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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24056: Facebok...ando (72): Nós, os antigos combatentes, porque nos tornaram proscritos? (Angelino Santos Silva, ex-fur mil 'cmd', 26ª CCmds, Bula, Teixeira Pinto e Bissau, 1970/72)


Capa e contracapa de um dos romances históricos do nosso camarada Angelino Santos Silva, "Geração de 70: época das chuvas" (edição de autor, 2014). (*)


I. O Angelino  Santos Silva (foto atual à esquerda), publicou na sua página do Facebook (em 16 de janeiro último) e replicou, na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, a reflexão, que a seguir reproduzimos (com a devida vénia), sobre a nossa geração de combatentes da guerra colonial, nascida nos anos 40. 

O Angelino aceitou o nosso convite para ingressar na Tabanca Grande, a comunidade virtual de amigos e camaradas da Guiné que se reune neste blogue. Iremos apresentá-lo brevemente à nossa tertúlia.

Para já aqui um breve apontamento biográfico do autor:

(i) nasceu em novembro de 1948, na aldeia de Recarei, concelho de Paredes;

(ii)  concluído o ensino básico, fez os seus estudos na cidade do Porto;

(iii) aos 17 anos entra na Efacec como estagiário escolar, situação que se manteve até ingressar no Serviço Militar Obrigatório;

(iv) como trabalhador-estudante faz o SPI para entrada no Instituto Industrial do Porto;

(v) em 1969 vai para o CIOE, em Lamego, para frequentar o Curso de Comandos, com vista à Guerra Colonial Portuguesa em África;

(vi) integrado na 26ª Companhia de Comandos, em março de 1970 embarca no navio Niassa para a Guiné, local onde esteve 22 meses (passando por  Bula, Teixeira Pinto e Bissau);

(vii)  em março de 71, sofre em combate um "acidente" provocado por mina anticarro que o projecta a cerca de 30 metros; porque ia dependurado no lado contrário ao rebentamento da mina, quis a sorte que ficasse apenas com algumas queimaduras nas costas, provocado pela água da bateria do camião cisterna, que ficou completamente destruído; sorte, que não tiveram os camaradas dentro do camião; esteve hospitalizado dois meses;
 
(viii) regressado à Efacec em 1972, inicia a carreira profissional como Técnico de Projetos de Engenharia de Equipamentos de Produção e Distribuição de Energia Elétrica, profissão que manteve até 1982;

(ix) em 1982 despede-se da Efacec e inicia uma nova carreira profissional como vendedor de Produtos Químicos de Manutenção Industrial; promovido a Chefe de Vendas ao fim de meio ano, foi promovido a Diretor Técnico/Comercial da zona Norte, ao fim de três anos, cargo que ocupou durante 20 anos na Quimivenda;

(x) o gosto pela escrita em prosa e poesia é de sempre, mas apenas em 2010 começou a publicar os seus textos; Pedaços de Vida foi o seu primeiro romance.(**)

(xi) sabemos que frequenta as Tabancas de Matosinhos e dos Melros;

(xii) contactos: Angelino Santos Silva > telem 912 998 600 | email: angelinosantossilva@gmail.com

 Fonte: Adapt. de Wook (com a devida vénia)


II. Facebok...ando  (***) > Nós, os combatentes: Porque nos tornaram  proscritos?

por Angelino Santos Silva

1. Para responder à questão, temos de recorrer à História, não só à que nos diz directamente respeito, mas também à dos nossos pais, ou seja, à história do país do séc. XX.

A vida é um somatório de passos por caminhos sinuosos com encruzilhadas à mistura. Por vezes temos dúvidas quanto ao caminho a tomar, porém, temos consciência de que temos de prosseguir por um. Noutros, alguém os escolhe por nós sem apelo nem agravo e poucas saídas nos restam para o evitar e sempre com custos elevados.

Nós, os Combatentes pertencemos a este último grupo: perante a maior encruzilhada que a vida nos reservou, alguém nos traçou o caminho e sem qualquer recurso, tivemos que o percorrer.

