta e músico luso-angolano, Luaty Beirão que vai morrer de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade!

As intermitências do amor no país sem pátria


por Luís Graça

[in: Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015, pp. 46-54. Edição limitada a 6 exemplares e já esgotada]



Para a minha amiga M... , nascida em Angola, e que hoje celebra a vida, ao fazer mais uma aninho!... A sua história de vida inspirou-me  este poema, há 10 anos atrás...  Como muitos outros portugueses e outras portuguesas, é sociologicamente uma "retornada"... É uma "amiga de Alex" a quem desejo muita saúde e longa vida, agora no país que não era a sua pátria... Não posso deixar de pensar também, neste dia,  no luso-angolano Luaty Beirão, poeta e músico,  que vai morrer, de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade... (LG)



Na bicha das cinco da tarde,
no para arranca do trabalho casa trabalho,
para não para,
arranca não arranca, empanca,
a vida,
a vida tão cara,
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde,
uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde, 
na RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem
o amor que não há,
o amor que não chega, 
nem por e-mail,
toupeira,
nas autoestradas das linhas de montagem
onde para arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena, 
já não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre,
envelope fechado 
e carimbo do correio,
entregue pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora, 
ou lá no Puto
(ah!, Portugal, Portugal!),
a propósito de alguém que se foi embora
e de quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.


Tiram-te a pele, 
o tutano, 
e, de permeio, o amor, 
o doce engano,
e não há coração que aguente
o para arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular, 
no IC 19,
na mesa a toalha barata, 
aos quadrados,
a sopa fria, 
os fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar
da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel, 
um msn, 
um sinal,
a campainha,
a cama, 
as insónias,
os lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no para arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,
a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos cinquentas e tais,
o corpo exangue,
o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza é morabeza,
faria cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,
e eram louros,
lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada, 
o tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento da esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros
do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,
os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem 
antes de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da esquina da última rua do quarteirão,
no para arranca empanca da casa trabalho casa,
e o Ribeiro Sanches, 
físico-mor do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e o passado é um país estranho,
e, se a paixão é doença, 
não sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,
minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,
e um dia para a casa mortuária
e o forno crematório,
o ninho da cegonha abandonado,
a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal,
sem o teu chabéu da Guiné de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death 
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL,
no carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non troppo,
morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando a crise acabar,
se algum dia acabar e o FMI deixar,
as flores no cabelo, 
Make Love Not War,
All You Need is Love,
Vietname nunca mais
black power, blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.

E a tua velha senhora no fim da estação
da linha de Sintra da vida,
em casa à tua espera,
o Alzheimer devastador,
o avião  que não mais faz escala na tua África perdida,
na tua infância em Nova Lisboa, hoje Huambo,
a morena de Angola que leva o chocalho na canela,
a tua adolescência de Luanda e as suas ilhas,
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,
o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma, o fungi,
a cachupa do nosso contentamento,
as mornas, as coladeras
aos fins de semana,
nos anos oitenta,
a rebeca do Travadinha, bem gemidinha,
a mãe preta,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar, 
para mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara 
e desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,
o inferno são os outros
mas começa em nós...

Não te adianta, amiga,  chorar 
sobre o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida,
o curso, 
o emprego,
os filhos, 
o império por um fio,
o país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a liberdade avençada, ameaçada,
porque esta é a tua história, 
mesmo indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a tua telenovela das cinco
no para arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem, 
compra um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar,
não de kalash mas de ternura,
direitinho ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão 
aos cinquenta…
e tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar 
e desamar
(que não é o mesmo que odiar),
esperar e desesperar,
viver e morrer,
e não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor, 
escrevia o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor
que segue dentro de momentos...
Se conseguires rir-te do amor, 
como o teu negão do Martinho da Vila,
estás salva.
Eu quero dar
eu quero dar
e receber
e receber
fazer, fazer
me refazer fazendo amor
sem machucar seu coração
sem me envolver.


Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto, 
encorpado, 
do Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas,
esses iões,
manda à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira fundo,
dá tempo de antena a ti própria,
lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega, 
nem se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito 
nas muralhas alexandrinas da tua cidade.
Vi um há dias:
– Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de uma adolescente,
apaixonada, doente, 
como tu,
no teu caso, eu sugeria 
uma pequena emenda, subtil:
– Amor ? Amor ?... Amor sou eu!

E ninguém morre, louco, 
de amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva, 
aos quarenta graus centígrados,
com as febres palúdicas,
com as velhas e malditas sezões da ex-África nossa,
nossa, da humanidade,
mal amada, perdida, reencontrada,
no para arranca empanca do trabalho para casa
e da casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós... 
que damos cabo dela.

PS – Querida amiga de Alex, 
minha querida amiga,
sem pátria,
no país sem retorno,
e agora sem império,
não sabia o que te dizer 
com princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema, 
era recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse  coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas...
e tais
.

Alfragide, 15/12/2005. Última, enésima, revisão, 24/10/2015


In: GRAÇA. L. -   Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015., pp. 46-54. 

