Mostrar mensagens com a etiqueta MLG. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta MLG. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24177: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte III: A nossa obrigação de contribuir para a desmistificação das inverdades e meias-verdades que se contam (Leopoldo Amado / Mário Dias)


Guiné > Bissau > A pacata cidadezinha colonial do início dos anos 60. A Praça da República. Postal da época. Cortesia de João Varanda, ex-fur mil, CCAÇ 2636  (que esteve em Có/Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/70, e depois Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1970/71).


Guiné > Bissalanca > 1959 >   Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata)  [nº 1, a amarelo]. O avião era, naturalmente, da Air France [5].

O João Rosa [2], o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses; morreria no hospital, na sequência da sua prisão e tortura pela PIDE, em 1961, segundo informação do Leopoldo Amado], está na segunda fila à direita ; à sua frente, o segundo da direita é o Toi Cabral [António da Luz Cabral, irmão do Luís Cabral e meio-irmão do Amílcar Cabral] [3]. 

Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau, entre eles, talvez o Mário Dias, ou talvez não: não conseguimos ainda identificá-lo, mas  já lhe pedimos em tempos  para "validar" esta legendagem... Ele pode (ou não)  ser o elemento que está a seguir ao nº 4, e que se apresenta em calções e meia branca; em 3 de agosto de 1959 ele estava a acabar a recruta, tendo frequentado o 1.º CSM - Curso de Sargentos Milicianos, realizado na Guiné.  Parece que foi na altura em que ele estava na tropa que a NOSOCO encerrou as suas portas, conforme se depreende do que ele escreveu no poste P268, de 14/11/2005:

(...) "Já agora, e apenas também como curiosidade, eu fui trabalhar para o Sindicato porque, enquanto estava no serviço militar (com o Domingos Ramos, Rui Jassi, Constantino Teixeira, etc. etc.), a NOSOCO, firma comercial francesa onde eu trabalhava, encerrou a sua actividade na Guiné.

A sede da NOSOCO ficava junto ao rio, estendendo-se as traseiras para a actual Rua Guerra Mendes, mesmo junto a um dos baluartes da Amura. Ao lado era a PSP, comandada pelo major Pezarat Correia, pai do actual brigadeiro (ou general?) ligado ao 25 de Abril de 1974. Este edifício foi, durante a guerra, sede e armazém da Manutenção Militar. "(...)

O quarto elemento conhecido do grupo [4] é, a contar da esquerda, o Armando Duarte Lopes, o pai do nosso amigo Nelson Herbert, e velha glória do futebol guineense... (Esteve em 1943 no Mindelo, sua terra natal, integrado numa força expedicionária, vinda do continente, que veio reforçar o sistema de defesa da Ilha de São Vicente durante a II Guerra Mundial; viveu depois, trabalhou e casou em Bissau. Conhecido como o Armando 'Bufallo Bill', seu nome de guerra, foi o melhor futebolista da UDIB, e do Benfica de Bissau, tendo sido nternacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa...).

Recorde-se que o apelido Herbert, no caso do nosso amigo Nelson, antigo jornalista na VOA (Voz da América), vem do avô materno francês, que foi o representante local, na Guiné, da CFAO - Compagnie Française de l'Afrique Occidentale, fundada em 1887, e que, com a NOSOCO e a SCOA, foi um das peças importantes do sistema colonial francês.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006), Todos os direitos reservado. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Temos vindo a recuperar alguns postes com versões de contemporâneos dos tristes acontecimentos de 3 de agosto de 1959, a que o futuro PAIGC e a historiografia com ele alinhada chamaram, inapropriadamente ou não,  o "massacre do Pidjiguiti". Uma das versões é do nosso camarada Mário Dias, ainda a fazer a recruta, em Bissau, nessa data, e a outra é do Luís Cabral, que trabalhava então na Casa Gouveia como guarda-livros (*).

É possível que o assunto pouco interesse  aos nossos leitores, e nomeadeamente aos antigos combatentes que só conheceram a Guiné dos anos 60 e 70... Mesmo assim, e tendo em conta a divergência na descrição e interpretação dos factos, é bom que se acrescentem mais algumas achegas, incluindo as do historiador guineense, e nosso saudoso amigo Leopold0 Amado,  precocemente desaparecido (morreu de Covid-19 em 2021,  com pouco mais de 60 anos).

Lembrando-nos que tudo tem o seu verso e o seu reverso, Leopoldo Amado (1960-2021) (que era doutorado em história pela Universidade de Lisboa) escreveu o seguinte (em 16/2/2006) (**)  s0bre o depoimento do Mário Dias:

(...) A importância do texto que Mário Dias produziu sobre o Massacre de Pindjiguiti ou assim chamado, interpelou directamente a minha sensibilidade de interessado nessa guerra enquanto historiador guineense, mas também enquanto cidadão do mundo, pelo que aqui fica a minha promessa de nos próximos dias produzir um comentário crítico sobre o mesmo, não obstante ver-me antecipadamente e desde já na contingência de dar os meus vivos parabéns ao autor por mais esta importante contribuição que, além de animar um debate que reputo construtivo e altruísta, ainda possui o condão – assim espero – de trazer ao de cima senão toda a luz e toda a verdade (porque imossível, ao menos irá contribuir para a desmistificação histórica dos aspectos próprios dessa guerra, reduzindo consequentemente as zonas cinzentas, as inverdades ou as meias-verdades que essa recente historiografia necessariamente comporta, porquanto é igualmente recente o correspondente sujeito histórico. (...)


2. Texto do Mário Dias (originalmente publicado no poste P572, de 26 de fevereiro de 2006) (***):

Caro Luis

Estive a ler atentamente, e com a compreensível dose de emoção, o texto que o Leopoldo Amado anexou à sua mensagem.(**)

Começo por dizer que tão excelente trabalho só poderia vir de alguém que, tal como Leopoldo Amado, seja possuidor de uma extraordinária cultura, conhecimentos académicos e poder de síntese.

Fiquei mais rico e esclarecido sobre as movimentações que existiam no seio dos nacionalistas guineenses, que eu sabia que existiam mas cujos recortes me escapavam (tal como disse em recente poste).

Assim, este texto lança um pouco de luz sobre o desconhecimento daquilo que "do outro lado" se passava e confirma o que várias vezes tenho referido: o empolamento na informação dos acontecimentos por parte de ambos os contendores.

Do PAIGC, pela necessidade de afirmação perante a comunidade internacional e apoio psicológico aos seus combatentes. Das nossas tropas... bom, aqui a motivação (isto não passa de uma opinião pessoal) parece-me outra: a vontade de "mostrar resultados" subindo no conceito dos superiores hierárquicos e com isso... todos sabemos. Que me perdoem os muitos que sempre foram verdadeiros nas suas informações e relatórios operacionais. Felizmente, constituem a maioria.

Porém, o resultado prático traduziu-se no exagerar dos feitos praticados, principalmente no número de baixas causadas e, conforme muito bem refere Leopoldo Amado, facilmente chegamos à conclusão que não podem ser as apontadas pelo nosso Estado-Maior.

