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quinta-feira, 2 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23320: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte X (Conclusão)

1. Conclusão da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte X

Dois sustos aconteceram com os novatos acabados de chegar. Um soldado esquecendo-se que tinha ainda o carregador na sua G3 e, estando em formatura, teve a sorte de ter apenas o cano da arma em cima da bota e, descuidado, premiu o gatilho, rebentando com um dos dedos do seu pé.

Um outro caso que poderia ser grave e com os mesmos novatos, deu-se já nos nossos quartos. Um Pelotão de Sapadores acabado de regressar do mato para onde se tinha deslocado, acompanhados pelos nossos, já que a missão era indicar-lhes as zonas onde tínhamos colocado minas. O Alferes, que comandava este pelotão dos novatos, premiu gatilho da sua G3 sem antes ter tirado o carregador da arma e, também, sem verificar se tinha bala da câmara, disparou furando o teto do quarto. Não fosse a rápida experiência de um dos nossos Furriéis desviando-lhe o cano da G3 para o teto e gritando para que tirasse o dedo do gatilho, o dito Alferes atrapalhado, e todo pálido, tinha provocado uma tragédia. Notamos todos nós, mais velhos, que os que nos vinham render apresentavam muita inexperiência.

Também no meu Batalhão, o Comandante diariamente publicava em Ordem de Serviço louvores a quase toda a maralha. No que me toca, deixou-me de fora. Embora já o esperasse, senti-me ferido. Vingou-se de mim com as armas que dispunha. Continuei a olhar bem de frente para ele sempre que o via.
Este personagem acabou por vir a ser internado no Hospital Militar de Bissau com uma ameaça cardíaca. Já em Bissau, lamentou-se ao nosso Médico sobre a minha ausência em não o ir visitar ao Hospital. Respondi ao Médico que ele sabia bem o mal que durante toda a comissão me tentou fazer. Na verdade, vendo quem ele louvou, deixou-me revoltado. Nunca mais lhe falei em todos os encontros que tivemos até hoje, em que ele esteve presente.

Felizmente, o Capitão da Companhia soube reconhecer todos os esforços que fiz em prol da saúde, não só dos nossos como de toda a população local. Deu-me um louvor que me deixou muito orgulhoso.

Sei que contribui para a paz que tivemos em todo o tempo que permanecemos naquele local. As informações chegavam-me de muitos lados e até de Bissau. Marquei o meu tempo que passei pela Guiné. Mais tarde, colegas meus civis da Guiné, sempre que me viam, falavam da minha passagem por aquela terra.

Por fim, e antes de deixar de escrever sobre a Guiné, vou-me debruçar resumidamente sobre a jovem que lá conheci e a quem devo muito do meu estado de saúde mental, conseguido durante toda a minha comissão no interior do território e na localidade já por mim várias vezes enunciada, ou seja, o Pelundo.

Logo no primeiro dia que cheguei a esta localidade e sede do meu Batalhão, era já fim da tarde, encontrava-se à minha espera junto da porta de armas uma jovem que perguntando pelo Furriel Enfermeiro lhe indicaram a minha pessoa.
O meu espanto foi grande ao registar a sua grande desenvoltura dizendo-me logo como um ultimato fosse, que seria ela a tomar conta da minha roupa sempre que eu necessitasse de a ter lavada e passada a ferro. Acrescentou-me que já tomava conta da roupa do Médico, do Comandante Tenente Coronel Romão Loureiro e do Segundo Comandante Major Pinho.
Verifiquei também que era a única das lavadeiras da aldeia que tinha ordem de entrar dentro do arame farpado. Era tratada de modo muito especial como se fosse a princesinha daquela Aldeia.

No dia seguinte e ao fim do horário obrigatório de permanência no Quartel, saí para dar uma volta pela Aldeia como o primeiro reconhecimento tímido da mesma e como um primeiro apalpar do pulso ao ambiente da mesma.
Encontrei um ambiente muito descontraído para uma zona de conflito, vendo soldados nossos em cavaqueira descontraída com membros da população jovens como nós.
Para ajudar, o nosso Alferes de Informações e o homem mais próximo do Comando, era oriundo de Cabo Verde. Vim a saber mais tarde que tinha a minha profissão civil. Como dominante do dialeto, ajudou-nos aos mais atrevidos, na aproximação a estes nativos.

Ao terceiro dia entreguei pela primeira vez roupa à jovem lavadeira Judite. Logo ela me convidou para, ao fim do dia e após o meu jantar no Quartel, vir à Aldeia e, deste modo, poder conhecer as suas amigas e amigos e ambientar-me ao meio.
Assim aconteceu a minha primeira fuga ao arame farpado até cerca da meia-noite.
Levou-me para uma casa (Palhota na designação local) onde me vi rodeado de quatro das suas amigas e de um já menos jovem, que vim a saber ser um dos cerca de cem filhos do Régulo daquela Aldeia e muito influente na juventude desta, principalmente no meio feminino.

Falando quase sempre em Manjaco (dialeto local) senti-me tremendamente estranho, não fosse de longe a longe ditas algumas frases em português e um sempre ligeiro sorriso que a jovem Judite me lançava. Ali eu era uma carta fora do baralho, mas que mais tarde verifiquei o quanto ganhei de segurança arriscando-me desta forma. Entrei no mundo deles sem mostrar receio nem superioridade.
Verifiquei também, logo nos primeiros dias, que esta jovem se impunha não só entre as da mesma idade ou mais velhas, como também entre os rapazes. Vim mais tarde a saber que o Régulo Vicente a tinha comprado desde tenra idade para um dos seus filhos que se encontrava em Bissau a estudar ou a trabalhar. Ao certo nunca me preocupei em saber o que o dito cujo fazia.

Diariamente a minha relação com a população foi aumentando. O número de pessoas que era atendida no Quartel também aumentava à medida não só das suas necessidades como da confiança que tinham em nós.

Também todos os dias, nas horas de folga, eu saía do arame farpado e percorria as ruas da Aldeia cumprimentando todas as pessoas que encontrava. Deste modo, diariamente fui conquistando a sua confiança ao ponto de por vezes sentar-me ou mesmo deitar-me a descansar um pouco numa ou outra palhota de pessoas idosas que já tinham passado pelo posto Médico do Quartel.
Os mais idosos começaram a cumprimentar-me segurando-me as mãos e beijando-as. Os mais pequenitos vinham até mim puxando-me pelos calções à espera de um afeto. Ambientei-me ao meio.
O mesmo foi acontecendo, não só com a Judite, mas com toda a geração de jovens que dia sim, dia não, durante as noites e, até cerca da meia-noite, nos juntávamos no bailarico. Alguns dos filhos do Régulo Vicente tinham como uma espécie de Clube Noturno. Eu raramente faltava a estes bailaricos.
Com o passar dos dias fui criando um afeto muito especial com esta jovem. Uma espécie também de adoção pela sua família, que me recebia com sorrisos e carinho na sua palhota.
No Bailarico, ela era a minha parceira diária e não deixava que outras se aproximassem de mim. O carinho que ela com o seu olhar me transmitia era grande. Por vezes, outras jovens atrevidas, nos momentos da entrega da roupa lavada junto ao arame farpado, aproveitavam-se para a provocar, agarrando-se ao meu pescoço. Ela reagia com fúria e as mais sabidas gozavam galhofando.

O tempo ia passando e mais a sentia próxima de mim, mesmo sabendo que estava comprada para outrem. Pelo meu lado, respeitosamente lhe transmitia afetos respondendo-lhe a todas as perguntas que ela me fazia sobre a minha vida em Portugal e sobre a namorada que lá tinha deixado mostrando-lhe fotografias dela. Acrescento que quando da segunda vez que vim à Metrópole de férias, falei muito sobre esta jovem à minha namorada na altura e mais tarde mãe de meus filhos, para me ajudar a escolher umas peças de roupa para eu levar de presente à Judite. A custo concordou já que a jovem merecia. Deste modo, levei-lhe de Lisboa, sandálias, saia e blusa adaptadas ao meio da Guiné.

Durante vários meses não houve fins de tarde, ou após a hora de almoço, que não estivesse por momentos juntos na cavaqueira. Passou a fazer parte da minha vida naquela Aldeia e tema de muitas conversas no Quartel. Acrescento antes de mais, que sempre a respeitei nunca me excedendo nos afetos.
A este respeito apercebi-me por diversas vezes de tentativas de me armadilharem a vida dado a fragilidade que viam nela a meu respeito. Tive o bom senso, embora sabe Deus com quanto custo, de não avançar demais na relação dado ao isolamento em que todos nos encontrávamos.
Nos bailaricos, apenas com ela podia dançar. Embora sabendo-se vigiada não resistia. Tantas vezes ela foi fruto de comentários de militares que no mesmo local se encontravam.

Chegou uma altura que por ordem do futuro noivo ou da família dele ou dela, não me interessou saber, foi proibida de dançar comigo. Ia para o baile e não dançando comigo, também impedia outras jovens de aceitarem os meus convites. Uma noite, porém, uma delas resolveu romper o bloqueio que ela ordenava e veio ao meu encontro para que eu com ela dançar. Foi como lhe tivessem dado uma grande paulada. Terminada a música, e esquecendo-se dos que a vigiavam, veio ao meu encontro saltando para o meu pescoço e dizendo bem alto “tu és meu”. Fiquei sem respiração naquele momento com tantos olhares virados para mim. O Alferes Tunes, grande amigo meu, comentou-me que doravante teria que ter todos os cuidados e mais alguns com o Major e o Tenente Coronel mas, principalmente, com o primeiro, porque andava sempre com o olho em mim. O Tunes, encontrei-o recentemente e com aspeto debilitado pela doença cancerígena que o atacou. Selamos um grande abraço apesar do ambiente pandémico que se vai vivendo. Disse-lhe também que tinha resolvido escrever sobre os tempos passados na Guiné, o que ele tanto ao longo de anos me pediu para fazer. “Escreve sobre o que viveste e observaste naquela época – pedia-me ele”.

Durante os tempos em que ela proibia as outras jovens de dançarem comigo, deixei de frequentar o club de baile até que resolvi aparecer e encontrar quem rompesse aquele bloqueio.
Depois destes episódios, apareceu no Pelundo o dito filho do Régulo para quem a família dela a tinha vendido ainda criança. Era um hábito tribal que me revoltava assim como o chamado “fanado” (corte do clitóris).
Os dias e tempos que se seguiram foram traumáticos para os dois mas principalmente para ela. Por mais que uma vez e já noite, ao passar por caminhos estreitos perto da palhota da família dela, encontrei-os a discutir e ela chorando. Segui sempre em frente respeitando a custo não interferir no meio.

