Mostrar mensagens com a etiqueta segurança. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta segurança. Mostrar todas as mensagens

sábado, 23 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23455: (Ex)citações (411): Cuidado com o "fogo amigo", cuidado com o dilagrama, cuidado com a granada defensiva... (António J. Pereira da Costa / Luís Graça)

1. Comentários 
ao poste P23450 (*):

(i) António J. Pereira da Costa 

As granadas de mão defensivas era de difusão / utilização restrita. Eram perigosas, como se recordam, pois semeavam estilhaços ao fim 4-5 segundos depois de lançadas. Os dilagramas que as usavam tinham também uma utilização restrita, muito cuidadosa e o número de homens que os carregavam era pequeno, talvez um em cada Gr Comb,  em média. 

Em todas as minhas guerras usei uma Granada Defensiva e como armadilha e não lançada. As incendiárias eram úteis nos golpes-de-mão e as ofensivas eram uma pequena carga explosiva que se usava também em golpes-de-mão...

22 de julho de 2022 às 16:30

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Concordo inteiramente contigo, Tó Zé: o primeiro morto (ou um dos primeiros mortos) da 1ª Companhia de Comandos Africanos, que estava em formação em Fá Mandinga, setor de Bambadinca, no 1.º semestre de 1970, foi um furriel, cortado ao meio ao pisar uma mina A/P... Levava o cinturão carregado de granadas defensivas... que rebentaram por simpatia.

Vi o seu corpo na nossa capela (que funcionava como casa mortuária)... Nunca levei uma granada defensiva para o mato... Alguns dos nossos, da CCAÇ 12, primeiros feridos foram provocados por falha na utilização do diligrama, num golpe de mão... Não fui atingido por milagre..."Branqueámos" o acidente para salvar a pele ao alferes... (que, por capricho, quis ser ele a levar o dilagrama)... Histórias tristes...

22 de julho de 2022 às 22:23

(iii) António J. Pereira da  Costa:

(...) Quer se queira, quer se não queira, o recurso a certas armas de apoio - morteiros 60, LGF 8.9 e dilagramas - deveria ser feito com muito cuidado e, num contacto próximo com o In não tinham aplicação imediata.  

Atenção aos dilagramas que batiam nas árvores e... caíam mais perto. Além disso, a precipitação do lançamento deu lugar a desastres. Por mim descartei o LGFog 8,9 por ser pesado, incómodo e, em emboscadas sofridas ou montadas, de utilização problemática. Contudo, em ataques "ao arame" podia revelar-se útil. Já o lança-rockts 37 mm tinha utilidade e, se bem usado, era muito eficaz. Mas este não está nas estatísticas. (...)

23 de julho de 2022 às 10:12

(iv) Tabanca Grande Luís Graça;

Ver o meu conto:

21  de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

(...) E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"...

Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará. (...)


(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Um verdadeiro "boomerang", o dilagrama, nas matas cerradas da Guiné... Deve haver para aí muitas outras histórias de mortos e feridos graves devido ao "fogo amigo" do dilagrama... E não só: eu apanhei com o "cone de fogo" de um LGFog 8,9 (!), na resposta a uma emboscada... Podia ter lerpado, se estivesse ainda mais perto do raio da bazuca. (...) (**)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23130: Fotos à procura de... uma legenda (164): Bindoro, fevereiro de 1970: Unimog 404, em movimento, com militares e civis (balantas) à mistura, tirada pelo capelão Neves, da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Fevereiro de 1970 > Destacamento de Bindoro > Coluna, com elementos civis, de etnia balanta. (*)

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta foto, do álbum do nosso camarada José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), merece uma "melhor legenda", mesmo em dia de mentiras (como é tradicionalmente o 1 de abril).

Fica aqui o desafio aos nossos leitores, que são bons observadores (**). Acrescentamos apenas que:  

(i) foi tirada em andamento (e até está ligeiramente tremida); 

(ii) aquando de uma coluna para Bindoro (ou vinda de Bindoro, não podemos precisar), no sector de Mansoa;

(iii) em fevereiro de 1970;

(iv) vendo-se  que, no Unimog 404, se misturam,  num equilíbro difícil, civis (balantas, homens e mulheres) com militares que fazem a segurança...
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de maeço de  2022 > Guiné 61/74 - P23125: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte I: Destacamento de Bindoro fevereiro de 1970, guarnecido por forças da CCAÇ 2588


Podia também ser publicada na série "Passatempos de verão" (embora ainda estejamos na primavera):

domingo, 13 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23074: Memória dos lugares (437): Rio Mansoa, destacamento de João Landim (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

 Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa >  Destacamento de  João Landim

Fotos (e legendas): © Viictor Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


1. Mensagem do Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974)

Data - 12 mar 2022 17:09 
Amigos e camaradas da Guiné,

Ao longo da História,  os Rios e os Portos tiveram sempre muita importância numa guerra e os rios da Guiné, como não podia deixar de ser, tiveram também aqui um papel de relevo.

