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sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27447: Cerimónia Comemorativa do 107.º Aniversário do Armistício da Grande Guerra e 51.º Aniversário do Fim da Guerra do Ultramar, 18 de novembro de 2025: Simbolismo das coroas de flores depositadas no Monumento aos Combatentes do Ulramar (Luís Graça ) - Parte I


Foto nº 1 > Ministério da Defesa Nacional


Foto nº 2 : Forças Armadas de Portugal


Foto nº 3 > Força Aérea Portuguesa


Foto nº 4 > Marinha Portuguesa



Foto nº 5 > Exército Portuguès


Foto nº 6 > Deputados da Comissão de Defesa da Assembleia Nacional


Foto nº  7 > Guarda Nacional Republicana (GNR)



Foto  nº 8  > Liga dos Combatentes 



Foto nº 9 > Grupo de Adidos Militares Estrangeiros Acreditados em Portugal


Foto nº 10 > Ambassade de France au Portugal / Embaixada de França em Portugal


Foto nº 11 > Cruz Vermelha Portuguesa (CVP)



Foto nº 12  > Associação Nacional dos Prisioneiros de Guerra


Foto nº 13 > Amicale des Anciens Combattants et Militaires Français au Portugal (AACMFP)  / Associação dos Veteranos e Militares Franceses em Portugal


Figura nº 14 > Associação dos Deficientes das Forças Armadas (?)


Foto nº 15 > Coroas de flores no Monumento aos Combatentes do Ultramar (1)


Foto nº 16 > Coroas de flores no Monumento aos Combatentes do Ultramar (2)


Foto nº  17 > Coroas de flores no Monumento aos Combatentes do Ultramar (3)


Foto nº 18 > Coroas de flores no Monumento aos Combatentes do Ultramar (4)

Lisboa > Belém> Forte do Bom Sucesso > 18 de novembro de 2025 > 10h00 > Cerimónia Comemorativa do 107.º Aniversário do Armistício da Grande Guerra e 51.º Aniversário do Fim da Guerra do Ultramar, Coroas de flores junto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar

Fotos (e legendas): © Luís Graça  (2025). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: Bogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Fui, como convidado, e pela primeira vez (que me lembre!), participar numa cerimónia comemorativa do fim de uma guerra, aliás duas, a da I Grande Guerra (1914/18)  e a da Guerra do Ultramar (1961/74),  organizada pela centenária Liga dos Combatentes (LC).

A cerimónia decorreu entre as 10h00 e as 12h30 do passado dia 18 de novembro. Tendo chegado um pouco mais cedo, pus-me a observar e a fotografar as coroas de flores (mais de uma dúzia) colocadas na base  do Monumento aos Combatentes do Ultramar, localizado junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém, Lisboa. Ao centro, e alinhada com a "passadeira vermelha" para os VIP, estava a coroa do Ministério da Defesa Nacional, organizador do evento em conjunto com a Liga dos Combatentes. A cerimónia foi presidida, se não erro, pelo Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Por (de)formação profissional, gosto de pôr a mim próprio, mentalmente,  questões sobre o que vejo ou apreendo: o quê, onde, quando, como, porquê, por quem e para quem... 

De entre as formas de homenagem aos combatentes mortos nas guerras avulta a tradicional  deposição de coroas de flores funerárias. De repente intrigou-me a forma,  as cores e o tipo de flores das coroas funerárias, bem como a sua disposição espacial, na base do monumento, e em torno de um tapete vermelho por onde circulariam depois os representantes das entidades oficiais. 

Ora tudo isso não acontecia por acaso. Quis saber o simbolismo e o significado profundo que tem o uso das coroas de flores  na nossa cultura e na nossa sociedade, em cerimónias como estas em que se homenageiam os mortos caídos pela Pátria.

Com a ajuda das ferramentas de IA (ChatGPT e Gemini) e outras consultas na Net, fui respondendo a algumas das minhas questões. Para já fiquemos pela primeira parte: cores e espécies de flores, forma e estrutura das coroas. 

Numa segundo poste, falaremos da ordenação espacial das coroas das flores, que devem obedecer a um protocolo institucional. (A tropa tem horror ao  vazio e ao improviso, embora na Guiné, em teatro de guerra,  nos mandasse "desenrascar"...)


1. Têm um simbolismo que vai muito além da estética: representam memória, valores, emoção e, em última análise, a forma como uma sociedade encara o sacrifício (supremo) dos seus soldados. O uso de coroas funerárias remonta à Antiguidade Clássica, Greco-Romana. Afinal, já fomos escravos e colonizados pelos romanos.  (Não sabemos a língua que falava o nosso Viriato.)

Embora cada cultura possa ter nuances próprias, há alguns sentidos amplamente reconhecidos para as cores:

(i) Vermelho=sacrifício, coragem, heroísmo e sangue derramado

O vermelho é uma das cores mais usadas, sobretudo em rosas, cravos, antúrios, gerberas Representa:
  • o sangue derramado pelos combatentes;
  • a nobreza;
  • a coragem no campo de batalha;
  • a lembrança viva do sacrifício;
  • amor eterno e admiração.

É por isso tão comum no Dia do Armistício, no 10 de Junho, no Dia da Memória e outras efemérides, em vários países.

(ii) Branco=paz, pureza, reverência, e respeito


É cor mais comum, simbolizando:
  • o desejo de paz duradoura após o conflito;
  • a pureza das intenções dos combatentes;
  • luto e reverência.

É uma forma de homenagear não só quem morrer, mas também a esperança de que os infaustos eventos, como a guerra (incluindo a guerra civil), não se repitam.