Muitas outras peripécias se passaram até que por ordem do Comandante de Batalhão fui transferido para tomar conta da nossa Companhia instalada na Aldeia de Có e região da tribo Mancanha.
Antes de partir para Có, procurei encontrar-me com a Judite para me despedir dela bem como, de outras pessoas da Aldeia minhas amigas sem esquecer a professora primária e seu irmão. Todos me mostraram desconforto por verem partir o amigo. Quanto à Judite, não conseguiu esconder uma lágrima apesar de já por esta altura, só a encontrar para receber e entregar-lhe a minha roupa para lavar.

Não me foi nada fácil esta mudança repentina. Dentro de mim tudo era revolta por me sentir injustiçado a pouco mais de cinco meses do fim da Comissão. Mais ainda, por verificar que da parte do Médico do Batalhão nada ter feito para tentar impedir a minha transferência bem pelo contrário, apoiou-a como já anteriormente o referi ao escrever sobre este tema.
Lá parti para aquela unidade em escolta mas com a minha cabeça cheia de revolta.
Voltei ao Pelundo por duas vezes. A primeira por causa da inauguração do novo Posto Médico e por fim, para os últimos dias, antes de sermos substituídos e partirmos para Bissau a fim de regressar à Metrópole.

Quando por fim regressei para partir para Bissau, tive pouco tempo e hipóteses de a ver até porque no único dia que tive, desencontrei-me com ela, dado eu já não saber se estaria em família ou na casa do sogro, o dito Régulo Vicente. Por isso, só já quase ao fim do dia o meu Cabo Enfermeiro me transmitiu um pedido dela dizendo-lhe que estaria à minha espera para se despedir de mim numa casa do Régulo num outro local da Aldeia. Fui logo que pude e verifiquei nos olhos dela que pretendia despedir-se de mim de forma diferente da que veio a acontecer.

Durante os dias de espera pelo barco em Bissau, tive sempre notícias dela. Ficava impressionado como ela, quase diariamente, fazia-me chegar as preocupações dela sobre a minha pessoa. Ficou para sempre no meu coração. Quando o navio Uíge chegou ao cais de Alcântara em Lisboa e desembarquei, quase que não me mantinha nas minhas pernas. Vinha bastante debilitado da viagem. Rara foi a noite que consegui dormir. O meu quarto encontrava-se numa zona em que os motores do navio se faziam ouvir e, não bastando, enjoei quase toda a viagem.

Depois do desfile fomos levados para o Quartel da Amadora na altura era Infantaria 1. Levei comigo uma muda de roupa civil e, sentando-me na parada, ali mesmo me despi entregando a minha farda e botas a um dos militares que lá se encontrava. Gritei bem alto. Chega de fardas para mim! Zarpei logo que pude do Quartel.

(FIM)

Miratejo, 30 de setembro de 2021

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Nota do editor

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terça-feira, 31 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23314: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte IX (Penúltima)

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte IX

Durante a minha permanência em Có tive alguns casos de saúde muito complicados que me obrigaram a puxar pela minha cabeça e pedir a Deus ajuda e inspiração.

Um deles aconteceu pelo Natal de 1970. Um dos militares tinha recebido nesse dia uma encomenda da família onde vinham enchidos. Acontece, que devido ao tempo da demora da chegada e principalmente com as diferenças de temperaturas, estes enchidos já não chegaram em bom estado de qualidade.

Aproximou-se a noite e, eis que aquele militar, juntamente com alguns amigos, veio ao meu encontro gritando de desespero tal eram as dores de cabeça sentidas e o aumento de volume desta. Fiquei impressionado com o que estava observando. Pensei primeiro, em procurar um contacto Médico via rádio, mas o desespero do militar fez com que eu me concentrasse e arriscasse um primeiro tratamento que sabia mal não lhe faria. Deste modo, ordenei ao Enfermeiro que naquele dia tinha como ajudante ao Posto Médico, aplicar-lhe uma injeção indo-venosa para combater a alergia e, logo de seguida, uma injeção anti palúdica. Entretanto e finalmente, dirigi-me ao posto de rádio para que me localizassem um Médico.

Finalmente um Médico entrou em linha comigo a quem relatei o acontecido bem como as medidas que já havia tomado. Do outro lado da linha a voz do Médico deixou-me tranquilo e de certo modo feliz, por ouvir que melhor ele não teria feito. Na verdade, fui encontrar o paciente mais calmo. Disse-lhe para se ir deitar e, acaso as coisas se complicassem, para rapidamente me chamarem. Respirei fundo e ouvi palavras carinhosas do capitão da Companhia que, com um abraço me agradeceu por me encontrar com eles naquela unidade.

Um outro caso que também já mais esquecerei, aconteceu com uma criança de tenra idade já que apenas tinha cerca ano e meio.

Eram já cerca das dez horas da noite quando ao meu quarto o Capitão me foi chamar preocupado com a criança que estaria a morrer e, com mãe, que desesperada, com a criança nos braços, chorava.

Vesti-me rapidamente dirigindo-me ao Posto Médico para observar a criança. Fora deste, muitos militares se juntaram mais alguns civis da aldeia de Có.

Deitado já na maca, verifiquei que a criança vinha gelada e com os membros apresentando rigidez. Da sua boquita brotava espuma que lhe dificultava a respiração que, por sinal, já não se sentia. Pedi ao Enfermeiro que naquele momento tinha para me ajudar que lhe sugasse a expetoração enquanto eu com uma agulha fui picando a base dos seus pezinhos tentando ver se tinham recção. Nada! A criança tinha entrado em coma. Como já não se podia evacuar a criança para o Hospital em Bissau por via aérea, dado o avançado da noite, aos choros agonizantes da jovem mãe, concentrei-me e mentalmente pedindo ajuda ao Criador, mandei preparar meia injeção de Coramina ao mesmo tempo que comecei a fazer-lhe massagem cardíaca e respiração boca a boca. Todo eu já transpirando eis que, de repente, vi mexer uma pestana e dei um grito de alegria dizendo “já temos homem!”. Continuei fazendo massagem cardíaca até que a criança abriu os olhos e começou a chorar. Em pensamento agradeci a Deus que me inspirou. Recebi um abraço forte da jovem mãe. Todos os companheiros militares se encontravam comovidos. O Capitão deu-me um grande abraço e pediu ajuda para que de Bula onde se encontrava uma Companhia de Cavalaria, visse das possibilidades de transportarem se possível, a criança mesmo de noite para Bissau juntamente com a mãe, a fim de poder ser bem observada no Hospital. É a principal e gratificante recordação do meu trabalho na saúde que trouxe da Guiné.

Um outro acontecimento que acompanhei em Có foi quando um dia já noite, o quartel ficou em polvorosa com o aparecimento junto ao comando de um homem fisicamente bem constituído e com a saliva a escorrer-lhe da boca tal a raiva que trazia dentro dele ou, como suspeitei, a quantidade de droga que teria ingerido para vir preso à capela por populares da aldeia. Vinha preso com uma corda pela cinta com duas pontas da corda soltas onde, três de cada lado desta, controlavam o avanço de ataque para cada um dos lados. Os populares que o traziam amarrado, cheios de medo diziam que o dito já tinha matado um homem à dentada na aldeia e gritava que vinha para matar o Capitão China.

O Capitão Rodrigues, natural de Macau e de origem chinesa, ficou assustado com a convicção do prisioneiro que mesmo ali manietado, continuava lançando ameaças. O Capitão, voltando-se para mim solicitou-me que, com medicação, conseguisse dominar a fera de modo a ser possível ficar em prisão durante a noite de modo a poder ser enviado para Bissau no dia seguinte. Naquela noite, fiquei já com poucas dúvidas, da utilização de drogas por parte do PAIGC em ações suicidas levadas a cabo por parte da guerrilha. A quantidade de saliva que escorria da boca do homem mais o seu olhar de fera enjaulada, tiraram-me qualquer dúvida. Foi um fim de dia atribulado.

Recordo-me do último Natal que passei na Guiné (Natal de 1970) em Có. Estas datas eram muito atribuladas porque por norma, a guerrilha adorava flagelar os nossos quartéis. Um ambiente carregado e melancólico se fazia sentir porque, tínhamos os nossos militares patrulhando a zona, e deste modo, termos a garantia de segurança. A ceia só seria servida com todos já regressados do mato.

Enquanto esperávamos pelo regresso dos nossos militares ausentes, recordo o Capitão Rodrigues sentado ao balcão do pequeno bar que lá possuíamos, bebendo cerveja acompanhada de camarão. A quantidade de camarão era considerável e, como tal, convidou-me para me sentar junto a ele. A nossa conversa foi sobre os momentos que estávamos vivendo e da ansiedade sentida principalmente naquele dia. Era já de madrugada quando nos foi servida a ceia de Natal. Três dias depois festejei ali o meu vigésimo quinto aniversário.

Durante a minha permanência neste aquartelamento, desloquei-me uma única vez ao Pelundo. Aqui ia ser inaugurado um novo Posto Médico com condições de trabalho melhoradas bem como tendo anexada uma pequena enfermaria.
Para este novo Posto Médico, tinha sido eu encargado, antes de ser transferido para Có, de requisitar tudo o que fosse necessário para que o mesmo funcionasse em pleno. Sucede que ao chegar ao Pelundo, verifiquei que muito do material faltava, principalmente as camas na enfermaria.

Como era habitual nos Comandantes dos Batalhões, pelo menos no meu, foi convidado o Comandante-chefe General Spínola para a dita inauguração. O General, ao entrar e verificar as falhas que se notavam, gritou ao meu Comandante dizendo que palhaçada era aquela, ser convidado para inaugurar paredes! Eis que o meu Comandante de Batalhão, tremendo como varas verdes, chamou-me para dar explicações ao General. Coube-me então a mim, que já há mais de dois meses me encontrava afastado noutro local, explicar ao General que tudo o que ali faltava, a tempo e horas eu tinha requisitado aos serviços competentes em Bissau. O General chamou o seu Ajudante de Campo, que era o Capitão Ramos, dizendo-lhe que fosse imediatamente a Bissau tratar daquelas falhas junto dos Serviços de Material de Saúde e das razões do não envio atempado. Deste modo não ouve inauguração nenhuma e o General deu meia volta e apanhou o helicóptero de regresso a Bissau.

Ao fim do dia regressei também a Có, não sem antes passar pelo Posto de Saúde ao qual pertencia e tinha a meu cargo, confraternizar uns instantes com o pessoal.

Encontrei aqui nesse dia a jovem que sempre tinha cuidado da minha roupa, com um ar adoentado. O Médico ao ver-me, aproveitou para a provocar dizendo-me que era eu o culpado pelo estado de saúde que a moça apresentava.
Tentei animá-la dizendo que brevemente estaria de volta. Na verdade, o seu aspeto tinha pouco de saudável. Sobre esta jovem, dedicarei a parte final das minhas memórias de Tempos de Guerra.

