Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 10 de outubro de 2024
Guiné 61/74 - P26030: Convívios (1008): XXIX Encontro/Convívio dos Antigos Combatentes da Vila de Guifões, levado a efeito no passado dia 5 de Outubro de 2024, em Vila Boa de Quires
No Sábado, dia 5 de Outubro de 2024, dia em que os Antigos Combatentes na Guiné da Vila de Guifões conviveram no seu XXIX Encontro-Convívio, este ano o local escolhido foi na Quintinha dos Queiroses, em Maureles, Vila Boa de Quires.
Pelas 9 horas os Antigos Combatentes participantes reuniram-se no centro de Guifões-Matosinhos em frente ao Monumento dos Combatentes do Ultramar, de Guifões.
Foi colocada uma coroa de flores para homenagear todos os Combatentes no Ultramar e cantamos o Hino Nacional. Depois fomos em dois autocarros até Penafiel, onde fizemos uma pequena paragem, para finalmente deslocar todos para a Quintinha dos Queiroses.
Depois de um bom almoço, intercalado sempre com um bom pé de dança, foi feita a distribuição de lembranças comemorativas do evento e, também foi oferecido uma rosa a cada senhora presente.
Agradecemos toda a colaboração prestada pelo Sr. Presidente da União de Freguesias de Guifões, Custoias e Leça do Balio, Eng. Pedro Gonçalves.
Por volta das 19 horas foi o regresso ao local da partida. Feita uma viagem com chegada serena a Guifões com o pensamento já no convívio do próximo ano.
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Nota do editor
Último post da série de 30 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25994: Convívios (1007): 57º Convívio da Tabanca da Linha, em Algés, no passado 26 de setembro: 0s 9 magníficos... "piras"
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
Guiné 61/74 - P24988: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (43): Arroz de moiras com grelos ("Chef" Alice)
Marco de Canveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 21 de dezembro de 2023 > O arroz de moiras com grelos,à moda da "Chef" Alice...Foto (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
− Também lá volto! − exclamava Jacinto com uma convicção imensa. − É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija rapariga de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. (...)
Nota do editor:
sábado, 21 de outubro de 2023
Guiné 61/74 - P24777: Manuscrito(s) (Luís Graça) (239): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VI: no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios" (Padre Manuel Vieira Aguiar, 1947)
Contracapa do livro de Padre Manuel Vieira de Aguiar - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp.
Uma das raras imagens do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. Fonte: Aguiar, 1947, op. cit., pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)
1. O Zé do Telhado (ou melhor, a sua memória popular) calhou-me... "em herança". Tendo casado em Candoz, a escassos quilómetros de Fandinhães (terra da minha sogra, Maria Ferreira), na serra de Montedeiras, e a 5 minutos de carro da Casa do Carrapatelo na margem direito do rio Douro (o mais célebre dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852), tinha que me interessar pelas "lendas e narrativas" que sobre esta personagem oitocentista se contavam, ainda nos anos 70 do séc. XX.
Andava há anos para ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890). Só agora tive tempo e pachorra para o fazer. (E também só há uns anos conheci a casa-museu do Camilo, em São Miguel de Seide, V. N. Famalicão)
E, atrás do Camilo, vieram outros autores, não muitos, dos que tèm escrito sobre o banditismo no séc. XIX, em geral, e o Zé do Telhado, em particular.
Também, por "herança", veio-me parar às mãos o livro cuja contracapa se reproduz acima, da autoria do padre Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp). Está completo (falta-lhe a capa), mas em muito mau estado, muito manuseado, a precisar de ser restaurado e reencadernado.
O autor, Manuel Vieira de Aguiar, na altura era professor do ensino liceal, sendo irmão do padre Agostinho de Aguiar. ( Este foi pároco da freguesia de Paredes de Viadores, a que pertence Candoz, e também ele conterrâneo e condiscípulo do meu sogro, ao tempo da escola primária, e amigo da família Ferreira Carneiro, para cujos convívios costumava ser convidado: Já faleceu há já uns largos anos; era natural de Mondim, uma lugar perto de Candoz, e a sua família foi um alforge de padres e freiras.)
O livro tem interesse documental, como monografia do concelho do Marco de Canaveses e as suas trinta e duas freguesias (na altura), incluindo Paredes de Viadores. Destaque também para as 75 gravuras (reproduçóes fotográficas), que ilustram o livro, e que são valiosas para o estudo etnográfico das gentes daquela terra do Vale de Tàmega, uma das tábuas do berço onde nasceu Portugal.