Este tema que pretendo abordar prende-se com o facto das fotografias que pretendo ver publicadas se referirem ao Rio Mansoa, ao Porto de João Landim e daí até a Foz, às Jangadas que realizavam a travessia, à proteção das pessoas e bens que as utilizavam, à amplitude das marés e à segurança e riscos associados ao funcionamento da engrenagem e também aos acidentes que vitimaram muitos de nós.

Todas estas fotografias não incluem equipamento militar nem armas, apesar da maior parte delas serem tiradas de cima de uma jangada militar. Isto não foi devido a qualquer imposição do Comando ou dos meus superiores mas por opção minha e deve-se a uma tonteria dum puto 22 anos que não queria que quando o rolo fosse revelado em Bissau pudesse fornecer ao IN qualquer informação por mais pequena que fosse das NT. Também não foi com a ideia de prejudicar quem acima de mim mandava, até porque era uma pessoa de trato fácil, muito correta e se calhar não dava muita importância a estas questões por ser do interior. Mas acontece que eu nasci e vivo numa zona onde desde miúdo convivi com o Rio, o Mar, a amplitude das marés e os riscos aí associados.
 
Quando em meados de Maio de 1974 fui colocado no Destacamento de João Landim Norte a minha travessia do Rio Mansoa foi feita na praia-mar, foi muito fácil e decorreu sem incidentes.

Mas durante as operações de segurança que ali fiz constactei que, apesar do Porto de João Landim estar a mais de 40 Km da foz (Mar), a influência das marés fazia-se sentir fortemente, com um caudal também muito forte e ainda com uma amplitude de maré superior a 4 metros e onde naturalmente se passeava o tubarão negro.

As próximas 5 fotografias tiveram como objectivo captar:

1º O aluvião descoberto no leito do Rio na baixa-mar para poder calcular a altura entre o nível da maior e da menor maré.

2º O desnível da rampa de acesso à jangada a marca da maré na margem e as dificuldades associadas.

3º A entrada das pessoas para a Jangada civil e a Lancha da Marinha a executar a proteção.

4º A Jangada a navegar no Rio sem qualquer dificuldade.

5º A minha última travessia e despedida já ao longe do edifício do Porto de João Landim, felizmente mais uma vez sem qualquer problema.

Para concluir,na minha modesta opinião, durante o período da Lua, o risco de embarque e desembarque nas Jangadas fora do pico da maré era muito elevado.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23058: Memória dos lugares (436): Safim, às portas de Bissau, e o terminal dos autocarros da A. Brites Palma (Victor Costa, ex-fur mil inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

domingo, 29 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2020 > O tractor da casa, devidamente equipado com arco de segurança, na posição ativa, uma estrutura de segurança que pode evitar mortes e feridos graces por capotamento do veículo, o que já é obrigatório, para os tratores homologados, desde 1994. O arco é utilizado em tratores de dimensões mais reduzidas, enquanto a cabine é utilizadas em tratores de maiores dimensões, oferecendo adicionalmente proteção contra condições climatéricas, poeira, etc. Portugal ainda tem, infelizmente,  uma elevada ttaxa de sinistralidade com tractores e outras máquinas agrícolas. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte  
(Luís Graça) (*)


6A. Não me assustei com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim. 
Não estava a contar, devo dizê-lo. 
Também tinha algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar,
Claro, foi um desgosto para a minha mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor),
apareceu-lhe um dia, em casa, 
de barbas, cabelo cabelo comprido e cravo ao peito...
E com uma "flausina", de calças, e sem sutiã...
A minha mãezinha ia morrendo. 


Verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem eu, aliás,  até simpatizava um bocado. Os outros não me diziam nada, com exceção do Costa Gomes, que foi meu comandante-chefe em Angola, e que também era nortenho como eu. Flaviense, se não erro.

 E, de resto, a minha mãe já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, pediu a aposentação. Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) haviam acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores... Achei um gesto bonito. E, afinal, inteligente. A capela até então estava vedada ao povo da aldeia. O que era nal visto. 

Tinha muito orgulo, a minha mãe,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus, nossos, queridos antepassados. Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, passou a ser de bom tom ser democrata. Como o meu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. 

