Mostrar mensagens com a etiqueta seminário. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta seminário. Mostrar todas as mensagens

sábado, 28 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25989: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (10): evacuado numa maca, no Dakota, para Lisboa, com mais 4 feridos graves, ao lado de umas senhoras de "altas patentes", que não nos nos ligaram puto...

 

Interior de um Douglas C-47 Skytrain ou Dakota. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.



1. Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o A. Marques Lopes escreveu, nomeadamennte no seu livro de memórias "Cabra Cega" (*).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 9 de agosto de 2019.
  
Aqui a narrativa é já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes (pp.  439-442).



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).



Evacuado numa maca, no Dakota, para Lisboa, com mais 4 feridos  graves, ao lado de umas senhoras de "altas patentes", que não nos nos ligaram puto... 
 

por A. Marques Lopes (1944-2024)


Três dias depois de ter chegado ao hospital  [HM 241, em Bissau ], passou pela minha cama um velho amigo e conhecido. Era o Herculano Carvalho, do mesmo pelotão que eu nos primeiros meses do COM.

− O que é que te aconteceu?  −  perguntou-me.

Expliquei-lhe que tinha ido ao ar com uma mina. O Herculano disse-me que estava ali porque tinham descoberto que era hemofílico e que no dia seguinte seria evacuado para a metrópole.

 E não descobriram isso logo quando foste para os comandos?

 − Parece que não sabes como é. Alguma vez os gajos se preocupam com isso? Lembras-te bem que, em Mafra, além da injeção cavalar, que diziam dar para todos os males, não se preocupavam em saber mais nada. Menos, é claro, em ver aqueles que tinham cunhas para os serviços auxiliares. Serves para o que queremos e toca a andar, era assim.

 
− É verdade, eu sei bem. Mas como é que descobriram isso agora?

−  Por acaso, foi sorte. Tive um pequeno ferimento aqui na perna durante uma operação  
− arregaçou um bocado a calça e mostrou a perna direita ligada.  − O enfermeiro viu que o sangue não estancava e topou logo.

A conversa derivou. Contei-lhe a história toda da mina e por onde andara e ele contou-me do Cantanhez onde acabara por ser ferido.

Ele foi no dia seguinte e eu foi no fim dessa semana evacuado para o HMP , para Lisboa.

Fui só com as calças e uma camisa, era o que tinha quando rebentara a mina. Nunca me lembrara quando estava a comprimidos mas ocorreu-me quando estava a entrar para o Dakota.

− Eu tinha uma mala…

 
− Não há mala nenhuma  −  disse-me um dos pilotos.

Estava a ver. O pessoal da companhia nunca mais lhe tinha ligado depois daquilo. Podia ter-lhes exigido que lhe mandassem a mala que tinha debaixo da cama lá do quarto. Eram coisas pessoais que lá estavam mas era sobretudo o livro da escola do PAIGC e a  Kalashnikov da professora que queria ter. Eram recordações minhas que iriam ser agarradas por um outro qualquer. Fiquei lixado.

Mais fiquei quando já estava dentro do avião. Iam também outros feridos. Os bancos que estavam à frente, logo após a cabina dos pilotos, foram ocupados por umas senhoras, não soube quem eram, mas os cinco feridos foram esticados em macas no corredor. Ainda disse que não estava assim tão mal e que podia ir sentado. Que não, disseram-me, tinha de ir numa maca. Quando o avião já estava alto,  comecei a deitar sangue pelos ouvidos, era o meu ferimento principal.

Ninguém me 
ligou, teve que se ir limpando com um lenço.

As mulheres cavaquearam durante a viagem. Por entre os roncos do avião uma dizia que o meu marido é isto, outra que o marido tinha feito aquilo, outra que o dela comandava o batalhão tal, uma loura gabava-se de o marido ser amigo do governador [gen Arnaldo Schulz].

Eu não ouvia quase nada, ia limpando o sangue que me pingava dos ouvidos. O que estava ao meu lado, o que tinha ficado sem uma perna numa armadilha, é que comentava o que elas diziam. Cada um deles também disse porque é que vinha ali. Esforcei-me por ouvi-los. Era o que tinha caído na armadilha, o que estava mais perto de mim, um que tinha apanhado uma roquetada e estava todo ligado, um que tinha apanhado bilharziose, um que tinha apanhado uma rajada que lhe fodera um pulmão e o quinto ia com uma hepatite aguda. No meio deles, vi que ainda era o que estava melhor.

Contavam o seu caso em voz alta mas as senhoras nunca viraram a cara, não se perturbaram. Aquele era outro mundo, estranho àquele das boas relações em que elas se moviam. Ainda pensei que lhes ficaria bem chegaram-se ao pé das macas para saber o que cada um tinha e desejarem melhoras. Mas nem isso, não se interessaram puto. Elas, senhoras das altas patentes, iam agora meter-se com a soldadesca... Nem pensar, até parecia mal ao seu estatuto.

Ao fim de cinco ou seis horas, não soube bem, não me deu para contar o tempo, chegámos ao aeroporto militar de Las Palmas. Foi o que disse um piloto, e que quem quisesse podia sair para descontrair.

– Empresta-me a tua perna 
  rosnou o que caíra na armadilha.

Deles só eu é que saí. As mulheres também, mas não soube para onde foram. Estava cheio de fome porque não lhes tinham dado nada, nem as queridas rações de combate. Vi vários militares e olhei para uma porta que me pareceu a entrada para um bar. Fui até lá e entrei.

Olharam para mim mas ninguém pareceu espantado, já deviam estar habituados a estas visitas. Pedi uma cerveja e uma sandes. Devorei-as, era a fome. No fim fiquei atrapalhado porque dei que não tinha dinheiro. Nem escudos, nem pesos da Guiné, muito menos pesetas. 

Baixei a cabeça e fui-me afastando devagar até à porta. Ninguém reparou em mim, pareceram distraídos. Já fora, zarpei o mais rápido que pude para o Dakota. Já esticado na maca e enquanto o avião arrancava para Lisboa, ainda pensava, na dúvida, se fora eu que tinha sido esperto ou se tinham sido eles que, compassivos, me deixaram sair sem me agarrarem para pagar.

Ao fim de não soube quantas horas chegámos a Figo Maduro. Os meus pais e a minha irmã, bem como familiares dos outros feridos, estavam lá à espera. Só lhes tinham dito que vinham evacuados, não como vinham. 

Expetativa geral, angústia nos olhares e corações de os poder ver sem pernas ou sem braços, cegos ou meio mortos. Foram lágrimas e abraços aos que conseguiam estar de pé, beijos e mais lágrimas para os que continuavam nas macas. Os meus ficaram contentes por me verem de pé. Durou pouco tempo o encontro porque nos meteram, quase logo, em ambulâncias em direcção à Estrela.

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
______________

Nota do editor:

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25812: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte III: mortos em Angola




Quadro 1 - Lista d0s mortos de Fafe no TO de Angola (1961/1975) (pp.  44/45)






SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.



1. Estamos qa reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor),   excertos do  extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva.  Esta III parte é dedicada a Angola.