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Nota do editor:

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15284: Os nossos camaradas guineenses (43): Quem se lembra do Madjo Baldé, natural de Mampatá, nascido em 1936, sold at inf, Madjo Baldé. que serviu o exército português desde 1961 a 1966, incluindo a 1ª Companhia de Caçadores (Umaro Baldé, filho, a viver na ilha do Sal, Cabo Verde)





Cartão de órfão, emitido em 5/1/2008, pela Associação dos ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas (AMFAP), com sede em Bissau, em nome de Umaro Baldé, filho de Madjo Baldé.



Umaro Baldé
Fotos: © Umaro Baldé  (2015) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso leitor Suker Umaro Baldé, guineense, residente em Cabo Verde [, foto atual à esquerda:

De: Suker Umaro Balde <sukerancem@hotmail.com>
Data: 22 de outubro de 2015 às 23:56
Assunto: Saudação


Madjo Baldé, nascido em 1936
Meu caro camarada, sou eu,  Umaro Baldé, maior, nascido em Bafatá em 6/4/1982, solteiro e residente na ilha do Sal, em Cabo Verde, filho de um ex-combatente português da guerra colonial, na cidade Bafatá, de nome MADJU BALDÉ, soldado, nº mec 82023361, Companhia ou Batalhão D. R. M. 

Gostaria muito de encontrar ou saber se há alguém que conheceu o meu pai. Tenho poucos conhecimentos para descrever o meu pai, militarmente falando. Por isso, passei algumas referências e anexei algumas cópias dos seus documentos [. Caderneta Militar,], que, de certeza, o senhor poderá identificá-lo melhor, caso haja alguém do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, que seja dessa época (1961/66) e que tenha servido na(s) mesma(s) unidade(s). 

 Antecipadamente, agradeço muito obrigado pela atenção e colaboração.

Umaro Baldé



Presume-se que seja a foto, de corpo inteiro, tirada em estúdio,  do nosso camarada Madjo Baldé, nascido em 1936, em Mampatá, e entretanto falecido.  A foto,enviada pelo seu filho Umaro Baldé, infelizmente não traz legenda. 



Página 3 da Caderneta  Militar de Madjo Baldé, guineense, fula forro, com 1 m e 71 
de altura, nº mec 82023361,  nº de matrícula 61/233,



Página 5 da Caderneta  Militar de Madjo Baldé, que se alistou no exército português como voluntário em 27 de maio  de 1961, como 25 anos feitos.  Foi dado como pronto da escola de recrutas em 24/9/1961. Passou à disponibilidade em 1/8/1966, com 30 anos,  por "ter terminado a obrigação de serviço" (sic).




Página 4 da Caderneta  Militar de Madjo Baldé,  natural de Mampatá, freguesia de Buba, concelho de Bafatá, filho de Bacar Demba Baldé e Molo Baldé, solteiro, ajudante de motorista.


Formulário, preenchido e assinado pelo filho Umaro Baldé, datado de Bafatá, 26/9/2007, do Arquivo Geral do Exército (secção das ex-províncias ultramarinas),  donde ficamos a saber que o Madjo Baldé nasceu em 5 (?) / 4/ 1936, era sold atirador de infantaria e fez a recruta no CIM [Centro de Instrução Militar] de Bolama, tendo prestado serviço nas seguintes unidades:

C.I. M . [Bolema] - desde 27/5/1961
1ª CC - de 2/2/1961 a 9/2/1962
CESP [ou CR?] OG  (?) - de 25/6/1963 a 1/1/1966
DRM [Distrito de Recrutamento Militar] - 1/8/1966

Não conseguimos identificar a unidade onde esteve colocado o Madjo Baldé, de 25/6/1963 a 1/1/1966: CESP [ou CR?] .OG (?), onde passou mais tempo (dois anos e meio]. Espero que o nosso "assessor militar", o José Martins, me dè um ajuda.  Sobre 1ª Companhia de Caçadores Índigenas, talvez o nosso camarada Jorge Rosales nos possa dizer alguma coisa. Ele é de 1964/66, também esteve no CIM dem Bolama.




Declaração, para os devidos efeitos, em que o Umaro Baldé se diz filho de Madjo Baldé.


2. Comentário de LG:

Meu caro Umaro: fico muito emocionado pela tua mensagem.  Fazes anos no dia da minha filha, 6 de abril, embora sejas mais novo do que ela 4 anos.

Todos temos ou tivemos pai e mãe. E tu vens agora recordar a memória do teu querido pai, Madjo Baldé, nosso camarada da Guiné. Dizes-te filho de um "ex-combatente português da guerra colonial". (sic) A ternura, manifestada publicamente,  pelo teu pai e nosso camarada, não nos pode deixar de tocar e sensibilizar.

Não pedes nada. Queres apenas encontrar camaradas do tempo do teu pai, que o tenham conhecido e com ele convido. É um gesto de amor filial, de grande nobreza. Vamos ver se o teu pedido vai ter eco. Se ele fosse vivo, o teu pai teria  hoje 79 anos, Infelizmente, já não temos muitos camaradas, com essa idade, ativos, no nosso blogue. É verdade que o tempo entrou para a tropa aos 25 anos e saiu aos 30. Os militares portugueses metropolitanos eram mais novos.