Vamos aos factos históricos.

A nossa Geração nasceu no período compreendido entre o início da II Guerra Mundial e poucos anos após o fim da mesma, ou seja, entre 1941 e 1953. Olhamos à distância de 70 ou 80 anos e sentimos um amor incomensurável pelos nossos pais, que nasceram no período compreendido entre o fim da Monarquia e os princípios da I República.
 
Enquanto miúdos, víamos o enorme sacrifício que faziam para nos subtrair a um estilo de vida de grande dificuldade que lhes era imposto pelo Estado Novo. Nessa época quase metade da população portuguesa era analfabeta, principalmente nas aldeias, sendo que – analfabeto  – significava apenas não saber ler e escrever com desenvoltura, porque da vida e do trabalho os nossos pais eram mestres: aos dez anos iniciavam uma profissão, aos vinte sabiam quase tudo sobre a mesma e aos trinta eram mestres na arte que escolheram para ofício. 

Para um país retrógrado como era o nosso, tal capacidade e empenho significava uma enorme riqueza, não aproveitada por um regime que mantinha pobre o seu povo e fazia da emigração, ou antes, dos dinheiros enviados pelos emigrantes, o seu pote de ouro. Porém, beneficiaram os países que acolheram a emigração, aproveitando a mão-de-obra barata depois do descalabro da II Guerra Mundial.

Por cá, o esforço e empenho dos nossos pais, também não foram aproveitados por quem tinha o dever de melhorar o nível social do país e acompanhar o desenvolvimento social da Europa do pós-guerra mundial. Aproveitamos nós - seus filhos - cada um por si e todos criamos condições para melhorar a vida de nossas famílias. 

E assim aconteceu: perante cada encruzilhada que nos foi surgindo após o Serviço Militar, não tivemos grandes dúvidas em escolher um caminho, sempre com os olhos postos no exemplo de nossos pais: os que continuaram a estudar após a 4ª classe (o ensino básico era obrigatório até aos 14 anos para quem reprovava) fizeram-no com o intuito de arranjar o melhor emprego possível e os que foram trabalhar legalmente após os 14 anos de idade, fizeram-no com o mesmo propósito. 

Todos melhoramos substancialmente as nossas vidas, criamos as bases para erradicar o analfabetismo e os nossos filhos têm hoje um razoável nível de vida. Parte significativa é licenciada e alguns já exibem um doutoramento. 

Porém, os seus filhos – nossos netos – estão nos antípodas das gerações de seus avós e pouco sabem sobre a nossa missão enquanto Combatentes na Guerra Colonial em África. Tudo é diferente nesta Nova Geração. Aparentemente, os miúdos do Séc. XXI – aos quais designo por Geração de Cristal – têm tudo ao seu alcance, mas na realidade, perante uma encruzilhada que lhes surja pela frente, já não têm tanta certeza, como a tiveram os seus pais e avós. 

É claro, que não é por culpa própria, mas sim pelas decisões políticas erradas tomadas pelas elites governantes, que a pretexto de salvar a “economia” criam dificuldades inultrapassáveis para a maioria das pessoas. 

Esta nova forma de “olhar o mundo“ e geri-lo sob um conceito estritamente económico, - o mesmo que dizer, proteger interesses dos mais ricos - está a transformar a vida dos jovens em uma “caixa de Pandora”. No ensino, parte dos cursos académicos estão desajustados às necessidades do tempo actual e de pouco servem aos licenciados, que se veem obrigados a aceitar um emprego para o qual não estudaram, precários e mal remunerados

Além da frustração que tal opção acarreta, os jovens tornam-se permeáveis aos problemas de foro psíquico e o recurso aos antidepressivos é cada vez mais frequente. Portugal é um dos países da Europa com maior prevalência do número de doenças psiquiátricas. 