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  - Parte III (pp. 44-57)

por  Jaime Silva



(...) 2.1 Quadro-referência com a identificação dos nomes dos militares de Fafe mortos em cada uma das três Províncias Ultramarinas

A. ANGOLA > QUADRO 1 – Lista dos mortos de Fafe em Angola (vd. acima)


(...) Ao analisarmos o quadro acima,  com a identificação dos militares de Fafe tombados em Angola, podemos verificar que em Angola morreram dezasseis militares,  naturais de Fafe, Como causas da morte e usando a terminologia do Arquivo Geral do Exército, sabemos que tombaram por:

  • “Ferimento em combate com armadilha”, um;
  • “Ferimento em combate com mina anticarro”, um;
  • “Ferimentos em combate”, três;
  • “Combate”, dois;
  • “Acidente de viação”, três;
  • “Acidente – afogamento”, dois;
  • “Acidente com arma de fogo”, dois;
  • “Acidente por outros motivos”, um;
  • “Doença”, um.


Resumindo: 7 em combate; acidente, 8; doença, 1,

Quanto ao posto e especialidade, podemos verificar:

  • em primeiro lugar, que doze eram soldados, tendo as seguintes especialidades: Atiradores, três; Apontador de Morteiro, um; Caçador Especial, um; Radiotelegrafista, um; PM – Polícia Militar, um; Condutor auto, um; Reconhecimento e Informações, um;
  • existem três sem anotação da sua especialidade e, destes, um é de uma Companhia de Caçadores (CCAÇ) e dois de Companhias de Artilharia (CART);
  • em segundo lugar, três tinham o posto de 1.º cabo (um maqueiro e dois atiradores) e, em terceiro, um era oficial miliciano com a patente de alferes.

Dois militares ficaram sepultados em Angola nos cemitérios locais: 

  • soldado atirador Artur de Sousa, natural de Ardegão, pertencente ao BCAÇ 92 e à CCAÇ  94, falecido em 3 junho de 1961 em consequência de acidente com arma de fogo, ficando sepultado no adro da Igreja de Sanza Pombo (Norte);
  • e o soldado atirador Alberto Moniz Nogueira, do BCAÇ 1863 e da CCAÇ 1450, natural de Arões S. Romão, falecido em 16 de dezembro de 1966, em consequência de acidente de viação no destacamento de Messibi (Leste) e está sepultado no cemitério do Luso.

O primeiro militar de Fafe a tombar em Angola e, também, na Guerra Colonial foi o soldado atirador Artur de Sousa, natural de Ardegão. A última vítima da guerra em Angola e, também, o último a morrer na Guerra Colonial  (...)  foi o 1.º Cabo José Pereira Dias, natural de Armil, onde está sepultado. (op cit., pp. 46/47).


  • 1.º Cabo João Pedro Alexandre,  nº mec. 12804373 (op cit., pp. 47-52)


(...) A morte ocorre já depois de se ter dado a Revolução de Abril em 1974. Foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas em 6 de maio de 1974 (...)  e é nomeado em agosto para servir no Ultramar com destino à ComAgr  6001, vindo a embarcar em Lisboa a 11 de dezembro de 1974 e a desembarcar em Luanda a 12 do mesmo mês. 

Uma vez em Angola, é destacado para prestar serviço no Comando de Agrupamento  6001/74, em Cabinda, onde veio a falecer a 27 de setembro de 1975, em consequência de acidente de viação.

Do seu processo individual, que consultei no Arquivo do Exército por deferência do seu irmão, que agradeço, transcrevo a participação do acidente feita pelo 1.º cabo João Pedro Alexandre n.º 12804373 e assinada por este e pelo 1.º cabo João Pedrosa Alexandre:


Comando Territorial de Cabinda

Exmo Senhor Comandante Militar

Participo a V. Exa que hoje pelas 12h00, quando seguia na viatura “UNIMOG” N.º MG-27-89 conduzida pelo soldado condutor Auto N.º 03225674 António Gonçalves Capelas, do CMD. AGR. 6001/74, e após a viatura ter desfeito uma curva pouco acentuada, à saída da cidade de Cabinda, guinou em direção à berma da estrada do lado direito, não conseguindo o condutor trazê-la ao sentido de origem apesar de todos os esforços que fez para isso. Em consequência da posição em que ficou a viatura, isto é, com as rodas do lado direito a um nível mais baixo do que as do lado esquerdo os caixotes e os ocupantes que seguiam na carroceria caíram da viatura tendo um dos caixotes atingido gravemente o 1.º cabo NM 026905774 José Pereira Dias do CMD AGR N.º 6001/74. Verificaram-se ainda ferimentos ligeiros nos seguintes militares:

1.º  Cabo NM 12804373 João Pedrosa Alexandre

1.º Cabo NM 14105574 António Fernandes Santos Silva
Soldado NM14105574 António Gonçalves da Silva

Todos deste CMD AGR N.º 6001/74. A viatura não sofreu danos materiais.

São testemunhas: - 1.ºCabo NM 14105574 António Fernandes Santos Silva e o Soldado NM14105574 António Gonçalves da Silva.

Quartel em Cabinda, 27 de Setembro de 1975.
(pág. 48)


Ainda do seu processo individual e referente ao acidente, transcrevo da “Informação n.º 17 / 77”, emanada do Quartel-general da RM (Região Militar) de Lisboa em 20 de janeiro de 1977, assinada pelo Chefe de Serviço de Justiça  ten cor Alfredo Marques de Abreu, o seguinte:

(...) No ponto - 02. Da análise do processo verifica-se que:

a) No acidente contraiu as lesões descritas das quais resultou a morte no mesmo dia.

b) O acidente ocorreu sem culpabilidade do sinistrado.

Ponto - 03. Em face dos elementos existentes no processo é este SJ (serviço de justiça) do parecer que:

a) O acidente deve ser considerado resultante do exercício das suas funções e por motivo do seu desempenho
.  (pág. 48).

“A certidão de Narrativa Completa de Registo de Óbito”,  passada pela Conservatória do Registo Civil de Cabinda,  da Província de Angola,  regista que faleceu no Hospital Regional de Cabinda de "traumatismo toráxico".

  • Onde está o Costa ? (op. cit., pp. 49-52)

Militares casados antes de serem incorporados no serviço militar, existe um na relação dos mortos em Angola. Trata-se do soldado António Matos Costa, que pertenceu à CCAÇ 1783, sediada no destacamento de Magina e integrada no BCAÇ 1930, do qual também fazia parte o fafense furriel António Amável Marinho Mota, da Companhia  1782, destacada no Luvo.

Tenho em meu poder três documentos escritos e o testemunho do Furriel Mota que identificam as causas da morte do Costa, e um deles contradiz os outros quanto às causas da morte:

O primeiro, com a relação dos militares de Fafe tombados em Angola e cedido pelo Arquivo Geral do Exército, diz que o António Matos Costa é filho de Bento Jorge da Costa e Isaura de Matos, natural da freguesia de Vila Cova, casado com Florentina Pereira Rodrigues e pai de uma menina. 

Foi soldado com a especialidade de atirador a quem foi atribuído o Número Mecanográfico 2469367, pertenceu à CCAÇ 1783, integrada no BCAÇ 1930, sendo a Unidade Mobilizadora o RI 2 (Abrantes), que faleceu a 1 de junho de 1968 em Magina e cujas causas da morte são ferimentos em combate (armadilha). Está sepultado no cemitério de Queimadela.

O segundo documento está arquivado na Delegação de Fafe da APGV e foi-me cedida cópia, para este efeito, pelo seu presidente Manuel Ribeiro. Trata-se do “Processo de Trasladação” onde refere que a “Causa da Morte” foi por Acidente com arma de fogo. 