Mas a esperança é a última coisa a morrer. Precisamos de esclarecer em que unidade o teu pai serviu, de meados de 1963 a finais de 1965. No documento que mandaste, a sigla (CESP.OG ?) não é legível... Vê lá melhor na caderneta militar. Por outro lado, DRM não é nenhuma companhia ou batalhão, é apenas a abreviatura de Distrito de Recrutamente Militar. Temos alguns, poucos camaradas, que estiveram na 1ª CC [Companhia de Caçadores Indígena], como o alferes miliciano Jorge Rosales. Vou-lhe dar conhecimento do teu mail.

Temos como divisa do nosso blogue (e Tabanca Grande) que "os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são". Isso significa que és acarinhado e bem recebido pelos camaradas do teu pai. Diz-nos algo mais sobre ele e sobre essa associação, a Associação dos ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas (AMFAP), de que és sócio, e de que só ouvimos falar, muito esporadicamente, quando  mudam os governos, na Guiné-Bissau e em Portugal, ou quando há visitas oficiais,.,,

Diz-nos o que podemos fazer mais pelos nossos camaradas guineenses e pelos seus filhos. No teu caso, convido-te a integrar a nossa Tabanca Grande, para poderes receber os nossos mails e ir acompanhando mais regularmente o nosso blogue. Diz-nos algo mais sobre ti, o que fazes na ilha do Sal, como foste lá parar... E, claro, manda-nos mais memórias do teu pai.  Temos bastantes camaradas, no nosso blogue, que passaram por Mampatá, terra natal do teu pai, Mantenhas para ti, (LG)

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Último poste da série > 8 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14585: Os nossos camaradas guineenses (42): em 1/12/1973, na tabanca do Xime, vítima de fogo amigo ou inimigo, morreu na sua morança um militar da CCAÇ 12 e toda a sua família, duas mulheres, duas crianças em idade escolar e um recém nascido (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74)

Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Vai-se a uma instituição universitária à procura de uma potencial leitora que amenize a vida de um cego culto que pretende os serviços de alguém que goze de boa dição, e enquanto se espera lê-se num jornal da respetiva associação de estudantes um texto magnifico, fala-se de uma África que corre nas veias de alguém que se ri de todos aqueles que supõem que África não tem História. O que deu para pensar a quem ali foi que teve também almoços como aqueles, com moamba, funge, pirão, brancos, mestiços e pretos à volta, tudo em risada desbocada. E assim se cozeram duas falas e o produto é o que se segue.

Um abraço do
Mário


Diário de Ébano, por Sofia Yala Rodrigues

Beja Santos

Há bem mais de 30 anos que eu não entrava na Faculdade de Letras de Lisboa. A fachada, concebida por Almada Negreiros, mantém-se intocável, felizmente. O átrio principal mudou muito, é um convidativo espaço de marketing lucrativo e de causas, as paredes bem pintadas, desci até ao piso inferior, depois de olhar nostalgicamente para as vitrinas onde se afixavam as pautas, onde se anunciavam as conferências, as datas das frequências e dos exames, a sobriedade do passado desapareceu, é tudo rutilante, um quase chamamento de relações públicas. No piso inferior, foi confrontado com vendas de livros, novos e usados, atravessei um corredor infindável até chegar à associação de estudantes, era esse o meu objetivo. Sempre tentado pelas bancas, lá comprei António Carreira, André Álvares de Almada e mais uns papéis, a Guiné é o meu fado. Procurava uma jovem com cultura e boa dicção, para ler a um cego exigente, alguém que não gosta de vacilações na voz. A menina que me ia atender estava em derriço numa chamada telefónica, mandou-me sentar e eu obedeci. E estes casos, como nas esperas dos consultórios, tenho um impulso automático e saco de um livro, desta feita chamou-me à atenção o jornal da associação com o nome “Os Fazedores de Letras”, mais a mais com um título provocatório na capa “como se Deus sofresse de um reumático do Diabo”. O telefonema era interminável, embrenhei-me na leitura deste jornal referente ao mês de Setembro, a menina com os cotovelos no balcão continua a falar de ordens de batalha no campo dos estudos, entra gente e logo recua, apercebem-se da indisponibilidade da rececionista. E é nisto que um texto me engole por inteiro, uma África plena, uma saudade luxuriante, quem quer que tenha escrito esta belíssima página tem África no sangue e no coração e senti-me no dever (entenda-se no gostoso dever) de transcrever para gente ofuscada por África este...

Diário de Ébano
Sinto o cheiro a óleo de palma, oiço as conversas e vejo o Sol a atravessar a persiana do meu quarto. Ao fundo do corredor uma melodia de vozes femininas e o barulho de água a escorrer na cozinha. Falam em Kinkongo, concluo que é razão para saltar da cama e correr pelo corredor como uma louca. Ao chegar à cozinha perdi o Alzheimer temporal, como é óbvio. É Domingo porque a cozinha cheira a Fubá e a minha tia Ngundu está a fazer funge ou fu fu, como dizem os meus primos franceses. O Kiluanji também veio, consigo ouvi-lo cantar para os pombos na varanda.