A chatice maior que a família teve, no pós 25 de Abril,  foi com os rendeiros. Poucos mas ingratos e velhacos, como dizia o meu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há muito,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O meu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Era o "comuna" da família, até dava jeito naquele tempo ter um "comuna" na família.  Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Uns anos depois as terras ficaram sem rendeiros.  E a minha mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoávamos-lhes as rendas.

O meu pai também deu a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido". Os grémios deram origem a cooperativas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-me um dia.

Eu próprio também acabei por apanhar o barco. Deixei crescer o cabelo e passei a usar uma boina basca.  Preta. Descobri o meu lado anarquista. E, confesso, soube-me bem respirar o ar da liberdade que eu, em boa verdade, não tinha quando nasci. Apesar de toda a gente ter um rótulo, eu recusei-me  a revelar as minhas opções político-ideológicos. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que eu, quis meter-me no sindicalismo, mas eu disse-lhe que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais não tenho jeito nem feitio nem vocação". Fiz a tropa, já chegara esse tempo em que andara arregimentado.

A princípio ele era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra Dois.  Tenho que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma coisa que eu detestaria, no caso de ter acontecido... A minha consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-me gozo ver aqueles sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tive tratamemto recíproco.

Ainda fui, com ele, no meu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos. Não tinha lá ninguém meu conhecido. Mas também não concordava com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com a PIDE/DGS ... Nunca discutimos política lá em casa, mesmo que os meus pais fossem simpatisantes do Estado Novo. 

Levei também no meu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Vi ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Fiquei com respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinha visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tive a fobia das multidões. E daí nunca ter ido a desafios de futebol ou a touradas e, muito menos, a comícios.

Percebi cedo que "aquela não era a minha praia", preferia a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco comecei, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que me fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que me começou a tratar por tu. A princípio, custou-me, repugnava-me até, mas lá me fui habituando,  a pouco e pouco. Chamava-me agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que em nunca soube o que era. Interpelava-o: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... Nunca mo esclareceu... Sempre o achei, nesse aspeto,  um bocado moralista...

Em Braga irei conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostaria de   falar. Fiquei desgostoso com posições radicais que alguns amigos e conhecidos meus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao meu lado. Aí, sim, temi que a coisa degenerasse em guerra civil. 

A minha mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-me dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na minha família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes em maior número. Ou não estivéssemos no Minho. Daí eu não me admirar de o meu irmão ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas revoluções.

Mais tarde voltei a Ponte de Lima onde o meu mui amado tio-avô, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, me deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Eu era o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o meu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família e estoirou-as em pouco tempo...

Conciliei a vida das finanças . Fiz uma formação em vitivinicultura. Descobri os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não me casei nem fiz filhos (que eu saiba!), nem sequer escrevi um livro, mas plantei árvores e vinhas. E disso posso orgulhar-me.


7. Uns tempos antes, ainda em Mafra Dois,
o Bacelar havia-me apresentado ao padre, seu amigo, 
de que espantosamente já não recordo o nome. 
Simpatizei, de imediato, com ele. 
E depressa encontrei nele um homem 
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir) 
o relato dos meus “fantasmas” da guerra de África. 



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que eu estava a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falara da guerra a ninguém, não tinha sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as minhas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar...

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tínhamos por hábito juntarmo-nos, eu, o Bacelar e o padre, no restaurante e café defronte ao convento. Tomávamos a bica, dávamos dois dedos de conversa, comentávamos as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à nossa mesa um ou outro jovem estudante, nosso conhecido, e/ou das relações do padre. 

Talvez já em março de 1974, não sei se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que nos alvoraçou a todos (, incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem eu dar conta, à Guiné e à guerra. Sei que me perdi e me abstraí do que se passava à minha volta. Não me apercebi sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre gostava de me ouvir e raramente me interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele me inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a mim, uma qualidade essencial num confessor. Os que eu tivera, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Fiquei também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não me admirava, estávamos numa terra habituada a lidar com a tropa. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturei eu. Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que eu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntei, por delicadeza. Virei depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordo hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos prisioneiros na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantia eu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas eu nunca lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros do PAIGC quando aprisionados, no decurso da nossa actividade operacional, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam-nos informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, etc. E, claro, eram forçados a servir de guias para nos levarem até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do meu tempo,  e eu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechávamos os olhos ou assobiávamos para o lado. “Siga a marinha!", dizíamos nós. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estava a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a minha atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que eu comandava a minha companhia, já com o meu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do meu destacamento. A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éramos dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio.



Guiné > Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968> Um prisioneiro do PAIGC


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 .