Regressado a Có, continuei com o meu trabalho de zelar pela saúde dos nossos militares bem como da população que dos mesmos cuidados necessitava.

Chegou-se ao dia de preparar a transferência de funções e de material a quem me vinha substituir ou seja, a Companhia que nos vinha render naquele lugar e, permitir o meu regresso ao Pelundo e assim poder ajudar lá também nos preparativos da passagem de testemunho àqueles que nos iriam render.
Porém, antes tive que verificar em Có o material existente e as falhas mais importantes a repor para que o novo Furriel Enfermeiro encontrasse as condições possíveis para poder desempenhar as suas funções.

Com uma campanha desgastante, tive a necessidade de me deslocar a Bissau e aos Serviços de Material de Saúde requisitar agulhas e outro material de consumo corrente. Aqui vim encontrar os responsáveis destes serviços tremendamente aborrecidos para com a minha pessoa por tudo o que tinha acontecido com a não inauguração do novo Posto Médico do Quartel do Pelundo. Pelo que vim a ser informado, o General provocou um reboliço enorme com aquela gente que se viram forçados a tirar três camas do Hospital e enviá-las para o Pelundo. Respondi-lhes que apenas me tinha limitado a informar o General do que a tempo e horas eu tinha feito todas as requisições.
Zangados, fartaram-se de chamar de “Macaco Fula” ao General. Sempre notei que o pessoal de Bissau não gostava do General porque lhes apertava os calos várias vezes.

Antes de fazer o trespasse de funções ao Furriel que me iria render, fiz um levantamento exaustivo de todo o material já que o Primeiro-sargento me havia dito querer ser ele a fazer o dito trespasse. Durante os meses que ali permaneci, poucas vezes a este Primeiro-sargento lhe dirigi palavra.
Desde o primeiro dia que ali cheguei, as guerras foram uma constante entre nós os dois. Eu era bem diferente daquele outro que fui render. O Lemos, por motivos que não vou aqui descrever, foi preso e enviado para outro local como já foi por mim referido anteriormente.
Mandei chamar então o Primeiro-sargento ao Posto Médico para lhe mostrar todo o material de uso corrente como agulhas, seringas, tesouras, caixas de enfermeiro, etc.
Verificou que havia umas agulhas que sobravam do lote obrigatório a entregar e pediu que, acaso eu não me importasse, poder levar umas seis para oferecer a uma Enfermeira da terra dele. Respondi-lhe que podia oferecer à dita senhora o que quisesse porque sempre me tinha dito, que no fundo, quem mandava ali era ele. Ficou corado de atrapalhação com mais uma ferroadela que lhe dava.
Regressei no dia seguinte à minha unidade, CCS do Batalhão 2884 no Pelundo.
Aqui já se encontrava a Companhia que nos ia render bem como a Companhia operacional que acompanhava a CCS.
Encontrei o Quartel remodelado. Com Posto Médico novo, quartos dos Sargentos novos, enfim, vim encontrar outras condições habitacionais bem melhores do que aquelas que durante tantos meses tive.

Liberto de funções, embora tivesse que orientar o novo Furriel Enfermeiro e Médico sobre como a população estava habituada a ser tratada, como deveriam continuar a lidar com ela e, a pedido do Médico, fui mostrar a este a aldeia e fornecer-lhe as orientações necessárias que eu achava por convenientes. Este Médico tinha estado preso em Penamacor por razões políticas.
Achei esquisito ter-me pedido para que o informasse das casas onde viviam prostitutas. Não contei nada a ninguém mas vi logo que era tentar passar e receber informações do outro lado. Sei que não regressou com os seus ao Continente porque ficou creio a viver lá com a professora. O Mundo é pequeno e, na FNPT em Lisboa, onde comecei a trabalhar, encontrava-se também e no mesmo departamento, o compadre do dito cujo Médico. Este companheiro de trabalho de vez em quando dava-me informações do seu compadre.

Comecei então a despedir-me das pessoas da população com quem mais lidei de perto e de todos que por mim passavam e me cumprimentavam apertando-me as mãos de agradecimento pela forma como tinha lidado com todos eles. Como surpresa, um grupo de mulheres veio ter comigo implorando para que eu não regressasse ao Continente e ficasse a tomar conta da saúde deles no Posto Médico Civil que o General tinha lá mandado construir. A custo e deveras emocionado, respondi-lhes que estava cheio de saudades da minha família mas que lhes agradecia do fundo do coração o carinho que me tinham e que eu nunca iria esquecer.

Estes últimos dias no Quartel no Pelundo foram passados no quase descanso total.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23303: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VIII

sábado, 28 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23303: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VIII

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte VIII

Debruçando-me sobre a saúde e os vários casos que durante a comissão tive que enfrentar não só com a parte militar como também com a parte civil.

Sobre a parte militar, como já deixei entender mais atrás, não tive casos de saúde muito graves na CCS do Batalhão 2884 ou seja, durante o tempo que estive no Pelundo.

Descrevendo sobre as necessidades de tratamentos de saúde dos militares, os casos de maior preocupação do Médico e meus, foram os ataques de paludismo “Malária”, doenças sexuais transmissíveis e saúde oral. Sobre a saúde oral, a ela se deveram a maiorias de consultas externas de militares enviados para o Hospital em Bissau.
Quantos aos casos de Paludismo, com mais ou menos dificuldade foram sendo resolvidos no local.

Mais graves e diversos foram os casos de saúde sexualmente transmissíveis. Devo começar por descrever que, casos houve, que tiveram início ainda na metrópole. Destes, lembro-me de um que não conseguimos curar durante toda a comissão.

Numa das minhas idas a Bissau e à Direção de Saúde, o chefe desta, chamou-me ao seu gabinete para trocar informações sobre a saúde dos militares e das populações. Devo confessar aqui, o grande apreço que tive por este militar com a patente de Brigadeiro. Só o conheci lá, mas, a forma carinhosa como sempre me tratou ficará sempre comigo. Eu era o seu menino! A revista do Exército já me tinha colocado na capa de uma das suas edições como militar exemplar a lidar com a saúde da população civil.

Naquele dia tinha uma informação importantíssima a transmitir-me em primeira mão, portanto, antes de ser enviada para o Comando do meu Batalhão.
Tratava-se dum tema ligado às doenças sexualmente transmissíveis e, sobre a forma como o PAIGC a estava a utilizar. Estes começaram a introduzir prostitutas infetadas para contaminação das nossas tropas, enfraquecendo-as moral e fisicamente. Os americanos utilizaram este esquema contra os japoneses na segunda Grande Guerra Mundial. Os japoneses, logo que descobriram, começaram a fuzilar os seus militares infetados para imporem regras.

Logo que naquela tarde e mal a escolta chegou ao Pelundo, fui de imediato falar com o Capitão da CCS dando-lhe conta do que pensava fazer em relação ao pedido do Brigadeiro Médico da Direção de Saúde da Guiné. A resposta do Capitão, que por sinal já tinha recebido as mesmas instruções de Bissau, deu-me carta branca para atuar junto das prostitutas que frequentavam o nosso meio e, proporcionou-me os meios para as trazer ao Quartel a fim de serem observadas por mim, já que o Médico se encontrava ausente em férias no Continente.

Alem das prostitutas, havia a necessidade de ter uma conversa muito séria com os militares sobre minha responsabilidade na saúde.
Uma a uma, elas me foram entregues pela patrulha destinada a esta missão. Dentro dos meus conhecimentos, fiz-lhes uma prévia observação.

Para espanto meu, logo que soube que já se encontrava a primeira no Posto Médico, encontrei a porta deste fechada, mas com som de música no seu interior. Bati na porta, dando ordem para que a mesma fosse aberta. Mal esta se abriu, encontrei um dos Maqueiros a querer ensinar a prostituta a tirar a roupa como se estivesse num cabaré. Não gostando do que vi, levantei a voz para que terminasse o espetáculo. Ordenei novamente que fosse fechada a porta do Posto Médico para, deste modo, tentar dar alguma privacidade à paciente.

Mal eu tinha dado esta ordem, senti a voz do Major ordenando que queria entrar para verificar o que se estava a passar. De imediato, dirigi-me à porta para saber o que o Major Pinho queria. Foi-me dizendo que tinha ouvido música e, como tal, queria observar as suas razões. Disse-lhe que era assunto interno e que o já tinha resolvido. Porém, ao aperceber-se que a mulher se encontrava meio despida tentou forçar a entrada, mas eu não deixei, dizendo-lhe que se tratava de assuntos de saúde com ordens superiores de Bissau e como tal, só a mim diziam respeito. Pouco convencido, lá foi praguejando.

Das cinco prostitutas por mim observadas, duas foram enviadas para o Hospital para melhor observação médica e, às outras três, apliquei-lhes um tratamento com antibiótico injetável correspondente a um tratamento diário de uma semana. De Jipe foram levadas cada uma para sua residência onde permaneceram sem poder exercer a sua profissão durante cerca de quinze dias por causa das dores que as suas nádegas lhe transmitiam.
Este tratamento começou a ser dado pelo Médico aos homens civis para evitar que nenhum não mais aparecesse no Posto Médico após a primeira injeção e, se tornassem possíveis doentes crónicos.

Quanto aos Soldados da Companhia, fui chamando um a um ao Posto Médico para lhes falar dos objetivos do PAIGC com as prostitutas e, como a partir dos meus conselhos, todo aquele que me aparecesse contaminado seria tratado. Em cima da minha secretária tinha colocado uma seringa de vinte centímetros cúbicos com uma agulha de doze centímetros de comprimento. Alguns deles desmaiaram só pela visão da agulha.
Às prostitutas, aconselhei-as a obrigarem os Soldados a usar o preservativo. Umas responderam-me que tinham receio que o preservativo ficasse dentro delas fazendo balão. Disse-lhes que tal não aconteceria. Tentei durante a comissão evitar este flagelo de saúde pública.

O interesse por aumentar os meus conhecimentos na saúde foram uma realidade com o tempo e a população civil deu-me esta possibilidade. A minha dedicação foi uma constante. Desde ajudar em partos, detetar apendicites e outras mazelas originais de África. Direi que o serviço militar em África foi uma grande escola de saúde para mim e para muitos dos Médicos que por lá passaram. Até aos dias de hoje, tenho ao longo destes anos tirado partido desses conhecimentos, não só para mim, como também para os meus familiares.