(iii) Amarelo=lembrança e esperança

Em algumas culturas, o amarelo representa:
  • lembrança perene;
  • esperança na reunião espiritual;
  • luz e eternidade.
Já o amarelo, na sua forma dourada (amarelo-ouro), é um símbolo forte de nobreza, riqueza, sucesso e poder, reforçando a ideia de glória e eternidade.

(iv) Roxo=luto profundo e espiritualidade

O roxo, poço usado em arranjos florais, está muitas vezes associado a:
  • cerimónias mais solenes;
  • respeito espiritual;
  • reflexão sobre a morte e o seu significado;
  • luto.

2. Porque se usam flores em homenagens fúnebres ?


Para além das cores, as próprias flores têm um profundo significado:
  • são símbolos de vida, beleza e fragilidade;
  • lembram-nos que a vida dos combatentes foi preciosa e efémera; 
  • representam a continuidade, a passagem de testemunho, a partilha;
  • mesmo após a morte, a memória floresce; e a vida renasce;
  • criam um momento de beleza num contexto doloroso, um gesto de humanidade face à brutalidade da guerra e do sacrifício da própria vida,

O sentido mais profundo: no fundo, estas cores não são apenas  um elemento meramente decorativo; são signos, são uma linguagem simbólica que permite expressar:
  • respeito e gratidão;
  • memória coletiva;
  • humanização do luto;
  • compromisso com a vida, com a liberdade e com a paz.

É uma forma silenciosa, mas poderosa, de dizer que os mortos não ficam "inumados na vala comum do esquecimento" (como gostamos de dizer na Tabanca Grande) e que o seu sacrifício tem significado na história das famílias, dos grupos, da comunidade, do País.

 3. As cores usadas nas cerimónias e flores não são apenas escolhas simbólicas tradicionais, mas também refletem frequentemente as cores dos brasões e insígnias das entidades que prestam a homenagem (chefe de estado, assembleia da república, governo, forças armadas, associações de combatentes...). E isso acrescenta um significado institucional e histórico muito forte.

(i) Representação institucional

Quando o exército, o governo, as ligas de combatentes, embaixadas ou outras entidades colocam coroas ou arranjos florais, é comum que:
  • escolham as cores do seu próprio brasão oi insígnias;
  • usem as cores da bandeira nacional;
  • ou combinem ambas.

Isto serve para:
  • mostrar que a homenagem não é apenas pessoal, mas oficial e coletiva, institucional;
  • marcar que a entidade assume publicamente a memória dos seus combatentes;
  • dar continuidade a uma tradição cerimonial formal.

 (ii) Identidade e continuidade histórica

A utilização das cores dos brasões reforça o vínculo entre:
  • os combatentes homenageados;
  • a instituição ou a arma a que pertenciam (exército, marinha, força aérea):
  • e a história da própria instituição ou da arma.

Por exemplo: o Exército pode usar o verde e vermelho (cores nacionais) ou detalhes dourados e pretos das suas insígnias; a  Liga dos Combatentes utiliza as cores do seu emblema, reforçando a missão de preservar a memória; embaixadas estrangeiras  usam frequentemente as cores da bandeira do país que representam, simbolizando respeito internacional.

(iii) Um gesto simbólico e protocolar

Ao usar as cores dos brasões:
  • reforça-se a ideia de que os combatentes não foram esquecidos pela Pátria;
  • mostra-se a unidade entre Estado, instituições militares e sociedade civil, incluindo associações de veteranos;
  • cumpre-se o protocolo cerimonial militar e diplomático.

(iv) Complemento ao simbolismo emocional das flores

Assim, há dois níveis de significado:
  • emocional e universal; cores que expressam luto, sacrifício, paz e memória;
  • institucional e histórico: cores dos brasões que reforçam a identidade e a responsabilidade da entidade homenageante.
Ambos se complementam para criar uma homenagem mais completa e cheia de significado.


4. Mas não são apenas as cores, mas também as formas e a estrutura das coroas que carregam simbolismo. Em cerimónias militares e de Estado, a forma da coroa ou arranjo floral transmite mensagens subtis, ligadas à tradição, ao protocolo e à identidade da entidade que presta homenagem. Muitas vezes estas coroas são extremamente elaboradas e visualmente muito atrativas, porque representam não só o luto, mas também a honra, a hierarquia e a memória colectiva.


(i) Formas geométricas com significado

As coroas podem ser circulares, ovais, em escudo, em coração, em cruz ou mesmo em arranjos verticais.

 Círculo= eternidade e continuidade

A coroa circular: é a forma mais tradicional e o símbolo primordial da eternidade e da imortalidade da alma e da memória:

  • simboliza a vida eterna, ou o eterno retorno;
  • representa a memória que não tem início nem fim;
  • transmite a ideia de unidade nacional e de solidariedade intergeracional.

Coroa de louros=honra, vitória e glória

Variante da coroa circular, a coroa de louros é um símbolo clássico de honra, vitória e glória, remontando ao mito de Apolo e Dafne, e sendo historicamente associada a conquistas e estatuto elevado; é frequentemente usada em homenagens a militares e figuras de Estado em Portugal.

Forma de escudo=honra militar

Algumas coroas são feitas à maneira de um brasão ou escudo militar:
  • reforçam a ligação ao corpo ou Ramo das Forças Armadas;
  • simbolizam proteção e bravura;
  • recordam que o combatente serviu uma instituição com identidade própria.

 Formas religiosas (cruz, palma, espiga)
  • usadas sobretudo por entidades com tradição cristã;
  • simbolizam fé, sacrifício e esperança na vida espiritual, ressurreição;
  • muito usadas por governos ou associações que seguem protocolos históricos.
Outras formas, como o  Coração (amor profundo e afeição) também podem ser usadas, embora a forma circular ou de louros seja mais prevalente em cerimónias públicas militares.