A I parte do livro é dedicada à história dos concelhos, entretanto extintos em meados do séc. XIX, que deram origem ao atual concelho de Marco de Canaveses (Bem-Viver, Canaveses, Soalhães, Alpendurada, Santa Cruz de Riba Tàmega e Porto Carreiro) e ainda aos diversos coutos que existiam dentro do território do concelho, cinco privados (Alpendurada, Tabuado,Burgo de Entre-Ambos-os-Rios, Tuías, Vila Boa do Bispo) ou e 1 real (Vila Boa de Quires), Fala-se ainda de duas beetrias do Reino, Canaveses e Paços de Gaiolo (pp. 55-154).
Já agora, defina-se, muito sumariamente, esta terminologia, menos familiar ao leitor:
(i) beetria , segundo o dicionario, é uma localidade medieval que gozava o direito de eleger os seus senhores, um privilégio raro:
(ii) couto era "uma determinada zona de terra, limitada por autoridade real, com certos privilégios, isenções, justiça própria, pagando determninadas pensões aos senhorios diretos" (op, cit., pág. 117).
Havia os coutos privados (dos conventos e da nobreza) e os reais (estes também chamados "coutos de homiziados", ou sejam, de fugitivos à justiça: na prática, era um instrumento de "colonização interna", ficando situados de preferência nas regiões fronteiriças; os criminosos encontravam ali protecçáo e guarida, com exceçáo para traidores, regecidas e hereges...); foram extintos em 1790.
A II parte do livro é dedicada à "história, demografia e corografia de cada uma das freguesias do atual concelho" (pp. 155-360),
E a III (e última) parte é sobre "o folclore em Marco de Canaveses" (pp.361-435): vida rural, com destaque para os trabalhos agrícolas (arranca do linho, espadeladas, malhas, vindimas, esfolhadas), folclore, romarias, serões, festas, bailados populares, superstições, janeiras e reis, carnaval, clamores e pregões, alminhas e cruzeiros, etc.
Na entrada sobre a freguesia de Penha Longa, o autor dedica 13 páginas (pp. 252-265) ao Zé do Telhado e o assalto ao Carrapatelo (passados 70 anos sobre a morte do assaltante e 85 sobre o assalto).
Socorre-se, no essencial, sobre fontes já nossas conhecidas, com destaque para o Camilo "Memórias do Cárcere), Eduardo Noronha ("Zé do Telhado"), Sousa Costa (" Grandes dramas judiciários"), Pinho Leal (" Portugal Antigo e Moderno"), e António Cabral ("Perfil de Camilo").
Antes de apresentar um resumo da vida do Zé Telhado, como militar e depois como bandoleiro, o autor descreve-o nestes termos:
"Alto, gordo, de agradãvel apresentação, génio indomável e fartas barbas, eis o temível capitão de bandidos, que, durante cerca de 10 anos, espalhou o terror do saque e do sangue em terras de Entre-Douro e Minho" (pãg. 252).
O tom é "hagiográfico": afinal trata-se de saber por que é que "os nobres e os ricos lhe davam guarida e proteção"... Já o povo tinha por ele "uma certa estima que, avolumada pela tradição, se transfornou, mais tarde, em admiração profunda" (sic) (pág, 252).
O autor resume o porquê em duas linhas: Porque se dizia que José do Telhado:
A sua vida "épica e aventurosa", resumida pelo autor (e que inclui o episódio da da Guerra da Patuleia em que o José Teixeira da Silva conquista a medalha da "Torre e Espada") vai acabar em 1859, quando é preso...
(...) Por fim, cansado de desgostos, resolveu embarcar para o Brasil. A bordo já da barca Oliveira foi preso por iniciativa de Adriano José de Carvalho e Melo, ex-comissário da polícia do Porto [. Foi também Deputado da Nação e Governador Civil de Bragaça, nota de rodapé, pág. 260], e naquela data administrador do jovem, concelho do Marco de Canaveses, o qual soube soube do paradeiro do famoso facínora, por indicações de José Morgado, agora a ferros.
Conduzido à cadeia da Relação do Porto, ali respondeu por tentar fugir para o estrangeiro, sem a documentação precisa. É entregue depois ao Tribunal do Marco, onde corre o processo do crime de Carrapatelo, é é transferido da cadeia do Porto para a do Pisão, em Canaveses.