No primeiro semestre de 2022 os portugueses compraram perto de 10,9 milhões de embalagens de ansiolíticos, sedativos e antidepressivos, o que representou um encargo para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de cerca de 32,5 milhões de euros. Em média, venderam-se mais de 59.732 embalagens de ansiolíticos, sedativos, hipnóticos e antidepressivos por dia, totalizando 10.871.282 nos primeiros seis meses do ano, o que representa um aumento de 4,1% face ao mesmo período de 2021 (10.439.500), segundo dados do Infarmed.

A pandemia veio acelerar este consumo, sendo que nos jovens se verificou o maior aumento.

Ao prosseguir nesta forma de “olhar o mundo”, ou seja, sob orientação puramente económica, chegaremos a 2030 com uma juventude sem perspectivas quanto ao futuro, com um curriculum académico puramente administrativo que pouco serve, sem emprego ou com emprego mal pago, insuficiente para fazer face à vida. 

Chegados aqui, teremos a Geração de Cristal transformada na “Geração dos Nem Nem” ou seja, Nem estudam, Nem trabalham, porque mais vale viver de subsídios. Se isto não for corrigido, a geração dos nossos netos será confrontada com um recuo civilizacional de um século e chegará ao tempo da Monarquia.

2. É muito importante que falemos aos nossos netos. É muito importante que lhes expliquemos, porque motivo existe, desde o 25 de Abril, um esforço da parte dos governantes em ignorar os Combatentes e se possível, fazer deles, cidadãos Proscritos ou seja, banidos da História de Portugal.
 
3. Este esforço tem sido feito por todos os governos com maior ou menor disfarce e todos comungam do mesmo objectivo: passar em branco as páginas da História da Guerra Colonial e nela, a dos Combatentes.

4. Cabe-nos, não permitir que tal objectivo tenha sucesso. Como fazer isso? Escrever. Escrever muito sobre nós, Combatentes.

5. Porque o tempo não pára e porque estamos confrontados com a verdade inquestionável da idade, deparamos com uma nova e derradeira encruzilhada: escrever sobre nós, utilizar as redes sociais falando sobre nós, porque no ensino escolar ninguém o faz.
 
6. Os nossos filhos também não, porque ao longo da vida familiar pouco falamos sobre a nossa presença em África, absorvidos que estávamos – tal como os nossos pais – a trabalhar para lhes dar um nível social melhor do que o nosso.
 
7. Entre nós falamos muito, facto que por vezes causava espanto aos nossos familiares, quando nos acompanhavam aos Encontros Anuais e encontros de ocasião.

8. Mas devemos falar mais, porque o tempo urge. Seremos hoje cerca de 250 mil, número com algum impacto, se unidos, coisa complicada num país que se uniu para derrubar o Estado Novo, mas logo se dividiu nas artimanhas dos políticos.
 
9. Porque, parte significativa de nós anda entre os 70 e 80 anos – os mais velhos já ultrapassaram este limite – daqui a 10 anos seremos talvez, menos de 50 mil, porque segundo as estatísticas é na idade dos 80 em diante que morre mais gente. Não fugiremos a esta realidade, até porque em cima de nós vieram algumas mazelas que nos causaram desgaste físico e psíquico.

10. De abril de 74 para cá, temos andado divididos entre religião, futebol e política. Tem sido este o desenho bem aproveitado pelos políticos, que sabem que quem não tem potencial para fazer lóbi, fica irremediavelmente para trás. E assim tem acontecido e acontece com os Antigos Combatentes, disfarçado com esmolas que “desarmam” alguns.
 
11. Se nos achamos injustiçados e entendemos fazer alguma coisa, está na hora de encontrar o caminho, porque o tempo urge e já não teremos outra encruzilhada pela frente. Esta será a última das nossas vidas.

• Quanto à pergunta, PORQUE NOS TORNARAM PROSCRITOS?

A resposta é fácil: depois de manipuladas e arregimentadas as gerações que fizeram a Guerra Colonial e, por consequência, a divisão do grupo de Capitães/Combatentes, que se tinham unido para derrubar o Estado Novo, nenhum dos governantes conheceu a guerra colonial portuguesa em África.

Um abraço a todos Combatentes.