(ii)   Coroas elaboradas com detalhe e complexidade

As coroas mais ornamentadas aparecem geralmente quando:
  • a entidade é de alto nível (Presidente da República, Governo, Chefes militares, Embaixadas);
  • a cerimónia é oficial ou de Estado;
  • o local é de grande significado (Túmulo do Soldado Desconhecido, Mosteiro da Batalha ou  dos Jerónimos, Monumento aos Combatentes do Ultramar, campos de batalha, cemitérios militares, outros monumentos nacionais).

Estas coroas:
  • reforçam a solenidade;
  • representam a dignidade do cargo que presta homenagem;
  • procuram traduzir visualmente o respeito máximo.

(iii) Elementos específicos que acrescentam significado:

Muitas coroas possuem detalhes que parecem apenas decorativos, mas não são:

 Fitas com inscrições

Contêm:
  • nome da instituição;
  • palavras como “Homenagem”, “Glória”, “Honra”, “Memória”;
  • cores da bandeira ou brasão ou insígnia da entidade.

Ramos de louro ou oliveira

Muito usados em coroas militares:
  • o louro simboliza vitória e honra;
  • a oliveira simboliza paz e reconciliação.
 Outras flores e folhagens (verdura) 

  • por exemplo,  o verde (folhagens): representa renovação e esperança;

  • as flores podem ser escolhidas, para além da sazonalidade,  pelos seus significados simbólicos, que se adaptam ao contexto de homenagem a um combatente.

 
 Elementos dourados ou metálicos

Reforçam:
  • a solenidade;
  • o carácter oficial;
  • a antiguidade histórica da instituição.

 (iv)  O significado mais profundo das formas elaboradas

No fundo, a forma da coroa é uma linguagem simbólica, tão importante quanto as palavras proferidas no discurso de homenagem. Cada forma e detalhe transmite a mensagem de que:
  • o combatente é lembrado com identidade, respeito e história;
  • a sua morte não é apenas um facto individual, mas um elemento da memória coletiva do país;
  • a homenagem é proporcional à importância do sacrifício.

5. Simbolismo das coroas funerárias (síntese)

ElementoSignificado
comum
Contexto militar/Honra
LouroVitória, Honra, GlóriaEssencial em coroas militares, simboliza o triunfo e o sacrifício; remonta ao mito de Apolo e Dafne
Sempre-
-Vivas
Força, Resistência, Memória EternaRepresentam a permanência da memória e a resistência do espírito 
Carvalho (Folhas)Sabedoria, Força, RobustezAssociado a Zeus (na mitologia helénica) ,  simbolizando a resiliência
Rosas
Brancas
Reverência, Respeito, Pureza, PazA escolha clássica para expressar respeito profundo e paz espiritual 
Rosas VermelhasAmor, Respeito, Coragem, SacrifícioSimboliza o amor profundo e a coragem, especialmente relevante para um combatente 
Lírios
Brancos
Pureza, Tranquilidade, Paz EspiritualUsados para transmitir serenidade e a renovação da alma / espírito
Crisân-
temos
Luto e Homenagem (em muitas culturas)Usados tradicionalmente em funerais, simbolizam a nobreza da alma / espírito

  (Continua)


Pesquisa LG + Net + IA (ChatGPT, Gemini) 
(Condensação, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27418: Em memória de Sissau Sissé, que me acompanhou durante muitos anos no meu trabalho de terreno em Contuboel (Eduardo Costa Dias)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 13 de Novembro de 2025:

Queridos amigos,
Em 12 de novembro almocei no restaurante da Sociedade de Geografia de Lisboa com o meu amigo Eduardo Costa Dias, professor universitário aposentado, com tese de doutoramento baseada na agricultura Mandinga de Contuboel, onde fez trabalho de campo. Falámos de amizades inextinguíveis e sempre, sempre, dessa Guiné que gostaríamos de ver em trilhos de democracia, equidade, desenvolvimento, sempre em compasso de espera, para não dizer em regressão. À tarde, deixou-me no mail esta recordação tão terna, que tanto me surpreendeu. Perguntei-lhe seguidamente se permitia a sua publicação no blogue, prontamente disse que sim. Se procurarem no Google, terão provas dos trabalhos académicos guineenses, ali se expõem as suas colaborações nacionais e internacionais.
Sinto muito orgulho em ver o meu amigo Eduardo Costa Dias a participar no blogue.

Abraço do
Mário


********************
Sissau Sissé

Eduardo Costa Dias

Sissau Sissé acompanhou-me durante muitos anos no meu trabalho de terreno em Contuboel. Mestre, tradutor e, mais do que tudo, amigo. Sissau era fluente - falava, lia, escrevia em português, crioulo, fula e mandinga e em mais duas ou três línguas do grupo linguístico malinké. “Desenrascava-se bem” ainda em francês e árabe.

Membro de uma importante família de mouros com ramificações no Senegal, no Mali e na Guiné-Conacri, frequentou em simultâneo a “escola de branco” (anos 1960) e, durante longos anos, a madraça onde o avô, o pai, os tios e, a partir de certa altura, primos ensinavam. Durante dois anos frequentou intermitentemente uma madraça no outro lado do Geba, em Djabicunda. Muito religioso, Sissau Sissé não era exatamente um expert em textos corânicos. Era, sim, um excelente conhecedor dos, escrevendo à antiga, usos e costumes dos Mandingas e, sobretudo, um grande genealogista. Conhecia a história toda das grandes famílias Mandingas e, como ninguém, “lia” as ligações.

