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sábado, 20 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27232: Felizmente ainda há verão em 2025 (35): os vinhos verdes que aprendemos a gostar na guerra: Casal Garcia, Aveleda, Gatão, Três Marias, Lagosta, Palácio da Brejoeira (...sem esquecer o Mateus Rosé, da Sogrape)


Rótulo (histórico) do vinho verde Gatão, da Sociedade dos Vinhos Borges & Irmão Lda. Um dos vinhos verdes que consumíamos na Guiné, em garrafa tipo cantil. A sua história remonta a 1895. Deve ser uma das marcas mais antigas.


Casal Garcia, da Aveleda, Penafiel. O mais conhecido na Guiné, ao tempo da guerra colonial. A marca nasceu em 1939. È a marca de vinos verdes mais vendida em todo o mundo.



Outro vinho verde apreciado, em garrafa tipo cantil, o "Três Marias", das Caves Casalinho,  Vizela A empresa foi fundada em 1944.  Esta marca foi lançado em 1956.



Vinho verde branco, "Lagosta", da Real Companhia Vinícoal de Portugal. Rótulo.  É uma das marcas mais antigas (1902). POertecne hoje à Enoport Wines.




Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 (1972/73) > Legenda: "Nesta foto está o Figueiral em frente (ao meio) de óculos escuros e a comer uma cabritada com a garrafa de Casal Garcia à frente. Eu estou do lado esquerdo da foto (...).. De costas para a foto está o Pinto Carvalho. Do lado direito da foto, em primeiro plano está o alferes Bastos, o homem do obus (alf de Artilharia) e logo a seguir, portanto à esquerda do Figueiral, está um segundo tenente de que não me recorda o nome. Era habitual haver um abastecimento via barco por mês e que vinha sempre escoltado pela Marinha, ficando o Oficial instalado lá no quartel [em Bedanda, na margem esquerda do Rio Cumbijã]" 

Foto (e legenda): © António Teixeira (1948-2013) Todos os direitos reservados. Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné (2013). 




Hélder Sousa, ribatejano do Cartaxo
ex-fur mil de trms TSF
 (Piche e Bissau, 1970/72)

 
1.  O verão está a chegar ao fim... Acaba amanhã, no calendário; dia 22, segunda feira,  já é outono (astronómico), prolongando-se até 21 de dezembro.

As vindimas também acabaram en Candoz. Já fizemos o nosso vinho. Já nas cubas de inox. E ainda entregámos maos 3 toneladas e tal  de uvas na Aveleda, em Penafial,  a  empresa de que somos fornecedores há muitos anos...Uvas de altíssma qualidade (arinto ou perdená, como se diz aqui, mais azal)... Sem um único cacho podre ou seco... Estão com  13,8 graus de álcool provável, segundo as medições da Aveleda.

Estamos, na região dos vinhos verdes,  ainda em plena azáfama... Ainda há vizinhos a vindimar. Fica bem, por isso,  falarmos um pouco dos vinhos verdes, se não se importarem os nossos leitores... Vinhos verdes de que só ouvimos falar (e provar), muitos de nós, na Guiné... 

(...)  "De Piche, em termos de Messe também não me lembro como era. Sei que cá fora, no Tufico, bebia cerveja. Mas no Quartel lembro-me bem de "estrear" Alvarinho "Palácio da Brejoeira". 

Nunca tinha bebido (para mim 'vinho verde' era Casal Garcia e similares) e isso foi possível porque um dos Capitães era uma pessoa de gostos refinados (até mandou vir, a suas custas, um aparelho de ar condicionado que mandou montar no quarto)  e fez com que fossem fornecidas algumas caixas e, como uma delas se "partiu",  lá tivemos a sorte (eu, o vagomestre cúmplice e mais uns dois ou três esforçados companheiros) de experimentar esse vinho. E gostei! (...) (*)

2. "Palácio da Brejoeira", alvarinho (só para capitão de "gostos refinados" e oficiais superiores...) e "Casal Garcia" (para alferes e furriéis milicianos): já temos duas marcas de "vinho verde" que se consumiam no CTIG.

