A Raça e o Sangue no Dia de Portugal
Por Cor. Manuel Amaro Bernardo
(…) Hoje já não há o sangue que o regime nos pede, pela guerra. O sangue que hoje há é aquele que nós pedimos ao regime pelo aborto. E esse sangue não nos fala de dever. (…)
Discurso de João César das Neves, no Encontro de Combatentes (Restelo), em 10-6-2008
O ocorrido no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2008, pautou pela imponência das bem organizadas cerimónias, em Viana do Castelo e Lisboa, mas também pela originalidade das intervenções.
Logo na véspera o Presidente da República, interpelado pelos jornalistas, afirmou que estávamos a comemorar o Dia da Raça, com vista ao projecto comum deste Portugal com 600 anos de História, dando assim o alento para suplantar a crise actual e as que se avizinham.
Poderia parecer que estava a recuperar a terminologia do Estado Novo salazarista e caetanista, como foi lembrado por partidos, como o PCP e o Bloco de Esquerda (até exigiram publicamente uma retratação do Presidente, que os ignorou), mas, na opinião generalizada dos portugueses, não foi isso que sucedeu.
Para alguns políticos foi uma gaffe, enquanto que para outros, onde me incluo, tratou-se de um apelo à "raça portuguesa" nestes tempos tão difíceis e bastante complexos, que atravessamos.
Curiosamente o pressuroso comentador de "serviço" Rui Tavares (julgo que professor universitário ou historiador) viria logo fazer afirmações deste tipo (“Público” de 11-6-2008): (…)
Onde estava a raça? No aniversário da morte de Camões, que morreu abandonado”.
É questão para lembrar a este e outros senhores que a raça lusitana esteve bem visível nos grandes feitos dos Portugueses, nos Descobrimentos, cantados por Luís de Camões, nos Lusíadas. Ou não será?
O Encontro de Combatentes, cada vez mais pujante e com maior participação, voltou a realizar-se nos Jerónimos e junto do Monumento aos Combatentes do Ultramar (Restelo). Nele tenho participado desde o início, onde, na Comissão Executiva, se incluíam militares, como o José Pais (querido amigo já falecido) e os “Comandos” Caçorino Dias, Vítor Ribeiro e Francisco Van Úden. Eles têm continuado imperturbáveis com o seu esquema alternante de ser, em cada ano, um distinto oficial general de cada um dos três Ramos das Forças Armadas, a organizar a cerimónia.
Desta vez esmeraram-se na organização com a realização, na véspera, pela primeira vez, de um colóquio na Fundação Gulbenkian, para onde foram convidados conceituados conferencistas, como Adriano Moreira, João Ferreira do Amaral, Joaquim Aguiar, Jaime Nogueira Pinto e Vítor Bento, além dos militares General Espírito Santo e Almirante Vieira Matias.
O tema “Os Valores da Nação e o Papel das Forças Armadas nas Sociedades Desenvolvidas”, foi apreciado e desenvolvido sob as diferentes perspectivas dos participantes. Vários deles concluíram que continua a faltar um projecto estratégico para Portugal, com as inevitáveis nefastas repercussões nas Forças Armadas.
No dia 10 de Junho, e tendo sido conseguida a participação do Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, na presidência da Missa no Mosteiro dos Jerónimos, com vários padres coadjutores, como um vindo de Damão e outro africano, levou a que, também pela primeira vez, esta monumental Igreja se enchesse de público e de combatentes do Ultramar.
A afluência junto do Monumento aos Combatentes do Ultramar, no Restelo, também excedeu as expectativas. Lá fui encontrar o meu amigo Coronel Jaime Neves, ainda em convalescença de um acidente de viação ocorrido há alguns meses e a grande maioria dos restantes militares condecorados com a Ordem da Torre Espada, postados em local de honra.
O Presidente da República enviou uma mensagem, que foi lida pelo locutor de serviço, o Coronel Piloto Aviador António Lobato.
Um sanguinário discurso…
Para destoar do sucesso destas cerimónias, numa altura em existe uma grande desmotivação cívica para empreendimentos deste género, acabaria por surgir um discurso despropositado, que ninguém (nem eu) esperava da parte da entidade convidada, o Prof. universitário João César das Neves.
Já o tinha ouvido numa palestra feita na Associação de Comandos, sobre temas da economia nacional e internacional, o que me satisfez plenamente.
No texto deste discurso, que tive ocasião de apreciar posteriormente num blog, acabou por fazer, na minha opinião, uma autêntica provocação aos combatentes do Ultramar, em vez de homenagear os seus mortos, como julgo devia ter sido a sua obrigação.
No meio do bulício de amigos e camaradas de armas, eu e outros já tínhamos reparado que aquilo tinha "sangue a mais". Esta palavra foi repetida até à exaustão – cerca de 100 vezes, acrescentando termos como o “sangue da violência”, o “sangue de multidão” e afirmando a certa altura:
“Será que o sangue nos fala de coragem? De valor? De heroísmo? Algum, sem dúvida! Mas muito dele, não! A maior parte certamente, não. Algum deste sangue foi derramado em feitos notáveis, actos valorosos, gestos memoráveis. Mas a maior parte não.”
E acrescentou: A maior parte, certamente, foi sangue que não queria ser derramado, que não concordava com aquela guerra, que não compreendia bem porque estava ali, que não desejava estar ali. (…)
Este discurso do tipo pacifista, não devia ter sido feito naquele local, e onde significativamente não foram dirigidas as palavras devidas de homenagem aos que tombaram pela Pátria. Não é falando no "sangue das multidões", que, como refere, agora é "sangue escondido", que essa homenagem seria feita.
À semelhança de António Barreto e de Pacheco Pereira, que não compreendem devidamente o sucedido na Guerra de África, nas décadas de 60 e 70 do século passado, e também pouco conhecedores das relações humanas e sociais neste continente, sempre desgastado por guerras tribais, César das Neves não devia ter generalizado o ocorrido na guerra na primeira metade com o da segunda. Dada a sua idade, percebe-se que seja maior conhecedor em relação à parte final, quando os seus amigos e conhecidos procediam à conhecida contestação académica.
Apenas quem passou por acções de combate poderá melhor avaliar como ocorrem os actos valorosos, quer no cumprimento da missão, quer na defesa dos camaradas que combatem ao seu lado.
Quantos, arriscando a vida, não tiveram um arranque notável para ajudar a salvar um amigo, que antes caíra numa mina ou armadilha, ou tinha sido alvo de uma rajada de tiros? E isto não tem nada a ver com a defesa do regime, do colonialismo ou de qualquer ideologia. Tem a ver com a solidariedade, a amizade e a camaradagem bem característica dos elementos que constituem as Forças Armadas.
A Guerra não é uma figura de retórica…
Dos 8290 elementos do Exército, oriundos do Continente e dos territórios africanos, que a Comissão de História Militar diz terem morrido na Guerra do Ultramar (Angola Moçambique e Guiné), desde 1961 e até à sua independência, 48% (3.947) foram considerados como falecidos em combate.
Os restantes terão sido motivados por acidentes com arma de fogo, acidentes de viação, doença, etc. Todos os seus nomes foram colocados no paredes do Forte do Bom Sucesso, junto ao Monumento. Também lá está (contra a vontade do então CEME, General Martins Barrento), o do Ten-Coronel Maggiolo Gouveia, fuzilado pela FRETILIN, nas vésperas do Natal de 1975, enquanto decorria a guerra civil em Timor.
A Associação de Comandos, com o apoio do actual CEME, General Silva Ramalho pretende que os nomes dos 53 combatentes guineenses (20 oficiais, 29 sargentos e quatro praças) fuzilados pelo PAIGC, por terem combatido do nosso lado, também lá sejam colocados, como já o foram junto ao Monumento ao Esforço Comando, recentemente transferido da Amadora para o recém-constituído Centro de Instrução de Tropas Comando, na Serra da Carregueira.
Por isso, juntamente com as flores, lá colocaram um painel com a relação desses militares para lembrar à Liga dos Combatentes que tal acto de homenagem, a quem deu a vida por Portugal, continua por fazer.
Recordo, com emoção, a presença, nesta cerimónia, de Regina Djaló, viúva do fuzilado Furriel “Comando” Demba Seca, que me cedeu um pequeno ramo das suas flores brancas; dividi-as com o meu amigo invisual Coronel Caçorino Dias, antes de as colocarmos no Monumento.
Chegando aqui, poderá perguntar-se qual é actualmente a essência da Forças Armadas, de Portugal e de qualquer outro país civilizado.É que nos nossos dias, apesar de não ser tão visível ou destacado pela Comunicação Social, a questão continua a passar pelo combate e pela luta a travar no terreno, e pela sua preparação para estarem prontas para o fazer. É isso que actualmente fazem os “Comandos” no Afeganistão e onde for necessário.
O risco de guerras localizadas continua a estar na ordem do dia, face às situações de crise que se avizinham. E nesse aspecto, África continua infelizmente a ser um palco possível e provável, além do Médio Oriente.
Agora, se me permitem, queria dar um conselho a este professor universitário. Assista a uma cerimónia de homenagem aos Mortos “Comando”.
Vai ocorrer uma já no próximo dia 29 de Junho, “Dia do Comando”.
Pode ter a certeza que ficará deveras impressionado, como eu fico sempre que tenho ocasião de estar presente num cerimonial desse tipo. Enquanto um oficial, um sargento e um soldado, marcham em passo cadenciado, em direcção ao mastro da Bandeira Nacional, transportando uma Espingarda G3 e uma boina “comando”, o locutor de serviço afirma:
Caíram …, no campo da Honra …, no cumprimento do Dever …, pela Pátria …, e pelos “Comandos”. Oficiais (presente) …, Sargentos (presente) …, e Praças (presente).
Lisboa, 15 de Junho de 2008
Manuel Amaro Bernardo
__________
1. Os nossos agradecimentos ao Cor Manuel Amaro Bernardo pelo envio do texto.
2. Fixação e adaptação da responsabilidade de vb.
3. Artigos relacionados em
14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)
2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (7): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)
2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (6): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)
31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)
30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)
28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)
19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)
27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)
23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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