Creio que o prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Eu seguia no seu encalce, dez metros atrás, com o meu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebi que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para nos despistar ou denunciar a nossa presença, à medida que nos aproximávamos. 

Às tantas, fomos detetados por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O meu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabámos por ser flagelados por fogo de armas pesadas, nomeadamente de morteiro 81. De imediato, somos vítimas de um brutal ataque de abelhas. Na confusão, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele bem conhecia, de certeza.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, recebemos ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagrupámo-nos na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressámos sob proteção do helicanhão, a quem eu chamava o meu anjo da guarda. Tenho uma dívida de gratidão para com esses rapazes da Força Aérea, em geral todos mais novos que nós, a "tropa-macaca".

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, salta sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasga-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda vi alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na testa e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico"...


Confesso que fiquei sem pinga de sangue, nunca tinha presenciado uma cena de guerra destas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tive sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omiti esta cena no relatório que ajudei a fazer com o comandante do outro destacamento. Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra.

Estava eu a acabar o relato deste triste episódio da minha e nossa guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

- É tudo mentira, padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, coronel do estado-maior, está lá, neste momento, rezo por ele todos os dias à noite e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem e temendo pela minha integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contei os minutos, eu próprio estava perplexo e chocado com toda aquela violência verbal gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, não sem antes me voltar a fulminar com o olhar. Por certo que fiquei marcado, pensei eu com os botões. Fiquei com a ideia de que, a partir daquele momento, tinha ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à nossa mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência do jovem:


- É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns anos, desde a adolescência. É filho de uma ilustre família de militares, naturais aqui de Mafra. Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar no próximo ano letivo.

O Bacelar saiu comigo, mudo e calado. Nunca mais falámos do  assunto. Nem com o padre.


Epílogo


8. Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre nós, para podermos continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás. Numa vinha, nova, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que me comoveram, até às lágrimas, quando lá fui participar na primeira vindima, talvez por volta de 1997, se não erro, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, ficámos amigos para o resto da vida. E, no entanto, só convivemos, em Mafra Dois, menos de dois anos, separando-nos já no final do verão de 1974. Conseguimos a tão almejada transferência, eu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabei por tirar o curso de direito, graças ao meu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorri a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho. Fui para uma área de que gostava, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudei a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessei-me, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabei mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tenho saudades. Aquilo descambou para o sindicalismo corporativo, que é o que temos hoje, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, mquinistas de comboios, pilotos da TAP, e quejandos...São essas corporações que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformei-me. E hoje dedico-me aos cães e aos netos. Tenho um pequeno monte, não longe da terra onde fui parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "Alentejo profundo", com dizem os gajos politicamete corretos, e que eu não sei o que quer dizer... Deve ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só há coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegou o pré-Saara, o deserto...

 Tenho pena de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a poder exercer a profissão a tempo inteiro. Entrei para a função pública, tramei-me, não quis trocar o certo pelo incerto, eu que chamava "pequeno-burguês" ao bom do Bacelar.  Mas, pelo que vejo hoje, a profissão de advogado já não é o que era. E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu era jovem e ainda sonhava com um mundo totalmente diferente daquele em que nascera, filho de mineiros e neto de ganhões. Só espero que não me dê o badagaio, um dia destes. Queria morrer lúcido, em paz comigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vou ter que negociar com o meu gestor de conta do além.

Não, não casei com a rapariga de Beja, que estava à minha espera. Fartou-se e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira paixão,  sempre ouvi dizer.  Só espero que ela tenha sido mais feliz do que eu fui.

Já do Bacelar não sei tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo dos pais. Aliás, andámos atrelados. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não me lembro bem. Despacharam os “copains”, que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”,a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram-nos por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que nós. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que me calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e eu conhecíamos… Enfim, melhorei substancialmente o meu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhei o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que eu já conhecia, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento, era o do costume, e fez-me recuar até à Guiné: “Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar”… Na realidade, eu sentia-me mal por andarmos com miúdas muito mais novas do que nós. Caí na realidade. Aquilo não tinha nada a ver comigo. E lá foram os três no Mini!... Não sei como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros num contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedi pelo meu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as minhas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (, e com quatro ou cinco votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartei-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… Éramos um país de gente porreira… Pergunto-me hoje por que razão é que o fiz, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades político-ideológicas comigo… Fi-lo simplesmente por amizade, que veio na sequência da nossa comum situação de “companheiros de infortúnio”, na Mafra Dois, como eu lhe chamava… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que eu cheguei, da minha passagem por Mafra Dois.