Os meus primeiros (e decisivos) contactos com a “floresta” da “genealogia religiosa muçulmana” foram por ele guiados. Devo-lhe, por exemplo, ter aprendido depressa o significado de palavras como baraka, distribuição de baraka, herança de baraka e o conteúdo de silsila: fulano aprendeu com o seu mestre X que por sua vez já tinha aprendido como seu mestre Y, que por sua vez já tinha aprendido do seu mestre W.

Tábua escrita por alunos de uma escola corânica em Galugada Mandinga

Tirei hoje esta fotografia - uma tábua escrita por alunos de uma escola corânica em Galugada Mandinga, no dia da festa Eid-al-Adha que o Sissau Sissé considerava o centro do ano muçulmano e no mês em que fez 30 anos que morreu.

Acometido de uma apendicite aguda em Contuboel foi trazido por um jeep do DEPA para o hospital Simão Mendes em Bissau. Morreu durante a operação… tendo precisado de oxigénio… o hospital não tinha, sendo mais preciso: não havia oxigénio porque tinha sido desviado e possivelmente, como na época acontecia bastante, vendido no Senegal ou na Gâmbia.

Sissau, Saudades tuas
Sissau Sissé na foto de babuk creme
Sissau Sissé na foto com babuk azul escuro
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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27395: Notas de leitura (1859): "Amok", por Stefan Zweig; Lisboa: Relógio D'Água, 2022 (Jaime Bonifácio da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista)



1. Mensagem do nosso camarada Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista da 1.ª CCP/BCP 21 (Angola, 1970/72), com data de 5 de Novembro de 2025:


MEMÓRIAS (À MARGEM) DA GUERRA

Notas de leitura do livro de Zweig, Stefan (2024). AMOK. Lisboa: Relógio d´Água. Esta obra foi publicada pela primeira vez, na Alemanha, em 1922.

Preâmbulo ao uso do termo amok

Na vida, quando olhamos, ao acaso, para os títulos dos livros bem arrumadinhos, algures numa estante, alguns deles, num ápice, espoletam em nós memórias e transportam-nos para locais e vivências, há muito tempo, arrumadas no sótão do esquecimento.
Aconteceu-me isso, recentemente, quando descobri este livro com o título AMOK.

Recordou-me o momento, em que, pela primeira vez, ouvi prenunciar a frase: deu-lhe o amok. Foi em Ninda, leste de Angola – Terras do Cú de Judas. Em fevereiro de 1970, quando fui render o Tenente paraquedista Grão no comando do 3.º Pelotão da 1.ª CCP do BCP 21. A companhia estava em plena fase operacional e, segundo me fui apercebendo, cada um dos 4 pelotões tinham encontrado forte resistência na zona.

Entretanto, nas conversas que ia travando com os meus novos camaradas de armas, ouvia-os pronunciar, regularmente, uma expressão que nunca tinha ouvido e desconhecia: “deu-me o amok, assaltámos a base e demos cabo daquilo tudo” ou, ainda, “cuidado com o gajo porque ele hoje, está com o amok” ou, ainda, “ninguém pode falar contigo, vai-te curar, estás com o amok”.

Com o tempo fui interiorizando o significado desse termo. Fui percebendo que se referia a alguém que se tinha “passado dos carretos”, “não via nada à sua frente” ou que “estava apanhado do clima”!... Foi neste contexto que fui assimilando o sentido do termo, de tal modo que, ao longo da vida, com alguma frequência e, em circunstâncias de menor ânimo, dizia para comigo: “hoje, não estás bem!... Hoje, estás com o amok”!...


1. Sobre o livro AMOK

Porém, ao folhear o livro de Stefan Zweig, vim a descobrir a origem e o significado do conceito de amok.

“ é um termo retirado da cultura Indonésia e significa “lançar-se furiosamente na batalha”. As pessoas afetadas por este estado psíquico têm ataques de fúria cega e procuram aniquilar os que consideram seus inimigos e quem quer que se interponha no seu caminho, sem consideração pelo perigo que correm”. (Zweig, 1992, capa)

Sobre o termo, transcrevo, ainda, o diálogo travado entre duas personagens do livro Amok:
“… O senhor sabe o que é o amok?
- Amok?... A palavra diz-me qualquer coisa… Não é uma espécie de inebriamento entre os malaios?
- É mais do que um inebriamento… é a perfeita loucura, uma espécie de raiva que atinge o ser humano… um ataque de monomania assassina, irracional, sem qualquer termo de comparação com outra forma de intoxicação alcoólica… eu próprio, durante a minha estadia nos trópicos, estudei alguns casos de amok –
“(…) tem, de certa forma, a ver com o clima, com aquela atmosfera abafada e sufocante que se abate, qual trovoada, sobre os nossos nervos até explodir, por fim…” (…) … mas quem está sob o domínio do amok, fica cego e não vê para onde se precipita … (…) não houve nada nem ninguém, não vê nada à sua volta.”
(Ibidem, 39 a 41)

Stefan Zweig na obra AMOK coloca o “narrador a contar a sua viagem de Calcutá para a Europa a bordo do Oceania. Num passeio noturno na coberta do navio, encontra um médico preocupado e assustado e que evita qualquer contato social. Este vai contar-lhe o que o levou a uma relação obsessiva por uma mulher que o colocou em estado de amok” (Ibidem: contra capa).


2. Sobre a biografia do autor

Como se refere na capa do livro, Stefan Zweig nasceu em Viena em 1881. Era filho de um industrial e estudou História, Literatura e filosofia. Aos 17 anos escreve já em revistas modernistas. Praticou os mais diversos géneros literários, do romance ao teatro. Em todos os géneros procurou detetar as forças do irracional no coração da natureza humana.