Como já referi em páginas anteriores, uma tarde o Comandante chamou-me ao seu gabinete para me anunciar que teria que ir para o Quartel de Có dar assistência sanitária aos nossos militares que lá se encontravam como também à população que de mim necessitasse.
Com um sentimento de revolta perguntei-lhe porque eu? Sendo o mais qualificado do Batalhão porque não era indicado outro? Respondeu-me que não havendo Médico nem Furriel Enfermeiro naquela Companhia, eu era o Enfermeiro mais bem preparado para dar confiança aos nossos militares que lá se encontravam. Agradeci o elogio, mas que bem o dispensava porque iria contrariado. Acabava de receber um balde de água fria na minha cabeça. Senti vontade de gritar pela revolta que sentia. Na minha mente senti a vingança dele pelas afrontas que lhe fiz não cedendo aos seus caprichos. Também o Médico que comigo se encontrava no Pelundo enalteceu os meus conhecimentos em saúde, mas para proveito próprio. Desta forma, evitava ter que se deslocar em escoltas a Có numa altura que se aproximava o fim da nossa estadia na Guiné.

Um dos motivos para ter havido necessidade de se deslocar para a povoação de Có um Furriel Enfermeiro deveu-se, primeiro, porque o Furriel Enfermeiro daquela Companhia e do meu curso ter sido preso de acordo um artigo das regras militares sobre a conduta que todo o militar devia ter naquela altura, bem como não possuírem lá Médico.
Dias antes deste acontecimento, fui surpreendido ao ver na prisão do Quartel do Pelundo o Furriel Enfermeiro de Có. O Lemos, de seu nome, era um daqueles que juntamente comigo tiraram o curso e dos mais pacatos e até divertidos, tendo muito jeito para o Teatro. Porem, quando soube das causas, não fiquei muito surpreendido. Nos dias de hoje, até ficaria famoso já que passou a ser um ato de afirmação que as minorias de hoje nos tentam impor. Devo ainda acrescentar, que sendo o Lemos natural de Braga, foi também para o Porto tal como eu, realizar o estágio do curso no Hospital Militar local. Um quase fim de Comissão drástico para ele. Anos mais tarde, e já em Lisboa, voltei a encontrá-lo na Calçada da Estrela, onde possuía uma loja de decoração.

Lá tive que fazer o saco e despedir-me daqueles que me eram mais próximos e parti em escolta para Có. Porém, antes de partir, vim a confirmar as minhas suspeitas que uma das razões porque tive que ser transferido se deve ao Médico que comigo se encontrava no Pelundo ter receio de alguma emboscada que sofresse sempre que tivesse que ir a Có dar consultas. Não me senti nada orgulhoso por este grau de confiança já que estava a pouco mais de cinco meses do fim da Comissão, e portanto, do regresso definitivo a casa.
Fiz as minhas despedidas dos Maqueiros e Cabo Enfermeiro que tinha a meu cargo, do Médico e de alguns amigos da população, mas de forma muito especial, de quem tinha o cuidado de zelar pela minha roupa.

Cheguei a Có e, surpresa minha, tinha já à minha espera uma jovem para tomar conta da minha roupa que tivesse necessidade de ser lavada. Perguntei-lhe porquê ela? Respondeu-me que tinha recebido ordens da sua amiga do Pelundo para ser ela e não uma outra pessoa a tomar conta da minha roupa a lavar. Fiquei sem fala. Não mais fiz perguntas e pensei para mim o quanto se preocupava comigo a jovem do Pelundo.
De seguida fui-me apresentar ao Capitão da Companhia, que já conhecia, mas apenas de vista, pois só tinha falado uma ou duas vezes com ele no Pelundo. O Capitão Miliciano Rodrigues era natural de Macau. Excelente pessoa que já não vive. Voltei a encontrar-me com ele anos mais tarde em Lisboa, na zona do Marquês do Pombal. Fomos beber café algumas vezes.

As apresentações continuaram de seguida, primeiro aos Sargentos (Primeiro e Segundo) e depois aos Cabos Enfermeiros que no momento lá se encontravam. De seguida fui conhecer os meus aposentos que ficavam junto ao Posto Médico e dar uma espreitadela a este.
Fiquei parvo com o que me era dado a observar. Era uma bagunça total. Além da desordem observada, toda a gente entrava e mexia a seu belo prazer e, numa das paredes laterais, por cima de um banco corrido que servia para se sentar quem lá fosse para consulta, qual escola, fotografias do Presidente da República e do Ministro do Ultramar na altura.
Chamei os Cabos Enfermeiros presentes nesse momento no Quartel para lhes comunicar que a partir daquele instante só eu autorizava as entradas ao Posto Médico.

Depois de uma pequena conversa com os Cabos Enfermeiros, dirigi-me ao gabinete do Primeiro-sargento (Gabinete da companhia onde eram tratados todos os assuntos com papeis) para o informar que não queria fotografias ou outros quadros no Posto Médico que não fossem alusivos à saúde e portanto, que enviasse alguém para retirar de lá tudo o que fosse estranho à saúde. Acrescentei que o lugar daquelas molduras seria na Escola como era natural na altura.
Reagiu mal. As ameaças começaram de seguida dizendo que não seriam retirados os quadros de lá. Respondi-lhe com um ultimato. Ou o Primeiro os retira ou enviava alguém para o fazer. Já os tirei da parede e foram colocados em cima do banco corrido, ou então, eu não vejo outra solução, que não seja colocá-los no bidão do lixo. Olhou para mim de feições iradas dizendo para que eu pensasse bem nas palavras que tinha acabado de proferir. Calmamente respondi-lhe que não me assustava. Leve o assunto para a política que não lhe tenho medo. Voltei-lhe a reafirmar que no Posto Médico eu só aceitava propaganda de saúde. Leve-os para a Escola, voltei a dizer-lhe. Arranjei mais um inimigo. Até ao último dia em que nesta Companhia permaneci, não mais nos demos bem e não mais lhe falei até aos dias de hoje.

Para agravar mais o nosso relacionamento e dado a aproximação do fim da Comissão, recusei-me a assinar um termo de responsabilidade de tudo o que se relacionava com material sanitário sem que fosse feito um inventário ao mesmo. Mais zangado ele ficou comigo. Com isto, o Segundo Sargente esteve até ao último dia que lá permaneci a trabalhar para mim elaborando autos de consumo ou extravio de materiais.

Um outro caso muito estranho lá fui encontrar nesta Companhia. Um dos quatro Cabos Enfermeiros não fazia mais nada que não fosse comer e dormir. Achei muito estranho este ter tirado o Curso de Cabo Enfermeiro e já se terem passados dezassete meses de Comissão e, vir a saber, que esta criatura nada fazia porque dizia não ter coragem para ver sangue e para dar qualquer injeção. Resumindo, este lorde diariamente castigava os outros três Cabos Enfermeiros com uma sobre carga de trabalho.
Fui primeiro ter uma conversa com o Capitão da Companhia acerca deste caso. Pedi-lhe que me fornecer dados sobre aquela situação.
Respondeu-me que nenhum militar confiava nele e, como tal, só os outros três acompanhavam as patrulhas e atendiam todas as necessidades do Posto Médico.

Este espertalhão natural de Almada passou até então meses gozando com o pessoal. Como foi possível darem-lhe o posto de Cabo Enfermeiro? Interroguei-me eu! Vou ter aqui mais uma dor de cabeça, mas não irá terminar a Comissão sem que vá nem que seja uma única vez numa patrulha para o mato, meditei de seguida.
Falando com o Capitão, acertei com ele os detalhes. Disse-lhe que a partir daquele dia eu iria verificar os conhecimentos de saúde daquele Cabo.

Pedi ao Cabo Enfermeiro para arranjar uma almofada velha para treinar à minha frente como espetar uma agulha. Recuou uns passos e foi dizendo que não ia resultar dado que muitas vezes tinha tentado e não conseguia sequer olhar para a agulha. Reafirmei-lhe que era uma ordem minha que teria de cumprir. Assim aconteceu, mas tentando sempre fazer batota.
Como o inventário que eu juntamente com o Segundo Sargento estávamos a realizar a todo o material sanitário, este trabalho ocupava-me muito tempo. Deste modo nem sempre era possível pôr o Cabo treinar a dar injeções como também fazer um penso.

Andava eu naquela azáfama, quando num dia, ao começo da tarde e encontrando-me a descansar um pouco no meu quarto, eis que surge o Cabo Enfermeiro Carlos Gomes muito aflito dizendo-me que se encontrava no Posto Médico um jovem com parte da rótula do joelho em mau estado e sangrando bastante.
Reagi logo e pedi-lhe para colocar o jovem em cima da maca, e esta em cima duma mesa que lá se encontrava. Também que fosse preparando o material como pinças, tesouras, estilete e tudo mais necessário para fechar o golpe, bem como, desinfetar e isolar o local do referido joelho para eu o tratar.

Vesti-me e passando água pelos olhos, lá me dirigi ao meu posto de trabalho.
Espanto meu quando o vi com os dedos segurando num pouco de algodão embebido em mercúrio ou cromo e, passando a medo em volta do golpe, mas com o rosto virado para as suas costas como tivesse nojo do que tinha na sua frente. Passei-me, e, com o meu braço esquerdo, segurei-o pelo pescoço encostando-lhe a cara ao joelho ferido do jovem, ao mesmo tempo que gritando com ele lhe dirigi palavras amargas. Nunca pensei ir encontrar tamanho malandro e matreiro com o posto de Cabo Enfermeiro.

Embora eu tivesse naquele momento os nervos à flor da pele, olhei para o jovem ferido que gemia de dores e dediquei-me sem demoras tratando-o.
Comecei por isolar devidamente a zona do joelho a tratar, mas sempre dizendo ao Cabo Enfermeiro para não deixar de olhar para as minhas mãos e para o golpe. Abri um buraco numa compressa para que a linha de sutura apenas tocasse em zona desinfetada. Lentamente fui retirando, com o auxílio de uma sonda, pequenos pedacitos de ossos da rótula e comecei a fechar-lhe o golpe sem que antes lhe tivesse aplicado anestesia local. Acabei de fazer a sutura, ensinei o Cabo a desinfetar de novo toda a zona, e a proteger devidamente o joelho do jovem com compressas e respetiva ligadura. Transpirei não só pelo calor que aquela hora se fazia sentir como também pela zanga que aquele traste me provocou.

Continuei a dar-lhe ensinamentos e, certo dia, combinei com um Alferes o levar numa das patrulhas que habitualmente fazia. Ficou receoso da responsabilidade que ele iria ter para com os seus homens no caso de poderem ser atacados pelo PAIGC.
Disse-lhe que estivesse tranquilo que ele iria dar conta do recado. Confesso que eu próprio continuava a não ter total confiança naquele traste. Foi ao mato e tudo correu bem para alívio do Capitão, do Alferes e meu. Deste modo deixou de gozar com o pagode. A partir daquele dia passou a dar injeções, mas só a pessoas da população já que os soldados continuavam a não confiar nele.