O seu companheiro de clausura, que também aguarda julgamento pelo crime de adultério com Ana Plácido, o insigne escritor Camilo Castelo Branco, atendendo à sua pobreza e amizade, conseguiu-lhe para defensor o seu próprio advogado, Dr. Marcelino de Matos, que gratuitamente lhe presta os seus serviços.
E em 25 de abril de 1861, realiza-se na casa da Quinta, freguesia de Tuias, um notável julgamento em que José do Telhado é condenado a degredo perpétuo e trabalhos públicos em África. Mais tarde, mediante recurso, foi a sentença reduzida pela Relação do Porto a simples degredo.
Na selva africana continua porém a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios. No exílio, longe da terra natal e da família, a estrela cintilante, tão nimbada de luz que por vezes nuvens negras envolveram, de novo surgia na sua velhice alquebrada. E assim, lá longe. no olvídio de tantos que o temeram e respeitaram, se findou esse bravo, de sentimentos generosos, que foi grande mesmo no crime.
É assim o destino de alguns homens tatuados com o sinete do génio!....
José Teixeira da Silva tinha qualidades como várias vezes demonstrou, de aguerrido, fidelíssimo soldado. Se, do regresso das lutas partidárias, mãos amigas o tivessem auxiliado, teria sido um homem de bem, honestíssimo. Se nas sendas tortuosas, nubladas da existência, alguém orientasse a sua juventude, tão inclinada à epopeia, ao maravilhoso, teria sido um chefe invencível, talvez mais dominador que Napoleão Bonaparte, mais temido que Júlio César, mais intrépido que Alexandre Magno.
Assim, abandonado às suas próprias forças, sem o amparo carinhoso da avara família humana, foi o que foi − um misto formidável de glória e infâmia, de grandeza e baixeza, de epopeias e tragédias. (pp. 260-262).
Não deixa de ser surpreendente este retrato, feito por um homem, sacerdote católico, que escreve em meados dos anos 40, no auge do Estado Novo. Já agora, não é de ignorar esta dedicatória do livro: "ao Instituto para a Alta Cultura, Secretariado Nacional de Informação, Câmara Municiapl de Marco de Canavese e Junta da Província do Douro Litoral, que se dignaram patrocinar esta obra, a gratidáo reconhecida do autor"...
Um Zé do Telhado, vítima das "circunstâncias histórias" (as lutas fratricidas dos portugueses, na época do liberalismo), e de algum modo "reabilitado" pela História, também convinha à propaganda de um Estado Novo, "antidemoliberal": no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua (...) a realizar proezas", isto é, "subjuga os pretos (sic), funda prósperas roças, dirige negócios" (a expressão é de Manuel de Aguiar).
(Continua)
(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
Nota do editor:
Último poste da série > 12 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24748: ;Manuscrito(s) (Luís Graça) (238 ): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte V: um país de brandos costumes: quatro mil degredados em Angola, nos finais do séc. XIX, três em cada quatro dos colonos brancos
sábado, 14 de outubro de 2023
Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)
Marco de Canaveses > circa 1947 _ A vinha de enforcado, as vindimas
1. Já aqui publiquei, há dois anos atrás, várias notas de leitura sobre o livro "Um caminho de quatro passos", do António Carvalho. (*)
Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74), encantou-me, de sobremaneira, na altura em que o li, as suas vivas recordações da infância passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós ainda chegámos a conhecer, tanto no Portugal continental como insular e até ultramarino. (estou-me a lembrar no nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé, "menino e moco em Fajonquito").0
- quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?
- e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
- "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
- tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime);
- ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.
- "à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
- "tanger os bois";
- "guiar à soga";
- "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
- "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
- "um terço de despacho (desembaraço)";
- "com a sua licença, o porco";
- "apercar";
- "freima";
- "aneira";
- "anos minguados"
- "barco rabão";
- "sortes" ...
Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro) é absolutamente obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)
António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008, autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas); tem cerca de 80 referências no nosso blogue.
(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho.(...) Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade !
(...) Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214) (...)
A PISA E A DESFOLHADA
Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas.
As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele.
A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA
Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado.
E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo, tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume.
Ora nessa área de terreno inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução.
Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato, vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.
Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade.
A lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa.
As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.
Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado.
Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva.
Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado.
O AZEITE , O ÓLEO DOURADO
Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura.
Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados.