Com a subida de Hitler ao poder em 1933, vê as suas obras serem destruídas em Munique. É forçado a partir para a Grã-Bretanha, de onde viaja para o Brasil em 1936 e depois para Nova Iorque, tendo visitado Portugal em 1938. 

 A 10 de setembro de 1939 escreve a Romain Rolland (1886-1944): “Não vejo qualquer saída para este terrível lamaçal”. Regressa ao Brasil em 1940 e em 1942 suicida-se com a mulher em Petrópolis.

As suas memórias, O Mundo de Ontem, de 1942, terminam com uma frase: “em última análise, cada sombra é também filha da luz, e só aqueles que experimentaram a luz e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a queda viveram verdadeiramente.”

Jaime Silva, Lourinhã, 1.11.2025

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Nota do editor

Último post da série de 3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27382: Notas de leitura (1858): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27224: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (11): O Soldado Castro

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (,Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 5 de Setembro de 2025:

Desta vez, relato uma das implicações para que, durante 22 meses, não pude gozar férias por ter sido punido com detenção cumprida no mato.

Um abraço.
J.Caldeira


O SOLDADO CASTRO

Nunca percebi porque, sendo eu apenas um simples furriel, menos que sargento, tivesse que assumir funções que pertenceriam a oficiais ou, na sua ausência, a sargentos.

 Em mais um regresso de Nova Sintra, comandando uma força de cerca de 30 homens, na qual se incluía o soldado Castro que até era da secção do sargento Faria, também integrante da força, sofremos uma emboscada. Mas antes o Faria tinha oferecido o cantil de aguardente ao Castro e, este, não se fazendo rogado, bebeu talvez em quantidade razoável. Ficou grogue e, durante o tiroteio, resguardou-se debaixo de umas raízes de embondeiro e por lá adormeceu. Tropa fandanga.

No final da emboscada, reunido o pessoal, certifiquei-me de que não tinha havido danos pessoais e, após comunicar com a sede do batalhão, certifiquei-me de estávamos todos e mandei prosseguir. 

Passadas duas horas fui informado de que faltava o Castro. Pensei logo o pior. Que talvez estivesse morto ou ferido e que, por eu nem sequer o conhecer - estávamos há muito pouco tempo na Guiné e ele nem pertencia à minha unidade - não tinha dado pela sua falta. O Faria também não. Nova comunicação para o batalhão a informar da falta de um elemento.

 Recebo ordens para prosseguir e informaram que pessoal da companhia de Nova Sintra, por estar mais perto do local da emboscada, iria procurá-lo. Mas não o encontrou. 

Quando acordou, ainda sob o efeito da cachaça, dando pela nossa falta, caminhou errante para Nova Sintra. Chegou lá no dia seguinte. Foi um heli buscá-lo para Tite. E eu tive um processo disciplinar que resultou em castigo de dois dias de detenção que vim a cumprir fora do quartel, a caminho de Bissássema.

Como não podia deixar de ser, estes processos são demorados e só vim a saber da minha punição uns meses depois. Precisamente no dia 2 de Maio, data do meu aniversário. 

Até foi giro. O capitão presenteou-me com uma lembrança, um álbum para fotografias e a nota de culpa.

Quanto ao Castro, por remorso tentou dar um tiro na boca e eu fui chamado para o impedir. Não me foi difícil convencer do seu erro, mas sei que ficou marcado para sempre.

 Uns anos mais tarde, fui chamado para ser sua testemunha num processo em que pedia uma pensão de reforma, que lhe foi concedida por incapacidade motivada por stress de guerra. Perdi-lhe o rasto, mas gostava de reencontrá-lo.
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Nota do editor

Último post da série de 8 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27195: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (10): Ataque à Tabanca de Feninquê

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27195: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (10): Ataque à Tabanca de Feninquê

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 5 de Setembro de 2025:

Boa tarde, caro Luís
Desta vez vai uma das noites que marcaram a minha presença em Tite.

Um abraço e bom fim de semana.
J.Caldeira



TABANCA DE FENINQUÊ

Quem ainda se lembra de uma tabanca a sul de Tite, composta por meia dúzia de palhotas e habitada por uma população que era fiel à nossa bandeira? Pelo menos assim parecia e pareceu. Chamava-se Feninquê.
Localização da tabanca de Feninquê a sudoeste de Tite
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné. Carta de Tite 1:50.000

Mais uma noite de muita chuva. Onze na noite. A aldeia estava a ser atacada e pelo que se ouvia, tínhamos a certeza de que estava a ser dizimada.

O já Coronel Hélio Felgas manda que a 15.ª Companhia de Comandos, nessa noite em passagem por TITE, vá em socorro da aldeia. Não sei o que se passou para que o seu comandante se escusasse e, ironia, não foi a Companhia de Caçadores 2314 que saiu em defesa daqueles pobres? Nunca percebi porquê, mas de uma companhia, foi resolvido que quem iria era o 2.º pelotão. E, como não podia deixar de ser, fui eu a comandar.

Acertadas as logísticas de aproximação, havia que evitar um campo de minas colocado na picada, foi-me entregue um mapa com as coordenadas rigorosas para eu seguir e, após avistar a tabanca, informar a sede do batalhão para onde deveria ser feito fogo de obus para neutralizar o IN e possibilitar-me o resgate da população.

Cheguei tarde. Só encontrei morte e destruição à minha chegada. Ainda assim, pressentindo que o IN estivesse em fuga pela margem esquerda do rio, pedi fogo nessa direção, o que não resultou em nada.

Reuni os habitantes que sobreviveram e, com a ajuda dos homens válidos, improvisámos umas macas para transportar os feridos que seriam tratados pelo médico do Batalhão de Tite. Encetámos o regresso já de dia bem alto e sem chuva. À chegada foi como se nada se tivesse passado. Apenas me ordenaram que elaborasse um relatório da operação.

Afinal, as companhias de Comandos, bem formadas e bem equipadas, também se escusavam a cumprir tarefas que pudessem comportar algum perigo. Será que ainda alguém se lembra deste episódio?
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Nota do editor

Último post da série de 31 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27170: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (9): O perfume da Enfermeira Paraquedista

domingo, 3 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26112: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887) (9): Um buraco na parede

1. Mais um conto verdadeiro da Guiné, do nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

9 - Um buraco na rede

(Mais um conto – verdadeiro – da Guiné)

Acordei a meio da noite e não fechei mais os olhos. A insónia levou-me onde bem lhe apeteceu. Gemi ao estalar do coração de uma mãe, senti o amargo do choro convulso de um pai, reabsorvi a minha dolorosa resignação… um barco e as amarras que o prendem aos olhos esbugalhados do cais, amarras que se despedaçam, pois ninguém lhes sabe desfazer os nós.

A madrugada de hoje começa a clarear. Quem olha através da rede da janela, sem vidros, julga que vai nascer uma amena manhã de primavera, mas em breve ela parecerá vomitada do ventre de uma fogueira.

Passarinhos coloridos salpicam de gorjeios o silêncio morno do amanhecer. Um grande inseto marra nervosamente de encontro à rede, numa volúpia incontida de liberdade. Eu e aquele moscardo à procura de um buraco na rede!

De um salto, corri da cama até ao chuveiro improvisado que borrifava sobre mim os mais deliciosos minutos do dia. Enquanto a água escorria em fios esganados, eu ia antevendo o prazer de uma caçada matinal às rolas. Iria pedir a carabina ao libanês senhor Heyle, o qual, àquela hora, ensonado, não se lembrava que não gostava de a emprestar. De qualquer forma, a mim nunca a recusaria, pois precisava de mim como médico.

Postar-me-ia a cem metros do arame farpado, por detrás do poço do jagudi, bem perto do canavial. Vindas das árvores que se encontram no baixio junto à bolanha, as rolas atingem, sem qualquer desconfiança, o mangueiro que está mesmo por cima da minha cabeça.

Será só apontar. Mas… nem apontar foi preciso, pois, as rolas não vieram, e as que vieram, fugiram, sem hesitações de pouso, como se, do lado de lá do canavial, alguém as tivesse avisado.

Quando se vive no isolamento, sobretudo na solidão da guerra sem sentido, o tempo jamais passa, mas as frações de tempo parecem voar como estas rolas que escarnecem de mim. Não sei se adormeci, penso que sim, movido pelo zumbido melífluo e hipnotizante de um desses enxames de abelhas selvagens que, à volta de um galho de cajueiro, ordenam a sua inquietante anarquia.

Quando acordei e olhei para cima, uma rolita inocente, vestida ainda com o castanho-torrado da primeira penugem, esticava o pescoço curioso para ver quem eu era. Estava tão perto, que eu lhe enxergava os olhitos faiscantes e quase ouvia as primeiras falas que as cordas vocais começavam a ensaiar. Instintivamente, colei-me à arma e só vi a cabecita inquieta estremecendo na ranhura do ponto de mira. Se ao menos ela fugisse! Se ao menos ela fugisse! Apertei o gatilho, e como estava tão perto, nem dei pela queda do seu minúsculo corpo.

Caiu o meio-dia sob a forma de um sol escaldante que só as árvores mais frondosas conseguiam coar. Espetei os olhos na avezita moribunda e vi que um fio de sangue lhe pintava o bico. Senti profundamente o gosto acre daquele sangue. Soube-me à guerra, a roubo, a crime, a futuro sem vida e vida sem futuro, à terra calcinada, à chacina. Torci-lhe três vezes o pescoço e atirei-a ao regato mais próximo. Puxei de um cigarro e tentei, com ele, acabar a tristeza e a amargura desta manhã.

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Nota do editor:

Vd. postes da série de:

25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher

6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

16 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16453: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (6): Pequenas Grandes Verdades

13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk

27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25389: Notas de leitura (1683):"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Importa não esquecer que os intelectuais guineenses de há muito dão conta de um sonho perdido, de uma esperada reconciliação entre os povos guineenses que não houve, de uma pátria bem administrada que não houve, de uma solidariedade que rapidamente se transformou numa selvática competição de interesses, cada um por si, o Bem-comum não conta, todos os sonhos de Cabral caíram por terra. 

Recorde-se o filme Mortu Nega (em português, Morte Negada) de Flora Gomes, 1988, Kikia Matcho: O desalento do combatente, por Filinto de Barros, 1997, e mais recentemente o romance A Cidade Que Tudo Devorou, por Amadu Dafé, 2022, isto já sem esquecer o que escrevem ou escreveram Leopoldo Amado, Julião Soares Sousa e está espelhado na poesia de Tony Tcheka.

 É uma belíssima narrativa estas Memórias SOMânticas , não encontro explicação para esta palavra, talvez tenha a ver com semânticas e românticas, o pungente mas poderoso solilóquio da combatente vai à origem das palavras, o mesmo é dizer que vai à origem do sonho que presidia aquela luta e há o quê de romantismo na sua fé e no seu inabalável sonho. Mais explicações para a palavra é assunto que cabe ao autor revelar.