O documento atesta, ainda, que o Governo do Distrito do Zaire, com sede em S. Salvador e através do Alvará n.º22/G/968, datado de 17 de junho de 1968, declara: 

“Hei por bem autorizar a trasladação solicitada pelo Comando de Setor F para se proceder à Trasladação de São Salvador para um cemitério da Metrópole, do corpo de que foi sodado António Matos Costa, cuja urna se encontra em São Salvador. O Encarregado do Governo, Manuel Dias Peão." (op. cit, pág. 49)

O terceiro documento é um livro extraordinário escrito pelo Capelão do Batalhão, Padre Manuel Leal Fernandes, intitulado: Angola - As Brumas do Mato. Foi publicado em 1977 pela Livraria Telos Editora e foi-me oferecido pelo meu amigo António Mota, então furriel e camarada de Batalhão do António Costa. Descreve os momentos mais marcantes e dramáticos do BCAÇ 1930 durante a sua comissão entre 29 de novembro de 1967 e 27 de janeiro de 1970.

Durante a minha comissão vi, conheci e testemunhei no Norte e Leste de Angola os sacrifícios, as dificuldades de sobrevivência a que foram sujeitos muitos dos meus camaradas das Companhias do Exército destacados em locais recônditos, longe de tudo e onde, por vezes, foram sujeitos ao extremo da falta de apoio militar vendo, por isso, morrer os seus camaradas por falta de apoio aéreo para evacuar os feridos, como aconteceu com o meu primo Arsénio no Norte, e de mantimentos, passando fome.

O Padre Manuel Leal Fernandes, através dos depoimentos dos seus camaradas, transcorrido já mais de quarto de século sobre os acontecimentos vividos, retrata com uma grande seriedade e grandeza, que deve ser enaltecida, os momentos mais marcantes de sobrevivência de um grupo de homens que viveram durante dois anos em destacamentos construídos e situados no meio do mato e onde nada existia. No meio do nada, como escreve. É um excelente livro de apoio pedagógico para a disciplina de História nas escolas e para aqueles que querem saber a verdade dos factos.

O fafense António Costa fez parte do grupo da Companhia que não regressou vivo. Nas páginas 171 a 177, o autor dedica um capítulo ao António Costa, intitulado: Onde está o Costa, e no qual descreve a circunstância da sua morte.

Considero-o um documento histórico muito importante, porque, para além de nos dar a conhecer as circunstâncias da tragédia da morte do António Costa, permite-nos, também, ficar a saber e compreender o modo como se defendiam os aquartelamentos dos ataques do inimigo e como se colocava o sistema de minas no terreno.

Por isso, com esse objetivo e com a devida vénia, tomo a liberdade de transcrever e sintetizar algumas partes do seu texto:

Pelas 4 da manhã de 1 de junho de 1968, tinham rebentado duas armadilhas, habitualmente dispostas lá em cima, no morro, para defesa periférica do aquartelamento. O Comandante da companhia destaca o furriel de minas e armadilhas Aníbal Martins de Matos para ir lá acima ver o que se passou. O local ficava a uns 200-300 metros e o furriel Matos faz-se acompanhar da secção do furriel Figueira que estava de baixa, constituída por dez homens e da qual fazia parte o Costa. 

Chegados ao local o furriel lentamente, com redobrada cautela começa a inspeção das armadilhas. Faltava-me ver ainda duas, continua o furriel Matos – e dou com o Costa junto do meu ombro esquerdo. O furriel retirou-o do local e colocou-o a uma distância de segurança fora da zona armadilhada, continuando a inspeção. Voltei atrás, à penúltima armadilha. Eu tinha-as colocado de sete em sete passos. Como estavam numa zona lateral, nunca havia o perigo de eu tropeçar nelas. Elas estavam colocadas no meu lado direito e mesmo que eu desse um passo mais alargado não havia problema. Ao fim de sete passos, mais ou menos centímetros, lá estaria uma. Tinha visto já a penúltima armadilha e ia ao encontro da última, teria eu dado os dois primeiros passos e de repente há um rebentamento, uma explosão. (…) 

Com o impacto da explosão da armadilha o furriel Matos fica caído enfiado no capim. O Paiva levou uns estilhaços e o 1.º cabo Melo apanhou com uns estilhaços nas pernas e na cara. Quando recuperei a mente – continuou o furriel Matos (…) gritei para que ninguém se mexesse. Tive medo que entrassem pela zona perigosa e houvesse mais problemas (…). 

Onde está o Costa? (…) Caído no chão, todo esfacelado, barriga aberta, intestinos saídos, encharcado em sangue, o Costa esvai-se. Era a luta entre a vida e a morte (…). A avaliar pela posição em que ficou – deve-se ter inclinado sobre ela, e ao roçar de leve no capim ou no arame de tropeçar, tão sensível, acionou involuntariamente a sua explosão. (...)

Pela minha experiência pessoal, não resisto em destacar um comentário do furriel Matos, responsável e comandante do grupo, abalado pela morte do Costa, quando afirmou: 

"Cheguei ao ponto de começar a dizer que sou eu que o tinha matado. É que as armadilhas tinham sido feitas por mim, eu sou que as tinha montado e nelas morria um camarada me”. (…) De maneira nenhuma, Matos – dizia-lhe o Cap. Vilas Boas. Nem pense nisso. Você não matou ninguém. Tudo isto acontece no cumprimento da nossa missão."

Só quem sentiu a responsabilidade de comandar homens num teatro de guerra, sendo responsável pela vida dos que comanda, também seus amigos, perceberá a angústia do furriel Matos. Eu compreendo-o muito bem. Nos Montes Mil e Vinte, não muito longe do local onde o Costa tombou, também vivi um momento semelhante com a morte de um soldado do meu pelotão numa operação precedida do lançamento de bombas de napalm pelos aviões da Força Aérea. Com toda a honestidade o digo, ainda hoje revejo o assalto ao acampamento, os tiros, o local, e interrogo-me sobre o que poderia ter mudado para evitar a morte do meu camarada!...

Finalmente, o testemunho do furriel Mota do mesmo Batalhão e que deu a recruta e a especialidade ao Costa, na Metrópole. Apesar de não pertencer à mesma Companhia em Angola, diz que se encontrava frequentemente com o Costa no cruzamento das picadas do Lucuso, local onde a coluna de viaturas das três Companhias que constituíam o Batalhão se encontrava às quartas-feiras para, em conjunto, seguirem para a sede do Batalhão em S. Salvador, a cerca de noventa quilómetros, a fim de recolherem e transportar os mantimentos frescos chegados de Luanda no avião Nord Atlas. Tinham-se encontrado dias antes do acidente nesse local e, por ironia do destino, é na coluna que o furriel Mota apanha boleia para Luanda para vir de férias ao “Puto” que é transportada a urna com os restos mortais do conterrâneo e amigo António Costa.

Perguntei ao António Mota se sabia a razão da contradição entre os documentos quanto às causas da morte do António Costa.

Disse que esse procedimento era normal e que o faziam por causa das famílias. Segundo ele, na altura da guerra era mais fácil para a família aceitar um acidente provocado por negligência do que morrer com uma mina e ficar todo esfacelado. Disse-lhe que não concordava, se bem que nunca tenha vivido durante a minha comissão uma situação idêntica.

Realçou que a guerra do seu batalhão não se comparou a nenhuma outra. Foi a guerra deles. Lembrou que, quando chegaram à entrada do aquartelamento, se depararam com uma placa que dizia: nunca dês o último cigarro. Nunca bebas o último gole de água. Nem nunca gastes a última bala. Os irmãos não se escolhem. Os amigos sim. A partir daqui começa a guerra.


  • Alferes mil Venâncio Marinho da Cruz (pp.52-57)


O Venâncio Marinho da Cruz  (...)  foi o primeiro oficial miliciano fafense a morrer na guerra. Consultei em Lisboa, no Arquivo Geral do Exército, o seu processo individual por deferência da família, que agradeço. 