Entre novembro e dezembro era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados, deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.
A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.
Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas.
A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.
Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano. (...)
© António Carvalho (2021)
(Seleção, revisão e fixação de texto, negritos, para publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)
Capa do livro do António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.
3 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte II (Luís Graça)
(**) Último poste da série : 13 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24667: Manuscrito(s) (Luís Graça) (231): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte II: o carrasco, Adriano de José de Carvalho e Melo, fundador e administrador do Marco de Canaveses
Acontece que este verão pus-me a ler a autobiografia romanceada do Camilo Castelo Branco, as “Memórias do Cárcere”, em dois volumes, na 8ª edição, 1966. E por aí cheguei ao retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico, que ele traçou do seu companheiro de infortúnio (mas também "guarda-costas"), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto.
No prefácio à 2ª edição (Porto, 1864), Camilo conta-nos que esta obra foi escrita em 40 dias, e nela reuniu mais de 3 dezenas de “historietas”, centradas no submundo do crime da época, ali bem representado na cadeia da Relação do Porto. Mais de 30 páginas (cap. XXVI, pp. 84-107) são dedicadas ao Zé do Telhado.
No seu estilo inconfundível, Camilo descreve a partida da “diligência” para a Régua nestes termos sarcásticos:
(…) “Me embarquei na ‘diligência’ que partia, mais duvidosa do seu destino, para a Régua, do que a nau de Cristóvão Colombo para o novo mundo” (CCB, 1966, pág.14).
Cansado da “clandestinidade”, Camilo acaba por entrar na prisão em 1 de outubro de 1860. O Zé do Telhado já lá estava, nessa altura. Viria a ser condenado, por sentença transitada em julgado, no Tribunal Judicial do Marco de Canavases, a pena de desterro em África, em 27 de abril de 1861… Tinha sido preso em 31 de março de 1859 quando tentava fugir para o Brasil, ficando então detido nos calabouços da Relação.
Já agora, e como curiosidade, o Camilo nunca explicita, talvez por pudor, hipocrisia social ou mero calculismo (ele vivia exclusivamente da escrita, foi o primeir0 escritor português a 'profissionalizar-se"), a razão da sua detenção durante um ano, e muito menos menciona o nome da sua companheira, Ana Plácido (que era casada, contra a sua vontade, com um comerciante rico, o "brasileiro" Pinheiro Alves, e que estava igualmente detida, por adultério, na ala feminina).
No sítio do Museu Judiciário do Tribunal da Relação do Porto, pode saber-se algo mais sobre este homem, Zé do Telhado, que entrou para a história não tanto como militar e guerrilheiro, condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada (por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira, em 1846, na revolta da Maria da Fonte, a que se seguiu a guerra da Patuleia) mas sobretudo pela sua alcunha, a sua fama, as suas façanhas em data posterior, como “bandido social” ou “bandido-herói”, que acabaria por morrer desterrado em Angola.
O Processo (1859-1861)
(…) Chefe de uma quadrilha de salteadores, Zé do Telhado deve a sua fama lendária de roubar aos ricos para dar aos pobres – uma espécie de Robin dos Bosques português. O escritor Camilo Castelo Branco presta-lhe homenagem nas “Memórias do Cárcere” (com quem esteve preso na Cadeia da Relação do Porto e de quem se tornou amigo).
Foi preso em 1859, julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida. Embora a pena tenha sido comutada posteriormente para 15 anos de degredo, Zé do Telhado acabaria por falecer em Angola.(…)
E mais se pode ler no sítio do referido museu virtual:
Processo de Querela contra o réu José Teixeira da Silva (Zé do Telhado):
(…) Libelo acusatório por diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com princípio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos. E ainda autoria e chefia de associação de malfeitores e tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais. É condenado a trabalhos públicos por toda a vida no Ultramar e ao pagamento das custas.
O processo iniciou-se em 30 de Maio de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado por sentença do juiz António Pereira Ferraz, de 27 de Abril de 1861, na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pela Relação do Porto, substituindo apenas a expressão “costa ocidental de África”, por “Ultramar”.