Outro aspecto referido neste texto prende-se com a intensa actividade existente nos movimentos nacionalistas que vieram, na prática, a desembocar no PAIGC e que, fiquei agora a saber, é bastante posterior ao evento do Pidjiguiti. A minha admiração - que já era muita - pela eficácia conseguida e pelo sigilo de todas as movimentações aumentou bastante mais. Tudo "me passou ao lado".

Em jeito de "desculpa esfarrapada" por tamanha ignorância e ingenuidade,  tenho a meu favor a pouca idade à época dos factos. Só queria divertir-me como é próprio da idade. Assuntos tão transcentes estavam, confesso, fora das minhas cogitações.

Reiterando os meus agradecimentos e admiração ao Leopoldo Amado, termino respondendo à sua estranheza por eu não ter referido a presença no cais do Pidjiguiti do Domingos Ramos, Constantino Teixeira e outros soldados africanos. Claro que eles lá estiveram, não no recinto do cais propriamente dito, mas nas imediações do mesmo tal como os restantes soldados. Eles faziam parte da companhia que regressava do aeroporto e para lá foi desviada.

Pareceu-me supérfluo estar a nomear a constituição dessa companhia (o que, aliás, nem conseguiria) e que era formada na sua esmagadora maioria por soldados africanos. Não me moveu qualquer espécie de reserva ou tentativa de manipulação com "meias verdades", defeito que não faz parte dos muitos que tenho. 

Podem todos crer que se alguma omissão ou menor exactidão houver em comentários meus, passados ou futuros, será apenas e exclusivamente por compreensível falha de memória.

Um grande abraço para todos os tertulianos.
Mário Dias

PS - Antes de enviar este mail, fui dar uma espreitadela ao blogue e vi que já começaste a postar o notável texto do Leopoldo Amado. Talvez seja melhor aguardar a publicação integral do mesmo, antes deste meu desabafo, caso aches que deva ser publidado.

Como tem sido recentemente muito referido o João Rosa, guarda-livros (actualmente designados contabilistas ou técnicos de contas) da NOSOCO, resolvi anexar uma fotografia tirada em Bissalanca na despedida do gerente da referida firma, monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). 

O João Rosa está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Não sei se será o mesmo que o Luis Cabral refere como um dos principais obreiros na fuga do Carlos Correia. Gostaria obter essa confirmação mas não sei como consegui-la. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau.

[ Fixação / revisão de texto / negritos: L.G.]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


24 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

(**) Vd. postes de;

16 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P525: Pidjiguitgi, o verso e o reverso da verdade:comentários ao post do Mário Dias

Vd. também postes de:

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade

Mário Beja Santos

Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.

Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.

Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.

A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.

Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 5 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

1. Continuação da publicação de excertos do livro "Memórias da Luta Clandestina" (que foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional; edição de autor) (*)

Dois meses antes, um dos filhos, do Inácio Soares de Carvalho , o Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) (1916-1994) trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa.

Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné,  por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

[Parece haver aqui algumas confusões cde siglas e anacronismos: o PAI (futuro PAIGC, em finais de 1962) foi criado, em Bissau, por Amílcar Cabaral, em 19 de Setembro de 1956, com um grupo restrito de nacionalistas Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Elisée Turpin e Júlio de Almeida). O PAI - Partido Africano para a Independência logo a seguir estrutura-se em células, em Bissau, Bolama e Bafatá. Só em agosto de 1958, é que se terá fundado o MLG (Movimento de Libertação da Guiné), numa reunião em que tomara tomou parte José Francisco Gomes e Rafael Barbosa (Zain Lopes), Tomé Barbosa, César Mário Fernandes, Tomás Cabral de Almada, Alfredo Meneses d`Alva, na casa de Ladislau Justado Lopes em Varela). Mas em dezembro de 1960 há já indícios de desinteligências entre os militantes do PAI e do MLG. ] (**)
Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa,  será preso pela primeira vez pela PIDE em 15/3/1962, no BNU, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos. (A PIDE havia chegado ao território em 1957). É então deportado, com outros "suspeitos", para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em  16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o "golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 em Portugal".  Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci Camará. Pertencia à "secção de informação e controle" do PAI em Bissau, ele e o Rafael Barbosa (c. 1926-2007), reportanto diretamente a Amílcar Cabral, que vivia em Conacri. Em outubro de 1961, Rafael Barbosa, de etnia papel (, Zain Lopes, na clandestinidade), é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC.  Serão descobertos e presos em março de 1962.

Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em  dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)


2. O filho, Carlos de Carvalho, respondendo a algumas perguntas nossos, acrescentou mais o seguinte, em email de 3 do corrente:


"O Velho nasceu em 1916. Não foi reintegrado no BNU, nem voltou ao Banco da Guiné depois da independência. Confesso que não compreendo porque não quis voltar ao seu 1° posto de trabalho ou não o aceitaram. Ele foi inicialmente contínuo, cargo oficial, depois arquivista / guarda-livros e fazia também cobranças das rendas das casas de que o BNU era proprietário ou 'responsável'.

"Ele diz ter pertencido inicialmente a um Movimento que se designava MLGC. Creio que esta página ainda não esta bem esclarecida. Nunca foi operacional, sempre esteve na Frente Clandestina. Disse que Cabral não os deixou ir, para assegurarem a retaguarda, já que a um dado momento estava preparando o sobrinho para o substituir para poder sair para a luta armada.

"A família tinha uma propriedade (uma casa grande que alugava e uma grande horta donde tirávamos o sustento, vendendo frutas). A nossa mãe também  vendia doces, linguiças, fazia flores e outros pequenos trabalhos que ajudavam a sustentar a família.

"Sobre a edição [do livro] foi da família. Nos é que assumimos a edição contando com vários patrocínios.

"Ele, a semelhança dos outros presos de 62, e até ao fim da luta nunca foi julgado, por conseguinte, não condenado oficialmente, seja judicialmente.

"Creio ter respondido à suas duvidas. Até breve, espero em PT {Portugal]

"Abrasu a todos da nossa Tabanca

"Carlos
"PS: Sobre a 'estada" no ex-CCT e na Ilha darei mais detalhes depois."


Guiné > Bissau > PAI > Secção de Informações e Controlo > Diário > 25 de abril de 1961 > Assinatura de Naci Camara [Inácio Soares de Carvalho]

Citação:

(1961), "Diário sobre a prisão de militantes do PAI", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41690 (2020-3-4)

Fonte: Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07063.036.058
Título: Diário sobre a prisão de militantes do PAI
Assunto: Diário assinado por Zain Lopes  [, Rafael Barbosa,] e Naci Camará [, Inácio Soares de Carvalho}, pela Secção de Informações e Controlo, sobre a prisão de militantes do PAI.
Data: Terça, 25 de Abril de 1961
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas de Bissau 1960-1961.~
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral




Bissau > PAI > 25 de abril de 1961 > Mais um documento com a assinatura do Nassi [ou Naci] Camará... 