Nesse final de verão de 1974, em que já nos tratávamos por tu,  descobri de repente que tinha ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhava em vida… Despedimo-nos, ainda em Mafra Dois, com um valente  "quebra-costelas"  e uma lágrima no olho... Prometemos visitar-nos uma ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do meu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que era eu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser meu amigo...  

Disseram-me depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de sexta feira já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade e transparência...

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sei se chegou a entrar. E do nosso amigo padre também não soube mais nada do seu paradeiro. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso. 

Em Mafra Dois, não deixei amigos, infelizmente, mas quero aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora eu nunca me tenha reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste desta história é a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E eu que, sempre que lá ia, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... Meu dito, meu feito!... Tal como ao do meu pai, não fui ao seu funeral... Só soube da triste notícia uns tempos depois, pelo irmão. 

© Luís Graça (2021)


Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

___________

Nota do editor:

Postes anteriores da série:

27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22387: Blogoterapia (298): "Safety, first"?... Então eu não posso partilhar os meus "contactos pessoais" com aquele ou aqueles camaradas que deles precisam? (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Fonte: Cortesia de Luso-Americano, 19 de janeiro de 2018


 1. Mensagem de  João Crisóstomo [Foto à direita: o nosso camarada e amigo luso-americano, natural de Torres Vedras, que, como ativista social, tem, dado a cara por muitas e boas  causas, como a da autodeterminação de Timor Leste, gravuras de Foz Coa, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun]
 
Date: domingo, 4/07/2021 à(s) 12:00
Subject: contactos pessoais

Caro Luís Graça,

Às voltas, "visitando" pelo computador os nossos "camaradas da Guiné", fui dar com duas frases, comentários teu e do Valdemar Queirós. Dizes tu, a 6 de Abril deste ano, Post 22078,  em comentário a outro comentário do Valdemar que dizia  "Sem o computador que faz de livro, jornal de notícias, sala de cinema e teatro, troca de conversas com familiares, amigos e camaradas da Guiné, e sem poder sair de casa"... Etu respondeste: "se alguém quiser telefonar-lhe, que me peça o número: dá-lo-ei, com todo o gosto... Sabe tão bem ouvir uma voz amiga quando se está doente e sozinho, em casa!"... (*)

Em resposta, vou-te já telefonar para me dares o número dele. Para mim, mais do que uma simples "acção benfazeja" de estender a mão a quem quer dela necessita, é uma obrigação fazê-lo quando as circunstÂncias o permitem fazer. E mais razão ainda quando estes por qualquer motivo fazem parte do nosso círculo de amigos, como são todos aqueles a quem as mesmas experiências e vivências na Guiné e outros TO fizeram deles meus / nossos irmãos.

Para mim, pessoalmente , eu sinto que, apesar de todos os facebooks, blogues, twitters e tantos meios digitais, nada chega a uma chamada telefónica em que se ouve do outro lado da linha a voz de alguém, seja um familiar ou mesmo alguém que até nem se conhece, mas que naquele momento é o melhor amigo a dar um abraço tão preciso e apreciado em momentos de solidão e quem sabe de sofrimento físico e mental?

Puxa vida, Luís. Não haveria maneira de, sem prejuízo da privacidade de ninguém, podermos ter os contactos telefónicos daqueles camaradas que não se importam, e até gostariam, de receber uns telefonemas pessoais e directos , especialmente quando estão por qualquer razão confinados, "sem poder sair de casa"?

Por mim, já mais do que uma vez deixei os meus contactos, de email e telefónicos. Não hesites em os partilhar, pessoalmente ou mesmo no blogue se assim entenderes. Eu sei - várias vezes tenho sido avisado - que é preciso cuidado etc.,  etc.,  mas por outro também sei que de "amigos" eu não preciso de ter medos. 

E se alguém que não é amigo meu mas apenas "amigo da onça" quiser os meus contactos?… Hoje em dia é possível encontrá-los. Eu não sei encontrar contactos sem ser por meios directos e pessoais, mas por muitas experiências já vividas pessoalmente, verifico que os meus contactos foram parar a indivíduos que não são meus amigos nem o são de ninguém. E não são estes cuidados e precauções nossas que os impedem de obter as nossas informações e contactos pessoais.