Por acórdão da mesma Relação de 11 de Agosto de 1865, foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, a contar desde a data do Decreto de 28 de Setembro de 1863.(…)
O réu acabou por ser condenado por “diversos crimes [cometidos] com violência”, comprovados em tribunal, e absolvido de outros:
- tentativa de roubo, com começo de execução, em casa de António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião [em 27 de novembro de 1952];
- homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Dª Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião [erro: trata-se de Marco de Canaveses], e roubo na casa da referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objetos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, não sabendo ao certo quanto era, porque o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar [crimes estes ocorridos em 8 de janeiro de 1852];
- roubo [cometido em março de 1859] em casa do Padre Albino José Teixeira [em Sequeiros, freguesia de] Unhão, comarca de Felgueiras, no valor de um conto e quatro centos mil reis em dinheiro e ainda objetos de prata e outro;
- outro homicídio na pessoa de um correligionário [o “Avarento”], ferido num confronto com as autoridades [na Eira dos Mouros, serra de Montedeiras, em 22 de maio de 1852, e levado para uma estalagem, na freguesia de Santa Catarina, concelho de Felgueiras, o Zé do Telhado lhe deu um tiro de misericórida];
- para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino [para o Brasil] sem passaporte e com violação dos regulamentos policiais.
(...) “A sua qualidade de chefe é que o tornou responsável pelo homicídio do Carrapatelo, pois o autor material foi um capanga que abateu o criado quando este tentou reagir, num momento em que o caudilho ainda nem entrara na residência. “ (…).
Contexto histórico, político e militar:
Continuando a citar a mesma fonte:
(…) "A ação do Zé do Telhado, alcunha de José Teixeira da Silva, integra-se no fenómeno organizativo de grupos de assaltantes que tem a sua génese, de formação espontânea, durante as invasões francesas.
"Perante a total falta de reação do exército português à entrada dos napoleónicos, grupos de populares procuram quebrar a total impunidade dos invasores. Esses grupos, meras milícias populares, entretanto com experiência guerrilheira acumulada, foram aproveitados na guerra civil liberal por forças políticas e militares em campo: os “corcundas” (absolutistas) e os “malhados” (liberais).
"Terminada a guerra, ficou o gosto e o proveito da guerrilha por conta própria: é o João Brandão, é o Remexido, é o Zé do Telhado. Este atingira, ao serviço liberal, a glória, com a atribuição da Torre e Espada. Finda a guerra pretendeu um emprego no Depósito do Tabaco, no Porto. Não conseguiu.
Usava evoluída assinatura, com o último apelido abreviado (S.a), curioso indício de cultura acima da vulgaridade.” (…)
Em 1809, ainda não existia a cidade do Marco de Canaveses, muito menos o concelho, apenas a pequena vila medieval de Canaveses, sobranceira ao rio Tâmega, na margem esquerda, e por onde passava a estrada real Porto-Régua. A ponte medieval era do tempo de Dona Mafalda, esposa de Dom Afonso Henriques.
E foi essa ponte que os habitantes locais demoliram parcialmente na tentativa de impedir o trânsito das tropas do marechal Soult, que comandava o exército napoleónico, na sequència da segunda invasão francesa (de 3 de fevereiro a 12 maio de 1809).
"O General Caulaincourt, que nos comandava, pretendeu apoderar-se de Canaveses a fim de não deixar inimigos entre si e o Porto. Formou um destacamento de 500 cavalos e marchámos para Canaveses; não encontrámos ninguém até à nossa chegada a uma altura que domina a povoação: aí avistámos a alguma distância bandos de 15 a 20 paisanos que aparentavam não esperar senão o sinal para nos atacarem. Vestidos de negro ou de cor sombria, entre rochedos acinzentados, tinham o ar de fantasmas devotados à nossa perseguição e que nos vinham acusar da infelicidade do seu país: seguiam de longe os nossos movimentos e paravam quando nós fazíamos alto (...).
Acrescente-se que o concelho do Marco de Canaveses, juridicamente falando, só existe desde 31 de março de 1852, dois meses e tal depois do assalto à Casa do Carrapatelo:
(vi) em 31 de março de 1852, a rainha D. Maria II assina o decreto que cria o concelho de Marco de Canaveses (que passa a integrar os concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro, parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega);
A avaliar pelos poucos livros (apenas três) que encontrei na biblioteca municipal local, quer-me parecer que o homem também anda por aqui muito esquecido... Claro que não seria caso para ter direito a um busto de bronze, no jardim municipal, como o Adriano José de Carvalho e Melo, mas, bolas, na altura o alegado "bandido social", nascido no concelho vizinho de Penafiel e casado na Lousada, também ajudou a pôr o Marco de Canaveses no mapa...
(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)
quinta-feira, 27 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24506: Contos com Mural ao Fundo (Luís Graça) (6): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) Parte
O "milagre" do bacalhau do Natal com pencas (ou "tronchudas"). Fotograma de vídeo de Luís Graça (2013).
Fonte: Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 30 dxe dezembro de 2013 > nossas comidinhas (7): O bacalhau com pencas. da ceia de Natal
Segunda e última parte do texto elaborado para a série literária da autoria do nosso editor Luís Graça, "Contos c0m Mural ao Fundo" (*)
Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).
Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).
− Sorte ao jogo, azar no amor?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…
De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5.º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como escriturária administrativa.
Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e antigos condiscípulos"… Do colégio ficaram, de resto, algumas amizades comuns. Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele. Os pais dela opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que "o filho do rendeiro da Lixa"…
Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.
O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…
Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias, "sem o romantismo que se via nas fitas do cinema" (sic)... Os "fidalgotes" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…
Estranhamente, a rapariga, a "morgadinha", levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha.
A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua eleita do coração…
No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda, onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.
– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.
− Das Arábias, não, um homem, sim, das Áfricas! – emendou o Arlindo. − Mas partiu para Angola com o coração destroçado.
Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné em princípios de janeiro de 1969…
Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: fora dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabaria por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade.
O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "cumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante muito conhecido, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... Enfim, pequenos luxos que o "boom" económico de Angola permitia a alguns, civis e militares...
Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "cota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes... Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...
Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "cota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "camanga", em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "cota", seguramente menos atiradiço (e "com mais escrúpulos"...) que o "caçula" da família.
− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos "vidrinhos"... Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado ou até enfurecido... Se há coisas de que ele não gosta de falar, é disso e da rede bombista de 1975...
Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequeno accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:
− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1.ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...
Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75". (Dizia-se, à boca pequena, que também teria chegado a financiar algumas atividades contra os "comunas", o mesmo era dizer, que teria feito parte da "rede bombista" do MDLP, o que nunca foi comprovado...)
Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra". Ou citou-me nomes de alguns conhecidos ou alegados desertores...
− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...
Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente de uma junta de freguesia onde tinha um grande estaleiro e já dava trabalho a um "pelotão de gente". Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais num dos concelhos vizinhos. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grande amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município.
− Lisboa ?!... Nem pensar!
O que não o impediu de chegar a a comendador, distinção que ele aceitaria de bom grado, anos mais tarde, das mãos do Presidente da República que ele "ajudou a eleger" (sic)...
− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega e n0 Vale do Sousa, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ganhar e dar a ganhar, e depois ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!
− Lamento imenso, afinal foi uma vida de trabalho... E o futebol?
− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.
− Mas era a tua "coroa de glória", não!?...
− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!... Enfim, felizmente o futebol foi sol de pouca dura...
− E muita ingratidão também, não ?!
− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra, a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.
− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…
− Padrinho...?!
− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E, no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...
− Sem olhar a quem?!
− Sim, podes crer, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem do amigo e camarada Arlindo!
− Sei que ainda voltaste à Guiné…
− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...
O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1966 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou-lhe:
− Tuga, tu és o meu pai!
Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses" (sic), no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde o 1.º trimestre de 1969…
− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.
O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia. Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras" e do Arlindo.
− Tornou-se popular no Batalhão, e alguns sacanas da companhia, que tinham tido problemas com o capitão, vieram a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo... − lembrava-se o Arlindo,
Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.
O "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto, popular entre a generalidade da rapaziada da companhia, mas motivo de chacota para os do batalhão.
− E Angola?...
− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.
Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, em 2017, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos.
− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada", padrinho de casamento do seu filho.
E eu, por mim, só soube da notícia tardiamente, uns meses mais tarde, quando estivera no Norte, por altura das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito na "horta do chão manjaco", nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.
Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como, de resto, a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.
[PS - Costuma-se prevenir o leitor de contos como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, descansado, como eu faço: afinal "a guerra colonial nunca existiu", foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Ou "pesadelo climatizado", para outros. E poucos se puderam dar ao luxo de comer bacalhau com batatas e pencas pelo Natal nos trópicos. Estas "estórias" são, afinal, apenas "contos com mural ao fudo", onde o leitor pode sempre deixar um comentário ou grafitar umas garatujas... Boa noite.]
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 26 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24504: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (5): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) (Parte I)