Um abraço do
Mário



Fui combatente do PAIGC, conheço a desilusão, mas vivo esta paixão da liberdade à exaustão

Mário Beja Santos

"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016, é um espantoso solilóquio de uma mulher que participou na luta, que confiava numa pátria livre e numa cadeira de rodas assiste à degradação do seu país. É o cântico de uma heroína anónima, uma narrativa escrita na primeira pessoa e num absoluto silêncio, é uma mensagem para o futuro, um tema de reflexão para as gerações que não conheceram a luta armada:

“Esta é a história de uma vida. Uma vida que quis ser vivida. Com paixão e dignidade. Pretendo narrá-la, porque a existência só se torna memorável se for narrada. A narração, quando oportuna, restaura a crença, abrevia qualquer recordação dolorosa e enobrece a vida. Atribui-lhe cor e reverência”.

E confidencia-nos ao que vem:

“Nunca escondi as minhas ambições. Onde está o sentimento de liberdade se o que mais ambicionamos tem que ser escondido ou disfarçado? Pior ainda, privatizado. Quero que tudo o que ambicione de verdade seja também pretendido pelos meus próximos, acessível a todos, valorizado por todos”.

Orgulha-se de celebrar a vida, a despeito das ilusões, violentas e por vezes tão inesperadas. Disserta sobre a infância, a morte da mãe, os desamores familiares. Nunca aceitou a submissão, paradigma da mulher africana. Conheceu o amor, alguém que a vai despertar para a luta, ele desaparece e ela vai no seu encalço, vai para Conacri. Narra as vicissitudes de uma adaptação áspera, é hábil na negociação para se dar bem com as companheiras de quarto, o seu sonho cresce, pensa a toda a hora na independência, nas instituições do país, é mulher de esperança inabalável. Os tempos não são fáceis para ela em Conacri, assiste à chegada de gente jovem, irmanada pelos mesmos ideais, começa a trabalhar na cozinha, sente-se útil, procura afanosamente saber do seu amor que anda na luta, a todos que vêm a Conacri faz perguntas, por alguém se sabe que ele está vivo, rejubila. 

Nunca lhe passou pela cabeça ser enfermeira, detestava ver sangue, a vida troca as voltas, viu-se a colaborar num bloco operatório, foi louvada, decidiram que ela seria enfermeira.

Há ali perto do hospital alguém que vende cola e se chama Tunkan, tem uma filha a viver em Bafatá e garante-lhe quando a guerra acabar que quer ir a Bafatá conhecer os netos. Gosta do seu trabalho:

“Durante muitos anos ajudei a aliviar dores e a sarar feridas, tanto as visíveis como as que se escondem no fundo da alma, silenciosamente destruindo o corpo e inviabilizando sonhos. Tinha ajudado muita gente, agora tenho que ajudar-me a mim mesma, ser a minha própria enfermeira. Tenho que aperfeiçoar a arte de curar, a magia de dar sempre o que nem sempre se tem.”

É transferida para a Frente Sul, encontra o homem da sua vida em Kabukaré. E tece louvores àquela luta armada:

“Eu vi amor, paixão, entrega e determinação a germinarem, a manifestarem-se em todo o lado. Nos guerrilheiros e na população. Nas canções e no choro. Até no olhar das crianças mutiladas. Vi guerrilheiros com lágrimas nos olhos. Mas vi também o pesadelo do passado a evaporar-se sob o calor desse novo sol e descobri os contornos do novo mundo de paz e harmonia que vinha sendo anunciado nos cânticos. No escuro da pátria ainda subjugada, detetei uma tremeluzente luz projetada num horizonte não muito distante.“

Vive agora em Boké, aqui encaminha-se armamento para as frentes de combate e cuida-se os feridos, e tem o filho para criar. Ela aspira que quando a guerra acabar irão ter que investir na purificação dos corações, a vida ganhará uma outra dimensão, tem ainda interrogações para resolver:

“Porque é que havia africanos a combater ao lado dos brancos contra nós? Quando tomarmos a nossa independência e voltarmos para a nossa terra, os nossos comandantes vão continuar a confraternizar com os nossos combatentes como fazem agora? Quando acabar a guerra, o nosso Presidente vai precisa de guarda-costas armados?”

O amor da sua vida precisa de ir a Conacri, vai acompanhado do filho, irão morrer num acidente, ela está enlouquecida, o seu lenitivo é a sua amiga Ramatulai, é como uma irmã, mas há uma dor que subsiste:

“Eu sou dos inúmeros concidadãos que definitivamente vão voltar para casa magoados, com alguma amputação, temporária ou vitalícia. Eu levo todo um sonho amputado, sim, mas em vantagem em relação a muitos deles. Vou sem o meu companheiro de vida, sem o meu filho, mas com uma irmã, a minha irmã do coração.”

Chegou a hora da independência, apareceu Tunkan para ver a família, tinha o genro preso, acusado de colaborar com o exército colonial.

“Dei-lhe todas as garantias. Depois de uma guerra que vitimara tanta gente, a hora era de paz e perdão. Se estava em algum quartel ou cadeia eu iria encontrá-lo”.

Percorre o país de lés a lés, alguns dos camaradas com que tão intensamente convivera em Conacri fitam-na com desprezo, era como se ela perguntasse por uma pessoa que tinha traído, o que fazia dela uma traidora, alguém lhe dirá mesmo que para cada traidor haverá sempre uma bala no cano. 

“Como é que chegámos a este ponto? Em que se tinha tornado o meu querido país e a minha gente? Que fora feito da camaradagem que, proporcionado a permanente partilha das dificuldades dos êxitos, dos sonhos e das ambições, tornara a vida mais colorida para todos ao longo de tantos anos?”

Adoece e reage, dedica-se a uma escola frequentada por filhos órfãos do Partido. Tudo faz para que haja abastecimento seguro, vai mesmo ao Ministério da Agricultura onde pede e consegue sacos de semente de feijão, de milho, de mancarra, de arroz. Mas um dia acabou o internato, as crianças foram dispersas. 

“Sinto que estão por aí, entregues à sua sorte, sem a bênção de quem devia revelar-lhes as virtudes regeneradoras da fé e as lições da vida tiradas da História. Vacilei durante algum tempo e envergonho-me hoje disso.”

E é neste exato momento que Abdulai Sila tece os seus parágrafos sublimes, a renumeração daquela vida à procura do seu amor, a partilha do jubilo e das situações de desgraça, os terríveis desapontamentos de ter visto fechar um internato com órfãos de guerra, aquela mulher sentada numa cadeira de rodas lembra os órfãos da guerra, os mutilados, a solidariedade acabou, os jovens vivem sem ideais, ela não se entende com tanto despautério, é a fé que a alimenta, e então a velha combatente faz ressoar as trombetas para o futuro:

“Marginalizados? Nós é que domesticámos o invasor e abolimos o medo perante o desconhecido. Na calada da noite prenhe de incertezas reinventámos a vida e, bem alto no céu, fizemos soar a sinfonia da dignidade.
Deserdados? Construímos um mundo plural, onde todas as cores do arco-íris se fundem sem nunca se confundirem. Recuperámos a palavra e, abençoando-a, fizemos com que a magia da narração sustentasse os novos limites da razão.

Não erguemos troféus, não exigimos medalhas, nem guardámos ressentimentos. Impusemos um novo paradigma da inteligência: sem ser mártir nem ambicionar ser heróis, viver uma paixão até à exaustão e morrer sonhando.”


Na linha de uma literatura vincada pela dor do desapontamento de uma pátria derruída, Abdulai Sila dá-nos uma narrativa pungente onde o sonho, mesmo tão profundamente abalado, continua a ser a semente da vida, a razão por que se lutou para ser livre, é esse o derradeiro testemunho que se deixa às novas gerações. Um belíssimo texto de irrecusável leitura.

Houve tempos em que a Guiné contava entusiasticamente com quem a libertara
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Nota do editor

Último post da série de 12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25377: Notas de leitura (1682): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 9 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25359: Os 50 anos do 25 de Abril (7): exposição em Santiago do Cacém, "Filhos da Terra, Soldados do Ultramar"


Cartaz da exposição "25 de Abril, 50 Anos: Filhos da Terra, Soldados do Utramar", Santiago do Cacém, a inaugurar no próximo dia 12 de abril de 2024.

Fonte: TV Canal Alentejo, 8 de abril de 2024 (com a devida vénia...)


1. Da nossa amiga SS (endereço de email: ssambado@gmail.com ), sobrinha de um camarada nosso, da FAP (Força Aérea Portuguesa), já falecido (em 9 de novembro de 2022),  e que passou pelo TO da Guiné (*), chegou-nos uma notícia que pode interessar aos nossos leitores,  a de um exposição, a ser inaugurada dentro de dias, em Santiago do Cacém, sobre os "filhos da terra" que foram "soldados do ultramar"...

Do Canal Alentejo, respigamos  a seguinte informação sobre o evento (com a devida vénia):

(...) "Entre os dias 12 e 30 de abril, os cidadãos de Santiago do Cacém têm a oportunidade de testemunhar uma parte importante da história nacional através da Exposição 'Filhos da Terra, Soldados do Ultramar'. 

"Esta mostra, que decorre na Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca e na Travessa de São Sebastião, é uma oportunidade para refletir sobre a experiência dos santiaguenses que foram soldados durante a Guerra do Ultramar.

"A inauguração da exposição está marcada para o dia 12 de abril, às 15h00, na Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca, onde será também apresentado o Arquifolha n.º 5. Este evento inaugural será seguido, às 15h30, por uma conversa com antigos soldados do Ultramar, moderada pelo Dr. Sérgio Pereira Bento, no Auditório da Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.

"A Exposição 'Filhos da Terra, Soldados do Ultramar' é mais do que uma simples coleção de fotografias e relatos. Ela representa uma parte da história vivida por muitos santiaguenses em tempos de guerra, oferecendo um olhar humano e íntimo sobre um período marcante e por vezes doloroso.

"As fotografias, gentilmente cedidas por ex-soldados e suas famílias no âmbito do projeto 'Imagens com História', oferecem um testemunho poderoso e autêntico desse período conturbado. É uma oportunidade única para todos os interessados em compreender e honrar o legado daqueles que viveram esta experiência.

"Esta iniciativa faz parte das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, celebrando não apenas a liberdade alcançada nessa data histórica, mas também reconhecendo os sacrifícios e as vivências daqueles que estiveram envolvidos na Guerra do Ultramar. 

"É um convite para todos os cidadãos de Santiago do Cacém participarem nesta jornada de memória e reflexão sobre o passado coletivo de Portugal." (...)

2. Comentário do nosso editor LG:

Agradeço à nossa amiga SS, que regularmemte nos fornece informação relativa aos antigos combatentes. com origem em fontes do seu Alentejo e comunicação social em geral. 

Aproveito também por saudar esta iniciativa do Municipio de Santiagodo  Cacém, ao querer manter viva, 50 anos depois do 25 de abril e do fim da guerra de África / guerra do ultramar / gierra colonial (**), a memória dos seus filhos que lá combateram, e alguns morreram (um total de 32, segundo o portal UTW - Ultramar TerraWen).

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(**) Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)