Abraço grande,
João
__________

Nota do editor:

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20391: (De)Caras (144): A liberdade que as motos e as motorizadas nos davam... Ia-se de Bissau a Safim, Nhacra, Ensalma, João Landim... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAC 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)



Foto nº 1 >  Guiné > Região de Bissau >  11 de março de 1968 > Ponte sobre o rio Mansoa, em Ensalmá (, inaugurada em 1952). De motorizada, o fur mil SAM Riquito (Peugeot) e o alf mil SAM Virgílio Teixeira (Honda)


Foto nº 2 > Guiné > Região de Bissau > 11 de agosto de 1968 > Rio Mansoa, João Landim, junto à "famosa jangada"---


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bissau > Nhacra, piscina do quartel, 11 de março de 1968


Foto nº 4 >  Guiné > Região de Bissau > Nhacra, piscina do quartel, 11 de março de 1968: um salto mortal...


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira  (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário ao poste P20386 , com data de 27 nov 2019, 23h33,  de Virgílio Teixeira,   ex-al mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1965/67) (*):


Luís, só agora estou a ver estas fotos, excelentes, e de motas a sério, bem como esta mensagem.

Virgílio Teixeira (*)
A minha foto de Safim, está correcta, é em março de 1968, quando o meu batalhão esteve um mês em Brá. Era uma Peugeot, acho que de 50 cc, uma coisa de dar gás, mas que me levava a todo o lado.

Virgílio Teixeira (*)
Depois temos outra em Bissau, na minha nova Honda de 50 cc, ali ao lado era onde se realizava o famoso mercado de Bandim.

Não sei se já foi enviada, estão tantas em postes, mas esta em João Landim (Foto nº 2), junto à jangada que me levou para a outra margem, já não sei o nome do local. Jugudul,  talvez, A mota, que não sei a marca, era de um outro militar, furriel, que está junto de mim.

Tenho outra que também junto, numa outra altura, em que estou eu e o meu Furriel Riquito, na ponte de Ensalma (foto nº 1), e são ambas minhas, a Peugeot e a Honda, mais nova, que tinha lugar para passageiro.

Vejo agora que não tinham matrículas, não devia ser preciso, há aqui uns anos de diferença, ou as motas tinham que ter a matricula ?!

Ambas foram compradas na mesma casa aqui referida, era o representante da Peugeot, e outras marcas e comprei lá ambas, acho que custaram uns 5 contos cada. Não sei o que fiz delas, penso que as deixei por lá, não vendi nada, isso eu sei.

António Martins de Matos (*)
Com aquela de 200 cc [, do ten pilav António Martins de Matos] (*), podia 'abrir' à vontade, e fugir dos turras que por acaso aparecessem, o que não foi o caso.

Em Nhacra no meu tempo, não se comia ostras em parte nenhuma, e em Safim, eram camarões, e talvez ostras, mas não me lembro. Ostras comia por todas as esplanadas em Bissau.

Em Nhacra ia dar uns mergulhos à piscina do quartel, lá de cima da prancha. Junto duas fotos, para os devidos efeitos, estão todas fracas, mas ainda não tinha os dons da fotografia {Fotos nº 3 e 4].

Não parava de contar aventuras, mas tenho receio (medo!) que me venham a dizer que eu fazia a guerra a andar de motorizada, quer pelas aldeias e cidades à volta de Bissau, ou a percorrer o Pilão.

Eduardo Jorge Ferreira
 (1952-2019) e Jorge Pinto (*)
Como se pode ver, quem podia, comprava uma, porque era uma grande independência para a gente desfrutar por todo o lado, sem horários, sem stress [, como era o caso do alf mil Polícia Aérea, Eduardo Jorge Ferreira (1952-2'0199]

Por agora é tudo, gostei de ver novamente as minhas fotos nas minhas loucuras pela Guiné. Tempos, de saudade, pois tinha muito menos idade, e por tudo o mais que não posso aqui  'introduzir' !

P.S. Ressalvo, quaisquer erros, omissões e outras bestialidades que possa ter escrito em cada foto.

Um abraço, podes publicar o meu comentário, se for de interesse.

Um abraço, Virgilio



Guiné > Bissau > Carta de Bissau (1949) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bissau, Bissalanca, Safim, Ensalma, Nhacra, ... De Nhacra a Bissau eram cerca de 20 km. De Bissalanca a Nhacra, por Safim, devia ser um pouco mais... E não havia problemas de segurança na região de Bissau, até ao fim da guerra... 

Decididamente o PAIGC nunca optou pela guerrilha urbana...Pelo menos, não consta que tenha morto ou apanhado à mão algum militar que circulava, de moto, ou de motorizada, pela região de Bissau, na maior das calmas... Afinal de contas, Bissau era uma "ilha" e uma "fortaleza"...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019).
______________

Nota do editor:

Vd. último poste da série > 27 de novembro de 2019  > Guiné 61/74 - P20386: (De)Caras (117): Eu e o saudoso Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), prontos para ir a Nhacra, de motorizada, comer umas ostras (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19854: Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (9): Dicas para viver e sobreviver em Bissau: Custos mensais de estadia aproximados por voluntário com a casa habitada por 3 pessoas: 105 mil Francos CFA (c. 163,00 Euros)

1. Mensagem do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro nº 730, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1973, até agosto) e, no resto da comissão, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74): é lisboeta,fez o Liceu Pedro Nunes, é bancário reformado, foi praticante e treinador de andebol, tem fortes ligações à minha terra natal, onde agora vivo, Lourinhã, Oeste, Estremadura...

Acaba de regressar de uma missão de 3 meses  em Bissau,como voluntário na Escola Privada Humberto Braima Sambu, no âmbito de um projeto da associação sem fins lucrativos ParaOnde, que promove o voluntariado em Portugal e no resto do Mundo



Data: 2 de junho de 2019 01:34
Assunto: Missão na Guiné




Boa noite, Luís
Aqui vai alguma informação do que foi a missão na Guiné.


Enviar-te-ei fotografias logo que estejam editadas.

Grande abraço,
Luís Oliveira


Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (9):  Dicas para viver e sobreviver em Bissau: Custos mensais de estadia aproximados por voluntário com a casa habitada por 3 pessoas:  105 mil Francos CFA (c. 163,00 Euros) F CFA – 163,00 €
 


Excerto do relatório de 22 pp, com 4 anexos:


Missão de Voluntariado na Guiné-Bissau


Luis Mourato de Oliveira

2 de Março 2019 a 30 Maio de 2019

Objectivo:

1 - Criação de uma Oficina de Andebol na Escola Privada Humberto Braima Sambú.

2 – Participação e cooperação noutras iniciativas de interesse da Escola Humberto Braima Sambú e da comunidade. (...)


Um primeiro excerto:

Anexo 4 - MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA D VOLUNTÁRIO

1. Custos fixos

Renda da casa (pago no inicio do mês) 100.000,00 F CFA

Cozinheira (final do mês) 40.000,00 F CFA

Aquisição alimentos (diária por pessoa) 1.000,00 F CFA

Limpeza /abastecimento de água (final do mês) 30.000,00 F CFA

2. Custos Variáveis:

- Arroz, Azeite, óleo (valor mensal P.P.) 4.000,00 F CFA;

- Eletricidade pré-paga /mensalmente 1.000,00 F CFA;

- Pequeno almoço p/dia (1⁄2 pão + leite + manteiga) 600,00 F CFA.

3.Observações:

Para pagamento da eletricidade pré-paga:

- Obrigatório o pagamento mensal dado haver uma taxa de utilização;

- Fazer o controlo da energia existente no contador situado no alpendre no lado direito da porta principal;

- Consumo normal 2 KW /dia;

- O pagamento é efectuado em Bissau Centro na CAIXA (Perto da sede da MTN);

- No pagamento apresentar número do contador 01 4519 6126 0;

-Intoduzir no contador o número de pagamento indicado no recibo e clicar "enter".

Segurança:

-Durante a noite fechar as portas de ferro dos alpendres e manter a luz destes ligada.

-Sobretudo as voluntárias não devem circular sozinhas no bairro após a meia noite e durante a madrugada. Se tiverem de sair para viajar e tomar transporte pedir a colaboração de alguém. Aconselho o Romário, presidente da Associação de Alunos da Escola.

-Nos transportes, em locais com menos circulação e à noite,  máxima atenção na utilização dos telemóveis. O telemóvel é um objecto apetecível e há roubos frequentes.

Nota final – As recomendações de segurança resultam de experiência anterior em que voluntárias foram assaltadas perto da casa dos voluntários.

Custos mensais de estadia aproximados por voluntário com a casa habitada por 3 pessoas: 105.000 F CFA, c. 163,00 €

terça-feira, 12 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19577: Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (4): dia de Carnaval + Eleições = Carnaval Total


Guiné > Bissau > Julho de 1973 > Monumento do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, avenida marginal e área portuária... Um dos "bilhetes postais" que ficaram no "álbum da nossa memória"...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Quarta crónica do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro nº 730, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1973, até agosto) e, no resto da comissão, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74): é bancário reformado, foi praticante e treinador de andebol; lisboeta, tem fortes ligações à Lourinhã, Oeste, Estremadura...