Vinte anos depois e no primeiro encontro de convívio do Batalhão, este cavalheiro fez queixas à mais tarde minha mulher dum tabefe que lhe tinha dado na Guiné. Disse-lhe que explicasse à minha mulher o acontecido e todos os porquês. Calou-se.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série 26 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23295: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VII

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23295: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VII

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte VII

O primeiro caso prende-se com mal-entendido entre mim e um dos meus Maqueiros, que encontrando-se adoentado, dei-lhe dispensa de trabalho durante uns dias. Porém, não cumpriria as regras determinadas para ter direito à despensa de trabalho, que era ficar em repouso e não andar fora no espaço do Quartel apanhar sol. 

Como o encontrei ao Sol e a dar instruções a outros Soldados que naquela altura cavavam uma vala e torno do Quartel e na parte interna deste, como de um capataz se tratasse,  disse-lhe que lhe iria retirar a dispensa já que, se estava bom para se armar em capataz, também já se encontrava com saúde para trabalhar no posto Médico. Amuou e, baixando a cabeça, retirou-se, acompanhando-me até ao nosso local de trabalho.

Chegou a noite e como me era habitual sempre que não me escapava para o bailarico, ia para o Posto Médico escrever para os meus familiares e namorada que tinha na altura. Devo já acrescentar que este Maqueiro dormia permanentemente neste local, devidamente autorizado. A certa altura da noite e, estando eu tranquilamente sentado à secretária escrevendo, reparo que ele se dirige para a porta de entrada e saída e a fecha. 

Achei estranho e, de repente, apanha a G3 que tinha distribuída, dirigindo-se para mim e, colocando-se em frente da secretária onde me encontrava sentado a escrever, qual não é o meu espanto, aponta-me aquela arma à minha cabeça, ao mesmo tempo dizendo-me que eu não gostava dele, que lhe queria estragar a vida e mais outras baboseiras. 

Como tremia demasiado com a arma apontada para mim apontada, eu encontrando-me com as minhas pernas impedidas de me poder levantar rapidamente, só via como hipótese de defesa usando a psicologia das palavras e, em último caso, usando a rapidez de um dos meus braços desviando e, ao mesmo tempo segurando, o cano da arma. Como poucos anos atrás tive aulas de judo, todas estas emoções passaram pela minha cabeça rapidamente. 

Felizmente que as minhas palavras surtiram efeito naquela cabeça tonta que, baixando a arma retirou-se para a sua cama chorando e, ao mesmo tempo dizendo, que tinha desgraçado a sua vida. Levantei-me da secretária com o meu corpo todo elétrico, não lhe dirigindo qualquer palavra. Abri a porta e saí para o exterior, respirando fundo e começando a pensar na atitude a tomar no dia seguinte com aquele esmiolado soldado.

Pouco ou quase nada dormi naquela noite. O caso não era para menos dada a sua gravidade. Ou participava o acontecimento aos órgãos superiores e ele iria a tribunal de guerra ou lhe teria que dar uma lição verbal reunindo todos aqueles que trabalhavam sobre as minhas ordens, contando o sucedido para ele se sentir envergonhado. Assim, ainda muito cansado física e moralmente, logo pela manhã e antes de começarmos o atendimento, tanto a consultas como a outros tratamentos de saúde, reuni todo o grupo e fechei a porta da entrada do Posto Médico.

O Anacleto, assim se chamava e penso que ainda se chama porque creio ainda se encontra vivo, mantinha-se enroscado na sua cama chorando. O meu pessoal olhava para todos os lados não percebendo do motivo da reunião e da porta fechada ao exterior. Coloquei-me em frente da secretária e, bem alto, perguntei a todos se algum deles tinhas razões de queixa sobre a minha forma de me relacionar com eles no trabalho e fora deste. Em coro repetiram que não e, o porquê da minha pergunta? 

Então, serenamente, lhes contei todo o sucedido da noite anterior naquele espaço. Revoltados, atiraram-se ao Anacleto chamando-lhe tudo e mais alguma coisa. Este, continuando num pranto, pedia perdão sobre o seu ato. Todos foram dizendo que ele não era merecedor do meu perdão. Desmobilizei-os dizendo-lhes que iria pensar na minha atitude a tomar para com o Anacleto. Resolvi não o enviar para a prisão perdoando-lhe. 

Até há três anos, data do último encontro de todo o nosso Batalhão, a última vez que o vi, me procura dar os maiores elogios e palavras carinhosas. Não estou arrependido de lhe ter perdoado. Fiquei triste sim, nos últimos dias de permanência no Pelundo, quando li em ordem de serviço um louvor dado pelo Comandante ao Anacleto. Apenas e só isto me deixou por momentos triste.

Outro caso um pouco semelhante aconteceu com o Furriel Miliciano e Vagomestre Martins.

O Martins, vinte anos após o nosso regresso da Guiné, aquando o nosso primeiro encontro vinte anos depois, ficou sendo um dos meus melhores amigos, enaltecendo para todos os outros as minhas qualidades como homem e como Enfermeiro que tinha sido para todos no Batalhão e não só.

Como no começo desta descrição narrativa da minha passagem pela Guiné em tempos de guerra, fora o pessoal de saúde que me acompanhava e que comecei a conhecê-los no navio Niassa, o Martins foi dos Furriéis Milicianos que primeiramente comecei a conhecer porque ficamos ambos a dormir no Quartel Seiscentos em Bissau juntamente com mais outros dois (um Segundo Sargento e um Furriel Miliciano que se identificou como meu colega de profissão) no mesmo quarto.

Cedo verifiquei quão jogador e ambicioso era este Vagomestre. Com frequência se gabava dos negócios que fazia e que lhe deixavam margens de lucros para ele, principalmente, na aquisição de frutas para as nossas refeições. Já no Pelundo, passados vários meses da nossa estadia nesta povoação, os Soldados traziam-me queixas sobre a qualidade e quantidade da alimentação que o Martins lhes fornecia. O meu Maqueiro Anacleto diariamente me fazia queixas sobre a alimentação no Quartel. Também já tinham passados uns meses depois do caso que tive com ele, atrás descrito, tendo-se tornado um colaborador nato disposto a fazer tudo o que lhe pedisse.

Por esta altura, o Vagomestre Martins adoeceu com paludismo. Muito febril e queixoso, entrou tremendo como varas verdes porta dentro do Posto Médico dizendo: 
- Figuinha tenho medo de vir a morrer. Ó minha mãezinha que já não te volto a ver! 

Pedi para lhe verificarem a temperatura ao mesmo tempo que lhe ia dizendo que de tão patife que ele era para a barriga dos Soldados, não seria desta que morreria. Perguntei aos outros Maqueiros e a um outro Soldado que lá se encontrava se era verdade o que à boca cheia se dizia no Quartel que o Vagomestre estava a roubar à barriga dos Soldados. Em coro foram dizendo que sim, embora o Martins fosse dizendo que era mentira, gemendo e tremendo devido ao seu estado febril.

Mandei sair o estranho ao Serviço de Saúde e mandei preparar uma injeção para lhe ser aplicada. Ao mesmo tempo disse ao Anacleto que fizesse o tratamento ao Furriel de acordo com a maneira como ele os alimentava. O Martins rogava para ser eu a dar-lhe a injeção ao que eu me recusei. Dei então ordem para lhe espetarem a agulha numa das nádegas e que aguentassem a introdução do líquido para o curar que se encontrava já na seringa para injetar na sua nádega, até quando eu o ordenasse. 

Entretanto fui dizendo ao Martins que estava merecendo aquela forma de ser tratado para que nunca mais voltasse a alimentar mal os nossos Soldados. O Martins sofrendo esta humilhação, começou logo a ameaçar-me de morte, caso ele não viesse a morrer primeiro do paludismo que naquele momento sofria. Não lhe dei resposta e, passados mais de dez minutos de ter a agulha espetada na nádega, ordenei que acabassem com o tratamento e passei-lhe dispensa de trabalho durante seis dias. Praguejando lá foi lentamente para a cama que se situava no mesmo abrigo onde eu também dormia.

Sempre que eu entrava no abrigo para descansar,  ele me fazia ameaças mas sem dizer das razões perante os outros Furriéis que lá dormiam. Gozavam era com ele por estar sempre com queixinhas.

Logo que lhe passou o estado febril, ia eu depois do almoço tentar descansar um pouco no nosso abrigo quando me aproximei da entrada deste que, tal como os outros abrigos não possuía porta de entrada, o Martins barrou-me a entrada, ao mesmo tempo apontando o cano da G3 ao meu peito. Enfrentei-o olhos nos olhos, ao mesmo tempo lhe ia dizendo que de tão cobarde que ele era, não teria coragem para me dar um tiro. Desviou-se e eu entrei para descansar um pouco na minha cama.

O Martins tal com a maioria dos Furriéis Milicianos do Batalhão, raramente saíam do arame farpado a não ser em serviço. À noite, então nem pensar. Preferiam ficar a jogar às cartas e a beber cerveja. Tudo faziam para não se misturar com a população. Dado eu ter um comportamento diferente, à surdina chamavam-me – Preto Branco! 

Estes nunca viram com bons olhos a minha maneira de proceder, mas que, talvez sem o pensarem, os ajudei a sobreviver durante aquele tempo. Muitos anos passados alguém bem alto disse a alguns deles que, de certo modo, saíram vivos do Pelundo devido à minha atuação junto da população.

Em 209 ou 2010, num dos nossos convívios, neste caso na Cidade da Guarda, o Martins convidou-me para lhe fazer companhia mais à esposa, ao jantar num dos restaurantes da Cidade que ele bem conhecia. Enquanto esperávamos pela refeição, resolveu contar à esposa, em modo de queixa, o que eu lhe havia feito na Guiné. Ela, incrédula, olhou para mim, perguntando-me se tinha sido verdade. Respondi-lhe que sim, mas que o marido lhe contasse das razões porque assim procedi. Voltou a negar aquelas razões, mas a esposa logo se calou acabando assim o tema. 

Nunca mais se falou do assunto, transmitindo-me sim uma grande amizade. Dei-lhe uma grande lição. Acrescento que por natureza, e porque um irmão meu em 1960 como Soldado veio para esta terra, me havia contado das privações alimentares e não só, que por cá tiveram. Não consegui durante toda a minha comissão aceitar e calar qualquer mau trato injustificado que este ou aquele Soldado sofresse.

Acontecia também que Soldados, com maus hábitos de jogo da batota, escreviam para a família dando notícias falsas com o objetivo de, com a lamúria, receberem pelo correio compensações para colmatarem o perdido no jogo. Tivemos pelo menos um caso destes na CCS. Tratou-se de um Soldado Condutor da região do Porto, já casado e muito sabido. Este era também vocalista do conjunto musical existente no Batalhão.