Aliás, foi na Guiné que muitos de nós,"mouros",  "sulistas", começaram a apreciar o vinho verde branco: quem ainda não se lembra de marcas históricas, para além do Casal Garcia e do Palácio da Brejoeira ? Quem não se lembra  do Aveleda,  Casal Garcia, Três Marias, Garcia,  Lagosta, Gazela, Casal Mendes, etc. ?

A malta do Norte, de Minho e Entre-Douro-e-Minho, estava habituado ao "verde tinto", boa parte dele de fraca qualidade,  proveniente de castas locais como o  bom "vinhão" mas também de "produtores diretos", como o Jacquet, ou Jaquê, e o "americano",  hoje completamente banidos...

3. Acaba de se assinalar os 117 anos da publicação da Carta de Lei de 18 de Setembro de 1908, que instituiu a Demarcação da Região dos Vinhos Verdes, uma das mais antigas na Europa, a segunda em Portugal, a seguir à Região Demarcada do Douro, a mais antiga região vitícola regulamentada do mundo (remonta a 1756).

Lê-se no novo portal sobre os Vinhos Verdes, da CVRVV (Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes), que "curiosamenmte, ao contrário da imagem que hoje apreciadores de todo o mundo têm do Vinho Verde, terão sido, sobretudo, tintos, os vinhos que começaram por trazer fama à região".

Foi a partir de finais do século XIX que os vinhos brancos, elaborados a partir das castas locais, começaram a ser apreciados nos grandes centros urbanos.

Foi preciso esperar pela "guerra colonial", para os vinhos brancos ganhassem uma crescente quota quer na produção, quer na exportação. Os vinhos verdes tintos ficaram progressivamente remetidos a um consumo maioritariamente local (o que durante muitos anos também foi uma "injustiça": hoje recomeçam a ser "descobertos", têm de resto uma enorme importância na culinária local...

Decisiva, neste processo de "renascimento" dos vinhos verdes brancos , foi "a investigação efetuada a partir dos anos 60 e 70, que não apenas estudou em profundidade as variedades brancas autóctones (castas como Loureiro, Trajadura, Arinto ou Alvarinho, por exemplo), como revolucionou a forma como se plantavam e conduziam as vinhas na região, fazendo a transição de uma viticultura de subsistência, focada no mercado regional, para uma viticultura profissional, orientada para o mercado nacional e de exportação" (Fonte: portal da CVRVV).

Os vinhos verdes brancos portugueses começaram a ganhar maior projeção, inclusive no Ultramar, a partir dos anos 60 e 70, momento em que marcas como Aveleda, Casal Garcia, Gatão, Lagosta, Três Marias e Palácio da Brejoeira se tornaram presenças constantes em restaurantes, cantinas e messes militares do império colonial, acompanhando também o Mateus Rosé—embora este último não seja técnica e legalmente um vinho verde.





Na cantina de Nova Sintra, em meados de 1970, o vinho verde (da Aveleda)  custava à volta de 8 euros (a preços de hoje), o equivalente a metade de um garrafa de uísque bovo (16 eruos), segundo documentos disponibilizados pelo Aníbal José Soares da Silva, ex-fur mil vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70). 

Em 30 de junho de 1970, havia 221 garrafas de vinho verde em "stock", no valor de cerca 4,7 mil escudos (preço médio de custo=21,2 escudos). Uma refeição em Bafatá (bife com batatas fritas e ovo a cavalo) andava à volta dos "vinte pesos".

Nesse mês de junho de 1970 venderam-se 4 garrafas de Mateus Rosé, a 20$50 cada uma (de 15 requisitadas em armazém). Mas de 17 garrafas de vinho Aveleda (requisitadas, em armazén) não se vendeu nenhuma...

Fonte: Excerto de Balancete da Cantina, 30 de Junho de 1970, CCAV 2483, "Os Cavaleiros de Nova Sintra".