Na minha casa come-se funge somente ao Domingo, porque é o único dia em que conseguimos reunir a família e sentar à mesa sem horas e sem compromisso. O meu pai insistentemente conta que no Kakongo comia funge todos os dias, tenho a certeza que na altura devia ficar farto mas hoje ele conta essa história sempre em tom saudoso.

Voltei, a saltitar de felicidade, para o meu quarto, arranjei-me e por fim peguei no meu pente favorito e penteei o meu cabelo o melhor que podia para reavivar o meu afro que agora estava parecido ao da Kathleen Cleaver ou da Angela Davis. Sou linda e serei uma guerreira, tal como elas. Olho para a janela e parece feriado, Domingo à portuguesa, a minha vizinha do rés-do-chão está a ver “Portugal em festa”, a senhora adora partilhar os sons televisivos pela vizinhança.

Enquanto todos falam à mesa, apenas consigo olhar para a beleza do feijão do óleo de palma, a perfeição do funge e o lindo peixe seco e o molho envolvente a fluir no meu prato cheio de vida. A mesa está repleta de iguarias e por isso tenho que acabar de comer este para a próxima rodada. Quando dou por mim, estão a falar sobre História. O meu tio Jonas é professor numa escola secundária e tem muito gosto em lecionar e em partilhar com a família todos os acontecimentos ao longo da semana. Desde que sou pequena que Jonas faz questão de transmitir e fazer despertar a minha identidade cultural. Agora entendo-a perfeitamente. Conheço o império de Benim, o império Songhai, o império Monomotapa, o império do Congo. O meu tio é o meu herói, porque sempre que oiço a parte dos “Descobrimentos” na escola dá-me vontade de rir, mas ele ensinou-me que a vida é feita de perspetivas. Muitos jovens como eu, só sabem a história que é lecionada na escola, nunca saberão o que foi o pan-africanismo, no máximo saberão que estas pessoas não tinham alma e que pertenciam a correntes de dor e de servidão. Acordei de mais um prato delicioso, agora olho para o rosto negro do meu tio, olhos desenhados e lábios contornados, feições de guerreiro que me relembram os velhos contos da minha avó “jovens de corpos estéticos da cor do ébano, verdadeiros guerreiros do Deus da Terra”.

Desvia o olhar com um muxoxo e disse que estou com olhos de mvumbi ankengele, parei de olhar e comecei a rir. Começou a contar que enquanto transferia conhecimentos sobre o mundo a uma turma, o seu jovem aluno André, baralhado com a história sobre o reino de N’zinga disse: “O meu pai sempre me disse que África não tem História”. Olhamos uns para os outros e a mesa transformou-se numa explosão de gargalhadas, até a minha tia Ngundu começou a rir, o que é bastante raro. Todos afirmamos: “Como será possível alguém existir e afirmar tal coisa?”.

Sofia Yala Rodrigues


Imagem extraída do blogue Coisas da Vida, com a devida vénia

Depois sou atendido, conto a minha história, a rececionista toma conta do meu caso, estou mais ausente que presente, porque em minha casa é Sábado, vai haver funge aprimorado pela avó Ângela, batem à porta e entram mestiças, pretas e brancas ruidosas, nasceram ou viveram em Lucala, Vila Salazar, Malanje, são grandes amizades que deixou Angola nas minhas ancestrais, riem desbocadamente, as bocas avermelhadas pelo óleo de palma, é impossível seguir aquelas conversas, fala-se de missangas, malaguetas, obras em marfim, há fotografias que passam de mão em mão, entre exclamativas, risinhos de assombro. Este foi o meu diário de Ébano, que vim imprevistamente reencontrar à entrada de uma associação de estudantes, e rio-me para dentro, a nossa África tem história, aquele de que sou portador no sangue e mais aquela que são os laços estabelecidos lá no num ermo da margem direita do Geba, em que recebi o nome de família, numa terra que está adubada em sangue, em sofrimentos mil, e de onde verdadeiramente nunca saí. Percebo muito bem do que é que Sofia Yala Rodrigues faz mofa, daquele passado, presente e futuro em que ignora África, os seus odores, fragâncias, lianas nas florestas, palmares soberbos, pedaços de Éden, é nesse ambiente que se ergueram culturas, idiomas e se multiplicam artes que os ocidentais provincianos chamam por arte tribal.

Que privilégio ter um diário de ébano, comentei para mim, sonhador, quando saltei para o autocarro e me atirei para a chamada civilização superior.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2015 &gt; Guiné 63/74 - P15266: Notas de leitura (768): “Jarama", por Albino Barbosa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15282: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte XVI: A tabanca, a bolanha e o porto fluvial de Bambadinca ("cova do lagarto", em mandinga)


Foto nº 1 > Bambadinca, vista do depósito de água: lado norte / nordeste: tabanca, estrada para o rio e acesso à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá


 Foto nº 2  > Vista do quartel de Bambadinca: lado norte /noroeste (?)