Apesar de não ter nascido em Fafe, o alferes Cruz quando foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas já morava com a família em Seidões, onde está sepultado, e o seu nome consta, também, no Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial, em Fafe. 

Nasceu em 25 de janeiro de 1941, na freguesia de Rego, concelho de Celorico de Basto. Frequentou o Seminário Conciliar de Braga. A 4 de maio de 1965 é incorporado na EPI (Escola Prática de Infantaria em Mafra), onde termina o 1.º Ciclo do COM (Curso de Oficiais Milicianos) a 5 de agosto e, aí, jura Bandeira a 4 de agosto. 

A 8 de agosto é colocado na EPC (Escola Prática de Cavalaria) para frequentar o 2.º Ciclo do COM na especialidade de Atirador de Cavalaria, terminado a 30 de outubro. A 1 de novembro de 1965 é transferido para o RC3 (Estremoz) e promovido ao Posto de Asp. Of. Mil. de CAV. 

 No seu processo consta que a 9 de fevereiro de 1966 pelas 14h30 "caiu durante o tempo de instrução no RC 7 (Lisboa), batendo com a cabeça no solo, tendo ficado inconsciente, sendo transferido para o Hospital Militar de Lisboa. São testemunhas os 1.º cabo mil 6953364 Regala e Leal n.º 7939664". Assina a participação o tenente cav João Nunes e Sena.

No RC3, a sua Unidade Mobilizadora, é nomeado para servir no Ultramar nos termos da alínea c) do Art.º 3.º do Dec. Lei 42.937 de 22.4 1960, embarcando em Lisboa com destino à Região Militar de Angola no navio Niassa a 15 de abril de 1966, data em que é promovido a Alferes, e desembarca em Luanda a 26 do mesmo mês.

Em 5 de maio pelas 06h00, marchou em coluna auto do Centro Militar do Grafanil em Luanda para o estacionamento do BART  753, tendo feito a sua apresentação naquele local no mesmo dia pelas 11h00. Em 15.4.66 é colocado no RC 3”.

Em março de 1968 faz parte da CCAV 1537 pertencente ao BCAV  1883/RC 3, e na noite de 27 para 28 de março sofre, durante uma operação de combate, uma violenta emboscada, vindo a falecer em consequência dos ferimentos em combate.

Em todas as operações militares realizadas e após o regresso do mato, o comandante do grupo de combate tinha que fazer e entregar ao superior hierárquico um relatório circunstanciado das movimentações e ocorrências durante a operação.

Com a intenção de informar e dar a conhecer como funcionava a máquina administrativa militar durante a guerra nestas circunstâncias, transcrevo uma síntese do Relatório da Operação de Combate em que veio a falecer o Alf. Cruz, juntamente com o furriel mil cav  José Martins Cavaco e o soldado Manuel Caetano Nunes.

“Relatório Imediato da Acção N.º 1/68”

O relatório, datado às 15h00 de 30 de março de 1968, é assinado pelo Comandante da Companhia de Cavalaria 1537,  pertencente ao Batalhão de Cavalaria  1883, Capitão Graduado de Cavalaria João Manuel da Fonseca Nunes e Sena, estacionado no Luacano (Zona Militar Leste – Luso), do qual fazia parte o Destacamento de Lago Dilolo, sendo seu Comandante o alf Venâncio.

O Relatório “Imediato da Acção nº 1/68” é organizado ao longo de seis pontos:

1. Local e grupo data /hora em que teve lugar a acção

Lago Dilolo, 27 março 1968, com início às 21.00 horas.

2. Descrição da ação (síntese)


Em 27 de março de 1968 pelas 18.00 horas apareceu no Estacionamento da NT (nossas tropas) no Lago Dilolo um nativo, que informou o Comandante do Destacamento, Snr. Alf Mil, Cruz, que um grupo IN (inimigo / turras) tinha estado na “Embala” do Soba (chefe nativo da sanzala /aldeamento nativo) NHACHICULO, dizendo que iria nessa noite atacar o Estacionamento matando todos os soldados. 

Em face das declarações do nativo” o Alf Cruz organiza uma patrulha de 13 elementos e desloca-se na única viatura que tinha, um UNIMOG UN3, pelas 19.00 horas, com o objetivo de averiguar a informação. Chegado ao local indicado pelo nativo, que ficava a cerca de 3 Km do Estacionamento na Picada Dilolo – Luacano, faz uma batida nas imediações, não encontra ninguém, dando, por esse facto, ordem para regressar, pelas 20.30 horas. (…)

Quando regressava a patrulha e a cerca de 300 metros da Escola Lago Dilolo, no mesmo local onde em Abril de 1967 o IN já tinha feito uma emboscada às nossas tropas, o IN estimado entre 15 a 20 elementos desencadeou uma forte emboscada atirando uma granada de mão defensiva que rebentou à frente da viatura UN3 e imediatamente abrindo fogo com as armas automáticas, lançando granadas incendiárias que lançaram fogo à viatura cujo depósito de gasolina explodiu.

Logo nos primeiros tiros foram alvejados diversos elementos das NT, tendo o Furriel Martins Cavaco, sido atingido mortalmente e calcinado pelas chamas uma vez que foi o único que ficou dentro da viatura.

Neste momento o Alf Cruz, ao organizar NT para resistir ao IN dentro do capim, verifica que o Furriel está inanimado e a ser devorado pelas chamas em cima da viatura e volta para junto da viatura tentando puxá-lo para fora da viatura, ao mesmo tempo que o IN lança uma granada de mão incendiária para a picada tendo com o clarão detetado o Alferes, atingindo-o de imediato com 3 tiros no tórax. O Alferes ainda consegue dar ordens aos seus homens para tomarem conta das armas dos Soldados feridos, arrastando-se mortalmente ferido e sangrando abundantemente para o capim.

O IN continuou a flagelar as nossas tropas com armas automáticas e granadas, não retirando a algumas delas as cavilhas de segurança, aproveitando-se da claridade das chamas da viatura incendiada.

Como resultado imediato da emboscada, tinham ficado ilesos somente 3 soldados da Patrulha. É então que o Soldado Condutor Auto N.º 2491/65, António Nunes Soares, toma iniciativa com grande coragem e sangue frio de retirar da “Zona de morte” cinco dos seus camaradas gravemente feridos, recuperando as respetivas armas automáticas, e arrastá-los às costas para o meio do capim, salvando-os, assim, da morte certa. Vendo, ainda, que um IN tentava assaltar a viatura e capturar a arma do Furriel que ardia em chamas em cima da viatura, o Soldado Nunes corre para a viatura e tentou fazer fogo com a sua arma que se lhe encravou (…), carregou para cima do IN e com uma cronhada na cabeça do bandoleiro (turra) atirou com ele para o capim e recuperou a arma que o mesmo já segurava.

Quando chegou junto dos seus camaradas, Soldados 2714/65, Helder Martins e 692 /65 António José Brito Fadista, disse a este último que fosse a corta mato pedir socorro ao Estacionamento. Os dois soldados, Soares e Martins transportaram os feridos para uma mata próxima até que chegaram os reforços (9 homens) sob o comando do 1.º Cabo n.º 2649 /65, João António, continuando o IN a flagelar as nossas tropas.

Os quatro feridos mais graves foram transportados com a ajuda dos camaradas e dois soldados foram dados como desaparecidos. Estes, os soldados 2669/65 Manuel Gomes Pires e 2674 /65, Cândido de Sousa Mata Rosa que se encontravam feridos, arrastaram-se para o capim, tendo chegado pelos seus próprios meios às 6.00 horas do dia 28 ao Estacionamento, pelo que não foram encontrados no local e durante aquele tempo foram dados como desaparecidos.

É o 1.º Cabo auxiliar de Enfermeiro n.º 2723/65 Constantino António Teixeira que trata dos feridos, ao mesmo tempo que o IN continuava a flagelar o Estacionamento (00.00 horas, 00.45horas e 02.00 horas do dia 28 março de 1968.

Pelas 11.30 horas do dia 28 é evacuado por HELI para o Luacano o ferido que se encontrava em piores condições, o soldado 2646/65, Manuel Caetano Nunes, que, atingido por dois tiros, sangrava abundantemente, tendo vindo a falecer durante a evacuação Heli.


O relatório resume este ponto do seguinte modo:

MORTOS:

– Alferes Venâncio Cruz, Furriel José Cavaco e Soldado Manuel Nunes.

FERIDOS GRAVEMENTE:

– 1.º Cabo n.º 2640/65 Manuel Paulo Gomes da Silva, Soldado 2683/65 Manuel Francisco Mourão Gaspar, Soldado 2703/65 Fernando Pereira de Carvalho e Sodado 2709/65 Helder de Sousa Cristóvão.

FERIDOS:

Soldado 2669 Manuel Gomes Pires e Soldado 2674/65 Cândido de Sousa Mata Rosa.

3. Apoio aéreo

Em 28 de março às 09.00 horas começaram a ser feitas evacuações de Héli de Lago Dilolo – Luacano e com dois DO-27 de Luacano para o Luso.

4. Transmissões

O destacamento da NT do Dilolo esteve em contínua ligação com a CCAV  1537 na rede AM NA /GRC – 9, muito embora fosse difícil a ligação devido às más condições atmosféricas.

5. Resumo dos resultados


a) Causadas pelo In:

- Mortos ………………. 3 (1 Oficial, 1 Sargento e 1 Praça)

- Feridos graves……….4

- Feridos ligeiros ……. 2

Destruída pelo fogo a Viatura UNIMOG UN3 – MX-O1-55

- Carbonizada a Espingarda Mauser n.º 9961

b) Obtidas pelas NT:

- Mortos prováveis …. 2

- Feridos não controlados. … Alguns

- Gr. M. Def. F-1 …......2 e outra destruída.

- Invólucros …..........127


6 . Conclusões, ensinamentos, diversos

a. Conclusões e ensinamentos

A emboscada sofrida pelas NT no mesmo local que em abril de 1967 as NT foram emboscadas, revela que o IN (MPLA) regressou, como vinha desde há muito referido por este Comando, à Zona do Dilolo moralizado e fortemente armado e com um efetivo bastante considerável (…).


b. Diversos

Citações


O relatório realça a ação em combate dos principais intervenientes na operação:

Alferes Venâncio Cruz, a quem será atribuída uma Cruz de Guerra, a título póstumo, o 1.º cabo auxiliar de enfermeiro Constantino António Teixeira, 1.º  cabo João António, os soldados António Nunes Soares e os soldados Helder Martins e António José Brito Fadista.

A todos é realçado o exemplo da sua coragem: 

(…) "Deu um exemplo frisante de valentia, sangue frio, qualidades de comando e desprezo pelo perigo debaixo do fogo do IN que mereceu a geral estima e admiração dos seus camaradas presentes que contribuiu para o prestígio do Exército."

Transcrevo, também, o louvor atribuído ao Alferes Cruz, publicado na O.S. (ordem de serviço) N. 226 do RC3:

Nesta ação, comandando uma patrulha de pequeno efetivo e tendo a maioria dos seus homens sido atingidos aos primeiros tiros, deu rapidamente as ordens para a reação e vendo que em cima da viatura que os transportava, e que estava incendiada jazia um seu subordinado que começava a ser devorado pelas chamas, voltou para junto daquela e, não só, indiferente ao fogo nutrido do inimigo, tentou puxar o corpo, quando descoberto no meio da picada e iluminado pelo clarão de uma granada incendiária foi mortalmente atingido por uma rajada do inimigo. 

Logo que se sentiu ferido, o Alferes Cruz incitou os seus homens para o combate, recomendou-lhes que cuidassem das armas dos seus camaradas feridos e, sangrando abundantemente, arrastou-se para o capim onde veio a falecer. A admirável valentia deste oficial e o excelso altruísmo e rara abnegação que o levaram, conscientemente a sacrificar a vida por um seu subordinado, são paradigma das mais acrisoladas virtudes militares, causam o comovido orgulho dos seus camaradas de armas, contribuem para a Glória do Exército que devotamente serviu e honraram a Pátria. Morto em combate em 27.3.1968.

Louvado por despacho de 6 maio de 1968 de Sua Ex.ª o General Comandante da RMA, por proposta do Exmo comandante da ZILESTE “pela maneira brilhante esforçada e aguerrida como comandou a sua equipa.

Condecorado com a medalha de Prata de Valor Militar com Palma, a título póstumo nos termos do Art. 7.º, com referência ao primeiro do Art.51.º do Regulamento da Medalha Militar, de 28 de maio de 1946, pelas suas extraordinárias qualidades de coragem, abnegação e camaradagem demonstradas
(Fim do relatório) (op. cit. 53-57).

Como nota, gostaria de salientar que o soldado Joaquim Augusto Alves, sepultado no cemitério de Antime, não consta desta lista em virtude de ser natural do concelho de Cabeceiras de Basto, apesar de já estar a morar em Antime com os seus pais na altura da sua incorporação militar.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos:  LG)



Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. Seixal, Lourinhã, 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 86 referências no nosso blogue.

_____________

domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25784: Antologia (98): A ida para o seminário de Lamego, em 1918 (Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)


Miguel Torga (1907-1995). Foto: Adapt.
de Wikimedia Commons 
(com a devida vénia...)

1. Miguel Torga (pseudónimo literário de Adolfo Correia Rocha) nasceu em 1907 em São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, filho de camponeses. Era médico. E morrerá em 1995, em Coimbra aos 87 anos. É um dos grandes escritores da Língua Portuguesa. Prémio Camões (1989).



Em 1917, fez, com distinção, o exame da instrução primária,na escola de Sabrosa. O professor, o "senhor Botelho" (personagem de "A Criação do Mundo") tem pena que o seu aluno não possa prosseguir os estudos no liceu. O pai não vê nenhuma saída para o filho, a não ser o seminário ou o Brasil. A mãe, que não acredita na vocação do filho, manda-o para o Porto, para servir como criado numa casa rica. Revoltado, fica lá pouco tempo.

Em tempos de anticlericalismo, consegue entrar no seminário de Lamego, em 1918, com uma uma recomendação do padre da aldeia. Perde a fé, sai ao fim de um ano. "A passagem por Lamego, como dirá mais tarde no Diário, foi decisiva; aí passou 'um dos anos cruciais' da sua 'vida de menino'. A problemática religiosa irá ocupar na obra de Miguel Torga um lugar digno de registo".





2. Do livro "A Criação do Mundo" (2000) (que o Miguel Torga começou a escrever, como romance autobiográfica, em meados dos anos 30), vamos publicar, com a devida vénia, três pequenos excertos relativos à sua ida para (e os seus primeiros tempos em) o seminário de Lamego, em 1918. É uma descrição antológica, e nomeadamente  a viagem de Agarez (nome ficcionado de São Martinho de Anta, terra natal do escritor) a Lamego.