Pelo que me foi dado saber, por várias vezes perdia no jogo grande parte do vencimento, mal o acabava de receber. Escrevia então para a mãe e para a esposa pedindo-lhes dinheiro. Num dos casos, esqueceu-se de fechar o aerograma ficando este aberto em cima da sua cama. Um colega seu deitou-lhe os olhos e ficou perplexo com o conteúdo do texto. Nele relatava que se alimentava muito mal porque, além da comida ser escassa, era de má qualidade e, como tal, tinha que gastar o dinheiro do vencimento no bar para se alimentar melhor. Que quase todos os dias o Quartel era atacado, e que, mesmo naquele momento, teve que se ir refugiar numa vala com as balas a passarem-lhe por cima da cabeça! Esta descoberta deu azo a um gozo enorme que os colegas lhe fizeram, mas que pouco se importou. Era um Soldado com muita lábia!

Tive também um caso com ele relacionado com a saúde que por ser muito ridículo não o relatarei.

Enquanto estive fisicamente no Pelundo, só por uma vez e numa noite que estive de serviço ao Quartel, houve uma troca de tiros durante cerca de pouco mais de trinta minutos. Seriam cerca das dez horas da noite quando eu, encontrando-me no Posto Médico, comecei a ouvir troca de tiros. Como estava de Sargento de dia ao Quartel, procurei logo saber o que se estava a passar.

Apenas tinham passado poucos minutos, quando vejo chegar pela rua e estrada principal os militares que nessa noite tinham ido para o baile. De entre eles, o Médico que, dado ser de corpo gorducho, chegou deitando os bofes pela boca, juntamente com dois dos Maqueiros da minha equipa. Eu só não me encontrei nesta situação porque como já descrevi, encontrava-me de serviço e adoentado.

No Quartel apagaram-se as luzes interiores restando os holofotes dirigidos para fora do arame farpado. Passados poucos minutos tudo acalmou. Saiu logo um pelotão da Companhia Operacional para se inteirar dos acontecimentos mas, passadas cerca de duas horas, chegaram sem contactos com o inimigo. 

Soube no dia seguinte, que perto dali tinha passado gente graúda do PAIGC, então enviaram uns poucos para junto da Aldeia dar uns tiros para ocupar a tropa no Quartel, já que era hábito, a Companhia Operacional ir diariamente patrulhar a zona perto da povoação. Nada encontraram de anormal.

Na estrada que ligava Teixeira Pinto (hoje Canchungo) passando pelo Pelundo e Có, até ao cais de João Landim, no Rio Mansoa, muitas emboscadas foram feitas pelo inimigo. Recordo que os primeiros feridos de guerra que vi e tratei, foram paraquedistas emboscados na chamada “curva do Dimple”, como era por mim conhecida nesta estrada. Outras companhias aí sofreram emboscadas. Devo referir aqui que, do meu Batalhão e durante toda a comissão, e desde que eu estive por aquelas bandas, nenhuma escolta nossa foi emboscada. Eu, por diversas vezes, fiz aquele percurso sem que tivesse contactos com o inimigo. Por norma não levava qualquer arma comigo.

Todo este percurso até ao Rio Mansoa era de terra batida na altura que eu fui para o Pelundo. O nosso pelotão de Sapadores, diariamente inspecionava aquela via. Porém, pouco tempo depois, toda ela foi alcatroada e as suas margens com mato cortado até uma distância que dificultasse ao inimigo emboscadas próximas do alcatrão.

Em Bissau e na Direção de Saúde, interrogavam-se admirados por as nossas escoltas não sofrerem emboscadas. Eu meio a sério ou brincando um pouco, dizia-lhes que por certo se devia ao modo como viam os seus familiares serem bem tratados por mim. Certo é que o meu colega de profissão civil e chefe da Granja Agrícola de Teixeira Pinto, familiar ainda de Amílcar Cabral, procurava sempre ir tratar de assuntos a Bissau quando eu também lhe fazia chegar informação do dia que eu pensava ir. Muitas vezes lhe perguntei da razão da sua escolha sendo ele natural da Guiné, trabalhador e chefe duma Granja local e, ainda por demais, familiar do Chefe da Guerrilha. Sempre teve resposta pronta. As balas não escolhem quando são disparadas e sei que a escolta onde tu vais não será atacada. Felizmente assim aconteceu durante todas as viagens que tive que fazer durante a comissão.

(Continua)

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Nota do editor

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terça-feira, 24 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23288: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte VI

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte VI

Vinte anos depois do meu regresso, aquando do primeiro encontro do Batalhão para um almoço de convívio na cidade de Évora, ao chegarmos ao restaurante (eu e minha mulher e o meu amigo Tunes), mal nos tínhamos sentado, quando para espanto meu, apareceu o Major e o Tenente Coronel, os quais se foram sentar mesmo ao meu lado direito. 

Senti que o ambiente iria a ficar pesado já que, sentado na mesma mesa e, à minha frente, encontrava-se o Alferes Tunes que o Major tinha enviado para prisão durante dez dias. Derivado a este castigo, o Tunes ficou na Guiné mais tempo.

Se por um lado se ouviu um coro de parte dos companheiros militares que com alguma ironia diziam, “como eles eram amigos!”, eu e o Alferes perdemos parte do apetite para o almoço. Mais, a certo momento, o Major virou-se para a minha mulher,  dizendo-lhe que eu tinha as mulheres que queria no Pelundo. Continuou dizendo que, no caso dele, se deslocava a Bissau quando necessitasse. Como eu previamente tive o cuidado de prevenir a minha mulher para possíveis provocações do Major, ela respondeu-lhe:
- Ainda bem que fico a saber que o meu marido era assim tão querido pelas mulheres da aldeia onde tinha estado! 

Calou-se, não fazendo mais provocações. Pelo meu lado, não lhe alimentei conversas. Este Oficial tentou desde o primeiro dia que nos conhecemos fazer-me a vida negra.

Quanto ao Comandante do Batalhão 2884, Romão Loureiro, posso começar por o descrever como uma personagem austera com os mais fracos, mas demasiado medroso para com os seus superiores e, neste caso, com o Comandante-Chefe General António Spínola.

Com a maior das facilidades levantava a mão para os soldados e não só! Era conhecido entre nós pelo nome de “Cavalo Branco”. Tudo fez durante a comissão para cair nas boas graças do General.

Como fui mobilizado apenas dez dias antes do embarque para a Guiné e como fiquei em Bissau de Maio até fins de Setembro de 1969, interrompido este tempo com as minhas férias no Continente em Outubro do mesmo ano e intercalando também o tempo que estive em Buba, só já no Pelundo tive a oportunidade de o começar a conhecer.

Como a minha missão estava destinada à ação psicológica com a população, cedo comecei a conviver com a mesma.

Esta minha atitude nunca foi do agrado dele e piorou com as minhas saídas noturnas, primeiro para conviver com pequenos grupos na palhota e mais tarde nos bailaricos quase diários numa espécie de discoteca. 

Nos convívios de grupo, quase maioritário de jovens raparigas, encontrava-se sempre aquela que desde o primeiro dia tomou conta da minha roupa. Pretendi deste modo começar a captar o modo de vida deles, captar pequenas frases linguísticas e, principalmente, ganhar a sua confiança. Não me foi fácil estar só muitas vezes até à meia-noite, hora a que regressava ao Quartel para admiração do soldado que se encontrava à porta de armas. 

Quanto aos bailaricos, foram um meio de convívio dos militares mais os jovens da aldeia durante toda a comissão sem que alguma vez desse origem a confusões. Combati deste modo algum stresse que o ambiente de guerra nos colocava na mente.

Cedo começaram as ameaças do Comandante sobre a minha forma de lidar com os militares e com a população. Num desses dias, estando eu numa cavaqueira com um filho do Régulo Vicente, que por sinal fazia parte do grupo de Milícias que colaboravam com as nossas tropas, durante a nossa conversa coloquei a certa altura uma das minhas mãos no ombro deste. 

Como o local onde isto se passou ficava em frente da Messe de Oficiais e, nesse mesmo momento, o Comandante lá se encontrava a ler o jornal, reparou no meu gesto de colocar a minha mão no ombro daquele nativo. Logo que este Milícia se ausentou, o Comandante chamou-me dizendo-me ao mesmo tempo que na próxima me castigaria com trinta dias de prisão acaso me visse repetir aquele meu gesto. Prontamente lhe respondi que eu também participaria do Comandante junto do General Spínola, já que, estando eu incumbido de executar a ação psicológica junto das populações, o meu Comandante estava a contrariar as ordens do General. Calou-se de imediato.

Poucos dias depois deste acontecimento, durante uma manhã, um irmãozito da jovem Judite foi ter comigo ao Quartel levando-me uma bela manga. Para azar meu, dirigi-me à entrada da Messe de Oficiais onde o Cabo responsável por esta encontrava-se em conversa com o Comandante. Depois de acabar o diálogo entre ambos, solicitei ao Cabo que por favor colocasse no frigorífico a manga para eu comer ao almoço. 

Espantado fiquei ao ver a rapidez com que o Comandante se levantou pedindo ao Cabo Cozinheiro que lhe desse a manga e trouxesse para a mesa dois pratos e respetivos talheres para que ele e eu a saboreássemos naquele momento. Mantive-me sereno em frente dele, mas à porta da Messe ordenei ao cabo Cozinheiro que não queria talheres nem prato para mim porque não me iria sentar para comer a manga. 

Mal o Cozinheiro virou costas, perguntei ao Comandante se não gostando de negros, ia comer fruta dada por eles! Continuei dizendo-lhe que lhe fizesse bom proveito porque de onde tinha vindo aquela manga voltariam a trazer-me mais. Reação do Comandante: 
- Assim já não me vai saber tão bem! 

Virei costas sem lhe alimentar mais diálogo.

Durante a ano de 1970 (não me recordo já em que mês), foram colocadas tarjas por cima e na parte frontal da parede das messes de Sargentos e Oficiais com referências aos anos que se tinham passado desde que os Portugueses haviam chegado à Guiné, e ao desenvolvimento desde então daquela Província Ultramarina.

Ao passar junto das mesmas não aguentei o meu desacordo e, bem alto, disse sobre os anos de atraso mental daquela gente da Província. O Comandante, que naquele momento se encontrava sentado na messe de Oficiais e bem perto da porta de entrada desta, ao ouvir o que eu acabava de dizer, chamou-me aos gritos dizendo que me iria dar trinta dias de prisão. Prontamente preguntei-lhe que desenvolvimento tinha sido feito, já que era eu a ter que aprender o idioma deles para os compreender sempre que, e principalmente os mais velhos, se dirigiam ao Posto Médico? Calou-se engolindo em seco e a custo. Porém, foi-me dizendo que não perderia pela próxima já que não me perdoaria.