Foto nº 3 > Tabanca de Bambadinca e rio Geba: Vista do lado norte / nordeste: a rua principal, com o edifício dos correios ao centro, e o início da rampa de acesso ao quartel e posto administrativo... Bambadinca, alémdos CTT,  tinha escola primária, capela e diversos estabelecimentos comerciais.


Foto nº 4 > Quartel de Bambadinca: vista de norte / nordeste de parte da tabanca e ao fundo o rio Beba


 Foto nº 5 > Quartel de Bambadinca: vista da grande bolanha, a sul/sudeste...


 Foto nº 6 > Bambadinca: porto fluvial



Foto nº 7 > Bambadinca: porto fluvial... Cais acostável


Foto nº 8 > Bambadinca: porto fluvial,. Cais acostável (foto anterior a novembro de 1969, quando a velha autogrua Fuchs foi substituída por uma autogrua Galion)




Foto nº 9 > Bambadinca: porto fluvial... Entardecer


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca >  Pel Rec Daimler 2046 (1968/1970) >  Tabanca, bolanha e porto fluvial (no Rio Geba Estreito)


Foto (e legenda): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Continuação da publicação do belíssimo álbum fotográfico do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968 / fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1904 e BCAÇ 2852) (*).


[foto atual à esquerda o Jaime Machado reside em Senhora da Hora, Matosinhos; sua avó paterna era moçambicana; mantém com a Guiné-Bissau uma forte relação afetiva e de solidariedade, através do Lions Clube; voltou à Guine-Bissau em 2010]

Sobre as fotos do porto fluvial de Bambadinca (nºs 6 a 9), vs, os postes P13918 e P13956. Estas fotos são já da época do comando e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70). (**)

São fotos anteriores a novembro de 1969... Já aqui recordámos que, a partir de 24 de novembro de 1969, a administração do porto de Bambadinca passou a dispor dum autogrua mais potente, a Galion, que veio substituir a auto grua Fuchs (que se sê na foto nº 8).

Na história do BCAÇ 2852, lê-se que no dia 25/11/1969, o 2º comandante do BENG 447 visitou a sede do batalhão, visita essa que só pode estar relacionada com a entrega da autogrua Galion, permitindo melhorar as operações de carga e descarga no porto fluvial de Bambadinca.

A autogrua Galion veio de LDG de Bissau até ao Xime (, agora com um novo cais de acesso, a partir de outubro de 1969, se não erro) e depois foi escoltada pela CCAÇ 12 até a Bambadinca, numa viagem cheia de peripécias que nos obrigou a dormir no mato, devido a um enorme atascanço a meio do troço (,ainda não havia estrada alcatroada!)...

Nessa dia, 24 de novembro de 1969, o nosso querido camarada e amigo Tony Levzinho celebrou as suas 22 primaveras com a companhia infernal da mosquitada,

Xime e Bambadinca "alimentavam o ventre do leste"... Por aqui passaram milhares e milhares de homens, e grandes quantidades mantimentos, munições, viaturas e outro material de guerra. (LG)

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29 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13956: (Ex)citações (253): de facto sou eu, estou a preparar o embarque de um jipe Willys com destino a Bissau (devidamente canibalizado)...E aproveito para recordar a BOR, embarcação civil que fazia transporte de tropas com uma pequena escolta de fuzileiros (Ismael Augusto, ex-alf mil manut, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15281: As Nossas Tropas - Quem foi quem (13): comodoro Alberto Magro Lopes, comandante da Defesa Marítima (CDM), CTIG (1971/72) (Manuel Lema Santos 1º ten RN, imediato no NRP Orion,1966/68)


Foto nº 3


Foto nº 3 C

O gen Spínola com um grupo de marinheiros [, condecorados]. Circa 1971

Foto (e legenda) : © Ernestino Caniço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem do Manuel Lema Santos [, 1º tenente da Reserva Naval, imediato no NRP Orion, Guiné, 1966/68; membro da nossa Tabanca Grande desde 21 de abril de 2006] [, foto atual à esquerda]:


Data: 22 de outubro de 2015 às 11:02
Assunto: Foto com comodoro Luciano Bastos ?


Caro Luis Graça,

Correspondendo ao teu voto de saúde: caminha-se, um dia de cada vez, enquanto a saúde o permitir. E não é nada mau...

Em relação às fotos que estão publicadas no poste P15275 (*),  refiro apenas a nº 3 que julgo ser a foto base. As outras serão recortes ampliados daquela.

Todos os condecorados são fuzileiros (alguns sargentos), julgo que com excepção de um militar do Exército (o segundo do lado esquerdo). Não consigo identificar nenhum.

O general António de Spínola está acompanhado, à esquerda, pelo comodoro Alberto Magro Lopes, Comandante da Defesa Marítima [CMDM] da altura, cargo que exerceu entre 25FEV71 e 06MAR72.

Conheci-o bastante bem pois anteriormente, ainda em CMG, foi Chefe do Estado-Maior do Comando Naval do Continente onde eu, entre AGO68 e MAI70, desempenhei as funções de ajudante de ordens do Vice-Almirante Francisco Ferrer Caeiro, Comandante Naval do Continente e da Base Naval de Lisboa. (**)

Como sabes estive na Guiné de 1966 a 1968, onde ele próprio tinha sido CDM Guiné entre 11SET64 e 11SET67.