Angelino dos Santos Silva
Combatente na Guerra Colonial Portuguesa na Guiné-Bissau

[Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste no nosso blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de
14 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15486: Notas de leitura (788): “Geração de 70”, por A. Santos Silva, Euedito, 2014 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23220: Notas de leitura (1442): "Pedaços de Vidas", por Angelino Santos Silva; Mosaico de Palavras, 2010 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Há que confessar que nada me fora dado a ler como esta encruzilhada de vidas em que somos levados de meados do século XX até ao princípio deste século, tudo começa no meio rural, talvez na Freguesia de Recarei, Concelho de Paredes, percorre Caldas da Rainha e Santarém, Lamego e uma intensa atividade operacional na Guiné, no centro da trama estão dois amigos fraternos; mas como temos aqui uma encruzilhada de vidas, muito provavelmente se conta a história de alguém que se conhece bem que levou uma vida conjugal infernal e que tudo vai contar, desde os primeiros episódios de um ciúme obsessivo até à tentativa de espoliar o marido e viver em permanente quezília com os filhos, temos aqui uma galopada de episódios pintalgados de dramatismo, seguramente que Angelino Santos Silva ganhou coragem para este desnudamento em que expõe a sua vida, recorrendo ao escudo da malha ficcional.

Um abraço do
Mário



Pedaços da vida de um antigo Comando na Guiné e em Portugal, obra singularíssima

Mário Beja Santos

Convém, antes de mais, justificar no título o uso de “obra singularíssima”. Angelino Santos Silva dá-nos conta do seu currículo, fez parte da 26.ª Companhia de Comandos, combatendo na Guiné de 1970 a 1972, levou uma vida de trabalho, introduz no seu currículo casamento e divórcio e orgulha-se de ter sido um competente diretor de vendas. Homenageia os camaradas e execra os praticantes do ciúme, veremos adiante que a singularidade desta obra assenta em duas histórias entrelaçadas, uma envolve dois jovens, amizade inquebrantável, António e Augusto, que combaterão juntos na mesma Companhia de Comandos; e a outra a de um casal que, de peripécia em peripécia, como iremos assistir, descobrirá o inferno relacional, tudo começa em obsessões de ciúme, culminará num golpe de baú e num divórcio litigioso onde iremos presenciar, a toda a largura, o lavar da roupa suja.

Como, nestas coisas da literatura da guerra colonial, acabamos sempre de falar de nós, mesmo com recurso aos artifícios de entrepostas pessoas e até de lugares e tempos tidos por convenientes numa tentativa de afastar suspeitas de incursões autobiográficas, há que conferir coragem a Angelino Santos Silva por esta memória e esfrangalhada diatribe familiar levado ao caos. Tudo começa pela história de António Daborda e Augusto Marques, furriel e primeiro-cabo dos Comandos, e do infausto casal Mário Oliveira e Maria Carolina. Os jovens vão às sortes, apurados para todo o serviço, o Mário e a Carolina casam quando ele regressou de África. A família de Augusto socorre-se de um pilantra, o Arnaldinho, a quem entregam 50 contos, na tentativa de safar o filho de África, mal sabe Ti João que o Arnaldinho é doido por jogo e por passear com meninas, não houve cunhas nem o Augusto queria. Iremos acompanhar a vida dos jovens em Lamego, cenas de brutalidade não faltarão, tudo justificado pelos instrutores em nome da resistência que é indispensável para as tropas especiais. E as páginas vão-se sobrepondo com os primeiros anos da vida do casal Mário e Carolina e as brutalidades em Lamego, não faltarão cantis com água e urina, tudo para beber e começam os ciúmes na vida familiar, a intromissão das irmãs de Carolina na vida do casal, surgem os primeiros delírios da Carolina, forja amantes para o marido, em Lamego António Daborda revela as suas competências, tem suficiente força de caráter para todos aqueles aturdimentos e gritarias durante a noite, altifalantes e ordens para formar na parada, é a vez de Augusto chegar a Lamego, se aquela amizade feita na aldeia já era sólida vai ganhando a consistência do aço; Mário leva uma vida amargada, acaba sempre por arredar a ideia de se separar daquela mulher errática, quer ver os filhos a viver em meio familiar, sujeita-se aos caprichos de Carolina, cada vez mais dominada pelas manas e exigindo ao marido um sem-número de excursões, que tanto podem ser a Cuba, como à República Dominicana, como a Tenerife; os dois grandes amigos reencontram o meio familiar sempre que há férias, o Arnaldinho reaparece como um fantasma, os filhos de Mário e Carolina vão crescendo e, para seu espanto, a mão maltrata-os, chega a inventar envenenamentos.