A ida para o seminário de Lamego, em 1918

(Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)



[…] Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar o meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, que visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.

Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada.. Gostava, gostava, de me ver professor,  ou médico, ou advogado.. Mas, nicles,  faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que  talvez pudesse ser. Se arranjasse a maneira  de meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...

O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos, que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados  à terra, a embrutecer,  ou eram arrebanhados pela  Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.

– É o que terá mais certo...  concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu. [pág. 40]

[…] Ia na frente, de fato preto, montado na jumenta, a segurar o baú de roupa que levava adiante de mim. Meu Pai e minha Mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas, e ela de colchão e cobertores à cabeça. Assim percorremos as seis léguas que vão de Agarez a Lamego, pelo caminho velho. Senhora da Guia, Senhor do Bom Caminho, Senhor da Boa Morte, Vila Seca, Poiares, Régua… De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava , e via nela apenas a minha sombra. Papa-hóstias, como dissera o senhor Botelho... Era tudo o que eu poderia vir a ser na vida.

Recebeu-nos no pátio da casa do senhor cónego Faria, a quem íamos dirigidos, um sacerdote novo e magricela, que mais tarde vim a saber que se chamava padre Monteiro. Meus Pais cumprimentaram-no respeitosamente, mas, em vez de lhes seguir o exemplo, fiquei ostensivamente calado. O desespero que sentira toda a viagem transformara-se numa raiva cega, que me estrangulava a voz. Meu Pai  reparou na má criação, repreendei-me. Lá arranjei fala e  gaguejei:

– O senhor passou bem ?

O sujeito olhou-me de esguelha, disse que sim,  e perguntou se eu era piedoso. Ao que o meu o Pai respondeu solícito que, quanto a isso... Além de ser bom rapaz  e muito inteligente.

Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo. 

Por fim, o homem deu-nos um  bilhete para irmos entregar  ao número quarenta e dois de uma rua assim, quem subia, à esquerda.

Lá fomos, e lá fiquei.

Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços da escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.

Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os. Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.

Dormi mal. Pela manhã, o prefeito mandou-me rapar o cabelo à escovinha. Depois fui submetido a um rigoroso inventário, que escancarou à luz do sol os meus haveres materiais e espirituais. Fiquei no primeiro ano.

O nosso vigilante chamava-se senhor Ramos. Estava no fim do curso e namorava a filha do dono da casa, que tinha alfaiataria no rés-do-chão.  A República tomara conta do edifício do seminário e transformara-o em quartel. Por isso víviamos em  grupos de dez e doze, espalhados pela cidade, comandados por um  mais velho, e íamos às aulas à residência dos professores.

No dormitório havia apenas um bacio para cada duas camas. O que me pertencia ficava debaixo da do Arménio que, quando eu acordava, já o tinha cheio. O recurso, claro, era ir à varanda. A primeira vez que  tal me aconteceu, fiquei aflito. Quem é que  se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas,  de fachada imponente e brasão coberto de luto, ali a ver-nos ? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira. [pp. 53/55]

[…] De novo no seminário, agarrei-me ao estudo com unhas e dentes. À febre de aprender, juntara-se um sentimento surdo de revolta, e só encontrava sossego a devorar laudas. Aos Domingos, ensacado na batina do primo santo, que o dono da casa arranjara à medida do meu corpo, ia passear. Juntávamo-nos todos na , assistíamos à missa, e no fim, a ouvir obscenidades dos caixeiros aperaltados, que tocavam no cotovelo do vizinho a passar o enguiço – Lagarto! Lagarto! , seguíamos a dois e dois para a Meia Laranja, ao fundo da escadaria da Senhora dos Remédios, e aí nos divertíamos. 

Numa dessas ocasiões, jogava-se o rim cavalo.

– Quem joga o rim cavalo?
– Há cá quem!
– E se bater na burra?
– Fica tudo bem.

Como andava fraco, a certa altura fui substituído e fiquei a ver. Às tantas por acaso, dei falta do senhor Ramos. Relancei os olhos à volta, e nada. Onde diabo se teria metido? Fiquei admirado daquela ausência, mas acabei por me distrair. Até que passado um grande pedaço ele apareceu.

No passeio seguinte, repetiu-se a mesma cena. E aquilo começou a meter-me confusão. Deixei os companheiros na brincadeira e, como quem não quer a coisa, meti pelas alamedas do parque à procura do prefeito, de olhos afiados para dentro das moitas mais espessas. Mas não fui longe. Quando menos esperava, tive de retroceder a galope. Dum maciço de acácias começaram a chover pedradas sobre mim. Não contei nada aos outros, e quando o sujeito apareceu fiz-me desentendido.

Já na forma, acabei de saber o resto. Por um carrocho íngreme, descia da mata para a cidade uma rapariga nova, vestida de preto. Era a filha do alfaiate. 

Foi então que me apareceram aquelas súbitas saudades da Aurora que, no jogo das escondidas, levantava o vestido na casa da lenha, onde nos refugiávamos.

– Ó Aurora, mostra, mostra… [pp.61/62]


In: Miguel Torga - A criação do Mundo, volume I. Lisboa: Editora Planeta de Agostini, 2002, pp. 40, 53/55, 61/62

(Seleção, revisão / fixação de texto,  título, negritos e itálicos, parênteses retos, links, para efeitos de edição deste poste: LG)

____________

Nota do editor:


Último poste da série > 11 de agosto de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24548: Antologia (97): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – Parte VIII

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25780: S(C)em Comentáros (44): o seminário, a tropa e a guerra (Francisco Baptista, autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", Edição de autor, 2019, 388 pp.)


1. Dois comentários sobre o tema "o seminário, a tropa e a guerra colonial", no poste P18954 (*)



(i) 
Francisco Baptista 

ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); natural de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Nordeste Transmontano, é autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor, 2019, 388 pp.)

Dos ex-seminaristas fala-se mas não sei porquê apesar de aprenderem a falar , a ler e a escrever, poucos falam e escrevem, outros lhe dissecam as vísceras como se fossem aves frias e estranhas, do interior do país que nunca tiveram voz e autoridade religiosa ou laica para ser escutados entre as inteligências que do litoral governam tudo.

(ii) Tabanca Grande Luís Graça

Francisco, o teu comentário parece-me "sibilino"... Eu acho que o entendo... Mas há dois sujeitos da frase, se bem entendo: (i) os ex-seminaristas, apesar de terem aprendido a falar, a ler e a escrever, pouco falam e escrevem.. ; (ii) os do interior do país que nunca tiveram voz e autoridade para serem escutados pelo senhores do litoral...

É verdade: (i) os ex-seminaristas pouco escrevem sobre o tema "seminário, tropa e guerra colonial"; (ii) há um dicotomia interior-litoral, mais uma "assimetria" no discurso de uns e outros...

28 de agosto de 2018 às 20:27 

(iii) Francisco Baptista:

Amigo Luís, entre um poste e outro, para mim não foi tudo claro, daí talvez o "sibilino" entre aspas. Nem tudo tem explicação ou por outro lado nem tudo merece ser explicado porque ao sê-lo pode-se expor demasiado algum mistério que deve existir sempre nas relações entre as pessoas de modo a não perderem o entusiasmo por um convívio estimulante.

Os seminaristas do nosso tempo foram os pobres, filhos de pobres, a maioria do interior, que na procura de mais conhecimentos e mais dinheiro se sujeitaram a viver ainda crianças nos seminários, grandes edifícios parecidos com enormes quartéis, frios, húmidos, impessoais, sujeitos a uma disciplina rígida e desumana ministrada por homens frustrados sem mulheres e sem filhos.