Espero corresponder à informação que solicitaste.

Abraço para todos,

Manuel Lema Santos

Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

1. Parte XVIII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XVIII


1- Extinção da Companhia de Comandos do CTIG 

Um Allouette mergulhou numa bolanha, no sector de Tite, não se sabia ainda se fora atingido ou se fora um acidente. Desencadeou-se uma autêntica batalha, daquelas que só se vêem nos filmes. 
O grupo guerrilheiro, talvez por ser pouco numeroso, não se atreveu a sair da mata. Um grupo reduzido de Comandos foi rapidamente transportado para o local, para proteger o heli, sob fogo da mata. O Coronel Kruz Abecasis, Comandante da Base Aérea, ele próprio a pilotar o Dakota, meteu os páras dentro do avião, largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo! 

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos Allouettes foi transportado noutro heli para o local com o equipamento necessário para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu? 

Entrámos em Maio. Dia a dia, a Companhia de Comandos aproximava-se do fim, quase todas as semanas lá se ia mais um ou dois com a comissão terminada. Feitas as contas aos efectivos e às previsões para as saídas dentro dos próximos três meses, o capitão propôs ao Comandante Militar concentrar o pessoal remanescente num grupo e fechar as instalações da Companhia. 

Em Lamego estavam a formar-se companhias de Comandos. Lá para Agosto chegaria a Bissau uma, e um ou dois meses mês depois esperava-se outra. O capitão mostrou-lhe o relatório com o despacho do Brigadeiro Comandante Militar. Proceda-se. Foi o que fez, reuniu-se com os chefes de equipa e comunicou-lhes que, por insuficiência de efectivos, a Companhia de Comandos do CTIG iria ser extinta. 

E agora qual vai ser a nossa situação, voltamos para as nossas unidades de origem, como vai ser? 
Mantemo-nos aqui até ver, à ordem do Comandante Militar, o nosso capitão vai ser colocado no QG, mas tanto quanto sei não pretende lá ficar.

No dia 20 de Junho procedeu-se à cerimónia do encerramento da actividade da Companhia de Comandos do CTIG. Os que sobraram dos outros grupos passaram para o Grupo "Diabólicos". 
Às 09h00 estava o pessoal formado na parada de Brá. Os que estavam prestes a acabar a comissão, o pessoal da secretaria, da manutenção e os que tinham ainda alguns meses até ao final da comissão.

Os “últimos” da Companhia de Comandos do CTIG 

Comandos com a comissão terminada ou em vias de a acabar 


A foto apanhou-os em sentido, o Sargento Cordeiro, os Furriéis Ázera e Valente de Sousa, o Black, o Jamanca, os resistentes todos, continência ao Capitão, o Guião nas mãos de uma escolta, o pessoal de apoio ao lado. 




Furriel Valente de Sousa recebe o guião das mãos do Furriel Guedes. 

O Capitão Leandro mandou ler alguns louvores que o Governador e o Comandante Militar concedeu, despediu-se, direita volver, destroçar. 


O último desfile em Brá. Acabava assim a CCmds do CTIG. 

Tudo na mesma como até aqui, só somos menos, o resto tudo igual, instrução todos os dias, horários habituais, mais unidos que nunca.   Vários comandantes de Batalhão tinham solicitado ao Comandante Militar que o grupo ficasse em permanência nas respectivas sedes, o Brigadeiro decidira manter, para já, o grupo em Bissau às suas ordens directas. 

Dias depois, para não perderem a forma, foram até Canjambari, sector de Farim. Desembarcaram do Dakota em Farim, apanharam uma coluna para Jumbembem e, logo a seguir, outra para Canjambari. 

Saíram daqui mal a noite caiu, aproveitando a escuridão. Viu-se logo, desde o início, que era mais uma operação sem objectivo definido. Quando chegaram ao rio, nem o local da cambança o guia descobriu. Num local que lhes pareceu mais estreito, socorreram-se de uma corda para passar para o outro lado, uma operação dentro da operação, demorou horas, escuridão quase total. 
Há jacaré aqui, lembrou-se um de perguntar. Hááá… manga deles, afirmaram convictos os dois milícias que os acompanhavam. Quando se ouviu um chlap na água que lhes pareceu suspeito, a travessia acelerou, todos ansiosos por alcançar a outra margem. 

Cambado o rio, internaram-se no mato por um trilho, andaram e andaram. O guia, a tremer todo, dizia não saber como dar com o trilho de acesso ao acampamento, ou não queria levá-los lá, o que deu no mesmo. 

Voltou tudo à calmaria, aproveitaram o local para descansar um pouco, alguns passaram mesmo pelas brasas, os outros alerta até que o dia abriu os olhos a todos ainda não eram 6 horas. Em movimento, pela mata dentro, ribeiro ao lado, um jacaré na água, macacos a ganirem, aos saltos nas árvores, trilhos fora, sinais recentes de passagem, o costume. 

Passou-lhes uma Dornier eram para aí 11 da manhã, entraram em contacto rádio, seguiram para oeste conforme indicação do PCV, 5 kms no máximo, uma bolanha e aguardaram aí, onde foram recolhidos. 