O romance segue o seu curso, mais brutalidade em Lamego, vamos ter agora uma Companhia de Comandos, no meio de trabalho de Mário começa a haver inquietações, Carolina não faz outra coisa que dizer mal do marido, começa-se a duvidar da sanidade mental da senhora.

Chegou a hora do embarque, chega-se à Guiné naquele estranhíssimo período de março/abril de 1970 em que parecia que se ia chegar a um acordo de paz, havia para ali umas negociações secretas, tudo redundou, em 20 de abril, num selvático retalhamento de vários oficiais e seus acompanhantes, caíram numa cilada, a guerra recomeçou, e a vida operacional de 26.ª Companhia de Comandos seguiu o seu rumo. Carolina consegue induzir o marido para um negócio de um ginásio onde vão também participar os sobrinhos, filhos de uma muita amada irmã, Carolina disparata a toda a hora com as empregadas e vai preparar o golpe do baú, retira os dinheiros da conta comum, leva as joias e outros bens, anuncia para quem a quer ouvir que o marido a espanca e ela sofre a mais terrível das crueldades mentais daquela besta. Os filhos do casal questionam como é que o pai aguenta aquela mãe tão disfuncional, entretanto monta-se a estratégia do divórcio, António e Augusto vão com a sua Companhia até Bula, parece estar tudo calmo, ainda não se deu a tragédia do 20 de abril, estas duas histórias que andam a par vão ganhar eletricidade quer na sala do tribunal, quer na atividade operacional da 26.ª Companhia de Comandos que percorre a Guiné, assaltando bases, apoiando colunas, intervindo para resolver encrencas.

E se o julgamento clarifica que Mário está inocente de todas as acusações, a vida de Augusto e António tem outro desenlace, a Companhia tem dado apoio ao alcatroamento de uma estrada entre Mansabá e Farim, o tapete vai chegar ao K3. Há necessidade de bater uma zona, procurar uma base de morteiros, os helicópteros não conseguiam localizá-la, tal a camuflagem, vai também tropa africana. A tragédia surge no terceiro dia de operação, na mata tudo parecia calmo, está-se perto do objetivo, pede-se apoio a um helicóptero, o seu canhão mete respeito. O furriel António está a dar ordens, mas não acaba a frase, uma violenta explosão atira-o a uma distância bem folgada, não ouve nada, não sente as mãos, não sente as pernas, tenta dar alguns passos, mas volta a cair, vê alguns camaradas estendidos no chão e outros a correr, descarregando as suas armas. Deitado no chão sente a correntes de ar das pás do helicóptero, é para ali transportado, ali desmaia, acorda no hospital militar de Bissau, está intacto, apenas com umas ligeiras queimaduras nas costas, tal como aconteceu a Angelino Santos Silva, na guerra que ele viveu. Mas Augusto, o seu amigo fraterno, sucumbiu. Em janeiro de 1972, António vê-se novo no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, com os seus camaradas segue para Lamego, metem-se à estrada num táxi de Lamego a caminho de casa, viagem acidentada até ao Porto. Em São Bento toma o comboio para casa, a sua aldeia espera-o, aparece enregelado à família, tem o aspeto de desenterrado. Mete-se na cama e durante três dias esteve em silêncio, contabiliza ganhos e perdas, isto enquanto no tribunal a advogada de defesa dá os parabéns a Mário que confessa que não está feliz: “Não é uma sentença em papel, ainda que justa, que sossega a besta que em mim foi despertada por duas bestas que me infernizaram a vida e marcaram para sempre a minha e a dos meus filhos”.