4. Marcas icónicas no Ultramar

Aveleda e Casal Garcia (produzidos pela Aveleda) destacaram-se por serem vinhos leves, frescos, fáceis de beber, com baixo teor alcoólico e enorme aceitação em climas quentes, como os de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Gatão, Lagosta. Três Marias, etc., tornaram-se marcas populares, apostando em vinhos brancos jovens, relativamente acessíveis em África...

Palácio da Brejoeira consolidou-se como símbolo de prestígio, sobretudo o seu Alvarinho, sendo mais apreciado por elites e em ocasiões especiais.

Mateus Rosé, embora não seja vinho verde, fez história como um vinho jovem, acessível, e amplamente consumido no Ultramar e internacionalmente (era serviço nba TAP), alcançando notoriedade após as décadas de 50 e 60 em restaurantes, missões diplomáticas e unidades militares portuguesas em África.

Lembro-me de outras marcas em Bambadinca, no bar de Sargentos (que era bem fornecido): Gazela, Campelo, Casal Mendes (das Caves Aliança, hoje Bacalhoa)... 

Nunca bebi o "Palácio da Brejoeira", alvarinho: era raro e caro... Mesmo assim os verdes brancos masi correntes não eram baratos: andavam, pelos 25 escudos nas nossas messes e cantinas (e, se bem recordo, 35, nos restaurantes em Bafatá). Não se bebiam todos os dias, longe disso: bebia-se em dias especiais, festas de aniversário, por exemplo.

Mas os nossos leitores, camaradas desse tempo, têm por certo recordações que vão partilhar connosco.

(**) Último poste da série > 16 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27222: Felizmente ainda há verão em 2025 (34): Mata-mouros e outros apelidos e alcunhas, raros, exóticos, pícaros, brejeiros, etc.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26819: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte II: De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge



Foto: o paquete Uíge no qual viajei/viajámos para  Bissau.


1.  O Carlos Filipe Gonçalves, de alcunha Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. 

Foi fur mil amanuense, na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74... 

É membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, sentando-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 790. Tem cerca de 2 dezenas de referências no nosso blogue.

É uma figura conhecida do na sua terra: r
adialista, jornalista, historiógrafo musical, e escritor, vive na Praia, capital de Cabo Verde. 

É também amigo do nosso camarada Manuel Amante da Rosa, e seu contemporâneo no QG/CTIG. 

Já aqui publicámos cinco postes com a sua versão dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Bissau (*). São excertos de um livro de memórias que ele tem em preparação, ainda sem  título (definitivo). E que quer continuar a partilhar connosco.

Abrimos, entretanto, uma nova série, de modo a abarcar o início da sua comissão no CTIG, em 1973. Na Metrópole, durante a recruta, a especialidade e a mobilização em rendição individual para o CTIG,  passou por Tavira, Vendas Novas,  Leiria e Lisboa.   

A fonte que utilizamos é a página do Facebook da Tabanca Grande.(***)





Cabo Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 11h11 >  Baía do Porto Grande e Monte Cara, ao fundo.

Foto (e legenda): © João Graça (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (**)



Parte IIA: Despedida e Partida para a Guiné



Noite sim, noite sim, na pândega, fui vivendo aqueles dias de «férias». Finalmente, a viagem para Bissau ficou marcada para domingo, 25 de fevereiro de 1973, no paquete Uíge. 

Era um envio especial de «efectivos» para «rendição individual» de militares que já tinham ultrapassado muitos meses após o final da comissão no ultramar! Não puderam regressar a tempo à metrópole, porque havia falta de gente para os substituir! 

Bem, quando a rapaziada do Campo de Ourique soube que eu partia no próximo domingo, disseram logo: “Temos que fazer uma despedida em grande!” Teria de ser na sexta-feira, pois, no sábado eu devia de dormir nos Adidos e, como se sabe, no quartel depois da meia-noite ninguém entra, ninguém sai; eu não queria correr o risco de um atraso no embarque, que seria mal interpretado e seria punido!isciplina militar é para se cumprir! 

Reunidos no Café Gigante, no meio da conversa fiada, Dani me perguntou: “Então? Como vai ser a despedida?” O Zé Rui argumentou: “Eh pá, vais para a Guiné!! Olha, que aquilo está mau! Proponho o novo cabaré que abriu aí pelos lados da Avenida Liberdade… a noite termina com striptease!” 

Na minha cabeça surgiu logo o pensamento: posso não voltar! Aceitei então a proposta. (…) (#)

(...) Chegou a hora da despedida, a malta, vai me dando fortes abraços, acompanhados de conversas ocas, sem significado para mim. Dizia um: “O tempo passa depressa! Já, já, cá estarás connosco a parodiar!” Gritava outro: “Não vai ser nada, pá! Aguenta-te, OK!” Ou então: “Ficamos à tua espera! Logo, logo, estarás de regresso!” 

Cada um foi para o seu lado, pois, naquele dia, o popó do John estava avariado, aliás nem me despedi dele porque não nos acompanhou! E não voltei a vê-lo depois. Apanhei um táxi… cheguei ao QG…. 

De repente senti-me só e envolvido num absoluto silêncio, a minha cabeça andava à roda, a mente vazia… adormeci.

Sábado, foi arrumar a mala e ultimar os preparativos para a viagem, dormi no Quartel de Adidos, em Belém. Domingo logo cedo, nem houve tempo para o pequeno-almoço, foi logo formatura e «chamada» da malta que ia embarcar.

 Entregaram a “guia de marcha” e os papéis da promoção a furriel miliciano, foram logo avisando: “Só colocam as divisas quando já estiverem no barco!” Dada a ordem “Está no ir”, subimos nos camiões com a bagagem, formou-se depois um comboio, lá fomos rumo ao cais de Alcântara. 

Quando lá chegámos, fiquei espantado com o povo que lá estava: centenas de pessoas, entre familiares, amigos, namoradas, esposas, algumas com bebés ao colo! Gente e mais gente para despedir dos cerca de 600 militares que iam partir para a Guiné. O ambiente estava pesado, choros, abraços, beijos de uma mãe ou namorada em lágrimas, olhos vermelhos que os lenços limpam constantemente… 

No meio daquela confusão, ouço chamar: “Kalu! Kalu!” Reconheci logo, a minha tia e o meu primo! Prometeram que iam ao cais e não faltaram! Fiquei sensibilizado, senti-me querido, amparado pelo apoio da família. Eu estava emocionado, a conversa foi pouca, ficamos ali parados… 

A tia Orlanda tinha providenciado a abertura de uma conta num banco, para eu depositar e amealhar o vencimento que a partir de agora ia dispor. Ela alertou: “Guarda bem estes papéis de referência da conta, para poderes fazer as transferências!” 

Eu acenava que sim, havia então uma pausa…. Minha tia repisava: “Quando voltares terás um dinheirinho para comprar um carro, mas, pensa em estudar, o estudo é o mais importante!” Estas palavras, nada significavam para mim, porque, dois anos de comissão na Guiné, eram uma eternidade e ainda nem tinham começado!

Dada a ordem para o embarque, eu não quis esperar muito, decidido, abracei a minha tia e o meu primo, despedimo-nos, apanhei a bagagem… dirigi-me às escadas do barco. O paquete Uíge era um barco grande, sobretudo muito alto… ao subir as escadas, notei, centenas de serpentinas lançadas ao vento, balançavam e faziam um som estridente… 

Quando cheguei ao barco, fui logo arrumar a bagagem no camarote e voltei para a amurada. Daqui de cima, via lá em baixo aquela gente toda aos prantos, há um murmúrio constante, os que estão no barco seguram serpentinas que estão nas mãos de alguém em terra. Se a fita de papel se partia, os meus colegas logo gritavam, chamavam o familiar e lançavam outra serpentina… 

Fiquei emocionado com este espectáculo, lágrimas afloraram nos meus olhos. Tirei os óculos, limpei as lentes. Aumentava cada vez mais o número destas longas e compridas tirinhas de papel de várias cores. 

Finalmente, ouve-se um grosso apito, são retiradas as escadas, o barco ainda apita várias vezes, enquanto afasta-se do cais… Os militares a bordo desenrolam cada vez mais e mais, as serpentinas, aumenta o ruído… prá, prá, prá, daquele conjunto enorme de tiras de papel ao vento… que ligam os que estão a bordo, àqueles que estão em terra… até que… pouco a pouco, uma a uma, as fitas de papel começam a partir-se e ficam soltas ao sabor do vento…

Lá no cais, os familiares a acenam com lenços brancos… à medida que o barco se afasta, as pessoas ficam cada vez mais pequenas; começa-se então a sentir os primeiros balanços do barco. Iniciamos a viagem a caminho da Guiné!

____________

Nota do autor:

(#) Não posso publicar o livro integralmente são apenas extractos… Por isso, apenas posso dizer agora, que depois de muitas peripécias e flashes da vida nocturna lisboeta… e ocorrências insólitas nesse cabaré… Foi uma noite de luxo, com Whisky, etc. e tal…. Até que…. saídos do tal cabaré...


Parte IIB:   De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge
 


No tombadilho do barco sopra um vento frio, Lisboa vai ficando para trás, não há muita conversa entre nós, imperam a tristeza e a saudade. Os meus companheiros de viagem começam a retirar-se do convés. Eu também vou para o camarote, encontro três colegas, vejo-os a retirar as divisas de cabo miliciano e colocar sobre os ombros as divisas de furriel. Fiz a mesma coisa, concretiza-se assim a tão ansiada promoção.

Sinto-me outra pessoa. Para trás ficaram meses de uma vida difícil e até de humilhações quando da instrução (recruta e especialidade). Escondido vestia-me à civil, pois, isso era vedado aos praças e instruendos como eu; a comida melhorou com a promoção a cabo miliciano, mas continuava a não ter qualquer salário; durante mais de seis meses, o pré (salário do soldado) era menos de uma dezena de escudos; depois da promoção a cabo miliciano, passara a 90 escudos! Uma miséria! (***)

Logo dependia da mesada que a minha mãe me enviava. Com esse dinheirinho, que recebia em carta registada, pagava as despesas, lavagem da roupa, as comezainas em Tavira e Vendas Novas (onde tinha feito a recruta) ou em Leiria (onde tinha feito a especialidade) e as paródias com a malta estudante em Campo de Ourique. 

Nessa fase inicial da tropa para além do frio (chegara Portugal em janeiro de 1972) o problema foi a minha adaptação ao rancho: café pão com marmelada ou margarina ao pequeno-almoço; sopa e alguns pratos preestabelecidos ao almoço como por exemplo, feijoada com chispe ou massa com carne; ao jantar, pescadinha de rabo na boca com batatas cozidas, um prato invariável! Sempre que podia, ia comer umas bifanas por aí, num restaurante ou tasca. (…)

Ao meio-dia sou acordado pelo toque de corneta para refeição. Levantei-me a correr, felizmente não tinha despido a farda, saio do camarote e vejo que o barco é um quartel flutuante! No convés estavam os «praças» a fazer a formatura para o almoço! Os furriéis, depressa descartaram a responsabilidade e delegaram nos cabos a tarefa de fazer a chamada, etc. e tal. 

Os «praças» foram para um refeitório onde nunca cheguei a ir. Nós, os graduados, fomos almoçar num salão de luxo destinado a sargentos e oficiais. Boa comida, bom vinho, boa sobremesa… e o melhor de tudo: garçons a servir! Portanto, nada a reclamar. Depois da bica, fomos dormir.