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2 - Mansoa

Mansoa ficava a uns escassos 60 quilómetros de Bissau, uma estrada alcatroada que se fazia com o ponteiro do conta-quilometros a bater nos 80, 90, um depósito inteiro antes, uma paragem em Nhacra para ver o óleo, combustível, arrefecer uns minutos, arrancar depois, pé na tábua outra vez, passar a ponte sobre o rio e estava-se na entrada da povoação. 
Era uma cidade para os padrões locais, uma povoação estratégica, a unir Bissau a Bissorã por um lado, a Mansabá pelo outro, o Olossato acima, o K3 na estrada para Farim. As outras ligações de Mansoa para leste, Bafatá, estavam desactivadas. Era um dos vértices do muito falado triângulo do Oio, famoso pelo trabalho que o IN dava às NT. 


Os guerrilheiros até à data dentro do tal triângulo, Mansoa, Bissorã e Mansabá, pareciam querer sair dele, alargar a guerrilha a outras paragens, aproximar-se de Bissau. Começaram a andar às voltas da tabanca de Mansoa, flagelações de longe primeiro, uma ou outra morteirada uns dias depois. Achando que lhe dava jeito dispor de mais uma força operacional, o comandante do batalhão de Mansoa pediu ao Comandante Militar que o grupo se deslocasse para lá.

Já se conheciam de outras guerras. O Tenente-Coronel Lemos comandava um batalhão martirizado que estivera uns tempos em intervenção, a apagar focos da guerrilha, as companhias dispersas por onde calhou, até estacionarem em quadrícula no sector de Mansoa. 
Encontravam-se outra vez, com outro coronel a assistir, o comandante do agrupamento, um homem macio, afável, num corpo grande, uma imagem passiva, de escassas palavras, sim, talvez, boa ideia, hum, ah, da boca dele não se ouvia muito mais. 

O tenente-coronel descreveu a situação, o que o batalhão encontrara quando chegara, não muito confortável, acentuou, e conseguira, disse, mantê-los dentro do triângulo, à caça deles quase todos os dias, e eles agora outra vez a darem sinal, como se o triângulo já lhes fosse demasiado apertado. Estão aqui, às nossas portas! Sempre devem ter estado, se calhar, alvitrou para o lado. 
O seu grupo fica por determinação do nosso Comandante Militar aqui às minhas ordens, para o que for preciso

Alojaram-se na povoação, um pré-fabricado para as praças, um quarto para os furriéis. E ficaram à espera, prontos para o que desse e viesse.  Era uma zona propícia a muita informação, notícias chegavam a toda a hora, viam-se ansiedades nalguns rostos, razões não lhes faltavam, mas a povoação de Mansoa mantinha-se até agora fora do alcance do fogo inimigo. O maior barulho que ouvira, aliás, uma semana já passada, fora afinal, um grande estrondo de um raio a atingir o posto rádio, disseram os que viram, ele, sentado debaixo de um alpendre num final de tarde, só ouviu o barulho e viu militares e civis a correrem, chuva da grossa a desabar-lhes em cima. 
Deixou-se ficar, estava na maré de não correr por aí além, as forças, que já não eram muitas, para quando fossem precisas. A chuva passara, o ar clareou, os militares e os civis regressaram, a rirem-se, para as coisas que estavam a fazer. 

No 14-04, Alegre ao lado, pé na tábua para Bissau, matar saudades das ostras e do frango assado do Fonseca. A época das chuvas que começara timidamente em meados de Maio, estava agora em pleno, chuveiradas frequentes, das grossas, logo o sol a aparecer, a estrada secava num raio, até fumo nascia do alcatrão. 
Em Bissau deu as voltas que tinha a dar, encontrou gente conhecida, conversa até se fazerem horas, o Alegre e o Furriel Valente de Sousa a chegarem. 
Embora que se faz tarde, outra vez para Mansoa, nem pararam em Nhacra, o motor do jeep no máximo, sentia-se o calor do motor, tens visto o óleo, claro meu alferes, não só visto, atestado também. Já de noite, à chegada a Mansoa, polvorosa no ar. Que aconteceu? O nosso tenente-coronel tem andado a tarde toda à sua procura. 

Você pregou-nos um susto danado, temos estado a tarde toda à rasca por sua causa! Porquê? Chegou uma informação, estava montada uma emboscada na estrada para Bissau, a seguir à ponte! Contactámos o QG, andaram e devem estar ainda à sua procura, não o encontraram em lado nenhum. Não volte a sair assim, quando sair avise-me antes, e leve o grupo todo consigo!

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3 - Valium 

Mansoa era uma povoação já com muita gente, com muito movimento, a estrada para norte a rasgá-la em duas, casas maiores de um lado e doutro, atrás as do pessoal nativo, vielas estreitas, uma ou outra esplanada onde se servia muita cerveja e mancarra. Via-se tudo em 2 horas, desde que se parasse meia hora em cada esplanada, desculpando o exagero. 
Dois ou três soldados do grupo começaram a ser vistos na loja de uma família libanesa com três meninas, de idades próximas das deles. Mas, pelos vistos, não tiveram grande a sorte, quando por lá apareciam, parece que elas se evaporavam. Depois passaram a rondar a tabanca, cheiravam-na à procura das bajudas, de alguma mais interessante, se não houvesse, outra qualquer que lhes desse corda, umas cervejas pelo meio para desinibir, tantas que às vezes transbordava para fora da boca, impropérios no meio.
 