Certa manhã chamou-me ao seu gabinete juntamente com outro Furriel Miliciano natural dos Açores, recentemente chegado ao Pelundo em rendição individual. Deu-nos um grande raspanete, principalmente a mim, dizendo-me que estava a desencaminhar o Periquito (nome dado aos militares recém chegados à Guiné) pois, mal ele tinha acabado de chegar, já eu o estava a desencaminhar levando-o aos bailes na Aldeia durante a noite e após o jantar e, ao mesmo tempo, levantou a sua mão, desferiu uma chapada na cara do açoriano. Encaminhou-se de seguida para mim a fim de me fazer o mesmo. Levantei a minha voz dizendo-lhe que pensasse bem no que ia a fazer. Recolheu a mão e, mais uma vez, lançou-me ameaças. 

Por esta altura eu já tinha o Comandante por cima dos meus cabelos até porque numa das tarde passadas anteriormente havia simulado abrir uma das cartas enviadas pela minha namorada.

Sempre que havia falta de algum medicamento específico para tratar uma doença, tanto o Médico como eu enviávamos para os Serviços de Saúde de Bissau uma requisição individual daquele medicamento num pequeno pedaço de papel, o qual teria que ser assinado pelo Médico ou por mim, levando por último a assinatura do Comandante.

Aconteceu que no dia seguinte em que o Comandante Romão Loureiro tinha tentado dar-me uma chapada na cara, tive necessidade de voltar ao seu gabinete levando uma requisição de medicamentos para assinar. Ainda revoltado comigo sobre os acontecimentos do dia anterior, disse-me de pronto que não assinava nada já que eu não incluía na requisição um medicamento que ele habitualmente tomava. 

Respondi-lhe dizendo que não me tinha feito qualquer pedido e, como tal, eu não o tinha incluído na lista. Disse-lhe ainda que, como Comandante do Batalhão, recebia um bom ordenado para poder comprar aquele medicamente numa Farmácia em Teixeira Pinto e disse-lhe ainda que, recusando-se a assinar a requisição que tinha à sua frente, a mesma seguiria para Bissau apenas com a minha assinatura, acompanhada de uma justificação minha acerca dos motivos da falta da assinatura do Comandante. Se estava irritado comigo ainda mais ficou e, bruscamente, pediu-me a merda do papel (palavras textuais dele) para assinar.

Por momentos perdi a cabeça e, com o meu sistema nervoso excessivamente alterado perguntei-lhe se sabia qual a arma que eu possuía para minha segurança. Respondeu-me que deveria ter uma G3 ou uma pistola qualquer. Disse-lhe então que apenas tinha uma granada defensiva que por vezes levava comigo escondida quando ia para o bailarico à noite e, de seguida, fui-lhe dizendo que não quisesse que a mesma fosse utilizada naquele gabinete, pendurando-lhe os tomates ao teto. Rapidamente saí daquele espaço não esperando por qualquer reação dele.

Passei de seguida o resto do dia praticamente fora do Quartel. Chegou a noite e, ao passar em frente da Messe de Oficiais, dirigindo-me à minha para jantar, senti a voz do Comandante chamar-me. Temi o que dali poderia vir. Encontrava-se a mesa já repleta de Oficiais esperando pelo jantar. O Comandante pediu-me para me aproximar dele e ao centro da mesa. Então, começou por me fazer várias perguntas: ”Se eu me alimentava bem, se dormia bem, já que eu não poderia ficar doente pois que iria fazer muita falta aos militares ali estacionados e à população”. 
– Já prensaste bem se tu ficares doente o que nos pode acontecer? – Alertou-me ele, e ao mesmo tempo fez-me baixar o tronco e, passando-me a sua mão no meu rosto, foi dizendo que eu estava muito magro e que tinha de alimentar-me melhor. Agradeci-lhe os cuidados que tinha para comigo e saí dirigindo-me à Messe de Sargentos para jantar.

Mal acabei de jantar fui para o Posto Médico. Estava eu meditando no que tinha acontecido naquele dia quando apareceu o Alferes Francisco da Companhia 86, natural do Algarve, que, eufórico, quis saber o que se teria passado entre mim e o Comandante para ele ter tido toda aquela conversa pública comigo e ter-me passado a mão pelo meu rosto. De seguida, com um ar de malandro que tinha, foi-me perguntando se o Coronel tinha dado em “Paneleiro”.

Respondi-lhe que não era o momento certo para lhe contar qualquer acontecimento, mas que talvez um dia mais tarde eu lhe poderia contar. Até hoje não o voltei a encontrar, mas este caso, já o desabafei numa página sobre os antigos Combatentes da Guiné. Emagreci uns bons quilos naquele dia. Fiquei com o meu sistema nervoso tremendamente alterado. Não sei se foi por vingança, mas passados uns tempos enviou-me para uma nossa Companhia operacional que se encontrava na povoação de Có.

O meu dia-a-dia continuou com as preocupações na saúde não só dos militares como da população e, sobre esta, aumentando o meu convívio diário ao ponto de uma das muitas mães da Aldeia que me foram conhecendo e gostavam da maneira como eu as tratava e aos seus familiares, pediu-me encarecidamente que quando eu regressasse ao Continente entregar-me-ia uma das suas pequenitas para que eu lhe pudesse dar uma educação que ela mãe não tinha capacidade para lhe dar. 

Era uma família Fula de sentimentos muito afetivos para todos nós. Respondi-lhe que com muita mágoa minha não poderia satisfazer o seu desejo porque, sendo oriundo de uma família muito pobre, não possuía recursos financeiros para satisfazer os seus desejos, além de ser para mim uma grande responsabilidade. Tenho comigo ainda hoje uma fotografia onde aquela pequenita se encontra pendurada ao meu pescoço. Mal me via, corria logo para os meus braços.

Alguns casos mais marcantes da minha estadia irei relatar, resumidamente, de seguida.

(Continua)

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Nota do editor

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sábado, 21 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23282: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte V

1. Parte V da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte V

Como já tive ocasião de mencionar atrás, tudo fiz para criar todas as condições que me levassem a ter uma comissão tranquila o mais possível nesta minha passagem pela Guiné. Porém, nem o Comandante nem o segundo Comandante me deram tréguas até ao último dia que passei no Pelundo.

Depois de logo no início ter recusado ao segundo Comandante (Major Pinho) o álcool para limpar o cachimbo, tivemos mais uma pega passado pouco tempo.

De Bissau, e juntamente com os medicamentos que mensalmente eu requisitava, o primeiro-sargento da CCS, que chefiava este serviço, juntou particularmente umas embalagens de Dum-Dum para o pessoal de saúde. O Major, que mal desconfiava da chegada dos caixotes com material sanitário, aproximava-se da porta do posto médico para dar uma espreitadela ao que vinha nos ditos caixotes. Ao ver as embalagens de Dum-Dum, voltou-se logo para mim dizendo que ele e o Comandante também tinham direito a serem contemplados. Para me ver livre dele, dei-lhe duas embalagens com a condição de uma delas ser para o Comandante.

Passados dois dias já estava a pedir mais uma embalagem porque já tinha gasto a que lhe tinha dado. Disse-lhe que não, já que as existentes eram do pessoal de saúde porque se tratava de uma oferta tal como dois frascos de “Oratol” que me eram oferecidos. Zangou-se ficando furioso comigo. Acabei de o comtemplar com um frasco de inseticida para encher uma bomba a fim de matar os mosquitos.

Este Major criou o hábito de pedir às jovens que o deixassem tirar-lhes fotografias. Mas tentava sempre que colocassem as mamas ao léu para mais tarde as poder projetar. Não concordando eu com a atitude deste homem e militar com grandes responsabilidades, contrariando também com tudo que eu tentava fazer junto da população, falei com as jovens para não se deixarem fotografar. Sabendo que a recusa delas se devia a uma ordem minha, fez-me ameaças de prisão para mim mal me apanhasse em falta. A guerra entre nós dois acentuou-se. Eu já não podia ver semelhante militar.

Deste modo, e dado me ameaçar com prisão constantemente, todas as oportunidades que fui tendo para lhe moer o juízo, tudo fiz para não deixar perder nenhuma.

Em frente da residência que tinha sido construída para os Professores que fossem colocados no Pelundo, para dar aulas na Escola anexa a esta residência e, quase também em frente desta, foi também construído um chafariz. No dia da sua construção, foi colocado um Milícia a vigiar o mesmo, enquanto o cimento estivesse fresco.

Nessa tarde, e como era meu hábito entre o fim da hora de serviço e o jantar, fui dar o meu passeio pela aldeia. Aproveitei também para ir dar uma injeção à Professora. Esta, encontrando-se adoentada, solicitou-me que o tratamento que o médico lhe havia receitado não fosse efetuado senão por mim e na sua residência, já que no Posto Médico não havia a privacidade que ela desejava ter.
Nessa tarde, aproveitei também para ver o chafariz e conversar um pouco com a Professora mais o irmão que vivia com ela. Depois de lhe ter administrado a injeção convidaram-me para jogar com eles uma partida de cartas.

Estávamos os três (eu a professora e mais o irmão desta) assim entretidos, quando o Major passou de jipe em frente do chafariz e não parou, seguindo em frente nessa estrada que poucas casas ou palhotas tinha. O tempo passou e começou a escurecer. Comentei para a Professora e para o irmão que estava a achar estranho não ver o Major de regresso para o Quartel. Nisto, o Milícia, que se encontrava como atrás descrevi a guardar o chafariz, veio ter comigo dizendo-me baixinho que o Major se encontrava na esquina de uma palhota e atrás da residência da Professora a espiar-me. Como já era bem escuro, levantei-me do lugar onde me encontrava sentado e, elevando bem a minha voz preguntei: – Quem será o filho da p… que se encontra ali no escuro a espiar-nos? – Ora se fosse a espiar a c… da mãe dele! Regressei ao meu lugar e reparei que a Professora tinha ficado vermelha que nem um tomate bem maduro apesar de ter cor bem morena. Baixinho, foi-me dizendo que eu poderia vir a ter graves problemas com Major. Voltei a levantar a minha voz dizendo que de noite todos os gatos são pardos. Continuei dizendo que quem quer que fosse e que estivesse ali a espiar-nos não passava de um cobarde. Deixei-me ficar por mais cerca de uma hora e só depois me dirigi ao Quartel. Confesso que mal dormi nessa noite.