Como nada até hoje li como estes pedaços de vidas, de gente que chega ao destino com todas as convicções abaladas a classifico como “obra singularíssima”.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23211: Notas de leitura (1441): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15486: Notas de leitura (788): “Geração de 70”, por A. Santos Silva, Euedito, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
Mais uma edição de autor, mais um regresso à memória com toques de romance, narrativa histórica, poesia, considerações pessoais.
Uma comissão que começa em Bula e chega a Gadamael-Porto. Há para ali sonhos, gente que está disposta a ficar e fazer agricultura, os sonhos evaporam-se com a aspereza da guerra. Há uma observação obsidiante em que os guineenses barafustam com a presença cabo-verdiana, o registo não fica bem esclarecido. Muito mais memória sobre o que vai na cabeça das pessoas do que nos afazeres da guerra. Um registo que é uma operação de boa vontade e um hino à camaradagem.
Nada mais a dizer.

Um abraço do
Mário


Geração de 70, época das chuvas, por A. Santos Silva

Beja Santos

“Geração de 70”, por A. Santos Silva, Euedito, 2014, é a história de uma comissão que nos faz supor, assim pensa o autor, um romance, tem páginas em prosa e poesia, tudo começa na Gare Marítima de Alcântara, o navio Niassa parte a 25 de março para a Guiné. Regista-se o que se passa no cais de embarque, depois os embarcados vão estabelecendo conversa. Adverte o autor quando apresenta as personagens que atravessam a narrativa: “António, Augusto e Domingos Djaló são nomes fictícios, mas existiram e representam o nome dos jovens das gerações que foram apanhados pela guerra de África. Designamos de geração de 70, porque foi o ano em que embarcaram António e Augusto”. Assim se chega ao cais do Pidjiquiti, viaja-se para o quartel de Brá, entabula-se conversa com o condutor da GMC que fala do baga-baga e avisa que ninguém se deve esconder atrás dele debaixo de fogo. É uma conversa instrutiva em que fala de bolanhas e da agricultura em geral. O condutor apresenta-se: Armando Arafã Mali, descendente de mãe Mandinga e pai marinheiro português. No dia seguinte o narrador calcorreia por Bissau, a vertente dos ensinamentos não pára, fala-se de rebenta-minas, picadas e os perigos que reserva o primeiro destino, Bula. Estamos numa época bastante estranha, há quem diga que a guerra vai acabar, e de repente tudo parece virar-se do avesso, fala-se na morte de majores que estariam a negociar o fim da guerra. Começam os patrulhamentos e as colunas de abastecimento. E saltamos deste possível romance para as cogitações do autor que entende dever explicar ao leitor um pouco da história de Portugal e o que é que África representou para a Monarquia, Primeira República e Estado Novo. Faz considerações altamente críticas sobre o que vê na Guiné. Um exemplo: “Fora de Bissau e um pouco por toda a Guiné, havia um corpo de milícias, uma espécie de exército de segundo plano, mal equipado e mal armado que colaborava com o exército regular, fazendo patrulhas de reconhecimento, fornecia guias para as operações cujos objetivos eram difíceis de encontrar e serviam de intérpretes dos vários dialetos existentes. Estes homens do povo recebiam um salário e isso representava uma melhoria nas condições de vida, pois nas tabancas não havia qualquer emprego e só as mulheres trabalhavam na agricultura. A existência deste corpo de milícias parecia não incomodar o PAIGC”. Oxalá alguém, entretanto, tenha explicado a Santos Silva o que eram efetivamente as milícias.