Destaque do editor LG para a parte final do comunicado: (...) "Os pandigos [, bandidos ?, colonialistas... ] já começaram a evacuar mulheres e crianças, mas saiu um Decreto [pelo qual]  nenhum homem pode seguir para a Metrópole. Estã[o] sendo distribuída[s] armas à população civil, sendo [cabendo a] cada indivíduo uma arma e cinquenta balas e duas granadas de mão" (...) [A arma seria a Mauser ? 50 munições corresponderiam a 10 carregadores, com 5 munições cada... O  Rafael Barbosa usa várias vezes a expressão "bandidos", noutros documentos, mas para referir os "bandidos de Dakar" que, por volta de finais de 1960 / princípios de 1961, comspiravam contra Amílcar Cabral e o PAI... Há erros de dactilografia e ortografia dos documentos assimcados pela "secção de informação e controlo". ]

Para se perceber a primeira parte do comunicado, em que há referência aos "milicianos", ao serviço do exército português, que correm o risco de ir serem mobilizados para a Angola, há que ter em conta a realização, em Bissau, com início em 14 de agosto de  1959, do 1º Curso de Sargentos Milicianos, aberto a europeus "e guineenses considerados civilizados ou assimilados, já com formação escolar de, pelo menos, o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal":  frequentado pelo nosso camarada Mário Dias, membro da Tabanca Grande da primeira hora, este curso deu vários... comandantes ao futuro PAIGC, como foi o caso do Domingos Ramos,  do Constantino Teixeira, do Rui Demba [Djassi]...

Citação:

(1961), "Diário sobre o desenvolvimento da luta clandestina em Bissau", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41691 (2020-3-4) (Com a devida vénia...)

Fonet: Casa Comum
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07063.036.059
Título: Diário sobre o desenvolvimento da luta clandestina em Bissau
Assunto: Diário assinado por Zain Lopes e Naci Camará, pela Secção de Informações e Controlo, sobre a possibilidade de enquadramento dos "Milicianos" ao serviço do exército português no PAI e o desenvolvimento da luta clandestina em Bissau.
Data: Terça, 25 de Abril de 1961
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas de Bissau 1960-1961.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral


3. Excertos do livro - Parte III (*)

(Continuação)

Mussá Fati, o primeiro contacto enviado por Cabral

Felizmente, nos princípios de Abril [de 1961] chegou a Bissau o primeiro guia de ligação, Mussá Fati, mandado pela nossa Direcção em Conakry com a missão de tudo fazer, mas com muita descrição, para nos contactar. 

Efectivamente, depois de ter chegado à Bissau, não foi fácil ao Mussá entrar, de imediato, em contacto connosco. A razão é porque nós não tínhamos confiança em receber ninguém no nosso meio com receio de membros dos grupos do Senegal nos infiltrarem. Depois de estar muitos dias a tentar o contacto, acabou por encontrar o nosso jovem companheiro, Marcos Correia; como já se conheciam, o Mussá acabou por lhe pôr ao corrente do que se passava no exterior, contando-lhe o que ouviam sobre nossas actividades e o que acontecera connosco, para finalmente dizer-lhe que vinha a mando do nosso engenheiro [, Amílcar Cabral,]  para nos contactar. 

Foi assim que o Marcos sentiu coragem de ir ter comigo e eu depois fui falar como Rafael; como ele já conhecia o Mussá, disse-me que podemos entrar em contacto com ele. Autorizamos então o Marcos a levá-lo à nossa base [, na Zona 0]; eu fui ter com ele no dia seguinte e falamos todos muito da nossa situação, e como passamos do mês de Fevereiro àquela data. 

A luta pela afirmação de Amílcar Cabral como líder da luta pela Independência

Nos primeiros anos, a afirmação de Cabral como líder da luta pela Independência dos povos da Guiné e de Cabo Verde foi uma questão fulcral e sempre presente. Na verdade, foi talvez a fase mais difícil da luta. 

Se no plano interno, sentíamos que o Partido já estava bem instalado com muitos jovens de todas as tribos da Guiné a aderirem as causas da luta, no plano externo, não cessavam as propagandas de nossos inimigos contra a liderança de Amílcar Cabral, sempre utilizando o mesmo argumento de que,  sendo filho de cabo-verdianos,  não podia liderar a luta pela independência de guineenses e cabo-verdianos. 

Nessa fase, foi importante a ligação permanente, através de nossos agentes, que mantivemos com os nossos dirigentes no exterior. Por um lado, nós servíímos de retaguarda segura aos esforços para a afirmação e legitimação de nossos dirigentes, sobretudo de Cabral; por outro, dávamos continuidade à campanha para a mobilização de jovens e outros apoios para a causa de nossa independência. 


Luís Silva, mais conhecido por Luís Tchalumbé, a questão da liderança da luta pela Independência

Um dos grandes entraves na afirmação de Cabral foi o Luís Silva, mais conhecido por Luís Tchalumbé. De facto, Tchalumbé foi um feroz opositor de Cabral enquanto líder do povo da Guiné. Conseguiu mobilizar apoios junto aos grupos de guineenses que tentavam organizar-se para a luta contra o colonialismo, radicados em Conakry. Ele e seu grupo chegaram a protestar junto ao Governo de Sékou Touré,  dizendo que o Amílcar não podia libertar a Guiné-Bissau porque ele não é puro guineense porque os pais são cabo-verdianos; a atitude de Tchalumbé e seus apoiantes causou-nos grandes problemas em Conakry. 

Perante essa situação, o nosso líder , engenheiro Amílcar Cabral,  mandou-nos comunicar isso em Bissau. Quando recebemos o comunicado ficamos todos preocupados e alarmados. É que, por um lado, tínhamos o Luis Tchalumbé e, do outro, o Governo Português.

[...] Aproveitamos essa mesma missão para endereçar ao Presidente Sékou Touré uma mensagem a pedir-lhe apoio total ao nosso líder, engenheiro Amílcar Cabral; na mesma mensagem, aproveitamos ainda para desacreditar o Luis Tchalumbé, mostrando a sua incompetência para ser líder da luta para a Independência da nossa Guiné. 

Depois da ida de Companhe para Conakry, enviamos outras mensagens para os seguintes Presidentes: Senghor, do Senegal; Modibou Keita, do Mali; N’Krumah, do Ghana. As referidas mensagens destinavam-se também à pedir total apoio ao nosso líder, engenheiro Amílcar Cabral. Essas mensagens foram levadas por outro jovem, agente de ligação, o Albino Sampa; Albino foi também com a missão de aproveitar e observar, com todo o cuidado, o que se estava a passar no Senegal. 

Essas mensagens deviam ser entregues ao nosso correspondente em Dakar, Luis Cabral, a fim de mandar distribuir aos respectivos destinatários. Essas acções deram um contributo inestimável ao progresso da nossa luta de libertação nacional.


O financiamento das actividades do Partido

Todas as actividades do Partido no plano interno e externo eram feitas com grande sacrifício, sobretudo no que diz respeito à meios financeiros. Como o meu vencimento não dava para tanto trabalho, então resolvemos pedir aos companheiros de luta, militantes e simpatizantes que tinham possibilidades,  para contribuírem para suportarmos as despesas. Mesmo com tal apelo, o problema financeiro continuava. 

[...] Como havia poucas alternativas, Rafael [Barbosa], enquanto principal responsável do Partido, decidiu que a única forma que tínhamos de aliviar a situação era o Inácio fazer um empréstimo ao Banco [, BNU,]  supostamente com o objectivo de construir uma casa. 