Um soldado desses, um valente alentejano, deve ter acordado naquela manhã cheio de sede. Tinha começado a beber logo ao acordar, acrescentara-lhe bem ao almoço, prosseguira durante a tarde a conversa com as loiras, começou a ver morenas por todo o lado, não resistiu a uma, passou-lhe os lábios pela cara, a mão pelas mamas, entusiasmou-se demais, estava visto. 
Burburinho, o dono dela aos berros, não toca nela, a tabanca agitada, anda daí, os camaradas a puxá-lo, qual quê, só quero esclarecer, está tudo esclarecido, anda daí, não saio daqui sem esclarecer o assunto, a algazarra a aumentar. 

O Furriel Ázera chamado ao barulho aplicou-se com tanto cuidado a acalmar que a coisa esfriou. Meteram-no na camarata, talvez um sono lhe fizesse bem, enganaram-se, apareceu na esplanada, parecia que tinha o diabo no corpo. 

Elementos do grupo em Mansoa. Julho 1966. 

Quando deram por ela, Portugal estava a perder por 3 a zero, os coreanos com foguetes no rabo, apareciam aos milhões por todo o campo. A esplanada fria, o entusiasmo a ir-se, correra tudo tão bem até este jogo. A primeira parte ainda a meio e o Eusébio enfiou a primeira. A confiança não era muita, os aplausos e gritos que se ouviram foram mortiços. Já muito próximo do intervalo, penalti, outra vez as redes dos coreanos abanaram. Eusébio, claro, quem havia de ser? 
Aqui as palmas e os gritos já tinham outra força. A segunda parte a começar, e a bola não havia maneira de largar as chuteiras dos nossos. A todo o momento se esperava o empate. Não demorou muito. Cervejas em cima das mesas a festejar outro golo de Eusébio. Começa tudo de novo, diz um. Unhas a ficarem mais curtas, ó Eusébio arruma essa merda, o Eusébio pega na bola e enfia-a outra vez lá dentro. Depois o José Augusto também quis molhar a sopa, todos aos saltos a gritarem na esplanada, turras se calhar também no mato, nem trovoada nem nada, a esta hora a guerra é outra, golo, goooolo! 

O rádio não se calava, seria o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Nuno Brás, o Alves dos Santos ou todos ao mesmo tempo, que é que interessa, aplausos por todo o lado, mais duas cervejas, uma grade faz favor, pago eu. 

Eu, se os nossos ganharem, atenção pessoal, bebo uma à saúde de cada um de nós, o alentejano outra vez ao ataque, e depois vou ao homem da bajuda esclarecer o assunto, e mais umas palavras que ninguém percebeu. 
Uma grande salva de palmas, afinal tudo tão fácil quem diria, palmas de Mansoa a ouvirem-se em todo o lado.

O tenente-coronel tinha-se resolvido pela ofensiva, com o staff atrás, chamara-o para uma saída para uns dias depois. Sairiam de Mansoa, manhãzinha cedo, na estrada para Bissau, passariam a ponte guardada por uma secção, apear-se-iam aí, mato dentro, iriam conferir trilhos. 
Ao sair da reunião, duas escadas logo abaixo, o Furriel Ázera aguardava-o para lhe dar conta do que se estava a passar. Para a camarata à procura do alentejano, estes tipos não são capazes de resolver os problemas deles, nem uma borracheira. Viu o soldado a resfolegar, agitado, palavras sem sentido mais que as outras. Chame o médico, Ázera! Ele é que sabe como fazer! 
Médico em acção, um valium para cima, uma injecção para ser mais rápido. Para quê, logo mais desperto o alentejano. Dormir bem é o que precisas, não, eu só quero esclarecer, quase a chorar, só esclarecer, mais nada, está tudo claro, não é necessário tanto esclarecimento, só dormir. Enfermeiro ao lado do médico, e o nosso valente não sossegava. Não deixe, meu alferes, não deixe o gajo dar-me a injecção! O enfermeiro com o dedo na seringa a desperdiçar líquido, não deite mais fora, é tudo para aproveitar, apartou o médico. 
Cerveja nos olhos, o meu alferes não vai deixar, pois não? 
Uma injecção só, não custa nada e vai fazer-te bem, calças para baixo anda, o meu alferes não vai deixar-me apanhar uma injecção, pois não? Dois camaradas ao lado, as calças já em baixo, nem a minha mãe era capaz de me fazer isto, o enfermeiro a tirar-lhe a agulha, algodão em cima, o choro convulsivo a esmorecer, o ronco pesado toda a santa noite, disseram os outros de manhã. 

(Continua)

Texto e fotos: © Virgínio Briote
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Nota do editor

Poste anterior da série de 15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência