domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25784: Antologia (98): A ida para o seminário de Lamego, em 1918 (Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)


Miguel Torga (1907-1995). Foto: Adapt.
de Wikimedia Commons 
(com a devida vénia...)

1. Miguel Torga (pseudónimo literário de Adolfo Correia Rocha) nasceu em 1907 em São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, filho de camponeses. Era médico. E morrerá em 1995, em Coimbra aos 87 anos. É um dos grandes escritores da Língua Portuguesa. Prémio Camões (1989).



Em 1917, fez, com distinção, o exame da instrução primária,na escola de Sabrosa. O professor, o "senhor Botelho" (personagem de "A Criação do Mundo") tem pena que o seu aluno não possa prosseguir os estudos no liceu. O pai não vê nenhuma saída para o filho, a não ser o seminário ou o Brasil. A mãe, que não acredita na vocação do filho, manda-o para o Porto, para servir como criado numa casa rica. Revoltado, fica lá pouco tempo.

Em tempos de anticlericalismo, consegue entrar no seminário de Lamego, em 1918, com uma uma recomendação do padre da aldeia. Perde a fé, sai ao fim de um ano. "A passagem por Lamego, como dirá mais tarde no Diário, foi decisiva; aí passou 'um dos anos cruciais' da sua 'vida de menino'. A problemática religiosa irá ocupar na obra de Miguel Torga um lugar digno de registo".





2. Do livro "A Criação do Mundo" (2000) (que o Miguel Torga começou a escrever, como romance autobiográfica, em meados dos anos 30), vamos publicar, com a devida vénia, três pequenos excertos relativos à sua ida para (e os seus primeiros tempos em) o seminário de Lamego, em 1918. É uma descrição antológica, e nomeadamente  a viagem de Agarez (nome ficcionado de São Martinho de Anta, terra natal do escritor) a Lamego.



A ida para o seminário de Lamego, em 1918

(Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)



[…] Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar o meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, que visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.

Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada.. Gostava, gostava, de me ver professor,  ou médico, ou advogado.. Mas, nicles,  faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que  talvez pudesse ser. Se arranjasse a maneira  de meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...

O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos, que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados  à terra, a embrutecer,  ou eram arrebanhados pela  Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.

– É o que terá mais certo...  concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu. [pág. 40]

[…] Ia na frente, de fato preto, montado na jumenta, a segurar o baú de roupa que levava adiante de mim. Meu Pai e minha Mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas, e ela de colchão e cobertores à cabeça. Assim percorremos as seis léguas que vão de Agarez a Lamego, pelo caminho velho. Senhora da Guia, Senhor do Bom Caminho, Senhor da Boa Morte, Vila Seca, Poiares, Régua… De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava , e via nela apenas a minha sombra. Papa-hóstias, como dissera o senhor Botelho... Era tudo o que eu poderia vir a ser na vida.

Recebeu-nos no pátio da casa do senhor cónego Faria, a quem íamos dirigidos, um sacerdote novo e magricela, que mais tarde vim a saber que se chamava padre Monteiro. Meus Pais cumprimentaram-no respeitosamente, mas, em vez de lhes seguir o exemplo, fiquei ostensivamente calado. O desespero que sentira toda a viagem transformara-se numa raiva cega, que me estrangulava a voz. Meu Pai  reparou na má criação, repreendei-me. Lá arranjei fala e  gaguejei:

– O senhor passou bem ?

O sujeito olhou-me de esguelha, disse que sim,  e perguntou se eu era piedoso. Ao que o meu o Pai respondeu solícito que, quanto a isso... Além de ser bom rapaz  e muito inteligente.

Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo. 

Por fim, o homem deu-nos um  bilhete para irmos entregar  ao número quarenta e dois de uma rua assim, quem subia, à esquerda.

Lá fomos, e lá fiquei.

Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços da escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.

Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os. Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.

Dormi mal. Pela manhã, o prefeito mandou-me rapar o cabelo à escovinha. Depois fui submetido a um rigoroso inventário, que escancarou à luz do sol os meus haveres materiais e espirituais. Fiquei no primeiro ano.

O nosso vigilante chamava-se senhor Ramos. Estava no fim do curso e namorava a filha do dono da casa, que tinha alfaiataria no rés-do-chão.  A República tomara conta do edifício do seminário e transformara-o em quartel. Por isso víviamos em  grupos de dez e doze, espalhados pela cidade, comandados por um  mais velho, e íamos às aulas à residência dos professores.

No dormitório havia apenas um bacio para cada duas camas. O que me pertencia ficava debaixo da do Arménio que, quando eu acordava, já o tinha cheio. O recurso, claro, era ir à varanda. A primeira vez que  tal me aconteceu, fiquei aflito. Quem é que  se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas,  de fachada imponente e brasão coberto de luto, ali a ver-nos ? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira. [pp. 53/55]

[…] De novo no seminário, agarrei-me ao estudo com unhas e dentes. À febre de aprender, juntara-se um sentimento surdo de revolta, e só encontrava sossego a devorar laudas. Aos Domingos, ensacado na batina do primo santo, que o dono da casa arranjara à medida do meu corpo, ia passear. Juntávamo-nos todos na , assistíamos à missa, e no fim, a ouvir obscenidades dos caixeiros aperaltados, que tocavam no cotovelo do vizinho a passar o enguiço – Lagarto! Lagarto! , seguíamos a dois e dois para a Meia Laranja, ao fundo da escadaria da Senhora dos Remédios, e aí nos divertíamos. 

Numa dessas ocasiões, jogava-se o rim cavalo.

– Quem joga o rim cavalo?
– Há cá quem!
– E se bater na burra?
– Fica tudo bem.

Como andava fraco, a certa altura fui substituído e fiquei a ver. Às tantas por acaso, dei falta do senhor Ramos. Relancei os olhos à volta, e nada. Onde diabo se teria metido? Fiquei admirado daquela ausência, mas acabei por me distrair. Até que passado um grande pedaço ele apareceu.

No passeio seguinte, repetiu-se a mesma cena. E aquilo começou a meter-me confusão. Deixei os companheiros na brincadeira e, como quem não quer a coisa, meti pelas alamedas do parque à procura do prefeito, de olhos afiados para dentro das moitas mais espessas. Mas não fui longe. Quando menos esperava, tive de retroceder a galope. Dum maciço de acácias começaram a chover pedradas sobre mim. Não contei nada aos outros, e quando o sujeito apareceu fiz-me desentendido.

Já na forma, acabei de saber o resto. Por um carrocho íngreme, descia da mata para a cidade uma rapariga nova, vestida de preto. Era a filha do alfaiate. 

Foi então que me apareceram aquelas súbitas saudades da Aurora que, no jogo das escondidas, levantava o vestido na casa da lenha, onde nos refugiávamos.

– Ó Aurora, mostra, mostra… [pp.61/62]


In: Miguel Torga - A criação do Mundo, volume I. Lisboa: Editora Planeta de Agostini, 2002, pp. 40, 53/55, 61/62

(Seleção, revisão / fixação de texto,  título, negritos e itálicos, parênteses retos, links, para efeitos de edição deste poste: LG)

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Nota do editor:


Último poste da série > 11 de agosto de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24548: Antologia (97): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – Parte VIII

3 comentários:

Anónimo disse...


Muito interessante. Miguel Torga é o meu ídolo transmontano, português, universal. Esta noite, amigo Luís, vou pensar num comentário alargado, para escrever amanhã no teu Blogue que me tem ajudado a pensar e a vivet. Abra.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A vila de Sabrosa não tinha liceu em 1918... Poderia ter, quando muito, um colégio particular... Teria ?...

"O ensino liceal foi criado a 5 de Dezembro de 1836 por Passos Manuel. Todas as cidades capitais de Distrito e algumas outras cidades mais importantes deveriam ter um Liceu."

Liceus de Portugal

Na Lourinhã, por exemplo, que era o último concelho de Lisboa, o liceu mais próximo era Lisboa (70 km) ou Leiria (90 km). No final dos anos 50, a camioneta do João Henriques (Torres Vedras) levava 3 horas a chegar a Lisboa... No início da década de 50, a Lourinhã passou a ter um colégio particular, o Dom Luís Ataíde, com uma escassas dezenas de alunos... Funcionava num prédio de habitação, de dois pisos (r/c e 1º andar)... Só em 1958 abriu o Externato Dom Lourenço, propriedade do Patriarcado de Lisboa...

A par dos liceus (hoje escolas secundárias), que davam acesso ao ensino superior universitário (e mais tarde ao ensino superior politécnico), havia o "ensino técnico" (escolas comerciais e industriais), que dava acesso ao "mercado de trabalho"...

Os 23 Liceus Nacionais eram os seguintes (antes do 25 de Abril) (centenários, são hoje escolas secundárias, mantendo na maior parte dos casos o mesmo nome, o mesmo patrono):

Liceu José Estêvão (Aveiro)
Liceu Diogo Gouveia (Beja)
Liceu Sá de Miranda (Braga)
Liceu Emídio Garcia (Bragança)
Liceu Nun’Alvares (Castelo Branco)
Liceu Fernão Magalhães (Chaves)
Liceu Infanta D. Maria (Coimbra)
Liceu Heitor Pinto (Covilhã)
Liceu André Gouveia (Évora)
Liceu João de Deus (Faro)
Liceu Bissaia Barreto (Figueira da Foz)
Liceu Afonso de Albuquerque (Guarda)
Liceu Martins Sarmento (Guimarães)
Liceu Latino Coelho (Lamego)
Liceu Rodrigues Lobo (Leiria)
Liceu Camões (Lisboa)
Liceu D. Filipa de Lencastre (Lisboa)
Liceu D. João de Castro (Lisboa)
Liceu Gil Vicente (Lisboa)
Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho (Lisboa)
Liceu Passos Manuel (Lisboa)
Liceu Pedro Nunes (Lisboa)
Liceu Mouzinho da Silveira (Portalegre)
Liceu Infante de Sagres (Portimão)
Liceu Alexandre Herculano (Porto)
Liceu Carolina Michaëlis (Porto)
Liceu Rainha Santa Isabel (Porto)
Liceu Rodrigues de Freitas (Porto)
Liceu Eça de Queiroz (Póvoa de Varzim)
Liceu Sá da Bandeira (Santarém)
Liceu Bocage (Setúbal)
Liceu Gonçalo Velho (Viana do Castelo)
Liceu Camilo Castelo Branco (Vila Real)
Liceu Alves Martins (Viseu)

Faltam aqui,m nesta lista, os liceus das "ilhas adjacentes", criados na mesma época: Madeira (Liceu Nacional do Funchal) (1836), e Açores, Liceu Nacional de Angra do Heroísmo (1844) e Liceu Nacional de Ponta Delgada (1852)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É um puro prazer ler, em voz alta, e saborear esta prosa, castiça, poderosa, sarcástica, terrosa, às vezes truculenta e picara, mas sempre poética e ternurenta, do nosso grande Miguel Torga (hoje um pouco esquecido, para além dos seus "Contos da Montanha"):

(...) "O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada..."

(...) "O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso!" (...)

(...) "De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava , e via nela apenas a minha sombra" (...)

(...) "Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo. " (...)

(...) "Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar." (...)

(...) "Quem é que se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas, de fachada imponente e brasão coberto de luto, ali a ver-nos ? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira." (...)

(...) "Foi então que me apareceram aquelas súbitas saudades da Aurora que, no jogo das escondidas, levantava o vestido na casa da lenha, onde nos refugiávamos.

– Ó Aurora, mostra, mostra… " (...)