Tendo a reunião decorrido num sábado, na segunda-feira,  decidi ir falar com o Sr. Mário Seca que era chefe dos serviços do Banco naquela altura. 

Esperei que saíssem todos os funcionários do Banco e dirigi-me ao seu gabinete e expus-lhe a minha pretensão em obter um empréstimo para construir uma residência, argumentando que onde estava morado é de três herdeiras, sendo minha mulher uma delas e não nos convinha continuar morando nela. 

Ele perguntou-me o valor do empréstimo que pretendia fazer. Respondi que queria pelo menos 25.000$00 [, cerca de 11.060,43 €, a preços de hoje]  a fim de começar a obra e a medida que for necessário eu pedia mais até acabar o trabalho. 

Ele olhou para mim e disse-me: 

- É melhor o Inácio pedir 15.000$00 , assim é mais fácil darem o Inácio do que 25.000$00. 

E disse-me então para pensar bem primeiro, porque às vezes pode-se pedir e não darem nada. Pedindo pouco à pouco é mais certo, do que muito e não receber nada. 

Dois dias depois fui à Base e contei ao Rafael a conversa tida com o Gerente. Ele disse-me logo que mesmo que fosse 10.000$00 tínhamos que tomar,  que fará 15.000$00; naquela altura, 15.000$00 era muito dinheiro, dava para muita coisa. 


Expansão da estrutura do PAIGC no território da Guiné

Nesse momento inicial da luta, com a Zona 0 [, Bissau.]  já consolidada, decidimos expandir a estruturas do Partido para todo o território nacional. Assim, fizemos todos os possíveis para ter responsáveis do Partido em vários pontos da Guiné, o que conseguimos com sucesso. 

Na região de Bolama, eram responsáveis o Domingos Gomes e Domingos Badinca; em Bafata, Quecoi Fati; em Gabu, Lassana Jaquité e Francisco Dias (Chico Pombo); em Fá Mandinga, zona de Bambadinca, Antonio Silves Ferreira.

O jovem Silves tinha pouco contacto connosco; o seu principal contacto era o Domingos Ramos {, que terá desertado do exército português, em novembro de 1960,  quando em Bolama era já 1º cabo miliciano, segundo o testemunho de Mário Dias, de quem era amigo].

Das poucas vezes que ele vinha a Bissau, falava muito com o Rafael. Em Bissorã, tínhamos Lassana Sissé e David Lopes Vaz, enfermeiro. Nas áreas de Canchungo, Cacheu, S. Domingos, Susana, em todos aqueles sítios tínhamos responsáveis do Partido, já conscientes das suas responsabilidades.


Rafael [Barbosa] é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC

Em Outubro [de 1961], chegaram a Zona 0, três grandes elementos do Partido, enviados pela nossa Direcção em Conakry. Estes elementos eram Luciano N’dau e Pedro Ramos, ambos responsáveis militares, e Mario Mamadu Turé (Mómó), responsável político, a fim de reforçar nossa equipa e dar mais impulso no nosso trabalho de mobilização e de preparação para a luta. Eles foram portadores da primeira Bandeira do nosso Partido, PAGC, que entrou em Bissau na difícil hora que nos encontrávamos.

Trouxeram também uma mensagem que o nosso grande líder nos endereçou. Nessa mensagem, veio a decisão do Partido em nomear o Rafael Barbosa como Presidente do Comité Central do Partido; nessa mesma mensagem, o Nassi Camara e Constantino Lopes da Costa foram louvados pelo Partido e confirmados nos lugares que vinham ocupando desde o mês de Abril, quando o jovem Mussa Fati nos contactou.

O cargo que desempenhávamos era interino, por isso o Nassi Camará foi confirmado no cargo de Secretário de Defesa e Segurança, e o Constantino, no de Secretário do Interior; ficando o lugar do Secretário de Controle que era também exercido pelo Rafael.

A mensagem fez sentir nos nossos colaboradores uma alegria profunda. De lembrar que nós os três éramos os responsáveis máximos e assinávamos todos os documentos que eram enviados à Direcção do Partido. A Direcção do Partido em Conakry fez-nos saber na mensagem que tal promoção e louvores foram devidos aos trabalhos feitos com grandes esforços e também das medidas que tomamos na altura em que se deu o caso do Luis Silva (Tchalumbé), em Conakry, e que permitiu a afirmação da liderança de Amilcar Cabral.

Caros senhores leitores, o nosso empenho e esforço nos primeiros anos da nossa luta da libertação da Guiné e Cabo Verde encontram-se seguramente nos documentos arquivados no Arquivo do PAIGC e está bem gravado na memória dos bons militantes e combatentes da primeira hora, do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde.


A chegada de três enviados de Cabral e um novo impulso à luta clandestina

[...] Como dito anteriormente, a chegada daqueles responsáveis, enviados por Cabral, deu um impulso muito grande à nossa luta dentro do território nacional, sobretudo na Zona 0. Para além da Bandeira e da mensagem, os três trouxeram ainda 7 pistolas automáticas para exercitarem os jovens e vários emblemas para distribuir aos militantes. 

Como a minha mulher, Maria Rosa, já estava engajada nas nossas actividades, contei-lhe sobre a chegada daqueles nossos irmãos e também do material de propaganda trazido; ela ficou muito contente e com desejo de ver esses materiais. Assim, quando fui à Base, contei aos companheiros do interesse dela em ver a Bandeira e emblemas enviados de Conakry. Ainda sugeri aos companheiros que poderíamos aproveitar para levar esses materiais à D. Irene  [Fortes] e à D. Iva, mae do nosso líder, e às filhas, irmãs de Cabral. Todos os presentes concordaram.


Bandeira do PAIGC. Fonte: Wikipédia (com a devida vénia...)
Foi o Albino Sampa e o Paulo de Jesus que levaram tais objectos à minha casa, em Ga-Beafada. Para levar os materiais de propaganda e a Bandeira da nossa casa à casa do Fortes e da D. Irene, no Bairro de Tchada, Maria tinha que passar na zona do Palácio do Governo, por isso teve que usar a Bandeira como sua roupa interior, por ser a maneira mais segura. Ela levou os materiais primeiro à D. Irene e de seguida à D. Iva e as filhas. À pedido da D. Iva, deixou ficar tudo por uns dias em sua posse.

A D. Iva, por sua vez, mostrou os materiais à Helmer Barbosa Fernandes que, satisfeito em ver a bandeira do PAIGC dentro de Bissau, pediu a D. Iva que a deixasse levar à fim de ir mostrar à alguns amigos de sua grande confiança, tendo ela concordado; Helmer pega da bandeira e leva à Alfândega; chamava os seus amigos de confiança e os mostrava; eles olhavam para a Bandeira e perguntavam com muito interesse e com grande admiração, como é que ele, Helmer, conseguiu uma coisa assim. Ele contou-nos depois que respondia aos amigos: «djobe cu odjobú cala boca». Depois de ter mostrado a todos os amigos, devolveu a Bandeira à D. Iva. 

Foi dessa maneira que a Bandeira do PAIGC circulou pela primeira vez nalguns lugares da cidade de Bissau, naquelas horas primeiras da luta, e alguns guineenses e cabo-verdianos tomaram conhecimento de sua existência. 

Nesse período, o sr. Constantino conseguiu mobilizar mais jovens, como John Eckert, Venâncio Furtado e muitos mais; Nicolau Cabral conseguiu mobilizar Armando Faria, Otto Schartt, Hildeberto Soares de Carvalho, Helmer Barbosa Fernandes, Ocante, capitão do motor da Casa Gouveia, entre outras para o nosso Partido. Toda esta actividade foi desenvolvida entre Novembro e Dezembro do ano de 1961.

(Continua)




Guiné > Bissau > PAI > Secção de Informação, Controlo e Defesa > s/d  [c. 1961/1962 até março] > Mais um  documento, do Arquivo Amílcar Cabral, contendo a assinatura do Naci Camará. Tem a particularidade de já usar papel timbrado do PAIGC, mas a sigla continua a ser PAI (até finais de 1962)... Este documento, não datado, tem de ser anterior a março de 1962, altura em que o Zain Lopes e o Naci Camará foram presos.

Citação:

(s.d.), "Relatório sobre o desenvolvimento da luta em Bissau e no interior", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41686 (2020-3-4)

Fonte: Casa Comum
Instituição:Fundação Mário Soares
Pasta: 07196.157.022
Título: Relatório sobre o desenvolvimento da luta em Bissau e no interior
Assunto: Relatório assinado por Amadu Farrel (Secção de Informação), Zain Lopes, (Secção de Controlo) e Naci Camara (Secção de Defesa), dando conta da situação e das necessidades da luta em Bissau e no interior.
Data: s.d.  [c. 1961] 
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos 1960-1961.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
______________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

3 de março de  2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(**) Vd. postes de:


25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

26 de fevereiro de  2006 > Guiné 63/74 - P571: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

Vd também o importante e esclarecedor artigo do António E. Duarte Silva- "Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC. "Cadernos de Estudos Africanos". 9/10, 2006,
pi. 142-167. [Disponível  em https://doi.org/10.4000/cea.1236].

terça-feira, 3 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Guiné-Bissau > Bolama > s/d  [ c. 2009] > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros. A sua lotação máxima são 100 passageiros...  E foram 100 "nacionalistas" ou "elementos subversivos" [, no dizer das autoridades coloniais da época, ao tempo do governador da Guiné, de triste memória, o oficial da marinha, António Augusto Peixoto Correia (1913-1988)],  que em 1 de setembro de 1962  foram tranferidos da Ilha das Galinhas, a ilha-prisão do arquipélago dos Bijagós, para o Campo de Trabalho de Chão Bom, no Tarrafal, ilha de Santiago Cabo Verde...

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(...) "Na madrugada de 1 de setembro [, depois da prisão, efetuada nas instalações do BNU em 15 de março de 1962, ainda ao tempo do governador, oficial da marinha, Peixoto Correia], foram buscar-nos em Mansoa para [nos] levar à ilha das Galinhas. Via João Landim, fomos levados no porão do barco Formosa. Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul. Na noite de 1 de Setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. (...).

"No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco Formosa, com o rumo a Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor África Ocidental com destino desconhecido por nós. Só viemos a saber onde estávamos quando chegamos ao Porto do Tarrafal, onde nos mandaram sair de porão como animais de carga. Passamos muito mal durante todo o caminho."(...)  

(Excerto de: Inácio Soares de Carvalho, "Memórias da Luta Clandestina", no prelo, 2020)


 Por Portaria nº 18539, de 17 de Junho de 1961, assinada pelo então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, tinha sido reaberto o antigo campo de Tarrafal (que funcionou entre 1936 e 1954), agora designado Campo de Trabalho de Chão Bom, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, originalmente destinado aos presos políticos de Angola. 

Em 1962, após uma série de vagas de prisões de nacionalistas guineenses, que sobrelotavam os ass prisões e os quartéis militares de então, o governador da Guiné pede. por um simples ato administrativo,  a deportação para o Tarrafal dos 100 mais... "perigosos".  Juntam-se aos angolanos em 4 de setembro de 1962.

O governador  António Augusto Peixoto Correia viria a substituir o professor Adriano Morerra no cargo de ministro do ultramar.


Capa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020



1. Continuação da publicação de excertos do  livro "Memórias da Luta Clandestina" (que foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.)  (*)

Dois meses antes, um dos filhos, do Inácio Soares de Carvalho , o  Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) (1916-1994)  trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939,  até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia (, temos dúvida sobre a sua data de nascimento: ele diz que em 29 de Abril de 1974, quando "terminou para sempre o nosso martírio e sofrimento na Ilha das Galinhas", ele completava "58 anos de idade"; terá então nascido em 29/4/1916 ).
 

Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa  da colónia portuguesa. Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG– Movimento para Libertação da Guiné   (**) por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Seria preso pela primeira vez  pela PIDE em 15/3/1962. É então deportado, com outros "suspeitos", para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas). Três depois, em 16/10/1965, 
é transferido  para a  colónia penal da  ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós. 

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau,  até conhecer a liberdade definitiva com o "golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 em Portugal". O seu nome na clandestinidade era Nassi ou Naci Camará. [O de Rafael Barbosa, de etnia papel (c. 1926-2007), era Zain Lopes.]

Nos final dos anos setenta, regressa à sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em 1994.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)



Assinaturas em Relatório do PAIG sobre o dispositivo militar português em Bissau, e nomeadamente o Quartel General a "norte da cidade" [Santa Luzia].  Data: c. 1961. Relatório datilografado, em duas páginas, em papel branco. É assiando pelos eesponsáveis do PAI em Bissau: Latranco da Costa [Pedro Ramos], Zain Lopes [Rafael Barbosa] e Naci Camará [Inácio Soares de Carvalho, acrescentamos nós. (LG)]...

Citação:
(1961), "Relatórios do PAI em Bissau", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41679 (2020-3-3) (com a devida vénia...)

[No Arquivo Amílcar Cabral, há vários documentos, como este,  com a assinatura de Zain Lopes e N. Camará, da Secção de Controlo e Defesa, do PAI, em Bissau,  datados de 1961. Rafael Barbosa e Inácio Soares de Carvalho serão presos em Março de 1962. Pedro Ramos (, irmão do Diomingos Ramos,) consegue furar o cerco militar à base clandestina onde estava escondido  o presidente do PAI,nio Rafael Barbosa, na Zona 0, em Bissalanca, nos arredores de Bissau. Sabe-se que o Rafael Barbosa teve, na época, um papel fundamental na mobilização dos jovens para a "luta de libertação". Era considerado uma figura carimástica e respeitada pelos mais jovens até à sua  prisão em setembro  de 1962 e posterior libertação, em 1969, ao tempo de Spínola. A sua evental participação no conspiração para prender e/ou matar Amílcar Cabral, em janeiro de 1972, é ainda hoje motivo de controvérsia. Tornou.se um dissidente do PAIGC, sendo a sua memória, hoje, na Guiné-Bissau,  objeto de uma relação de amor-ódio.  Leopoldo Amado entrevistou-o e fotografou-o em 1989. (LG)]


2. Excertos do livro - Parte III (*)

(Continuação)

Rafael Barbosa – o regresso a Bissau

Estando o Alfredo Menezes d’Alva ainda em liberdade faz todos os possíveis para entrar em contacto com o Rafael  [Barbosa] que se encontrava já nas matas no interior da Guiné, em campanha de mobilização, com a ajuda de um nosso companheiro [1].

Entretanto, esse companheiro nosso acabou por ser informado por nossos agentes de ligação do que se passou em Bissau. Dali então tomou a precaução de pôr o Rafael Barbosa na clandestinidade sob a vigilância de um dos nossos responsáveis em Bissorã que, do seu lado, tudo fez para entrar em contacto com o Menezes. 

Como não havia lugar seguro onde se podia esconder o Rafael, a única solução que foi encontrada foi metê-lo numa horta de mandioca enquanto, durante a noite, se procurava um lugar definitivo para o pôr a salvo da PIDE. Foi efectivamente muito complicado tirar o Rafael de Bissorã e pô-lo em Bissau, ainda mais sendo ele um deficiente físico [2].

Com a prisão de nossos companheiros, responsáveis do Partido, e crentes de que o Rafael se encontrava em Dakar, os agentes e informadores da PIDE deram uma festa para comemorar porque estavam presos todos os principais responsáveis do Partido no interior da Guiné e contavam que o Rafael estivesse em Dakar. Esta convicção dos agentes da PIDE de que o Rafael estava em Dakar foi uma grande sorte para nós.

A minha grande preocupação nessa altura era que a PIDE não soubesse que o Rafael já estava dentro da Guiné, porque se soubessem desencadeariam uma perseguição até o encontrarem, o que seria uma desgraça, pois seria um grande atraso para a nossa luta, sobretudo nessa fase muito difícil.

Estando o Rafael em Bissorã, o nosso maior problema agora é fazê-lo entrar em Bissau, tendo em conta o aumento do número de informadores que a PIDE fez em toda a Guiné, principalmente em Bissau, capital da província.

A entrada do Rafael Barbosa em Bissau só foi possível devido à vontade e muita coragem do Alfredo Menezes d’Alva e alguns jovens companheiros de luta como Nicolau Cabral [3], Mandu Biai [4] e Albino Sampa [5].

Amigos leitores, não fazem ideia da minha grande satisfação quando o Alfredo Menezes foi ao Banco [, o BNU, ]  dar-me a notícia de que o Rafael já se encontrava em Bissau e o sítio onde se encontrava escondido. Ele foi levado e escondido em casa duma prima dele que se situava na margem esquerda da ponte de Cobornel [6] ], para os lados do futuro Bairro da Ajuda ?, (LG)].  Informou-me ainda a forma como chegar ao local onde estava escondido.

Mas para ver o Rafael,  o Menezes recomendou-me para fazê-lo só a partir das 3 horas da tarde, pois, é uma zona muito movimentada e tinha que ter muita atenção. Mais me disse que o Rafael estaria à janela à minha espera, pois, já estava tudo combinado com ele. Assim, não foi difícil localizar a casa e encontrar o nosso companheiro de luta.

Tudo aconteceu num sábado à tarde e, caros leitores, passámos toda a tarde até às 9 da noite a conversar sobre os últimos episódios de nossa luta; mas, como tínhamos muitos assuntos a discutir, acertamos continuar a conversa no dia seguinte, visto que já era tarde e a vigilância da PIDE era apertada e não podíamos correr risco.

No encontro do dia seguinte, começamos logo a pensar na melhor maneira de recomeçarmos as nossas actividades e Rafael contou-nos como passou na vinda de Bissorã para Bissau, dado o seu estado físico.

Caros leitores, podem imaginar um indivíduo fisicamente deficiente e debilitado conseguir fazer um trajecto de aproximadamente 70 kms, tudo dentro do mato até chegar a capital porque não podia andar por via normal, controlada pelos agentes da polícia e da PIDE. Todo este episódio foi contado pelo Rafael na presença do Menezes, Nicolau Cabral, Albino Sampa e mais outros companheiros de luta.

Depois deste acontecimento entrei em contacto com D. Irene Fortes, esposa do Fernando Fortes, e informei das últimas novidades, sobretudo a entrada do Rafael em Bissau. Quando lhe contei toda a estória, ela ficou ainda mais contente do que eu próprio. De seguida, fui levar a mesma informação ao Sr. Rosendo que ficou muito admirado ao saber que o Rafael já estava em Bissau, pois ninguém esperava naquelas horas muito difíceis que isso pudesse acontecer.

Aproveitamos para falar, mas não por muito tempo, pois andava sempre desconfiado com a PIDE porque os companheiros estavam quase todos na prisão.

Com o Rafael já em Bissau, a nossa maior preocupação consistia agora em arranjar um sítio mais seguro para o esconder porque a casa da prima, como dito antes, ficava na beira da estrada e não nos oferecia segurança para montarmos a nossa base, mas sobretudo porque o marido dela já estava com medo porque a PIDE lançou a propaganda de que a casa onde for encontrado o Rafael, este seria preso com toda a família que o escondia.

Assim, para ultrapassar essa situação e encontrarmos um lugar com segurança, fizemos uma pequena reunião da qual saiu a decisão de encarregar Nicolau Cabral, Albino Sampa, Abdulay Bary, Martinho Balanta que é cunhado do Epifânio, Mandu Biai, Abdul Dja [7] e mais outros jovens de procurar um lugar seguro para instalarmos Rafael e “construir” a base para o recomeço de nossas actividades.


A primeira leva de prisões de responsáveis do PAIGC

Todo aquele desentendimento e confusão, em Dezembro do mesmo ano [, 1960 ?], originou a prisão de alguns de nossos companheiros, como o Quintino Nosoliny, o Estevão Tavares e o Lassana Sissé, todos eles responsáveis do Partido em Bissorã. Estes responsáveis faziam parte dos responsáveis que estavam de acordo para se trabalhar conjuntamente com os cabo-verdianos.

A segunda leva de prisões de responsáveis do PAIGC

Nesta leva de prisões [, em abril de 1961 ], foram presos, entre outros, Fernando Fortes, Inácio Júlio Semedo, Epifânio Souto Amado, Júlio d’Almeida e João Rosa. Só o Alfredo Menezes d’Alva escapou. (**)

Estes nossos companheiros foram levados e ficaram detidos nas celas na 2ª Esquadra da Policia. A situação deles como a de todos os prisioneiros políticos era desagradável porque eram sujeitos a muitas injúrias pelos agentes da PIDE portugueses e também de alguns dos nossos irmãos africanos que se encontravam ao serviço da Policia portuguesa na referida Esquadra. Depois da prisão destes companheiros, as actividades paralisaram quase completamente.

(Continua)

_________________

Notas do Carlos de Carvalho:

[1] ISC não explicita o nome desse companheiro. Mas, com certeza, trata-se de um dos muitos dirigentes / militantes que o Movimento/Partido tinha já espalhado em todas as zonas do interior da Guiné-Portuguesa, como se poderá constatar aquando das prisões ocorridas em [março de]  62.

[2] Rafael era deficiente da perna esquerda. Segundo a filha Helena Barbosa esse problema foi consequência duma deficiente administração de uma vacina, em criança, contra a meningite, tendo piorado já homem, após ter sido mordido por uma cobra.

[3] Nicolau Cabral foi seguramente dos mais activos militantes do PAIGC na clandestinidade. O seu nome aparece em todos os principais momentos da luta clandestina. Preso em 1962, foi enviado, como ISC, para a Colónia Penal do Tarrafal. Segundo ISC, era pedreiro de profissão.

Segundo informações de Almiro de Carvalho, depois da independência, Nicolau trabalhou na UNTG.

[4] Mandu Biai foi preso em [março de ] 1962 e enviado com ISC à Colónia Penal do Tarrafal, em Cabo Verde, donde terá saído em liberdade em 1969. Segundo ISC, Biai era Empregado Comercial.

[5] ISC fala do Albino Sampa durante todo o decurso da luta. É de se supor que Albino tenha sido mobilizado por Rafael para a luta, pois, na sua “Descrição Biográfica”, uma espécie de “Autobiografia Política”, fornecida por um sobrinho de nome Paulino, Albino escreve que: “Aderiu às fileiras do PAIGC em 1957 com idade muito jovem, tendo cumprido a sua primeira Missão de Serviço em 01/05/61, que lhe fora incumbida pelo Sr. Rafael de Paula Gomes Barbosa, no sentido de efectuar uma viagem para o Senegal, Dakar, portador de correspondências para Luís Cabral, naquela cidade, e para o Sr. Marcelo em Cundará”

Foi um dos principais agentes de ligação entre a Zona 0 e o exterior. Muito seguro e convicto, granjeou respeito no seio de seus companheiros de luta. Ainda após a luta ISC se lembrava com frequência desse incansável lutador pela independência da Guiné e de Cabo Verde.

Ainda segundo sua “Descrição Biográfica” e informações recolhidas junto de vários companheiros de luta (Paulo Pereira de Jesus, Brígido, Constantino, entre outros), Albino, depois da independência, trabalhou como Agente de Guarda nos Empreendimentos dos Serviços Portuários. Morreu em 2014, quase completamente abandonado pelos companheiros de luta. (Ver nos Anexos alguns documentos sobre este herói quase desconhecido da maioria de seus compatriotas).

[6] Cobornel era, na altura, um bairro em construção. Ficava a uns poucos quilómetros do centro da Cidade de Bissau, portanto, uma zona quase que desabitada. Na verdade, a cidade de Bissau quase que terminava na zona situada logo após a “Chapa-de- Bissau”. [Mais tarde ter-se-á construido ali o novo bairro da Ajuda; segundo o Leopoldo Amado, seria em Bissalanca. (LG).

[7] Sobre Abdul Djá,  ISC falará posteriormente.

(Continua)
____________

Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(**) MLGC ou só MLG?... Não confundir com o PAI (futuro PAIGC). Um e outro entram em rutura antes do início da luta armada..

Vd. poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(...) Aliás, salvo raras excepções, d
e 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político (...)  coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência.

Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na luta contra o colonialismo português na Guiné. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "cabo-verdiano".

Este movimento acusava os cabo-verdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares. (...)

(...) Como quer que seja, é dado adquirido que o PAI, enquanto tal, até pelo hiato referido que caracterizou a sua quase inacção entre 1956 e 1959, não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti. Diferentemente do PAI, a mesma asserção já não pode aferir-se relativamente ao MLG que teve, de facto, uma assinalável e directa participação directa nos acontecimentos. Efectivamente, activistas do MLG tais como César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Paulo Gomes Fernandes e José Francisco Gomes tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular (...)

Das pessoas referidas pelo Elisée[Turpin] (...) recordo-me perfeitamente de:

- Benjamim Correia, que tinha uma loja de bicicletas e acessórios e era um conceituado comerciante muito estimado e considerado entre a população da Guiné, "colonos" incluídos;

- Rafael Barbosa, que era funcionário das Obras Públicas e tinha uma pequena deficiência numa perna que o obrigava a mancar;

- Quanto ao Inácio Semedo, o único Semedo de que me recordo era o guarda-redes do Sporting de Bissau, alcunhado de "Swift"; talvez não seja o mesmo;

- Luís Cabral, irmão do Amílcar, trabalhava na Casa Gouveia.

Porém, aqueles de quem melhor me lembro - por com eles ter lidado mais de perto - são:

- Fernando Fortes que era funcionário dos Correios em Bissau: tinha um irmão (Alfredo, salvo erro) que nos meus tempos de Farim (1953/55) era o Delegado Aduaneiro naquela localidade;

- João Rosa foi meu colega de trabalho na NOSOCO. Era o guarda-livros. Fui muitas vezes a casa dele no Chão Papel (...). Era muito meu amigo e fui visitá-lo ao hospital quando ali foi internado, já sob prisão da PIDE;

- João Vaz era o alfaiate dos serviços militares. A oficina era na Amura e era ele que fazia o fardamento para os recrutas e demais militares. Ainda tenho comigo um camuflado que ele me fez sob medida.(...)

Vd. também postes de:


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20299: Efemérides (313): Na Guerra da Guiné, há 55 anos: A emboscada comandada por Osvaldo Vieira à escolta sob o meu comando, na estrada Mansabá-Farim, ao cair da tarde daquele 1.º de Novembro de 1964

1. Em mensagem de ontem, 31 de Outubro de 2019, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos um texto lembrando uma emboscada lavada a cabo no 1.º de Novembro de 1964, a uma coluna auto na estrada Mansabá-Farim, comandada por Osvaldo Vieira.


Na Guerra da Guiné, há 55 anos: 
A emboscada comandada por Osvaldo Vieira à escolta sob o meu comando, na estrada Mansabá-Farim, ao cair da tarde daquele 1.º de Novembro de 1964

A malta do 2.º Curso de 1963 do CISMI – Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, – merecerá o registo da história de excelente colheita.
Começámos em Agosto, saímos Sargentos tirocinados em Dezembro, mas, por “criatividade” dos nossos chefes militares, com o posto de Cabos Milicianos – para fazermos o serviço de Sargento ao custo do soldo de Praça.

Em 4 meses de recruta/especialidade, a “Academia Militar de Tavira” superiorizou 1200 instruendos a Hitler – ele saiu da tropa com o posto de Cabo “chico”.

A minha classificação final foi de 12,26 valores – só não tive notação negativa nos “trabalhos de estrada” – e, 0,2 de valor terão feito de mim o mais infortunado furriel da CCav 703, na Guerra da Guiné: não tive grupo de combate certo, fui obrigado a substituir todos os furriéis operacionais e 2 dos 4 alferes e acabei a comissão como comandante de 2 Grupos de Milícias. O Manuel Simas, que já nos deixou, era o segundo classificado, com 12,24 valores, e, na nossa interacção, se não foi a minha sorte grande foi a sua terminação – era mais capaz que eu.

A primeira substituição foi a do vagomestre, Furriel Aurélio Cunha, que dias após o desembarque baixou ao Hospital Militar 241.
O Aurélio Cunha será um prestigiado repórter, chegou a redactor principal do “Jornal de Notícias” e é autor do notável livro “Um Repórter Inconveniente”, está vivo e recomenda-se; o Manuel Simas será um escultor brilhante nos Estados Unidos, acabou professor no Ensino Secundário em Ponta Delgada e deixou-nos há 2 anos.

E foi no desempenho de vagomestre que eu e mais 11 nos vimos confrontados pelo carismático comandante Osvaldo Vieira e a sua malta, naquela emboscada, – a primeira sofrida pela CCav 703. Até então, apenas havíamos operado cercos, assaltos, etc.
O Comando-Chefe desencadeara a “Operação Confiança”, na sua pretensão de “limpar“ o Oio, à CCav 703 coube a missão do desimpedimento da estrada Mansabá-Farim, que o MLG e não o PAIGC havia pejado de abatises, desde 1962, o primeiro movimento armado independentista da Guiné, com o assalto e a vandalização de Susana, Varela, etc a seu crédito.

Montámos barracas cónicas chamadas “tendas coloniais” num descampado, arredores de Bironque, de dia uns faziam de militares-madeireiros, outros faziam patrulhas operacionais e de reconhecimento por água, em duas noites “embrulhamos” morteiradas de 82 – a sua segunda ou a terceira ocorrência na Guiné.
Levámos apenas atrelado-tanque de 10 000 litros de água, mas em Bironque não havia esse precioso líquido (viemos a saber que Teixeira Pinto se havia queixado do mesmo), não tivemos uma côdea de pão, passámos do rancho quente a rações de combate, as moscas passaram a enxamear o amontoado de marmitas não lavadas e, quando já tínhamos menos dum cantil per capita, o pequeno heli Alouette II das evacuações sanitárias, poisou com o Brigadeiro Sá Carneiro (tio do futuro fundador do PPD). O nosso enérgico Capitão Fernando Lacerda não era dado a tibiezas fizera subir o tom nas reclamações da falta do reabastecimento de água e o Comandante Militar, em vez de nos mandar gerricanes de água mandou-nos a sua presença – mas para admoestar e ameaçar o capitão com uma “porrada”. Mas deixou-nos um ensinamento: - Em tempo de guerra, as marmitas lavam-se com terra…

Nada tive a ver com a “Ordem de Operações” ou o estacionamento em Bironque, mas a sua falta de água sobrara para mim. A Guerra da Guiné também foi assim.
O nosso capitão disponibilizou-me o camião Mercedes, o seu condutor Domingos Pardal e uma esquadra, reforçada com os três elementos da cozinha, deu-me liberdade para acrescentar até 4 voluntários de folga (os outros operacionais tinham uma missão operacional), arregimentei apenas 3 voluntários, formei uma escolta de 12 fiz a lenga da praxe e lá fomos à água ao BArt 645, sediado em Mansabá. Eh, malta! Estou a sentir arrepios, à medida que vou recordando e evocando o acontecido, evidência que temos uma espécie de “disco rígido” que grava para a vida as nossas emoções fortes – o medo, no caso.

Troço da estrada Mansabá-Farim, com o Bironque sensivelmente a meio do caminho
Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné

O Domingos Pardal dobrou o para-brisas, pusemos os óculos à aviador, tapamos as fuças com os lenços verdes, avançamos para Mansabá, a grande velocidade, levantado e deixando nuvens de pó, recebeu-nos um capitão “águia negra”, murmurou que só um maluco mandaria tão pequena escolta e disse-me, indicando 2 obuses 8.8 apontados para os lados de Bironque: - Vocês acabaram de passar no meio “deles”! A malta “águia negra” foi muito hospitaleira, emprestaram-nos toalhas para o banho, atestaram-nos o atrelado-tanque, abonaram-nos “vianda”, eu aviei meio casqueiro, uma lata de conserva de perdiz das Conservas Brandão e uma “bejeca” gelada.

O comandante de Mansabá mandou um pelotão escoltar-nos até meio do caminho, o seu Unimog avariou em plena mata, gastamos tempo a arranjar maneira de o ultrapassar, a noite tropical é rápida a chegar, o seu alferes disse-nos que o seu comandante permitia que regressássemos a Mansabá – mas a malta de Bironque desesperaria mais um dia sem água!
Como não era uma ordem, levantei os queixos e o olhar aos nossos, não houve reacção negativa, afivelei a máscara de sujeito decidido, saltei para o camião, lembrei-me e repeti a bravata do Henrique Galvão, no caso do Santa Maria: - Prá frente é que é o caminho!

Cerca de um quilómetro depois, desabou uma trovoada de rajadas e de rebentamento de granadas, todos voamos para o chão a ripostar, as balas faiscavam no taipal metálico e chicoteavam-me aos ouvidos, os sacos de areia em parapeito vertiam-na, um soldado dizia que estava cego, e, afortunadamente, as granadas rebentavam do outro lado da estrada. Dada a densidade da mata, os atiradores e granadeiros atacantes estavam-nos muito próximos, mas o outro lado era-nos seguro e campo da explosão das granadas deles.

O condutor Domingos Pardal continuou em 1.ª velocidade, deitara-se e orientava a condução pela porta aberta do seu lado, acelerava com uma mão e guiava com a outra, fiz-lhe o sinal convencional para arrancar e ao cabo da esquadra meu adjunto (lamento não me lembrar do nome) para retirarem a rastejar pela valeta, os atacantes encarniçaram o fogo sobre o camião e eu e mais 3 ficámos uns momentos na retaguarda, a dar segurança. Nesse momento e manobra localizámos os seus ninhos de tiro, os 4 despejamos 2 carregadores cada sobre eles, 160 balas, ouviram-se gritos e ruídos, deduzi que retiravam e também retiramos, a rastejar pela valeta.
 E já o Pardal vinha de marcha atrás com a malta, de regresso à “zona de morte”, porque ficáramos para trás. Rapaziada valente! Ao nosso encontro veio uma coluna de auxílio, comandada pelo capitão. Foram cerca de 10 minutos, que nos pareceram uma eternidade!

Moral da estória: O camião Mercedes, novinho em folha, tinha 17 impactos de bala na cabine, o taipal do lado do ataque estava todo cravado, os sacos de areia do seu peitoril estavam desfeitos, a primeira rajada atirara areia aos olhos daquele soldado, que recuperou, - mas o atrelado-tanque estava intacto!

Troço da estrada Mansabá-Farim em Fevereiro de 1971, pouco tempo após terminado seu asfaltamento. Ainda persiste o pó branco com que era coberto o alcatrão acabado de aplicar.

Foto e legenda: Carlos Vinhal

Sou recorrente nesta narrativa como preito de memória à malta que já partiu e de homenagem à malta ainda subsistente do BCav 705, do BCav 490, do BArt 645, da BCaç 507, do “Capitão do Quadrado”, com quem interagimos no norte da Guiné – no Oio e Morés.

E também não esqueço o Osvaldo Vieira, morto em desgraça, em Janeiro de 1974 e os bissau-guineenses que nos afrontaram de armas na mão, tão convencidos quanto nós, “por uma Guiné Melhor”.
Mereciam melhor sorte!
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20248: Efemérides (312): Mina anticarro em Canturé, regulado do Cuor, 16 de Outubro de 1969 (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52)