O meu ano no seminário (**) , longe de casa, a viver numa terra plana, onde não havia mar à vista em alternativa, sem a amizade dos amigos de infância, sem o calor da família e da lareira. foi o pior ano da minha vida. Pior do que o pior dos três anos de tropa.

A maior parte dos seminaristas não falam dessa experiência como se de uma experiência traumática se tratasse. Esses anos de clausura, de estudo, missas diárias, rezas e penitências, que duravam por cada ano quase onze meses deixaram-lhes marcas psicológicas que em muitos deles ficaram sempre reconhecíveis na forma de ser, de estar e de viver. No rosto de alguns ficou sempre visível, um certo desânimo, alguma tristeza e ponderação a mais.

Passei pelo mesmo seminário onde esteve o nosso camarada coronel A. Marques Lopes, autor do livro "Cabra Cega", que gostei de ler. Conheci personagens que ele retrata,, confesso que não me lembro dele, mas lembro-me bem dum amigo dele de Cabo Verde, um tipo afável e simpático que um dia me disse, nunca esqueci, que eu nunca seria padre porque tinha muitas irmãs. Esse enigma nunca o decifrei.

Conheci o padre José Maria, um transmontano bondoso e amigo de todos, o diretor, um padre mirandês, de Ifanes, muito severo. que para castigo de todos usava os argumentos e instrumentos de suplício das professoras primárias. Quando um dia me tratou assim, explodi e gritei-lhe que não tinha o direito de me tratar desse modo, pois não era meu pai.

Quis deixar o seminário mas não mo permitiram, no fim do ano expulsaram-me, talvez para assinalarem bem a autoridade deles.

O livro "Nó Cego", do camarada Carlos Matos Gomes, que li recentemente e também gostei muito, fala de um alferes, ex-seminarista que tem uma deriva, que além de afastada dos ensinamentos religiosos e conservadores da época, é também muito desumana. Aconteceu com alguns ex-seminaristas talvez originada pela discrepância entre a violência psicológica dos anos de seminário e a santidade apregoada por palavras.

Revejo-me nalguma tristeza que durante anos cobriu de névoa o semblante de alguns ex-seminaristas e que cobriu igualmente o semblante de muitos camaradas ex-combatentes. (...) (***)

29 de agosto de 2018 às 19:35

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25773: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (6): Et maintenant que vais-je faire / De tout ce temps que sera ma vie... ?!

A. Marques Lopes, s/l
(EPI, Mafra ?)
 s/d (c. 1966 ?)
1. Os seminários da Igreja Católica forneceram às forças armadas portuguesas, e sobretudo ao exército (mas também à FAP e aos paraquedistas), importantes contingentes de graduados, milicianos, durante a guerra colonial. Furriéis, alferes, capitães. Mas também cabos e soldados, que não quiseram dar as habilitações literárias (ou que não chegaram a completar o 5º ano). (*)

Em quantidade e qualidade. Em geral, eram jovens com boa formação humana, moral e intelectual, com hábitos de disciplina, sacrifício, resiliência e abnegação, mas também de treino físico e prática desportiva... E em princípio estariam mais protegidos contra as "ideias subversivas" (ou "dissolventes") que grassavam nos liceus e universidades, sobretudo a partir da crise estudantil de 1962…
 
Tinham, além disso, competências relacionais (liderança, trabalho em equipa, 
comunicação, gestão de conflitos,  do tempo e do stress) que eram relevantes para a condução de grupos de combate, em difíceis teatros de operação como o da Guiné.  Tinham também uma boa cultura geral (com bons conhecimentos de latim e  do grego, e da literatura da antiguidade clássica), a par do gosto pela música.   Alguns animaram os "jornais de caserna" no mato e escreveram a histórias das unidades…

Muitos eram oriundos do meio rural, ou de pequenas cidades e vilas do interior, mais conservador do que o meio citadino. Vinham de famílias pobres ou remediadas, um ou outro excecionalmente da elite ou da classe média alta.  Em geral, eram cooptados por toda uma vasta rede informal de professoras do ensino primário, catequistas e párocos, angariadores de potenciais vocações sacerdotais de entre os melhores alunos do ensino primário obrigatório.

Os seminários menores e maiores, tanto diocesanos como das ordens religiosas (salesianos, franciscanos, dominicanos, jesuitas...) , ofereciam a estes jovens oportunidades de educação e mobilidade social ascendente que, à partida, lhes eram vedadas pela sua origem sociofamiliar e a tacanhez da terra onde viviam. O acesso, nomeadamente ao ensino liceal, era limitado a certas camadas da população urbana. A barreira começava na preparação e nos exames de admissão ao liceu. As provas, escritas e orais, eram feitas em geral nas capitais de distrito, bem longe das pacatas vilas e aldeias do interior do país…

Está por estudar o papel dos ex-seminaristas na nossa longa guerra colonial (1961/74)… Muitos deles, depois da saída do seminário (em geral, na sequência de uma dupla crise, vocacional e de fé), eram rapidamente chamados para a tropa… 

Recorde-se que, por força da Concordata de 1940 (assinada entre Portugal e o Vaticano), os sacerdotes católicos estavam dispensados do serviço militar obrigatório, podendo depois servir a Pátria como capelães castrenses, dependendo da vontade do seu bispo e das necessidades das Forças Armadas. Os seminaristas gozavam do mesmo privilégio no período da sua formação.

Sobretudo os que deixavam de frequentar o seminário maior (curso de teologia, que se iniciava no 7º ano, de um total de 12 anos letivos) eram rapidamente chamados às fileiras do exército. Recorde-se que as suas habilitações literárias não eram automaticamente reconhecidas pelo sistema de ensino oficial. Davam equiparação apenas para efeitos de emprego público e para a tropa. 

Os ex-seminaristas, com o 7º ano ou mais, não podiam inscrever-se automaticamente (e prosseguir os seus estudos) na escola pública e muito menos na universidade. Ou seja, o 7º ano do seminário (equivalente a 11 anos de escolaridade) não tinha os mesmos efeitos legais do 7º ano do liceu, para efeitos académicos.

Não tinham, por isso, direito ao famoso "adiamento", de que beneficiavam  os estudantes universitários que não reprovassem (e que se "portassem bem", não se metendo em "encrencas")… Não admira, por isso, que em quase todas as unidades ou subunidades houvesse um ou mais alferes miliciano, furriel miliciano, ou 1º cabo, ex-seminarista.  

Faltam-nos histórias de vida, relatos autobiográficos, diários, depoimentos, entrevistas, trabalhos de investigação, estatísticas… Temos mais de meia centena de referências com o descritor "seminário", no nosso blogue. 

Há já alguns romances ou livros de cariz autobiográfico sobre este tema (o seminário e a guerra colonial): recorde-se aqui, entre outros, a talhe de foice (todos eles com referências no nosso blogue): 

(i) "Construção e Desconstrução de um padre", de Horácio Neto Fernandes  (Porto, Papiro Editora, 2009) 

(ii) "O Seminarista e o Guerrilheiro”, de Cândido Matos Gago (Grândola, edição de autor, 2015); 

(iii) "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015);

(iv) "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", de José Maria Martins da Costa (Lisboa, Chiado Books, 2021);


2. Retomamos o livro do A. Marques Lopes, "Cabra Cega", que tem no subtítulo, de maneira explícita, a figura do seminário: "do seminário à guerra colonial" (**). 

Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 219/223 , seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 27 de setembro de 2022, às 16:32 (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro era o seu "alter ego"...). Mantemos a versão do livro de 2015 ("Cabra Cega", Lisboa, Chiado Books).

Aiveca e os outros alferes da companhia, acabados de serem promovidos (Zé Pedro, Aprígio, Castro) falam da "missa de despedida", a que o primeiro se furtou de ir, argumentando que estava farto de missas, e que era bem melhor que o capelão pegasse no tema do Gilbert Bécaud, que se cantava na instrução em Lamego, no curso de operações especiais: "Et maintenant que vais-je faire / De tout ce temps que sera ma vie..." (E, agora, o que é que eu vou fazer / De todo este tempo que vai ser a minha vida...)


Et maintenant que vais-je faire, de tout ce temps que sera ma vie... ?!

por A. Marques Lopes (1944-2024)


Fomos promovidos a alferes antes do embarque. Ia haver também aquilo a que chamaram cerimónia de despedida, a que se seguiria uma missa na parada.

Aiveca não tinha vontade nenhuma de assistir à missa quando soube que ia haver. Com muito menos ficou quando o capitão, que os tinha reunido para falar do que havia, acrescentou que era o major-capelão Euclides que ia celebrar a missa.

– Que filho da puta  sussurrou entre dentes.

Os outros alferes olharam para ele.

 Disse alguma coisa, Aiveca ?  
– perguntou o capitão.

Ainda bem que não o ouvira.

 Meu capitão, estava a dizer que não vou à missa – r
espondeu.

Agora eram todos espantados, inclusive o capitão. Viu que tinha de dar uma explicação, mas não ia dar a verdadeira.

 É que eu não sou católico  
– foi a razão mais rápida que encontrou.

Admiração geral. O capitão ficou hesitante, parecia embuchado, sem palavras.

 Tá bem, se é assim…   
– lá acabou por dizer, mas pareceu contrariado por não ter argumentos.

Ainda se lembrava da conversa parva do padre Euclides quando o encontrara no Cais do Sodré, estava ele a trabalhar no porto de Lisboa. Quando soube disso abriu os olhos horrorizado: "Cuidado com os comunistas!"... 

Era uma besta, não gostava nada dele. Já sabia que ele e o padre Gama tinham ido para capelães-militares, o Gonçalves dissera-lhe quando estava no RI1, mas estava longe de ver aquele gajo ali. Se fosse o Gama,  era diferente. Ele fora o seu professor da instrução primária no colégio dos padres, dera-lhe uma ou outra palmatoada, é verdade, mas fora sempre um bom amigo dos miúdos. Se fosse ele até iria à missa e gostaria de falar com ele no final.

Meteu-se no bar de oficiais durante a missa mas não se livrou de a ouvir e ao sermão do Euclides, porque os altifalantes gritavam para todo o lado. Nada de novidade, já sabia que daquele não sairia outra coisa. Fez uma bela dissertação sobre o amor à pátria, a defesa do património nacional, etc. Esqueceu-se é de falar contra os comunistas.

Passado algum tempo depois de tudo terminar, apareceram os outros alferes. O Zé Pedro olhou para o meu copo e disse ao barista para lhe trazer também um whisky.

 Então, gostaram da missa?
 perguntocau o Aiveca.

O Castro e o Zé Pedro disseram que sim, mas sem grande ênfase. "Estão com receio de ferir as minhas crenças", pensou com um sorriso irónico. Ficaram silenciosos depois.

 
– Olha lá – decidiu-se o Aprígio, que não dissera que sim nem que não  , afinal qual é a tua religião?”

 
– Estava a ver que não me perguntavam – riu-se.  – Eu vou dizer. Mas não vão bufar nada ao capitão, tá bem?

Todos abanaram a cabeça e disseram seriamente que nem pensar, pá.

 Ó meus amigos, eu tenho de ser católico, apostólico, romano. Batizaram-me quando era bebé, ainda não sabia dizer nem que sim nem que não, só me deu para chorar, é o que dizem os meus pais. Depois, quando era puto e andava num colégio de padres, fiz a comunhão solene e fui crismado. Se dissesse que não queria corriam comigo, mas nem pensar pois estava lá de borla e os meus pais não me podiam pôr noutra escola. Mas, olhem, na altura até achei piada àquilo, foi giro. É isto. Como vêem sou oficialmente católico desde a nascença, como a maioria em Portugal.

Ficaram perplexos. Aiveca percebeu-se que esperavam uma novidade, algo que desse para fazerem mais perguntas. O Aprígio, sobretudo, pareceu desiludido. Só o Zé Pedro reagiu.

 Ó Aiveca, mas, então, porque não quiseste ir à missa?

– Não quis porque já estou farto de missas, é isso.

Não quis dizer que não gostava do major-capelão para não ter que explicar porquê. Nem porque estava farto. Fizera contas e chegara à conclusão que assistira a mais de 4.200 missas, contando as do seminário e as do colégio dos padres. Nunca lhes dissera que tinha estado no seminário e não era agora que ia dizer.

 
– É a tua maneira de ver  – continuou o Zé Pedro.   – Mas eu acho que esta missa foi importante para malta que vai para a guerra. Deu-nos mais calma e confiança na ajuda de Deus.

 
– Talvez, no geral, uma missa tenha esse objetivo, tá bem, pode ser que sim. Mas o desta não foi este. Foi antes um apelo à guerra, bem patente no sermão do major-capelão, nada diferente do que disse o comandante do Regimento na cerimónia da despedida nem do que dizem os membros do Governo.

– Isso é verdade, é todos o mesmo  – disse o Aprígio.  – E olhem, se eu não fosse para a guerra é que era uma grande ajuda de Deus. Podem ter a certeza que assim é que ficaria bestialmente calmo.

– Ó Aprígio, estou a ver que tu e o Aiveca não estão a entender.

–  Diga lá, doutor Castro.

O Aiveca sorriu sem o hostilizar, embora imaginasse que ia sair dali palermice.

 Não gozes. Os discursos de Salazar visam mentalizar o povo para a necessidade de fazer a guerra e o que disse o comandante do Regimento e o sermão do padre tiveram como objectivo motivar os soldados para se empenharem nela. Acho importante isso.

 O coronel e o Salazar percebo, é o papel deles. O padre é que não tinha nada que se meter nisso, fazer pandã com eles, não é esse o papel dele. Era melhor que glosasse aquela do Gilbert Bécaud que tu conheces lá de Lamego.

Quis ser mau e cantou: “Et maintenant que vais-je faire, De tout ce temps que sera ma vie, De tous ces gens qui m’indiffèrent.”

O Aprígio e o Zé Pedro riam-se, o Castro estava sério.

– Disto é que ele devia falar
 disse Aiveca acabando de cantar. – Mas estou a ver que não percebem nada de francês, nem tu, Castro. Ouvias sem saber o que o Bécaud dizia. Só fazia que saltasses da cama.


António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 27 de setembro de 2022, às 16:32 e livro "Cabra Cega" (2015, pp. 219/223)


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)

_________





Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) 
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, 
Colecção: Bíos, Género: Biografia).



Capa do livro "Cabra-cega", de A. Marques Lopes, lançado no Brasil (Paperblur, São Paulo, 2019). Não está à venda nas livrarias, é impresso sob encomenda, é um novo conceito de edição.
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18954: (Ex)citações (343): porquê tantos ex-seminaristas nas fileiras do exército, durante a guerra colonial? (António J. Pereira da Costa / Virgílio Teixeira / José Nascimento / A. Marques Lopes / Juvenal Amado)

(**) Postes anteriores da série: