sábado, 21 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2971: O 10 de Junho visto pelo Cor Manuel Amaro Bernardo

A Raça e o Sangue no Dia de Portugal

Por Cor. Manuel Amaro Bernardo

(…) Hoje já não há o sangue que o regime nos pede, pela guerra. O sangue que hoje há é aquele que nós pedimos ao regime pelo aborto. E esse sangue não nos fala de dever. (…)

Discurso de João César das Neves, no Encontro de Combatentes (Restelo), em 10-6-2008

O ocorrido no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2008, pautou pela imponência das bem organizadas cerimónias, em Viana do Castelo e Lisboa, mas também pela originalidade das intervenções.

Logo na véspera o Presidente da República, interpelado pelos jornalistas, afirmou que estávamos a comemorar o Dia da Raça, com vista ao projecto comum deste Portugal com 600 anos de História, dando assim o alento para suplantar a crise actual e as que se avizinham.

Poderia parecer que estava a recuperar a terminologia do Estado Novo salazarista e caetanista, como foi lembrado por partidos, como o PCP e o Bloco de Esquerda (até exigiram publicamente uma retratação do Presidente, que os ignorou), mas, na opinião generalizada dos portugueses, não foi isso que sucedeu.

Para alguns políticos foi uma gaffe, enquanto que para outros, onde me incluo, tratou-se de um apelo à "raça portuguesa" nestes tempos tão difíceis e bastante complexos, que atravessamos.

Curiosamente o pressuroso comentador de "serviço" Rui Tavares (julgo que professor universitário ou historiador) viria logo fazer afirmações deste tipo (“Público” de 11-6-2008): (…)

Onde estava a raça? No aniversário da morte de Camões, que morreu abandonado”.
É questão para lembrar a este e outros senhores que a raça lusitana esteve bem visível nos grandes feitos dos Portugueses, nos Descobrimentos, cantados por Luís de Camões, nos Lusíadas. Ou não será?

O Encontro de Combatentes, cada vez mais pujante e com maior participação, voltou a realizar-se nos Jerónimos e junto do Monumento aos Combatentes do Ultramar (Restelo). Nele tenho participado desde o início, onde, na Comissão Executiva, se incluíam militares, como o José Pais (querido amigo já falecido) e os “Comandos” Caçorino Dias, Vítor Ribeiro e Francisco Van Úden. Eles têm continuado imperturbáveis com o seu esquema alternante de ser, em cada ano, um distinto oficial general de cada um dos três Ramos das Forças Armadas, a organizar a cerimónia.

Desta vez esmeraram-se na organização com a realização, na véspera, pela primeira vez, de um colóquio na Fundação Gulbenkian, para onde foram convidados conceituados conferencistas, como Adriano Moreira, João Ferreira do Amaral, Joaquim Aguiar, Jaime Nogueira Pinto e Vítor Bento, além dos militares General Espírito Santo e Almirante Vieira Matias.

O tema “Os Valores da Nação e o Papel das Forças Armadas nas Sociedades Desenvolvidas”, foi apreciado e desenvolvido sob as diferentes perspectivas dos participantes. Vários deles concluíram que continua a faltar um projecto estratégico para Portugal, com as inevitáveis nefastas repercussões nas Forças Armadas.

No dia 10 de Junho, e tendo sido conseguida a participação do Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, na presidência da Missa no Mosteiro dos Jerónimos, com vários padres coadjutores, como um vindo de Damão e outro africano, levou a que, também pela primeira vez, esta monumental Igreja se enchesse de público e de combatentes do Ultramar.

A afluência junto do Monumento aos Combatentes do Ultramar, no Restelo, também excedeu as expectativas. Lá fui encontrar o meu amigo Coronel Jaime Neves, ainda em convalescença de um acidente de viação ocorrido há alguns meses e a grande maioria dos restantes militares condecorados com a Ordem da Torre Espada, postados em local de honra.

O Presidente da República enviou uma mensagem, que foi lida pelo locutor de serviço, o Coronel Piloto Aviador António Lobato.


Um sanguinário discurso


Para destoar do sucesso destas cerimónias, numa altura em existe uma grande desmotivação cívica para empreendimentos deste género, acabaria por surgir um discurso despropositado, que ninguém (nem eu) esperava da parte da entidade convidada, o Prof. universitário João César das Neves.

Já o tinha ouvido numa palestra feita na Associação de Comandos, sobre temas da economia nacional e internacional, o que me satisfez plenamente.

No texto deste discurso, que tive ocasião de apreciar posteriormente num blog, acabou por fazer, na minha opinião, uma autêntica provocação aos combatentes do Ultramar, em vez de homenagear os seus mortos, como julgo devia ter sido a sua obrigação.

No meio do bulício de amigos e camaradas de armas, eu e outros já tínhamos reparado que aquilo tinha "sangue a mais". Esta palavra foi repetida até à exaustão – cerca de 100 vezes, acrescentando termos como o “sangue da violência”, o “sangue de multidão” e afirmando a certa altura:

“Será que o sangue nos fala de coragem? De valor? De heroísmo? Algum, sem dúvida! Mas muito dele, não! A maior parte certamente, não. Algum deste sangue foi derramado em feitos notáveis, actos valorosos, gestos memoráveis. Mas a maior parte não.”
E acrescentou: A maior parte, certamente, foi sangue que não queria ser derramado, que não concordava com aquela guerra, que não compreendia bem porque estava ali, que não desejava estar ali. (…)

Este discurso do tipo pacifista, não devia ter sido feito naquele local, e onde significativamente não foram dirigidas as palavras devidas de homenagem aos que tombaram pela Pátria. Não é falando no "sangue das multidões", que, como refere, agora é "sangue escondido", que essa homenagem seria feita.

À semelhança de António Barreto e de Pacheco Pereira, que não compreendem devidamente o sucedido na Guerra de África, nas décadas de 60 e 70 do século passado, e também pouco conhecedores das relações humanas e sociais neste continente, sempre desgastado por guerras tribais, César das Neves não devia ter generalizado o ocorrido na guerra na primeira metade com o da segunda. Dada a sua idade, percebe-se que seja maior conhecedor em relação à parte final, quando os seus amigos e conhecidos procediam à conhecida contestação académica.

Apenas quem passou por acções de combate poderá melhor avaliar como ocorrem os actos valorosos, quer no cumprimento da missão, quer na defesa dos camaradas que combatem ao seu lado.

Quantos, arriscando a vida, não tiveram um arranque notável para ajudar a salvar um amigo, que antes caíra numa mina ou armadilha, ou tinha sido alvo de uma rajada de tiros? E isto não tem nada a ver com a defesa do regime, do colonialismo ou de qualquer ideologia. Tem a ver com a solidariedade, a amizade e a camaradagem bem característica dos elementos que constituem as Forças Armadas.

A Guerra não é uma figura de retórica…

Dos 8290 elementos do Exército, oriundos do Continente e dos territórios africanos, que a Comissão de História Militar diz terem morrido na Guerra do Ultramar (Angola Moçambique e Guiné), desde 1961 e até à sua independência, 48% (3.947) foram considerados como falecidos em combate.

Os restantes terão sido motivados por acidentes com arma de fogo, acidentes de viação, doença, etc. Todos os seus nomes foram colocados no paredes do Forte do Bom Sucesso, junto ao Monumento. Também lá está (contra a vontade do então CEME, General Martins Barrento), o do Ten-Coronel Maggiolo Gouveia, fuzilado pela FRETILIN, nas vésperas do Natal de 1975, enquanto decorria a guerra civil em Timor.

A Associação de Comandos, com o apoio do actual CEME, General Silva Ramalho pretende que os nomes dos 53 combatentes guineenses (20 oficiais, 29 sargentos e quatro praças) fuzilados pelo PAIGC, por terem combatido do nosso lado, também lá sejam colocados, como já o foram junto ao Monumento ao Esforço Comando, recentemente transferido da Amadora para o recém-constituído Centro de Instrução de Tropas Comando, na Serra da Carregueira.

Por isso, juntamente com as flores, lá colocaram um painel com a relação desses militares para lembrar à Liga dos Combatentes que tal acto de homenagem, a quem deu a vida por Portugal, continua por fazer.

Recordo, com emoção, a presença, nesta cerimónia, de Regina Djaló, viúva do fuzilado Furriel “Comando” Demba Seca, que me cedeu um pequeno ramo das suas flores brancas; dividi-as com o meu amigo invisual Coronel Caçorino Dias, antes de as colocarmos no Monumento.

Chegando aqui, poderá perguntar-se qual é actualmente a essência da Forças Armadas, de Portugal e de qualquer outro país civilizado.É que nos nossos dias, apesar de não ser tão visível ou destacado pela Comunicação Social, a questão continua a passar pelo combate e pela luta a travar no terreno, e pela sua preparação para estarem prontas para o fazer. É isso que actualmente fazem os “Comandos” no Afeganistão e onde for necessário.

O risco de guerras localizadas continua a estar na ordem do dia, face às situações de crise que se avizinham. E nesse aspecto, África continua infelizmente a ser um palco possível e provável, além do Médio Oriente.

Agora, se me permitem, queria dar um conselho a este professor universitário. Assista a uma cerimónia de homenagem aos Mortos “Comando”.

Vai ocorrer uma já no próximo dia 29 de Junho, “Dia do Comando”.
Pode ter a certeza que ficará deveras impressionado, como eu fico sempre que tenho ocasião de estar presente num cerimonial desse tipo. Enquanto um oficial, um sargento e um soldado, marcham em passo cadenciado, em direcção ao mastro da Bandeira Nacional, transportando uma Espingarda G3 e uma boina “comando”, o locutor de serviço afirma:

Caíram …, no campo da Honra …, no cumprimento do Dever …, pela Pátria …, e pelos “Comandos”. Oficiais (presente) …, Sargentos (presente) …, e Praças (presente).

Lisboa, 15 de Junho de 2008
Manuel Amaro Bernardo
__________

1. Os nossos agradecimentos ao Cor Manuel Amaro Bernardo pelo envio do texto.

2. Fixação e adaptação da responsabilidade de vb.

3. Artigos relacionados em

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (7): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (6): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)

31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)

19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > Cachil > 1964 > CCAÇ 557 (1963/64) > Quartel do Cachil > "Seguem estas fotos: como era norma nesse tempo, numa estou eu na barbearia; e noutra, todo impecável, também estou eu o posto rádio fixo que era meu posto de trabalho. Todos os dias tinha 12 horas de serviço e o meu camarada Dias outras 12. Este posto rádio, como se pode vêr era protegido por terra pelos camaradas de armas e pelo ar por todas as estrelas do céu" (JC).

Fotos e legendas: ©
Jose Colaço. Direitos reservados


1. Texto do José Colaço, ex-Soldado de Trans, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá1963/65), recentemente entrado para a nossa Tabanca Grande (1).


Assunto - Operação Tridente

Resumir um texto tão vasto como o tema Operação Tridente (2), é difícil, para que fique no mínimo compreensível. Vou tentar o desafio e passar o mais possível ao lado da estada no Cachil.

Li com muito apreço o relato correcto que o camarada Mário Dias escreve sobre a Operação Tridente, em Cauane - a que nós que estávamos no Cachil chamávamos a Praia - , os desmentidos a João de Melo e a José Freire Antunes. OK, nós, companhia de caçadores 557, também lá tínhamos um pelotão que era uma força activa às ordens do Tenente-coronel Fernando Cavaleiro.

Parece que o Mário desconhece este facto, pelo menos não li nada em que o Mário fizesse referência a esses homens.

As declarações que o Coronel Fernando Cavaleiro faz ao programa A Guerra, de Joaquim Furtado, são de uma veracidade a toda a prova embora, como se compreende, bastante resumidas. Os meus parabéns a ambos.

Conclusões, em relação ao que diz o Mário Dias no poste de 17 Dezembro 2005 Guiné 63/74-CCCLXXX. (Ilha do Como) 1964:IIIParte (Mário Dias)

Pós operação pontos 1,2 e principalmente o nº 3.V amos fazer uma análise também resumida. Camarada Mário, entrar na mata do Cassaca através da mata do Cachil, nunca nenhuma das nossas tropas o conseguiram entre 23/01/1964 e 27/11/1964. E no Cachil estiveram forças como o destacamento de fuzileiros do tenente Alpoim Galvão.

Porque aquela clareira entre a grande mata do Cachil e a mata do Cassaca era uma autêntica passagem para a morte.

E digo-te mais, terminada a Operação Tridente, não posso precisar o dia mas foi no princípio do mês de Abril de 1964, foi determinado pelo Comando Operacional da Guiné enviar uma força militar para fazer limpeza (penso eu, destruição total) das tabancas da mata do Cassaca.

Nessa noite a artilharia de Catió, os chamados obuses, actuou como era normal durante a operação, bombardeou com os dois obuses durante cerca de 30 a 45 minutos a mata do Cassaca. A seguir veio o avião PV25 largou as suas bombas, de manhã logo ao nascer do sol, dois F86 metralharam a mata. Após os F86 retirarem, entraram na grande mata do Cachil as forças terrestres, não me lembro se era um ou dois destacamentos de fuzileiros e um pelotão de comandos ou pára-quedistas, a quase totalidade da 557, apoiados por dois aviões TC que entretanto chegaram.

Com aquele arsenal todo, assim que tentámos a passagem na tal clareira para a mata do Cassaca, as nossas forças foram atacadas com fogo de armas ligeiras, pesadas e morteiro. O recuo foi inevitável. Nesse dia não houve baixas nas nossas forças, mas feridos cerca de dez, o que eu sei é: Mal o helicóptero levantava já eu estava a enviar nova mensagem para mais uma evacuação. Posso-te dizer que nem atingimos o ponto onde no dia anterior um simples pelotão tinha feito o reconhecimento a toda a mata do Cachil.

Mais uma conclusão errada, nós até pensávamos que o inimigo tinha abandonado a mata. Na parte da tarde as forças especiais regressaram às suas bases.

Por tudo isto tirar conclusões: neste caso deve-se conhecer bem o durante e o após, para não ferir quem ainda vive e sofreu na pele todo aquele passado.
E também não adulterar a história.

No teu caso, conheces sem sombra de dúvidas o durante, mas o após Op Tridente ?...

E as batidas ou reconhecimentos a mata do Cassaca ficaram-se por aqui. Neste ponto fica a interrogação: a Operação Tridente foi um êxito? Pelo que vi e citei após aquela gorada ida à mata do Cassaca, penso que havia mais algo a fazer. (Ou esta gorada limpeza à mata do Cassaca foi apagada da história).

Mário: nós estávamos aquartelados na pequena mata do Cachil, o que tu baptizas por fortaleza de troncos de palmeiras. Mas digo que a grande mata do Cachil durante o dia era território nosso. Com frequência fazíamos reconhecimentos mas à noite era como quase todas as matas do interior da Guiné, nunca se sabia o perigo que se podia encontrar e o inimigo, quer queiras ou não, tinha uma grande vantagem nessas deslocações em relação a nós.

Já falei ao telefone com um camarada da companhia que nos rendeu, a 728, e confirma praticamente o que cito neste pequeno resumo.

O dia a dia no Cachil era sempre uma incerteza: ora atacavam as nossas tropas ora atacava o inimigo.

Vestígios, no Cachil, de Manuel Pinho Brandão só o que vi: Próximo do rio uns pilares, o que parecia ter sido um pequeno armazém sem qualquer telha porta ou janela e lá dentro o esqueleto de uma balança decimal que possivelmente teria sido usada no comércio do arroz.

Nota: sem margem para erros. A minha estada e a quase totalidade da 557 no Cachil foi de 23/01/64 27/11/64

Um abraço, a todos os camaradas da Guiné

Colaço

________

Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 2 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

(2) Vd. postes de:

28 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)

27 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2889: A verdade e a ficção (1): Op Tridente, Ilha do Como, Jan / Mar 1964 (Mário Dias)

23 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2874: Um dia na Ilha do Como: Operação Tridente, Fevereiro de 1964 (Valentim Oliveira, CCAV 489/BCAV 490)

15 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

15 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)

23 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2375: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (8): A Batalha do Como (Mário Dias / Santos Oliveira)

17 de Novembro 2005 >
Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

12 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

1 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)

17 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias

17 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)

Guiné 63/74 - P2969: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (6): O grande comandante Araújo e Sá (Manuel Rebocho)

1. Mensagem do Manuel Rebocho, com data de 14 de Maio:


Camarada e amigo Luís Graça

Acabo de ler as tuas duas mensagens, sendo indiferente a qual delas respondo.

Estou em Bissau, onde me desloquei, como tinha prometido, num mail que te enviei, com pedido de publicação, o que não aconteceu.

Vim para me certificar do ponto em que se encontravam as transladações das ossadas dos meus camaradas de Guidaje, já que algo me dizia que nem tudo estava a dar certo. As conclusões que tirei foram duas:

(i) Não irá ossada nenhuma para Portugal;

(ii) O assunto vai degenerar numa enorme confusão diplomática.

Não tenho nada com o assunto. Eu desloquei-me, o ano passado à Guiné-Bissau, tendo então feito, em nome pessoal, um pedido às autoridades guineenses, que o aceitaram. Não pedi a intervenção de ninguém, se houve autoridades portuguesas que se envolveram, fizeram-no por única decisão e responsabilidades suas.

Eu disse aos Generais Pára-Quedistas, numa reunião em Cantanhede, que eles não eram, pelas razões que lhe apontei, as pessoas indicadas para conduzirem um processo deste melindre diplomático. Não entenderam assim, e têm toda a legitimidade para julgarem pela sua própria cabeça, mas esperemos, tranquilamente, pelos resultados.

Se faço esta referência, numa mensagem que aparentemente, nada tem com a questão que me colocas, é porque as considero muito ligadas e tem a ver com a maneira como interpretamos o mundo à nossa volta e nos integramos nele.

Sou amigo do Carmo Vicente há muitos anos, sabia que ele tinha publicado o livro em questão, não o li, como não li o anexo que me enviaste (1). Tenho uma visão da Guerra de África, que é a minha. Os valores não podem ser espezinhados a troco de quaisquer lentilhas de ocasião.

O meu camarada Carmo Vicente tem todo o direito à sua opinião, muito embora eu a não acompanhe.

O então Comandante dos Pára-Quedistas, Tenente-Coronel Jorge Rendeiro de Araújo e Sá (2), era um homem duro, extremamente exigente, mas um Comandante de eleição, tendo atingido níveis de competência que eu nunca vi em nenhum outro Oficial Superior.

No dia 15 de Maio de 1973, quando Jamberém estava sem abastecimentos e uma Companhia de Pára-Quedistas tivera 1 morto e 11 feridos, na tentativa de lhe fornecer alimentos, este homem, que alguns se esforçam por criticar, determinou a deslocação da minha Companhia, de Caboxanque para Cadique, com o objectivo de romper o possível cerco, já que hoje todos falam de cerco, sem ninguém os ter visto. A operação, planeada pelo Grande Comandante Araújo e Sá, previu tudo até ao mais infimo pormenor. Tudo se fez, sem tão pouco um arranhão.

Quando foi colocado a comandar Gadamael-Porto alterou todo o sistema e acabou-se a confusão. Os males de que se fala de Gadamael-Porto, montam aos dias anteriores à sua chegada àquele Comando.

Mas tinha outros defeitos, de que te dou dois exemplos que me envolveram:

Quando estava em Caboxanque, tanto eu como o então Segundo Sargento Joaquim Manuel Delgadinho Rodrigues tínhamos que ir a Bissau fazer exames, no Liceu. O Capitão chamou os dois e disse-nos:
- Eu não assumo a responsabilidade da deslocação, dos dois, no mesmo dia a Bissau, um dos dois tem que ficar na Companhia, pode haver um problema grave e um dos dois tem que o resolver.

Eu disse que ia o Rodrigues, ficava eu. Só que as coisas não ficaram por aqui: o Rodrigues quando chegou a Cufar, onde o Comandante se encontrava, foi falar com ele, no que foi proibido pelo então Segundo Comandante Major José Alberto de Moura Calheiros, que alguns querem hoje santificar. Só que os factos entraram em fase de descontrolo, e o Rodrigues não lhe obedeceu. O Comandante Tenente-Coronel Araújo e Sá desautorizou o seu Segundo Comandante e recebeu o Rodrigues de imediato.

O Rodrigues protestou pelo facto de eu não poder ir fazer exame, elegando que com tanta gente no Cantanhez não se compreendia a impossobilidade de um homem se afastar. Araújo e Sá disse-lhe que compreendia a posição dele, mas infelizmente as coisas eram assim.

Num outro momento, houve um Tenente que me disse qualquer coisa de que não gostei e eu chamei-lhe "filha da puta", frase de que não me orgulho, mas saiu e não há volta a dar-lhe. O Tenente correu para o Gabinete do Comandante, fazendo queixas de mim. O Comandante, na minha frente, porque segui atrás do Tenente, mandou-o sair, dizendo que os "Pára-Quedistas não eram uma casa de meninas".

Era um Comandante de quem os bons militares tinham tudo, como se comprova; os outros, bem os outros têm opiniões diferentes, que eu respeito e conheço, mas, como é natural, eu vivo no meu mundo e não nem nunca no mundo alheio.

Este homem, que comandou os Pára-Quedistas, no Cantanhez e foi enviado para Gadamael, que ninguém "desenrolava" foi, no fim da sua comissão, na Guiné, condecorado com a medalha regularmente atribuída aos Chefes de Secretaria, quando todos esperávamos que lhe fosse atribuída a medalha de Torre e Espada.

Ficou entre ele e os spinolistas, grupo que integrava, se é que não integra, os melhores Oficiais do Exército português de então, o relacionamento que se pode compreender.

Quando da preparação dos acontecimentos de 11 de Março de 1975, os spinolistas necessitaram das capacidades de Araújo e Sá, já que os preparadores da tentativa de golpe de estado não se revelaram muito capazes. Araújo e Sá não os apoiou, ficou indiferente e a seguir mal com todos.

Muita gente tenta hoje chamar a si decisões que foram de Araújo e Sá, e eu vou "comprando umas brigas", pois não aceito mentiras.

A última tentativa é a de atribuírem a outro Oficial o comando da operação de resgate do Tenente Piloto Aviador Pessoa. Eu estive na operação, sei que falei com Araújo e Sá, via rádio, que me transmitiu as instruções que na altura eram apropriadas, para além de que possuo fotocópia do relatório da operação.

Meu caro camarada e amigo Luís Graça, todos os homens de grande valor são controversos, e podem ser observados segundo vários ângulos, pelo que o modo como os observamos acaba por nos caracterizar mais a nós do que a eles.

Já me alonguei e podia estar aqui uma semana a escrever que nunca terminava. Publica o que entenderes, faz a tua própria leitura, escolhe o teu próprio ângulo de observação. Reconheço, como já disse, a existência de várias posições e, quem me conhece já me conhece.

Um grande abraço

Manuel Rebocho
~
Ex-sargento pára-quedista,
CCP 123 / BCP 12
(Guiné, Maio de 1972/Julho de 1974),
hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva,
e doutorado pela Universidade de Évora
em Sociologia da Paz e dos Conflitos
(tese de doutoramento:
"A formação das elites militares portuguesas
entre 1900 e 1975")

__________

Notas de L.G.:

(1) 1) Vd. postes de:



4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?


(2) O Ten Cor PQ Sílvio Jorge Rendeiro de Araújo e Sá foi comandante do BCP 12 de 14 de Dezembro de 1971 a 20 de Janeiro de 1974

Vd. também o poste de 29 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1793: Operação Muralha Quimérica, com os paraquedistas do BCP 12: Aldeia Formosa, Guileje e Gadamael, Abril de 1972 (Victor Tavares)



(...) "Louvor ao Batalhão de Paraquedistas 12


O Comandante Operacional das Forças Terrestres Tenente-Coronel Paraquedista Araújo e Sá, no Relatório de Operações, fez uma destacada citação às tropas participantes não pertencentes ao BCP 12, designadamente às duas Companhias de Comandos Africanos e às Companhias de Caçadores 3477, 3399 e CCAÇ 18 pelo seu espírito de missão, assim como aos Pilotos da Força Aérea com saliência para o Alferes Trindade Mota, Piloto de Helicanhão.


"Também relacionado com a Operação Muralha Quimérica, o Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné concedeu ao Batalhão de Paraquedistas um Louvor que relevava a forma valorosa como, uma vez mais, as Tropas Paraquedistas do BCP 12 se tinham batido neste Teatro de Operações.Findo este período as nossas forças regressaram em LDG ao BCP 12 para retemperar forças e preparar-se para novas missões" (....).

Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

Finda a desastrosa Op Anda Cá, fomos enviados para Mansambo,para participar na Fado Hilário, um reconhecimento ao antigo acampamento de Galoiel,região do Corubal.Identifiquei a situação por causa dos lenços: a picada parecia pão ralado,chegámos a Mansambo acastanhados pelo fulvo da laterite. O lenço ajudava a respirar melhor, a manter a atenção a tudo quanto se passava nas bermas, cheias de capim muito alto. Dois picadores sinistraram-se com gravidade à saída de Mansambo.

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 12 de Março de 2008:

Luís, Estou finalmente casado, chegou o momento de todos irem à festa. Já seguiu hoje uma imagem, recordo-te que tens aí uma fotografia minha com a Cristina, há aí mais três da Cristina em Bissau. Seguem ainda hoje mais duas imagens. Mesmo com dois pequenos períodos de férias até Julho, confirmo que tudo farei para termos o segundo livro pronto em 31 de Julho. Um abraço do Mário.

Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXV > TU ÉS A NOIVA MAIS BONITA DO MUNDO

por Beja Santos

(1) A chegada da Cristina, o Bissau velho, a última noite de solteiros


Quando estamos a chegar a Bissalanca, ouve-se o ronco do avião que se atira sobre a pista, segue desabrido até parar com um grito angustiado, depois volta o focinho para a torre do aeroporto e imobiliza-se, dando o último silvo. Lá vamos à desfilada, ninguém quer ver a minha noiva desorientada e só, entre a tropa que chega e a tropa que parte. Arrumado o carro, corremos para a galeria de vidro de onde é possível ver todos os passageiros a descer até ao cimento a escaldar que leva à chegada das bagagens.

A Cristina aparece protegida por uma capeline azul, parece que está a sorrir para os mirones que acenam, depois são aqueles minutos das bagagens, abrem-se as portas e saem magotes de militares, que senhoras e crianças há muito poucas. Avanço desajeitado, confirmo que é mesmo a Cristina que se despediu de mim em 24 de Julho de 1968, parece que a sufoco com abraços e beijos. A Cristina traz o sorriso largo e mais franco do mundo, vê-se que vem exausta, arrumamos tudo no carro e regressamos a casa dos Rosa, seguem-se os cumprimentos, as bebidas frescas, ela dá as primeiras notícias com interesse para aquela plateia a cinco, a Isabel Payne ainda não chegou. Proponho voltar um pouco mais logo, o Emílio parte para o Beng 447, o David para o HM 241, chega a Isabel e a Elzira declara ter coisas a fazer no liceu. Saio dali e vou pôr-me à sombra na Associação Comercial de Bissau, mesmo ao lado do Palácio do Governo, a minha noiva tem que descansar.

Levo comigo Maigret na Escola, um Simenon excepcional, um comissário mítico a escalpelizar a vida de uma aldeia, num ritmo literário perfeito. Tudo começara na Judiciária onde Joseph Gastin, professor em Saint-André-sur-Mer, perto de La Rochelle, lhe solicita uma audiência. Gastin vem pedir ajuda, uma velha pérfida, odiada por todo o povoado, fora assassinada com um tiro de carabina, insinua-se que o mestre-escola é o autor de tal barbaridade. Inicia-se aqui o primeiro de uma série de diálogos prodigiosos: Gastin é professor e secretário da autarquia, recusa-se a fazer favores aos ricos, remediados e pobres, exige que os pais mandem os filhos à escola, uma pessoa que age assim só cria inimizades à volta.

O mestre-escola adianta pormenores sobre o homicídio, Maigret, enquanto o escuta, recorda-se do vinho branco e das ostras daquela região. Toda esta história é tão intrigante que ele não resiste a ir à terra das ostras e mexilhões, nas Charentes. Maigret chega a Saint-André-sur-Mer e instala-se num albergue, começa a coscuvilhar, vai cheirando a atmosfera, esgravata as intrigas, não investiga oficialmente mas acaba sempre por obter resultados, o professor é detido, Maigret fala com todos: o tenente da polícia, o médico, a mulher do mestre-escola, o funileiro, a clientela do bar, os alunos.

A velha odiada tinha diferentes poderes: trabalhara no correio, roubara cartas e conhecera alguns segredos importantes daquele povoado, insultava tudo e todos, ameaçara deserdar a sua sobrinha, enfim, não havia uma razão óbvia para aquele crime, as pistas contraditavam-se, mas Maigret através de sucessivas conversas com alunos de Gastin vai descobrir como um pobre alcoólico, um eterno perdedor, disparara enfurecido devido às denúncias daquela velha perversa e tinha-a atingindo mortalmente num olho. Ninguém como Simenon obtém efeitos destes desencontros do destino mediante interrogatórios que verrumam paixões silenciadas, e ódios adormecidos. Concluído o inquérito, Maigret oferece os resultados da investigação ao tenente da polícia, toma o combóio da noite e regressa a Paris, um pouco triste ou fatigado como aliás sucede sempre que termina os seus inquéritos.

Como uma omeleta com pão, olho para o relógio, são horas de ir buscar a Cristina e fazermos compras. A minha noiva recuperou alguma energia e mostra-me a indumentária que vestirei amanhã na cerimónia do casamento: o fato mais leve que deixara em Lisboa, azul às riscas brancas, uma linda gravata vermelha, uma camisa branca nova. Começa a arrefecer, partimos para o Bissau velho, vamos à ourivesaria, a escolha das alianças não é demorada, a Cristina mostra-se curiosa com aquele comércio estabelecido, entramos na Casa Gouveia, ela está embasbacada com o estanco monumental, ali encontra-se de tudo desde nastro e petromaxes, sementes, pratas, porcelanas dispendiosas ou despretensiosas.

Depois, convido-a a passear junto ao cais, é impossível não se ficar deslumbrado com toda aquela azáfama de pesca e estiva, os caudais de marisco descarregado, as redes que chegam e as que partem, as pequenas embarcações que tracejam as águas em todas as direcções. Ambos estamos cautelosos, escolhemos com suavidade aveludada as perguntas, fugimos à nitroglicerina escondida dos desencontros e das más interpretações, dos choques familiares, do ferro e fogo da correspondência que eu recebi.

Centro-me nos estudos dela, por ora suspensos, pergunto-lhe como vamos viver logo que finde a guerra. Considerei que esta nota introdutória ao nosso futuro tinha um poder apaziguador, travava qualquer viagem às guerras do Sector L1. Falámos de amigos, das suas mensagens de parabéns, a Cristina propôs tratar de arranjar a nossa casa logo que regressasse e dá algumas pistas. Com discrição, relembrei-lhe que tinha vindo com uma guia de marcha para as consultas de neuropsiquiatria e oftalmologia, o David não tinha encontrado outra alternativa para negociar com o comando de Bambadinca, uma semana a descansar numa cama de hospital não fazia mal a ninguém, comentei sardónico. A Cristina calou-se, o facto em si era suficientemente insólito para poder merecer reparo ou aplauso. E seguimos para casa dos Rosa, íamos todos jantar ao Solar do 10, a sopa de ostra parecia-me uma boa surpresa para a Cristina.

Findo o jantar, fomos até ao bar do Quartel General, era noite de cinema à volta da piscina, recordo a soberba interpretação de Rod Steiger, parece que ele fazia de dono de uma casa de penhores, desempenhava magistralmente um carácter sórdido. Despedimo-nos, fiquei proibido de ver a noiva a não ser na igreja, nessa noite fiquei em casa dos Payne, aonde não entrava desde Janeiro, naquela inesquecível semana em que tomei Vesperax por atacado.


(ii) A minha última manhã de solteiro


Levantei-me com um dia soberbo, chega a estar uma ligeira brisa, a luz do sol coa-se pelo arvoredo, repito o passeio da véspera, vou antes de mais fazer algumas leituras no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Ali também está um tempo magnífico, ficaram arrumadas numa mesa algumas obras que pedi para consultar. Retiro e abro o meu caderninho, faço transcrições. Escrevo logo um parágrafo que encontrei num boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, de 1883, referente à Província da Guiné Portuguesa:

“A Guiné é na actualidade um tristíssimo documento da nossa culpável inércia, documento que muito pouco depõe em abono de um povo que se diz civilizado, e que menos ainda pode ilustrar a nossa história colonial”.

Do artigo intitulado “Da Guiné e do seu valor no Império”, de António Pereira Cardoso, publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias, de Agosto-Setembro de 1935, encontro finalmente mais um elemento concreto sobre o enigmático Abdul Indjai:

“Em 1912, Teixeira Pinto recrutou quem quis, escolhendo o nativo Abdul Indjai, oriundo do Senegal e que na Guiné se refugiara desde 1891. Ele era um antigo soldado da colónia vizinha de onde desertara depois de ter praticado um crime qualquer. Na nossa Guiné, depois de servir de criado de casas estrangeiras, dedicou-se ao comércio de permuta com o gentio, percorrendo o interior da colónia. Embora pouco escrupuloso na sua maneira de proceder, era dotado de uma coragem, lealdade e valentia que sobejamente desculpavam a sua irregular conduta e ulterior atitude que bem caro lhe custaram”.

É quando me preparo para folhear alguns documentos sobre a campanha contra Abdul Indjai, publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, em Janeiro de 1951, que sinto uma enorme vontade de voltar à luz crua da rua, está confirmado que este meu dia de casamento é ameno, se bem que se sinta uma crescente humidade e subida da temperatura.

Como um autómato, ouvindo a sirene que vem do Pidjiguiti, avanço para aquele porto sempre em azáfama, ponho-me à sombra e acabo a leitura de uma belíssima novela de Somerset Maugham, Um Casamento em Florença, com uma sugestiva capa de Bernardo Marques. Um pouco à semelhança do que eu sentia pela obra de Eurico Veríssimo, nunca entendi o preconceito sobre a obra literária de Maugham, de quem ouvi apreciações pouco lisonjeiras. A verdade é que a sua escrita é directa, melodiosa, atrai o leitor e não lhe dá tréguas.

É assim nesta novela: “A villa ficava no alto de uma colina. Do terraço da frente, descortinava-se uma magnífica vista de Florença. Nas traseiras, havia um velho jardim com escassas flores, mas com lindas árvores, sebes de buxo aparado, caminhos de relva, e uma gruta artificial onde a água caía de uma cornucópia, com um som fresco e argentino”.

Há uma jovem viuva, Mary Panton, fora emprestada esta villa de onde se podia admirar a paisagem toscana, na sua inocência requintada. Fora um casamento infeliz, uma experiência amarga e agora um velho amigo, Edgar Swift, que ia ser nomeado governador de Bengala, vinha pedi-la em casamento. Mary Panton está indecisa, respeita profundamente o amigo mas não o ama. Promete dar-lhe uma resposta em breve, e ela depois parte para Florença onde vai jantar com a princesa San Ferdinando e os seus amigos. É aí que conhece Rowley Flint, um jovem com péssimas credenciais, ainda por cima sem uma figura muito atraente. Rowley corteja Mary Panton, que mantém uma total indiferença perante os seus avanços.

No regresso, e nesse estado de pura indiferença, Mary Panton desabafa abertamente com o jovem pretendente acerca aquele casamento calamitoso que a deixara aliviada, depois de anos de traição e de dissipação do marido. No episódio seguinte, um violinista exilado passeia-se perto da villa, aqui se desencadeia um flirt tumultuoso que culminará com o suicídio do jovem, em perfeito desespero e que se julga ultrajado por Mary Panton. Esta pede a ajuda de Rowley para se desembaraçar do corpo, quando Edgar Swift regressa a Florença para saber a resposta ao seu pedido de casamento, Mary Panton confessa-lhe o que se passou, Swift fica embaraçado, ela aproveita para se libertar do compromisso. Rowley reaparece e começa a conquistar o coração de Mary Panton. Ambos falam de riscos daquele casamento que se perfila, e ele responde-lhe no final da novela: “Minha querida, é para isso que serve a vida: para nos arriscarmos”. Com o sorriso nos lábios, levanto-me e regresso a casa dos Payne. Está na hora de me indumentar e partir com os meus padrinhos para a Catedral de Bissau.

N.º 5 da Colecção Miniatura, tradução de Leonel Vallandro, capa de Bernardo Marques. Hoje é uma raridade para bibliófilos. Somerset Maugham, se dúvidas houvesse, revela nesta escrita o seu talento superior: Não há uma falha no encadeado, os personagens estão perfeitamente caracterizados, a concisão e a simplicidade tomam rapidamente conta do leitor

(iii) A noiva veio atrasada mas muito linda!


Quem passava junto à Catedral, a partir das 18h, sentia imediatamente a atmosfera do casamento. Padrinhos bem ornamentados, noivo conversador e engravatado dirigindo a palavra aos seus convidados, alguns dele informalmente vestidos mas muito festivos: capitão Laranjeira Henriques e mulher, Benjamim Lopes da Costa, Domingos Silva, Teixeira das transmissões (para que conste: António Fernando Ribeiro Teixeira), o Barbosa da boina verde, o ruidoso Vidal Saraiva que a todos surpreendeu por vir fardado, pára um carro e saem cerimoniosos a Inês e o Alexandre Carvalho Neto.

São exactamente 18h30 da tarde quando se ouvem no órgão os acordes iniciais da Toccata e Fuga BWV 565, em ré menor de Johann Sebastian Bach. O organista aprimora-se e vibra, recomeça mas a noiva demora a chegar. Caminha para as 19h quando a noiva se apresenta na companhia do David Payne, logo atrás a Isabel, vem linda num fato que parece atapetado de penas, uma grinalda engastada no penteado, poucas jóias mas exibindo os trabalhos do ourives de Bafatá. A igreja enche-se, o padre Afonso preside a cerimónia. Houve primeiro missa, segue-se a cerimónia.

O fotógrafo recrutado na véspera desloca-se por todos os lados, parece que não há ninguém que não fique no registo. Numa fotografia que ainda não conseguia recuperar, já na sacristia parece que saímos todos da estufa: o penteado da noiva desmancha-se, o semblante do noivo está luzidio, o olhar vago, os padrinhos nitidamente afogueados, até o padre Afonso não escondia o desespero com o calor. Antes, tínhamos vivido momentos tocantes, quando a Cristina levou as suas orquídeas a um altar lateral, aproximaram-se duas senhoras que nos cumprimentaram e arranjaram as flores numa jarra. Alguém comentou: “É a mãe e a irmã do Amílcar Cabral”. Regressámos a casa, mudámos de roupa, partimos para o jantar no “Pelicano”.

(iv) Uma boda em que me endividei por vários anos


Quem viu gente a esvoaçar à nossa volta na igreja e no restaurante deverá ter imaginado que o registo de imagens era impressionante. Não foi, como passo a explicar. Ainda estávamos na sobremesa, aparecia o bolo de noiva, e entrou o fotógrafo congestionado a dizer que toda a reportagem se tinha perdido. Atreveu-se a sugerir que nos voltássemos a vestir, a Cristina ouviu tudo atordoada, para mim, alferes em Missirá e arredores, aceitei a lacuna e pedi ao senhor fotógrafo que não se preocupasse mais. Há fotografias avulsas, a há um filme em super-8 que captou a chegada à igreja da lindíssima noiva, aspectos da cerimónia, depois o jantar, os padrinhos e os amigos todos sorridentes.

Mas houve acontecimentos que não ficaram no filme: o abraço do Cherno, sempre tímido, que comunicou a realização de batuque e baile em nossa homenagem, dois dias depois; a taça de champagne que derramei sob a mulher do capitão Laranjeira Henriques enquanto agradecia os brindes de outros convidados; e a dívida que contraí com o Rui Gamito que insistiu em emprestar-me cerca de cinco mil escudos em dinheiro guineense, escapou-me completamente esta dívida, um dia, talvez em 1976 ou 1977, a Cristina e eu entrámos na cervejaria Portugália para comer o bife com ovo a cavalo, apareceram o Rui Gamito e a mulher, num instante recordei tudo, corri para eles envergonhado, entreguei logo um cheque, desfazendo-me em desculpas.

Foi uma boda lindíssima, eu estava feliz pelos padrinhos, pelos queridos amigos, é certo que um pouco amargurado pela falta das nossas famílias e de todos os meus soldados. Missirá estava ali, representada pelo Teixeira, pelo Barbosa, pelo Domingos e pelo Benjamim, estavam ali os dois médicos de Bambadinca, a quem tanto eu devia, sabia que outros podiam ter participado, mas eu não podia iludir ter vindo a Bissau com uma guia para as consultas de oftalmologia e neuropsiquiatria.

Capa do livro Maigret na Escola. No final da década de 50, Maigret era um detective consagrado e o Brasil editou-o do princípio ao fim. A editora era a Bestseller, de São Paulo, a tradutora a Carla de Almeida, as capas eram semelhantes, só mudava a cor e, obviamente, os títulos. Estas traduções não tiveram grande sucesso entre nós, a Bertrand começou nesse tempo a publicar muitos títulos.

Eu tinha aqui a noiva mais bonita do mundo, era escusado lançar mais penas sobre o meu destino. Aquela guerra reorganizara as nossas vidas, entreguei-me totalmente àquela mulher que soubera preencher ausências, silêncios e muitas incompreensões, de Julho de 1968 até hoje. E procurei amá-la, dividido entre a nossa felicidade pela vida que começava e pela guerra que iria continuar. Começámos o nosso conhecimento, dentro de dias seremos surpreendidos por um massacre no “chão manjaco“, seremos recebidos na caso dos nossos amigos, o Cherno preparou um glorioso batuque, perto do bairro da Ajuda. Vale a pena contar.

_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 15 de Junho de 2008 Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2967: O caso do embaixador português em Bissau (1): Protestos (Luís Dias)

1. Do nosso camarada Luis Dias para a Embaixada de Portugal em Bissau:

Assunto - Pateadas e assobios de indignação


Sr.Embaixador

Os meus veementos protestos pela forma como foi tratada a cidadã portuguesa Pepa, nas instalações da Embaixada de todos nós, em Bissau, em pleno dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (1).

Cumprirá, no mínimo, a V.Exª explicar o que se passou, ou ficará, pairando no ar, que o insólito e incompreensível acto foi torpe e inqualificável.

Com os melhores cumprimentos

Luís Dias,
Ex-Alf Mil
e Ex-Combatente da Guiné (71-74)


2. Mensagem, também de 18 de Junho, do mesmo Luís Dias para o Pepito:


Exmo Sr. Pepito

Venho manifestar a minha solidariedade para com V.Exª, pela forma prepotente e arrogante, com que o Embaixador, o representante do meu país, tratou a sua filha Pepa, cidadã de Portugal, no passado dia 10 de Junho, nas instalações da Embaixada portuguesa em Bissau.

Com os melhores cumprimentos

Luís Dias

Ex-Alf Mil
e Ex-Combatente na Guiné
CCAÇ 3491
Dulombi e Galomaro (1971/74)

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2958: E os nossos assobios e pateadas vão para... (1): Um embaixador que não honra Portugal... (Luís Graça / Pepito)

Guiné 63/74 - P2966: A guerra estava militarmente perdida? (22): Comentário de um Quadro Guineense no Exterior (Anónimo)

A Guerra estava militarmente perdida?
Revisão e fixação de texto: vb


Um Guineense no exterior

Comentário ao Guiné 63/74 - P2962: A guerra estava militarmente perdida? (20):Um Fraco Rei Faz Fraca a Forte Gente (António Graça de Abreu)


Meu caro, nesse vosso debate estéril, a da definição do sexo dos anjos, se a guerra estava ou não militarmente ganha, se quem falhou foram os políticos ou os militares, na vã gloria de se preservar um dito império (que ideia megalómana)... como guineense que ganhou direito a uma pátria lusófona na sua expressão oficial, não podia de forma alguma concordar consigo.

Se o propósito da presença colonial, decorrente do dito Descobrimento era perpetuar o domínio de um povo e de uma cultura sobre uma outra em detrimento da equidade, cultura essa tida por inconsistente e primitiva, neste caso a do meu povo, tarefa para a qual a tropa colonial estava talhada, contando com a dedicação inicial do missionarismo católico, então, como guineense... e desse debate resta-me concluir que os nacionalistas guineenses ganharam a guerra, já que guineense que sou de uma nova geração, dela acabei por ter direito a uma pátria, uma bandeira, um hino e quiçá outra dignidade, até que soberana, que permite sem mágoas, eleger Portugal de hoje como nação um amigo fraterno, conquistas com as quais me orgulho.

E já agora porque não concordar com o argentino Jorge Luís Borges: "O passado é argila que o presente molda à vontade”.

Se esteve em África como militar, ainda que se tente refugiar nesse cumprimento de um dever, Pela Pátria, eu que ingenuamente pensava que as fronteiras de Portugal se estendiam do norte ao Algarve, então foi enganado, pois a sua missão na Guiné, como militar e não escamoteemos aqui a verdade cristalina, foi igualmente a de opressão e tentativa de submissão de um povo, neste caso o meu, a toda uma super-estrutura ideológica e cultural que, tendo também os seus atributos, nos era entretanto estranho.

Portanto, como deve calcular, a verdade por vezes é também acutilante. Vamos pois salvaguardar o que de mais positivo resistiu à colonização ou seja a fraternidade entre os nossos dois povos e deixar a catarse falar pelo futuro dessa nossa convivência...

Quadro guineense no exterior, orgulhosamente guineense!

(Não assinado)

2. Caro Guineense Anónimo no exterior:

Registamos o seu artigo, escrito sem complexos, e é sem complexos que o publicamos. E aceitamos o seu desafio: preservar a fraternidade entre os dois Povos. Escreva sempre. Mas, de preferência, dê a cara e identifique-se. Presumo que não esteve registado no Google, razão por que o neu nome não aparece no comentário. Vejo, por outro lado, que é mais jovem do que os homens e as mulheres que outrora lutaram, uns contra os outros, e que hoje se respeitam e são capazes até de abraçar.

Por norma, não publicamos postes anónimos. Recuperámos o seu comentário, na esperança de que mais guineenses, da terra ou da diáspora, da sua geração e da geração dos seus pais, participem, com serenidade e fraternidade, neste desejável e necessário diálogo sobre o passado, o presente e o futuro dos nossos povos.

Caro amigo guineense da diáspora: Não sei onde vive. Há muito que enterrámos as lanças de combate. Não vamos agora abrir feridas cicatrizadas. Respeitemos a memória daqueles de nós, de um lado e de outro, que morreram na guerra do ultramar/guerra colonial/luta de libertação. Mesmo entre, portugueses, há ainda questões que nos fracturam e dividem. Não é fácil nem confortável fazer o balanço das nossas relações históricas. Por nós, como sabe, recusamos o princípio (monstruoso) da responsabilidade colectiva dos povos... Aplicado à Guiné-Bissau isso iria novamente lançar povos contra outros povos: os mandingas contra os fulas, os fulas contra os balantas, os guineenses que colaboram com o esclavagismo e o colonialismo contra as suas vítimas, e por aí fora... Aprendamos a ler a história, aprendamos com a história, não cometamos os mesmos erros das nossas elites do passado...

Mantenhas. O editor Virgínio Briote.
__________

Nota do co-editor vb:

1. Artigos relacionados em:

19 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2964: A guerra estava militarmente perdida? (21): A Guerra estava militarmente perdida. Por mim, final da polémica. Mário Beja Santos.

19 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2962: A guerra estava militarmente perdida? (20):Um Fraco Rei Faz Fraca a Forte Gente (António Graça de Abreu)

18 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2959: A guerra estava militarmente perdida? (19): MIGS e Aliados. Juvenal Amado. M. Beja Santos.

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2954: A guerra estava militarmente perdida? (18): José Belo.

14 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2941: A guerra estava militarmente perdida? (17): E. Magalhães Ribeiro.

13 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2937: A guerra estava militarmente perdida? (16): António Santos,Torcato Mendonça,Mexia Alves,Paulo Santiago.

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2932: A guerra estava militarmente perdida? (15): Uma polémica que, por mim, se aproxima do fim (Beja Santos)

12 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral nã era muito elevada. A. Graça de Abreu.

3 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2913: A guerra estava militarmente perdida? (13): Henrique Cerqueira.

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.

29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.

28 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P2965: Bibliografia de uma guerra (28): Farim nos finais dos anos 60 e a História do Império Mandinga (Virgínio Briote)


Além do Cabo Bojador

Na Guerra Colonial da Guiné, A História pré-colonial da África Ocidental.
Autor: Manuel Fialho.
Capa: Joaquim Rosa.
Fotografia da capa: Cristina Fialho (Farim, 1970)
Edição: 100 Luz ( http://www.100luz.pt/ )
Mês/Ano: Abril de 2008
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Um Franciscano Português, natural do Algarve (Cacela Velha), em Assis a rezar a missa. A chamada ao Superior da Ordem para lhe comunicar que deve regressar a Portugal, por ter sido chamado pelas autoridades eclesiásticas portuguesas para cumprir o serviço militar como capelão numa das províncias portuguesas de além-mar. A entrada num Batalhão de Caçadores, já formado e em vésperas de embarcar com o destino ainda no segredo dos deuses. Que só no meio do Atlântico vai ser desvendado, vá para a Guiné.

É, tudo leva a crer, a história do BCaç 2879, cujo Cmdt foi o conhecido Ten Cor Agostinho Ferreira. Uma história romanceada, escrita pelo punho do franciscano que cruza no romance a odisseia do Batalhão com a do Império Mandinga.
Para quem se interessa pela História da Guiné e por Farim (Nema, Cuntima, Jumbembem, K3, Guidage, Binta…) nos anos 1969/71, tem aqui um relato minucioso desses tempos.

Manuel Fialho (CCS/Bat Caç. 2879), o autor, esforça-se em traçar em cerca de 500 páginas tudo o que viveu nesses já longínquos anos.
vb

Guiné 63/74 - P2964: A guerra estava militarmente perdida? (21): A Guerra estava militarmente perdida. Por mim, final da polémica (Mário Beja Santos)

A Guerra estava militarmente perdida?

Mensagem do Mário Beja Santos, de 12 de Junho.

Final da polémica sobre uma guerra militarmente perdida

Caro Luís Graça, caro Graça Abreu, caros Tertulianos,

Dou hoje por finda a minha intervenção numa polémica cujos os elementos essenciais rememoro: escrevo uma nota sobre uma biografia do Marechal Costa Gomes, falo da Guiné em colapso militar a partir de 1973, o Graça Abreu considera a frase manifestamente infeliz e aduz argumentos sobre os meios militares ao dispor das nossas tropas, refere as nossas posições e as do inimigo, e atrela-me às teses das tendências esquerdistas para justificar o abandono precipitado da Guiné, recomendando-me humildade.

Na sequência, e tendo de imediato esclarecido que era inaceitável considerar que a Guerra da Guiné estava militarmente perdida por razões do comportamento das nossas tropas, justificando sempre a chegada de armamento tecnologicamente superior e a previsão de meios aéreos muitíssimos superiores aos que dispúnhamos.

De todas as peças, independentemente da sua publicação, fui dando conhecimento ao outro polemista, procurei mantê-lo informado das minhas posições. Creio que estamos na recta final e as nossas posições mantêm-se inamovíveis. Parece-me útil oferecer a bibliografia que utilizei a todos os tertulianos, resumir as minhas teses e avançar as considerações quanto à razão de ser desta polémica.

Primeiro, a bibliografia que reputo como essencial. "A Guerra de África, 1961-1974", em dois volumes, por José Freire Antunes, Círculo de Leitores, 1995, inclui depoimentos que considero indispensáveis.

É ali que vamos encontrar referências ao recuo nas zonas fronteiriças, por incapacidade de resistir aos morteiros 120. É ali que Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, aborda a independência da Guiné.

É ali que se encontram depoimentos interessantes acerca de 1973 e 1974, é o caso de Diogo Neto, Costa Gomes, Silva Cunha, Carlos Fabião, Jaime Neves, Almeida Bruno, Manuel dos Santos. "Nixon e Caetano, promessas e abandono", por José Freire Antunes, Difusão Cultural, 1992, é extremamente útil para perceber a mitologia do federalismo spinolista em Cap Skiring, em Maio de 1972, as negociações das Lajes transformadas num diktat de Nixon, o falhanço da compra de armamento compatível com os Strella. Nesta matéria, é recomendável ler o livro "Dez anos em Washington, 1971-1981", por João Hall Themido, Publicações D. Quixote, 1995. Nesta obra, o leitor é confrontado com o tom desesperado das autoridades portuguesas que procuram meios aéreos, mísseis de diferente porte e outro armamento sofisticado, tudo recusado nos EUA, também sob o pretexto de que a NATO e os parceiros europeus se opunham à política colonialista de Portugal.

Poderá ser igualmente útil consultar "O Antigo Regime e a Revolução, 1941-1975", de Diogo Freitas do Amaral, Círculo de Leitores, 1995, nestas memórias o professor de Direito refere claramente a postura de Marcello Caetano nos dois meses subsequentes ao 25 de Abril, alegando que os militares se recusavam a combater.

Igualmente importante considero "Marechal Costa Gomes, No centro da tempestade", por Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2008 e "Costa Gomes, O Último Marechal", entrevista de Maria Manuel Cruzeiro, Editorial Notícias, 1998. A única história contemporânea de Portugal que analisa os acontecimentos em torno da derrocada da Guiné, tanto quanto sei é a história de António José Telo, II volume, Editorial Presença, 2008.

Segundo, de acordo com as leituras que pude fazer e que baseiam a opinião que formei, um feixe de fenómenos por vezes desencontrados convergiram para os acontecimentos de 1973-1974 e que levaram ao baqueamento da Guiné:
- uma gradual capacitação militar do PAIGC sem contrapartida em novas tecnologias e armamento militar;
- uma progressiva desvinculação de potências até então apoiantes de Portugal, com destaque para os EUA;
- um fenómeno de descontentamento nos oficiais do quadro permanente que se apoiaram em Costa Gomes e Spínola, com progressivo descrédito das posturas governamentais;
- uma crise acelerada na economia portuguesa depois da Guerra dos Seis Dias, que culminou numa inflação galopante e num manifesto descontentamento dos mercados financeiros, dos oligopólios e dos capitães da indústria do regime marcelista;
- a procura desesperada de um cessar fogo por parte do governo de Caetano;
- e, nos dias imediatos ao 25 de Abril, uma organização de grupos das forças armadas na Guiné que iniciaram conversações com o PAIGC, muito antes do MFA ter vindo a intervir, o que comprova qualquer descrença nas soluções militares que só são possíveis quando há o equilíbrio que o Graça Abreu quer dar como provado e irremediavelmente estava perdido.

Terceiro, o que pode levar homens como nós a analisar, por vezes com tanta paixão, o que se passou na Guiné, há pouco mais de trinta anos? O que nos pode levar ao delírio de falar em teses esquerdistas quando uma boa parte da bibliografia e os próprios apaniguados de Caetano levam na enxurrada os factos provados do Graça Abreu? O que nos pode levar a falar em quartéis abandonados ou abandonáveis? Como é aceitável que se esgrima com o MIGs do PAIGC dizendo que são argumentos nunca concretizados no terreno?

É porque muita desta matéria tem a ver com o 25 de Abril, é uma questão profundamente ideológica. O 25 de Abril aprofundou-se com tudo quanto se passou na Guiné, não houve a traição que fala a extrema direita nem o cansaço que insinua a direita, nem a incapacidade de se encontrar uma solução política para um problema que não tinha solução militar.
Quando Spínola encontra Senghor e propõe que ele seja medianeiro no projecto de uma autonomia da Guiné a 10 anos, já era tarde dada a mobilização do PAIGC. Aliás, não deixa de ser cómico falar-se em teses federalistas e nunca se auscultar a opinião dos quadros do PAIGC, como se esta fosse irrelevante ou secundária.

O PAIGC dispunha de armamento sofisticado e era um país independente reconhecido internacionalmente. Não vale a pena mistificar sobre o significado dos "territórios libertados", com tal vencimento ainda hoje não se tinha avançado para pôr termo ao conflito israelo-palestiniano.

Não quero, porém, deixar de reconhecer que o argumento da Guiné militarmente perdida pode ser traumático por quem combateu e não foi informado sobre a evolução da situação militar a partir da chegada dos mísseis Strella. O que me parece obsceno é querer pôr uma esponja sobre as negociações desesperadas de quem procurava comprar armamento e via os aliados de Portugal fechar-lhes as portas.

Agradeço a todos os tertulianos a paciência que tiveram em ler-me e por acompanharem as diferentes peças desta controvérsia que não tem final feliz nem infeliz. Limitei-me aos termos de uma polémica que tem um tempo, a chegada de armamento sofisticado ao PAIGC, e um desfecho, a libertação de Portugal e a independência de facto da Guiné.

É a minha questão ideológica, é este o meu olhar sobre o 25 de Abril, nas ciências sociais não se cita nem se invoca só para convencer ou emocionar os outros, cita-se e invoca-se para que os outros tenham juízo próprio dentro da razão. Por isso polemizamos.

Um abraço a todos do

Mário Beja Santos
__________

Notas:

1. Edição da responsabilidade de vb

2. Artigos relacionados em

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2962: A guerra estava militarmente perdida? (20):Um Fraco Rei Faz Fraca a Forte Gente (António Graça de Abreu)

18 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2959: A guerra estava militarmente perdida? (19): MIGS e Aliados. Juvenal Amado. M. Beja Santos.

17 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2954: A guerra estava militarmente perdida? (18): José Belo.

14 de Junho de 2008>
Guiné 63/74 - P2941: A guerra estava militarmente perdida? (17): E. Magalhães Ribeiro.

13 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2937: A guerra estava militarmente perdida? (16): António Santos,Torcato Mendonça,Mexia Alves,Paulo Santiago.

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2932: A guerra estava militarmente perdida? (15): Uma polémica que, por mim, se aproxima do fim (Beja Santos)

12 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral nã era muito elevada. A. Graça de Abreu.

3 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2913: A guerra estava militarmente perdida? (13): Henrique Cerqueira.

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.

29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.

28 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]

22 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P2963: No 25 de Abril eu estava em... (4): Gadamael e a vontade de lutar do PAIGC também era pouca (Anónimo, Alf Mil Op Esp)

1. Trata-se de um comentário ao poste anterior (1), que merece ter mais visibilidade no nosso blogue, escrito por um Alf Mil Op Especiais que estava em Gadamael , no sul da Guiné, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, em 25 de Abril de 1974. Por não ter conta no Google, e provavelmente viver no estrangeiro (o texto não tem os caracteres portugueses), este nosso camarada não assinou o comentário.

É contra as nossas regras publicar comentários e postes anónimos. Abro aqui uma excepção, porque acho este comentário oportuno e autêntico. Espero que o nosso camarada, que nos lê habitualmente, possa dar a cara e escrever algo mais - se possível acompanhado de documentação fotográfica - sobre este período final da guerra, em relação ao qual sabemos pouco (2). Gostaria, nomeadamente, de saber qual a unidade a que ele pertencia, quanto tempo permaneceu em Gadamael, e se tem mais recordações dos contactos com os guerrilheiros do PAIGC no período a seguir ao 25 de Abril. Revisão e fixação do texto: LG.


Camarada Graça Abreu:

Li o teu comentário e estou totalmente de acordo contigo. A guerra não estava militarmente perdida. Eu era alferes miliciano de Operações especiais e estava no aquartelamento de Gadamael em 1974. Apesar de muitos bombardeamentos que tivemos, estes foram inconsequentes pois raramente acertavam no Quartel e o fogo deles era sempre por nós respondido, inclusive para o outro lado da fronteira. Fazíamos regulamente batida de fogo para zonas onde tínhamos informações sobre [as posições onde] o inimigo poderia estar.

Apesar de estarmos a 6 Km da fronteira, íamos regularmente para o mato fazer protecção ao quartel sem nunca termos encontrado o PAIGC (também para nossa sorte).

A realidade era que estávamos todos cansados daquilo (nós e eles) e a vontade de lutar não existia mas defender-nos-íamos, se fosse necessário, como sempre o fizemos quando por lá andámos.

A questão principal que se tem levantado aqui é a passagem a uma guerra convencional com tanques e aviões a jacto. Na minha opinião se o PAIGC tivesse esta capacidade, isto traria muitos problemas para nós e talvez até uma revés nos acontecimentos, de início, mas não acredito que o PAIGC tivesse capacidade de ocupar terreno dentro da Guiné por muito tempo.

Depois do 25 de Abril nós tivemos muitos encontros com quadros do PAIGC em Gadamael e é óbvio, pelas nossas conversas, que o poder militar deles não era assim tão superior ao nosso assim como não era a vontade [de] luta[r].

No meu parecer Portugal teria arranjado meios de defesa para uma guerra convencional porque esta envolveria seguramente a Guiné Conacri e os nossos aliados (se é que os posso chamar assim) enviariam material.

Para terminar, na minha opinião se o 25 de Abril não tivesse acontecido, a guerra duraria muito mais tempo até uma solução política ser arranjada e muitos de nós por lá teriam ficado.

Uma guerra de guerrilha não se ganha nem se perde desde que haja interesses dos dois lados a financiá-la.

Um abraço a todos

(Não assinado)

________

Notas de L.G.

(1) Vd. poste de 14 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2939: No 25 de Abril eu estava em... (1): Guidage (João Dias da Silva, CCAÇ 4150, 1973/74

(2) Vd. poste de 19 de Junho de 2008 >Guiné 63/74 - P2962: A guerra estava militarmente perdida? (20):Um fraco rei faz fraca a Forte Gente (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P2962: A guerra estava militarmente perdida? (20):Um Fraco Rei Faz Fraca a Forte Gente (António Graça de Abreu)

República Popular da China > Pequim > O António Graça de Abreu na praça Tianamen

Foto: © António Graça de Abreu (2008). Direitos reservados.

Meus caros Luís Graça, Virgínio Briote e Carlos Vinhal

Envio mais um pequeno contributo para a polémica da "guerra militarmente perdida." Apenas com um objectivo, o de nos conhecermos todos melhor.
Um abraço,
ex-Alf Mil
CAOP 1
1972/74
__________

"Um fraco rei faz fraca a forte gente"

por António Graça de Abreu

"Nós, Portugueses (…) oscilamos entre o 'eu sou o maior' e o 'eu não sou ninguém'. Em suma, não sabemos quem somos. Não temos um mapa real. E seria fundamental tê-lo. Para a nossa vida social, política e afectiva. Porque Portugal precisa urgentemente de saber a sua exacta medida. E não oscilar entre a tendência para o pequenino e a megalomania."
Júlio Gil, Jornal de Letras, nº. 752, 19 de Janeiro de 2005, pag. 14.


Meus caros tertulianos e amigos:

Comecei a escrever um Diário com quinze anos de idade e nunca mais parei de o fazer. Fui agora buscar mais uma página do que chamo o "meu diário secreto" onde registei uma citação de Jorge Luís Borges, o argentino excelente:
"O passado é argila que o presente molda à vontade." Logo de seguida, na mesma página, no dia 29 de Setembro de 2001, alinhei a seguinte prosa:

Leio no Expresso, em texto do director José António Saraiva:

"Há muitos anos que as formas clássicas de fazer a guerra vêm a ser postas em causa. (…) Veja-se o que aconteceu na Guiné onde o exército português foi irremediavelmente batido. (a 22 Set. 2001).
Há a ideia construída e generalizada em muitas boas mentes de que a guerra da Guiné estava perdida pelos portugueses e ganha no terreno pelo PAIGC. Trata-se de um juízo refinadamente mentiroso. Não é verdade, mas de tão repetido, começa a sê-lo. Hei-de fazer algo para repor a verdade da História. Tenho os documentos e as vivências plenas desses dois últimos anos 1972-74. É só dar testemunho. E é preciso.

Há setenta anos atrás, explicava o nosso António Aleixo, poeta popular de Loulé, que:

P’ra mentira ser segura
E atingir profundidade
Tem de trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.

Hoje, Junho de 2008, o problema da derrota militar, a questão do "exército português irremediavelmente batido" na Guiné, não é nova, existem umas dezenas de textos em livro com abordagens ao tema. O problema tem enformado (ou deformado) as mentes de incontáveis pessoas que, do poleiro do seu azedume, pelo inchaço da nostalgia do colonialismo e da sagrada defesa da Pátria, pelo gosto muito português da auto-flagelação, pela ausência de um mínimo de auto-estima, por falta de respeito pela História, por razões políticas e ideológicas, tentam, por magia, transformar as tropas portuguesas na Guiné, nos anos de 1973/74, ora num imenso bando de heróis, ora numa chusma de cobardes, de calças na mão, incapazes de responder militarmente aos ataques do PAIGC, com armamento inferior, em colapso militar, enfim uma guerra militarmente perdida.

Isto não é verdade.

Há muita gente que confunde o que de facto aconteceu, há quem acredite ainda no sonho irrealizável de um obsoleto império colonial (estas pessoas, felizmente poucas, não costumam aparecer no nosso blogue), e há uns tantos que pugnam por uma derrota militar em toda a linha. Trinta e quatro anos depois, estas afirmações continuam a ser um desprazer para muitos de nós, dezenas de milhares de homens que participámos na fase final de uma guerra injusta, numa pátria que não era a nossa, no tempo errado da História. Sei também que temos todas as razões para assumirmos que saímos da Guiné de cabeça levantada, com traumas, naturalmente, mas sem remorsos nem retardados actos de contrição.

Vamos à questão da derrota militar.

Volto a repetir, não estamos a falar de política. No caso do colapso das tropas portuguesas, estamos a falar de uma derrota no campo militar, repito militar, ou seja, um dos contendores (PAIGC) era militarmente mais forte do que o outro, nós, e consequentemente derrotou-nos, obteve vitória após vitória no terreno de luta, nós recuámos, eles avançaram, houve um "exército português (já agora, também uma marinha e uma força aérea) irremediavelmente batido", como escreve José António Saraiva no Expresso.
Eu acredito que, neste editorial do Expresso, o então director do mais importante semanário português está a falar do que não sabe ao referir um "exército português irremediavelmente batido" pelas tropas do PAIGC.

Em 2006, fui recuperar o meu Diário da Guiné, 1972/1974, e publiquei-o. Desculpem-me a vaidade, ajustei contas com a História, a nossa, a minha história. Está lá quase tudo sobre esse período das nossas vidas, singularmente num enquadramento ideológico de uma certa esquerda radical que na época prevalecia nas nossas mentes e universidades, ideologia que chegou à Guiné e que assumi então, facto de que não me arrependo, nem um bocadinho.

De regresso ainda às teses "do colapso militar, da superioridade em armamento do PAIGC, do exército português irremediavelmente batido", porque as confusões subsistem, volto a inserir o seguinte texto já utilizado por mim aqui no blogue mas que, creio, merece uma segunda leitura.

Leopoldo Amado em entrevista a Aristides Pereira, pergunta-lhe: "Por altura do 25 de Abril de 1974, o PAIGC tinha uma capacidade militar maior que as tropas coloniais?"
Aristides Pereira: "Maior, não diria, na medida em que estavam bem apetrechadas, tinham uma logística mais bem montada que a nossa, para além de um número superior de efectivos do que nós. A verdade é que no fim o soldado português já estava mal; estava farto daquilo."
Vamos ler outra vez.

Aristides Pereira, um dos dirigentes máximos do PAIGC, recorda que, por altura do 25 de Abril, a capacidade militar do PAIGC era inferior à das tropas portuguesas, diz-nos que a logística das tropas portuguesas estava mais bem montada do que a do PAIGC, confirma ainda que o número de efectivos das tropas portuguesas era superior ao dos seus guerrilheiros.
E conclui, com naturalidade, que nós portugueses (eles também, PAIGC, digo eu!) estávamos fartos da guerra.

É espantoso que depois de um dirigente do nosso "inimigo" reconhecer honestamente que a capacidade militar, a logística e número de efectivos das tropas portuguesas era superior ao dos seus combatentes, tenhamos ainda de ouvir umas tantas almas portuguesas iluminadas que nos vêm explicar que os guerrilheiros possuíam maior capacidade militar, que o armamento do PAIGC era superior, e que "o exército português" havia sido "irremediavelmente batido".
E depois o Mário Beja Santos ainda nos vem dizer: "Por favor não se insinue que os militares portugueses estiveram associados ao colapso."

Por vias travessas, a questão é mesmo esta, os militares portugueses não estiveram associados ao colapso porque não houve nenhum colapso militar. Há pessoas que gostam de entrar no reino do surreal, da confusão, da inversão do entendimento e dos valores.

Vamos ler Mário Beja Santos, no nosso blogue, post 2959, a 18 de Junho de 2008:

"Primeiro foi a dupla Nixon/Kissinger que decidiu a perda da supremacia militar. Circunstâncias? Tudo aquilo que se passou depois de 6 de Outubro foi decisivo para o colapso militar da Guiné."

6 de Outubro de 1973? Uma dupla de senhores importantes em Washington a decidir a supremacia militar do PAIGC sobre as tropas portuguesas?

Meus caros tertulianos, meus queridos amigos, para esta fase final da guerra da Guiné, penso que não será de dar muita importância às congeminações, às previsões, às hipóteses, às insinuações, às possibilidades, ao que eventualmente podia, ou poderia, acontecer, ao conhecimento livresco das situações adquirido no sofá de Lisboa, a 4.000 quilómetros da Guiné, dos lugares onde a guerra acontecia.

Interessa-me o que realmente aconteceu, os factos, a leitura do quotidiano, o rigor, a análise das sensibilidades e do poder das forças em presença.
É assim nas Ciências Sociais e na História. Tenho um mestrado (1999) em História da Expansão e dos Descobrimentos Portugueses, pela Faculdade de Letras de Lisboa, e três livros publicados na área da História. Isto não me dá grande autoridade para falar como conhecedor da História, mas não façam de mim parvo.

De resto, para aquilo que modernamente se chama conceptualizar, para as sínteses conjunturais, (Fernand Braudel, os homens da Nova História explicaram isto há já muitos anos), para a abordagem global de um dado momento histórico, necessitamos de conhecer bem os pormenores, a história dos quotidianos, das mentalidades, etc. É por isso que este blogue do Luís Graça é importante.
Do emaranhado de opiniões, do particular passa-se para o geral, começamos a conhecer o todo porque entendemos as pequenas partes que juntas começam a constituir esse mesmo todo. E não podemos falsificar dados, nem inventar factos. Porque o próprio corpo da História, com o passar dos anos, os irá rejeitar.

Eis um exemplo de como, partindo do particular, podemos chegar ao entendimento da globalidade.

Nos posts 2940 e 2941 de 15 de Junho de 2008, o nosso amigo e tertuliano ex-furriel miliciano Eduardo Magalhães Ribeiro, o homem que arriou a última bandeira portuguesa a flutuar na Guiné, na cerimónia de entrega de poderes ao PAIGC, em Mansoa, a 09.07.1974, pois o Eduardo contribui com quatro achegas importantes para a compreensão do tema da guerra militarmente perdida pelos portugueses, do colapso militar, da vitória militar do PAIGC.
A primeira é uma entrevista com o comandante Rebordão de Brito, ao jornal O Diabo, em data não referenciada, mas é um documento autêntico. Cito apenas um excerto:

"Em Junho de 1974, quando da entrada dos primeiros elementos do PAIGC estes se apresentavam na sua maioria esfarrapados e com péssimo aspecto. Aliás, ao conversar na altura na povoação de Cacine com o comandante da sua Marinha (Pedro Gomes) este confessou-me que dificilmente o seu partido aguentaria mais um ano de luta. Esta confissão é sem dúvida corroborada pelo insistente pedido feito às nossas autoridades para que se procedesse ao imediato desarmamento das forças africanas."
Estará Rebordão de Brito a mentir? Isto são posições da extrema-direita?
Depois, o Eduardo Magalhães Ribeiro, com fotografia e tudo, em Mansoa mostra um furriel do Batalhão 4612 a entregar uma metralhadora HK 21 a um guerrilheiro do PAIGC, para a segurança e defesa de Mansoa nesse dia histórico para a Guiné.
Têm andado por aí umas tantas boas almas a apregoar que os combatentes do PAIGC dispunham de armamento em quantidade e qualidade muito superior ao da tropa portuguesa? Afinal, num dia tão importante, os guerrilheiros precisaram que lhes emprestássemos, ou oferecêssemos, umas tantas HK 21.
Outra questão, essas armas e essa segurança eram para o PAIGC se defender de quem? De nós, portugueses, não era, de uma FLING, mito ou realidade, também não acredito muito. Então era de quem? Não seria das tropas guineenses que haviam combatido ao lado dos portugueses, eram mais numerosas do que os guerrilheiros e ainda não haviam sido totalmente desarmadas? Isto explica, creio, os fuzilamentos posteriores dos comandos africanos, milícias e não só.
O Eduardo Magalhães Ribeiro conta mais uma história curiosa. Diz:

"Outro facto de que me recordo perfeitamente, pelo espanto que me provocou foi que, ao contactar com vários guerrilheiros do PAIGC, que faziam parte da guarda de honra nesse dia, verifiquei que um grande número deles não entendiam nada de português, e nada ou quase nada de crioulo.
Só entendiam e falavam francês.
De onde são vocês? - perguntei eu.
- Somos da Guiné-Conacry!"

O Eduardo afirma que se recorda perfeitamente desta conversa e eu acredito nele, embora reconheça que alguns dos ex-combatentes na Guiné sofrem hoje de alucinações e são capazes de inventar factos e situações apenas possíveis em mentes doentias.
A questão das tropas da Guiné-Conakry a combater e a misturar-se com o PAIGC também é importante.

O Amílcar Cabral defendia a chamada tese do dominó, ou seja, os aquartelamentos de fronteira na Guiné Portuguesa iriam ser conquistados um a um, (corrijam-me se estou enganado) obrigando-se a tropa portuguesa a refugiar-se no interior do território. Para isso contava com o apoio das bases do PAIGC no Senegal e na Guiné-Conakry (tudo fora da actual Guiné-Bissau) e com a ajuda de, pelo menos, o exército da Guiné-Conakry.
Foi o que aconteceu em Maio de 1973 em Guidage, Guileje e Gadamael. Os três aquartelamentos foram quase cercados e atacados com uma força brutal. Registaram-se as maiores batalhas (talvez exceptuando a do Como, em 1964) da guerra da Guiné, com um rol de mortos, feridos e sofrimento que perdura na memória de muitos de nós.
Gadamael, tal como Guileje, foi atacada com canhões M 50 que tinham um alcance de 30 quilómetros (corrijam-me se estou a errar), com foguetões 122, morteiros 120 (uma arma temível), canhões sem recuo, etc. Os guerrilheiros cumpriam a sua obrigação, lutavam contra o inimigo que éramos nós, a tropa portuguesa. Mas (este mas é importante!) quase sempre as suas bases de fogo, nos ataques a estes aquartelamentos situavam-se do lado de lá da fronteira e, no caso concreto de Guileje e Gadamael, o exército da Guiné-Conakry deu uma boa ajuda ao PAIGC.

Tivemos recentemente aqui no blogue a descrição cruenta do doloroso inferno de Gadamael feita por um sargento ex-pára-quedista deficiente das forças armadas, chamado Carmo Vicente.
Pelo que li e foi escrito em livro, de memória, muitos anos depois, o Carmo Vicente, embora lhe reconheça a autenticidade da descrição, não me merece grande respeito. Entre outros, ele insulta por exemplo, a 38ª Companhia de Comandos, acusando-a na altura da cobardia de "estar há mais de ano em Bissau" quando em Maio de 1973 os homens da 38ª CCmds acabavam de chegar de Guidage, com um morto e dois feridos graves. Enfim, as pessoas, deficientes ou não, devem ter respeito por si próprias e pelos outros. Fiquemos por aqui.

Mas a batalha por Gadamael, tal como a de Guidage e até a de Guileje, tão faladas e descritas no nosso blogue, – talvez para provar que a força militar do PAIGC era enorme e que a guerra estava militarmente perdida – provam exactamente que a força militar do PAIGC, a atacar, a bombardear de fora do território da Guiné, auxiliado pelo exército da Guiné-Conacry, assustou, destruiu, matou mas afinal não venceu.
Quem ganhou as batalhas por Guidage e por Gadamael foram ou não foram as tropas portuguesas, os pára-quedistas em Gadamael? É um facto importante que o Carmo Vicente se "esqueceu" de incluir no seu relato? Falo do que aconteceu no terreno, em termos militares. Em Guileje houve o abandono de um dos contendores. Foi este o único aquartelamento que o PAIGC pode considerar ter "conquistado".
A tese do dominó, de Amílcar Cabral, não teve comprovação prática. Os portugueses (eu sei, à custa de quantos sacrifícios!) continuaram com os aquartelamentos de fronteira. O Carmo Vicente fala nos seis aviões Fiats que bombardeavam os guerrilheiros em volta de Gadamael, já em Junho de 1973. Isto significa que um mês e picos depois dos cinco aviões abatidos pelos Strella do PAIGC, os Fiats voltavam a voar, a bombardear e a acertar nos alvos IN.
A guerra não estava militarmente perdida. A sobrevivência de Gadamael deve muito à força aérea.

Podemo-nos questionar, porquê e para quê tanta luta, tantos mortos, tanto sofrimento? A resposta a estas questões é de natureza política e não militar, tem a ver com a essência do conflito em termos políticos e ideológicos. Portugal teve a pouca sorte de ser governado por Salazar e por Marcello Caetano.
Regressemos à "derrota militar" das tropas portuguesas.

É verdade que em Julho de 1973 o governador António de Spínola falou na "contingência de um colapso militar", dado o grande poder de fogo IN sobre os aquartelamentos de fronteira, e pediu mais armas a Marcello Caetano. Falou na "contingência de", não de um "colapso militar".
E o colapso militar não se veio a concretizar. Digo isto com toda a simplicidade, eu estava lá, na Guiné, 1973/74, em Cufar, a trinta quilómetros de Gadamael e Guileje, eu e mais 40.000 portugueses espalhados pelo território e não assistimos, nem participámos em nenhum colapso militar.

De resto, ainda uma palavrinha sobre António de Spínola. Foi um homem de confiança do regime, pelo menos até 1972, altura em que a chamada ala liberal se lembrou dele para Presidente da República, para substituir o Américo Tomás. Marcello Caetano não concordou (parece que o inefável Costa Gomes meteu a sua colherada neste processo denunciando antecipadamente a Marcello as intenções de Spínola), e o nosso general do monóculo começou a entrar em contradições com Caetano. Depois, e neste contexto, vem a saída de Spínola da Guiné, a nomeação para Vice-Chefe das Forças Armadas, a demissão, o livro Portugal e o Futuro, o 25 de Abril.

Falei há dias aqui no blogue na "minha" Companhia de Caçadores 4740, os "Leões de Cufar", sedeada durante dois anos (72/74) no coração do Tombali/Cantanhez, numa situação extrema de uma dura guerra de guerrilha, cento e oitenta homens que tinham à sua guarda um importante aeroporto militar, populações guineenses nas aldeias de Cufar, Impungueda e no grande reordenamento de Mato Farroba, cento e oitenta homens que participaram sozinhos e com outras companhias em operações militares, sofreram emboscadas, defenderam o aquartelamento e a povoação durante as muitas flagelações a que fomos sujeitos.
Tiveram vários feridos mas nem um único morto em combate. Por pura sorte, com certeza, mas também e sobretudo devido ao real poder das forças em confronto.
Qual derrota, qual colapso militar?

"Um fraco rei faz fraca a forte gente"... São palavras de Luís de Camões, em Os Lusíadas, canto III, estrofe 138. Temos tido muitos fracos reis, às vezes não passam de um baronetes da bravata e da maledicência, megalómanos imperadores do nada.
Oito anos de vida fora da minha Pátria, em quatro continentes, ensinaram-me a gostar muito de Portugal. Mas há portugueses que me entristecem. Não importa, vou com as aves, no murmúrio azul do perpassar da brisa.

E uma coisa eu sei, na Guiné, com fracos reis, fomos ainda forte gente.

António Graça de Abreu

S. Miguel de Alcainça, 17 de Junho de 2008
Ano do Rato
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Notas:

1. Edição da responsabilidade de vb

2. Artigos relacionados em

[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]