Uma outra preocupação do autor é uma Guiné que dispõe de uma classe média, gente que até vive confortavelmente na guerra, são sobretudo cabo-verdianos e comerciantes de países limítrofes. E soltamos de novo para o romance, a unidade militar de que fazem parte António, Augusto e Domingos Djaló é encaminhada para as obras da estrada que vão de Mansabá a Farim. António, que é o alferes, fala aos seus homens, explica-lhes o intuito da missão: “Na tática militar encetada pelo nosso General Spínola, a construção de estradas tem prioridade e esta assume particular importância; depois de pronta, permite a ligação asfaltada de Bissau a Farim. Até ao final da construção, cabe-nos organizar os camiões que transportam os trabalhadores nativos que tratam de desmatar as margens da estrada”. O alferes dá ainda mais informações: de como picar para evitar as minas sobretudo as antipessoais, os horários, a relação de combate. Domingos Djaló vai ensinando crioulo aos seus camaradas. Augusto entretanto vai a Bissau a uma consulta e começa a questionar-se: o que é que eu faço aqui? Sente-se indesejado, lança um piropo a uma miúda e o namorado disse-lhe: "não estás na tua terra e aqui só atrapalhais, ide para a vossa terra”. O PAIGC dá sinal de vida ali muito próximo do K3 e ficamos a saber uma coisa do outro mundo: "o K3 foi implantado para interromper um corredor usado pelo PAIGC, trilho que dá acesso ao interior da selva, local onde se diz que Nino Vieira tem o seu estado-maior na região do Morés”. O autor por vezes filosofa: “Quando se pensa numa guerra, quando se fala de uma guerra, quem fala e quem ouve, pensa apenas em pessoas. Mas uma guerra não envolve apenas pessoas. Envolve mais, muito mais; envolve pessoas, casas, árvores, rios, mares e muito mais. E animais”. E, mais adiante: “Na guerra nem tudo é trágico, na tristeza, no desânimo e no medo também há lugar para a alegria, divertimento e para a esperança. Sem isso, a guerra transformava-se num manicómio e o cérebro na sua imensa e ainda desconhecida capacidade não permite que tal aconteça”.

Felupes de Cassolol, fotografia tirada da revista “O Mundo Português”, Abril de 1936

Besna Baldé de Mansabá merece destaque, jogou no Futebol, Clube do Porto, na Académica de Coimbra, no Barreirense, no Tavira, no Chaves, no Santo Tirso. Defende uma autonomia regional sob bandeira portuguesa, do género Açores e Madeira (coisa incrível, trata-se de matéria que só veio a debate público depois do 25 de abril), uma região autónoma governada por gente da Guiné. E há alguns amores de permeio, como os de Maria Sofia Elisabete Pereira da Silva, professora, filha do Reitor da Universidade de Bissau, que anda em derriço com Djaló. Esporadicamente, os rancores aos cabo-verdianos imiscuem-se no texto, e como aparecem desaparecem. António é vítima de uma mina anticarro na estrada de Mansabá-Farim, em abril de 71, felizmente sem consequências graves. Em junho marcham para o sul, vão para Gadamael-Porto, desembarcam em Cacine e depois fazem a viagem pelo rio. São referidos os ataques a Guileje, os patrulhamentos. Temos depois uma operação de reconhecimento à região de Sangonhá, Mamadu Segunda é o guia da operação. Atacados por uma força do PAIGC, é o grupo de Mamadu quem prontamente reage, esse grupo terá dois mortos e três feridos. E regressam ao Cumeré, e depois o Carvalho Araújo deixa-os no Cais da Rocha de Conde de Óbidos, em 2 de janeiro de 1972. Vão até Lamego, fazer o espólio, noite alta, com as estradas cheias de neve metem-se a caminho do Porto, separam-se em S. Bento, é um momento de recordar que ao autor também é poeta: “Será que esta viagem tem regresso?/ Que o cais de chegada é o de partida?/ Que as águas que navego e não conheço,/ são águas conhecidas por viagem tida”.

Santos Silva polvilha a sua obra de ilustrações e notas históricas e recolhe testemunhos de alguns dos seus camaradas.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15477: Notas de leitura (787): "Nos Celeiros da Guiné - Memórias de Guerra", de Albano Dias Costa e José Jorge de Campos Sá-Chaves, ex-alf mil da CCAÇ 413 (1963/65)