Na manhã seguinte e como me era habitual, fui tomar o pequeno-almoço já com a messe de Sargentos fechada. Estava eu tranquilo a beber o café com leite quando entra de rompante o Major gritando para os cozinheiros e dando-lhes uma grande reprimenda por me estarem a servir o pequeno-almoço aquela hora. Foi dizendo que ele o Major e Segundo Comandante levantava-se antes das sete da manhã para tomar o pequeno-almoço antes das oito horas e, por isso, não tinham que me estar a servir naquela hora. Estes, muito aflitos e tremendo como varas verdes, responderam-lhe que não eram capazes de me negar o pequeno-almoço naquela hora até porque eu estava sempre disponível para eles fosse a que horas fosse. Achei então que deveria interferir e virei-me para o Major disse-lhe. – Eu, Figuinha de nome e Furriel Enfermeiro, levanto-me pelas oito horas da manhã para tomar o pequeno-almoço antes das nove horas, mas Major, se o senhor partir a cabeça pelas três da manhã, esteja descansado que me levantarei para lhe cozer a cabeça. Vendo que eu lhe tinha tirado os argumentos, virou o disco à conversa e pediu-me para ir ver uns pés de tomateiros que havia mandado plantar em volta do refeitório das praças e que, segundo ele, estavam a morrer. Respondi-lhe que fosse andando que eu lá iria dar uma espreitadela. Assim o fiz.

Na verdade, quando cheguei junto aos tomateiros, verifiquei que estavam morrendo.
Apareceu junto a mim o condutor do Major muito aflito com o que estava acontecendo e foi-me contando que tinha perdido o adubo que o meu colega da Granja de Teixeira Pinto lhe tinha entregado a meu pedido. Como o adubo era parecido com o sal, foi à cozinha pedir aos cozinheiros uma quantidade que aplicou junto aos pés dos tomateiros. Fiquei rapidamente a saber as causas da morte destas plantas. Baixinho, não fosse o Major ouvir já que não se encontrava muito afastado de nós, disse-lhe que o sal tinha queimado as plantas.

O soldado ficou logo a tremer de medo das possíveis consequências que lhe poderiam acontecer acaso o Major viesse a saber. Tranquilizei-o, dizendo-lhe que eu não diria nada ao Major e que iria tentar encontrar outras justificações para o sucedido. Calmamente, fui verificando os caules das plantas procurando alguma causa. Encontrei logo de seguida um tomateiro atacado pela rosca que perfurando o caule o fragiliza. Esta lagarta, eliminando o cerne por onde a planta se alimenta, provoca-lhe a morte. Chamei o Major para lhe mostrar a lagarta causadora da doença.

Neste mesmo instante passava por nós um cabo cripto que vinha assobiando de contente. O Major chamou-o gritando e perguntou-lhe de onde vinha. O cabo respondeu que vinha da aldeia. Então, a besta do Major aplicou-lhe logo uns murros e pontapés ao mesmo tempo que lhe ia dizendo que sendo detentor de segredos militares, não podia nem devia andar a passear fora do Quartel. Eu, apercebendo-me que o Major estava a vingar-se nele por não ter tido hipóteses de se vingar em mim, intervim dizendo-lhe que era uma barbaridade o que estava a acontecer. Parou, respirando fundo, lá foi pedindo-me desculpas dizendo-me que tinha perdido a cabeça.

O dia não ficou por aqui. Disse-lhe para ir até ao Posto Médico que eu iria a seguir ter com ele para lhe dar um remédio para aplicar nos tomateiros a fim de matar a lagarta.

Estava eu aproximando-me do mesmo, verifiquei que o Major atrevido foi apalpar as mamas de uma moça que esperava por consulta. Ela virou-se num repente, pregando-lhe uma valente bofetada. O Major recuou atarantado. Porem, foi perguntando se só o Furriel Figuinha tinha ordem de lhe apalpar as ditas mamas. A moça, sem mais, levantou a blusa e virando-se para mim pediu para lhas apalpar dizendo que a mim dava autorização para o fazer. Ele, ficando pálido, virou as costas, mas foi-me dizendo que ao meu mais pequeno descuido me aplicaria quarenta dias de prisão. Não lhe dei qualquer troco. Até ao fim da comissão as guerras entre nós os dois foram uma constante.

Um outro acontecimento, bem desagradável entre nós os dois, aconteceu numa altura em que o Médico se encontrava ausente, como no caso anterior. Numa das noites e após o jantar, encontrando-me ainda na messe com mais uns Sargentos e alguns Furriéis, entrou o Major que dirigindo-se a mim foi dizendo que se sentia adoentado com muitas dores de garganta. Pediu-me então medicação para o seu posto, ou seja para Major. Respondi-lhe que não entendia onde queria chegar já que todos os medicamentos que possuía não tinham posto militar. Estes, tanto eram para os Soldados como para os Oficiais. Voltou de novo ao princípio da conversa dizendo que ele tinha razão dando como exemplo as aspirinas do Laboratório Militar e as da Bayer. Que as da Bayer seriam para os quadros superiores e as do Laboratório Militar para os soldados e quadros intermédios. Perante o olhar perplexo de todos, já que segundo a ótica do Major se encontravam no segundo escalão, respondi-lhe que não concordava com a sua análise, ao mesmo tempo perguntei-lhe senão confiava nos medicamentos do Laboratório Militar e, caso afirmativo, teria que informar a Direção de Saúde Militar, em Bissau, bem como lhe disse que as aspirinas da Bayer, que possuía no Posto Médico, se destinavam ao pessoal do mesmo, pois tinha sido uma oferta de Bissau. Aproveitei sim, para lhe dizer que na verdade eu lá possuía material com divisas militares. Um desses materiais eram as agulhas para dar as injeções e, como tal, tinha lá uma com o posto de Major. Esta era comprida e grossa e já com a ponta bem virada e com alguma ferrugem. Deste modo, só lhe restava escolher entre a agulha ou os comprimidos. A agulha, apesar de ponta virada, entraria nem que fosse a murro e, ao sair, lhe faria um rasgo na nádega de modo a nunca mais se esquecer de mim. Prefiro engolir as pastilhas, disse-me ele logo a seguir, acrescentando que lhe fosse levar os comprimidos ao seu gabinete.

Logo que o Major saiu da messe, vários comentários foram feitos pelos presentes. Uns dizendo que eu me tinha excedido e como tal poderia ter consequências desagradáveis. Uns outros, mas poucos, enalteceram a minha coragem perante a arrogância do Major. Confesso que fiquei extremamente nervoso, mas não poderia deixar passar a imagem de que o exército possuía medicação conforme as patentes e, como tal, eu faria tratamentos diferenciados. Saí da messe e dirigi-me ao Posto Médico para encontrar medicação de acordo com as queixas que ele me apresentou, e que eram de uma gripe.

Com a medicação em meu poder, lá fui ter com esta encomenda ao seu gabinete. Aqui, voltou a provocar-me. – O que me estás a dar não serão comprimidos anticoncessionais? Respondi-lhe que não possuía tais medicamentos dado que não havia mulheres no Quartel. Respondeu-me dizendo que eu estava muito errado já que no Quartel havia muitas meninas disfarçadas em homens. – Mas não será veneno para me matares? – Voltou ele perguntando. Respondi-lhe de novo que ficasse descansado pois não tencionava matá-lo já que, se o fizesse, teria que gramar com um outro que o viesse substituir. Acrescentei que a ele já lhe conhecia as manhas e, acaso viesse outro, teria que demorar tempo a conhecer. Virei costas não lhe dando mais conversa.

Ao passar pela porta do quarto do Capelão, este chamou-me baixinho, dizendo-me que tinha ouvido a conversa entre mim e o Major e que tinha ficado preocupado. Foi-me dizendo que tivesse mais cuidado. Neste momento senti uma pancada nas minhas costas. Era o Major que, dirigindo-se ao Capelão, lá foi dizendo que eu era uma grande encomenda. Calmamente, retirei-me não alimentando mais o assunto.

A minha guerra com este personagem continuou. Um fim de tarde, altura em que por norma as jovens da aldeia e algumas já menos jovens levavam a roupa aos nossos militares, fazendo estas entregas junto da porta de armas e recolha de roupa suja, como também, recebiam o pagamento pelo trabalho prestado. Dizia eu que, numa dessas tardes, encontrava-me mais o Médico Dinis Calado e o Alferes Tunes em conversa com a jovem Judite que cuidava da minha roupa, bem como da do Médico, do Major Pinho e do Tenente Coronel Romão Loureiro. O tema da conversa era sobre a forma como ela se relacionava comigo. Os dois (Médico e Alferes) estavam fazendo-lhe perguntas provocatórias que ela, muito inteligente que era, ia dando a volta. Eis que aparece o Major vindo de Jipe e dirigindo-se à jovem, a íntima a ir cumprimenta-lo. – Então Judite, não vens cumprimentar o teu Major? Respondeu-lhe ela logo de seguida. – Não Major, o Figuinha não deixa. Bem, fiquei sem fala e o mesmo acontecendo ao Médico e ao Alferes que, ao meu lado, permaneciam. O Major baixou a cabeça e, carregando no pedal do Jipe, entrou em aceleração no Quartel. Médico e Alferes olharam para mim e comentaram que mais um problema eu teria pela frente. Ela, sorridente com a vitória que acabava de obter sobre aquela espécie de militar, acabou com a conversa e foi de regresso a casa. Sobre esta jovem escreverei mais na parte final do meu testemunho.

No dia seguinte, mal o Major me avistou de novo, ameaçou-me dizendo que no dia que me apanhasse em falta, me aplicaria quarenta dias de prisão. Para mim, foi mais uma que me passou ao lado.

Por orientação superior ou por vaidade dele, mandou construir no meio do Quartel uma espécie de monumento com as inscrições e emblema do nosso Batalhão. No dia anterior ao por ele destinado a ser inaugurado, mandou para a prisão (dez dias) o Alferes Tunes meu amigo e do Médico. A consternação deste caso foi geral entre todos nós. Nessa noite, eu, Médico e vários soldados e Furriéis fomos curtir as mágoas no bailarico. Procuramos regressar perto da meia-noite e, já no Quartel, o Médico fez um pequeno discurso virando-se para o local onde o Major estaria a dormir e, ao mesmo tempo, um pequeno grupo onde eu me incluía, demos início à inauguração, urinando sobre o dito monumento. O grupo era fixe para não dar com a língua nos dentes já que, se o Major viesse a saber, tínhamos o caldo entornado!

Por último, e para não escrever muito sobre esta personagem, no fim da comissão e no dia de regresso a Bissau, procurou-me para me dizer que eu não iria juntamente com os outros militares, mas sim, com ele no Jeep. Achei muito estranho este convite, mas calculei logo quais os motivos. Deste modo, mal chegamos a Bissau e o condutor nos levou até à porta do Hotel onde ele se alojava, dirigi-me ao Major dizendo-lhe que o convite que me havia feito foi para lhe servir de guarda-costas no percurso. Atrapalhado por verificar que eu tinha descoberto os motivos da minha companhia no jipe, começou a gaguejar e pediu ao condutor para me levar sem mais demoras ao local onde eu fosse ficar alojado, esperando o dia de embarque para Lisboa. O Major, sabendo do quanto eu era estimado pela população e estes tendo familiares na guerrilha, não me iriam fazer mal como em outras tantas vezes, eu já tinha feito aquele percurso.

(Continua)

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Nota do editor

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