Chegou a Bissau, a 2 de março, e aqui vai estar 3 meses como voluntário na Escola Privada Humberto Braima Sambu, no âmbito de um projeto da associação sem fins lucrativos ParaOnde, que promove o voluntariado em Portugal e no resto do Mundo. (*)



Dia de Carnaval + Eleições = Carnaval Total


por Luís OLiveira


Feriado de carnaval e a Escola [privada Humberto Braima Sambu], tal como em Portugal, dispensou os nossos serviços, portanto de manhã a equipa de voluntários obrigou-se a tratar do cabedal: TRX, elásticos de força, escada de motricidade ....toca a correr, salta aí, nada de pisar os limites, puxa, estica, geme, respira bem. Enfim,  uma suadeira em que fomos bem espremidos e até deixou algumas dores de corpo, mas “no pane, no game” , como dizem os guineenses ?


Após o almoço apanhamos o toca-toca, transporte colectivo local que aceita um número quase ilimitado, quer dizer os limites correspondem à quantidade de clientes que se querem fazer transportar, mas nunca há gente a mais e todos cabem.


Quem gostar de emoções fortes pode perfeitamente dispensar uma ida à EuroDisney e abdicar de qualquer montanha russa porque aqui a adrenalina é maior e sai muito mais barato. Por cem francos (0,15 €) fizemos um percurso de talvez quinze quilómetros e o condutor quando se apercebeu que o nosso destino era o Pidjiguiti, alterou a rota e deixou-nos junto ao cais... Fantástico!


Encontrámos-nos num bar com um amigo da Nonô, o Itum, guineense e licenciado em economia pela faculdade do Porto, e que decidiu trocar a boa vida da Europa para colaborar no desenvolvimento do seu País que tanto precisa.

A conversa foi animada e prolongou-se pela tarde até que fomos alertados que todas as ruas de Bissau ficariam vedadas ao trânsito até ao final dos festejos. E agora? Quinze, talvez muitos mais quilómetros para fazer no labirinto urbano de Bissau! Só chegaríamos a casa talvez no fim de semana.


O movimento de pessoas é inimaginável, todas as ruas e becos estavam apinhados de gente deslocando-se em todas as direções e tive a sensação se ser uma formiga dentro da caótica azáfama do formigueiro. Devo dizer que, para além de nós (as formigas), circulavam porcos das mais variadas dimensões e até vacas, parecendo estes absolutamente indiferentes ao Carnaval.


É uma alegria ver uma população numerosa, constituída maioritáriamente por jovens e milhares de crianças. Todos irradiando alegria, distribuindo sorrisos, boa disposição e pequenas provocações cheias de graça e sem maldade:

– Olá, branco, olélé!

Um cenário cheio de contrastes para quem anda no Metro de Lisboa e vê carruagens carregadas de gente madura, com ar carrancudo de quem pouco dormiu ou esteve atenta aos telejornais. Todos presos aos smartphones, talvez para imaginarem estar num mundo virtual, melhor que a estação do Campo Grande.

Mas lá fomos andado, queríamos chegar a casa e o Itum ainda nos fez companhia por largos quilómetros procurando as mais difíceis vielas, com a esperança de encontrar algum transporte em fuga à legalidade e que pudessemos aproveitar.


Num aperto de gente e em marcha lenta, circulava um carro com dois ocupantes, homens, que quase pararam em jeito de quem oferece boleia junto à Sílvia e à Nonô. Comecei a ficar preocupado com a coisa porque na minha cabeça e, lembrando Lisboa, os “marmanjos” podiam ter alguma na ideia.


Elas são voluntárias na Guiné por alguma razão! Têm coragem, aceitaram a boleia, dizendo que eu também as acompanharia, mais conversa com o Itun e entramos na carripana que nos levaria pelo menos perto de casa. 
O condutor contou-nos parte da sua vida em Lisboa, Odivelas, Brasil e até esteve na Alemanha. Do pendura pouco soubemos por ser mais reservado e  o seu português ser mais limitado, mas fomos conversando e andando e o estado de alerta que eu tinha criado, foi-se diluindo porque percebi que a Sílvia, prudentemente, ia acompanhando a viagem pelo GPS e estávamos no caminho certo, e chegámos ao ponto que pretendíamos na proximidade da casa, já aliviados.


Na despedida e tendo em conta o longo e difícil percurso que os nossos "salvadores" tinham feito apenas para nos auxiliar, sabendo que a vida é muito difícil e os jovens não eram ricos, procurando não os ofender, sugeri que aceitassem a nossa colaboração para pelo menos os compensar do combustível que gastaram pois não era aquele o seu destino. A nossa oferta foi de imediato recusada. 


– Vocês estão na Guiné-Bissau para ajudar, nós temos prazer em retribuir...


... E a troca foi apenas um abraço e desejo de saúde e felicidade.


Eles merecem mais que isso.