Às 16 horas, sou de novo acordado pelo toque de refeição da corneta. Bolas, devem ter-se enganado, o jantar é com certeza às 7 ou 8 horas, o que se passa? Mas, ordens são ordens, levantei-me da cama e saí. No corredor, ouço dizer que é hora do lanche! Fomos, ao salão, encontramos mesa posta: bolos, bolachas, sumos, chá e café… garçons a servir! Nada mau! Voltamos a comer!

(…) O tempo foi passando, às 7 horas soou a corneta, toque para o jantar. Repete-se o cenário: boa comida, bom vinho, garçons a servir. Pouco se falava à mesa, as amizades irão desenvolver-se ao longo dos próximos cinco dias da viagem, depois de se travar conhecimento e obter a confiança dos colegas.

Depois do jantar, fez-se a leitura da “Ordem do Dia”. Recorde-se, estamos num quartel flutuante, tudo se passa como em qualquer quartel. Soube então que haveria projecção de filme no convés e que durante a viagem não haveria toques de recolher e nem de alvorada, apenas os toques à refeição. 

E lá fomos ver um filme projectado num ecrã dependurado num dos mastros do navio; os oficiais e sargentos ficavam na amurada da meia nau, os soldados no convés. Logo no início, desenhos animados da Disney, depois o filme…. 

Enquanto passavam as imagens, olhava de vez em quando para o céu estrelado! Sentia então aquela saudade da minha Ilha de S. Vicente e dos meus familiares… A malta interrompia os meus pensamentos com alguma conversa, fumava-se, o tempo ia passando…

Estava assim estabelecida a rotina da viagem, a que se juntou nos dias seguintes, uma jogatina de cartas e de dados, pelos «praças» no convés. Dezenas de grupos de quatro a seis soldados apostavam e jogavam, ouviam-se risadas, gritos quando alguém ganhava, discussões quando havia desconfianças de enganações… Os oficiais e sargentos apenas observam, para não dar confiança e atrevimento aos subordinados, mas, alguns, à socapa também apostavam.

No terceiro dia de viagem comecei a sentir o calor tropical, imaginei que estaríamos a aproximar do mar de Cabo Verde. Comecei então a tomar banhos de sol, ia só de calções para o convés, estendia-me, imaginava estar numa das praias do meu distante S. Vicente… Os outros imitaram-me, logo, todo o mundo também estava de calções e sem camisa a tomar banhos de Sol! 

Antes do almoço, voltava ao camarote e tomava um longo um banho de chuveiro para refrescar. Que remédio! Com o mar ali à nossa volta, mas impensável um banho de mar…. Relembrava então o hábito de nadar na água sempre tépida e depois ficar estendido ao sol na praia da Matiota em S. Vicente, a minha ilha… (…)
____________


Nota do Autor – Como devem compreender, são extratos que estou a publicar… Devo, pois,  explicar, neste ponto, em flash back descrevo várias peripécias, na recruta e especialidade e como consegui ir para a junta de saúde e obter uma reclassificação para Serviços Auxiliares, o que me livrou da especialidade “Atirador/Operador Cine”, ou seja, envio para o mato no caso de mobilização! 

Também descrevo situações que tive com a Pide em Mindelo, etc., num jogo surdo e mudo, por causa de uma carta que recebi de um amigo, em Comissão no Ultramar, na qual ele dizia estar apreensivo pois ia para uma operação no mato e logo ele temia pela vida! 

Imaginem, a carta tinha sido violada…. Felizmente, não me valeu nem prisão nem convocação à sede, como aconteceu com muitas outras pessoas, por ninharias. 

(Revisão / fixação de texto: LG)



T/T Quanza > BCaç 617 >  A caminho da Guiné > c. 8-15 janeiro de 1964 > Tela para projeção de filmes  ao ar livre...


Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. o último poste a série > 3 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26760: No 25 de Abril eu estava em... (40): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte V


(**) Para se ter uma ideia da depreciação do valor da moeda de então (o escudo português), ao longo do período da guerra do ultramar /guerra colonial (1961/75):  90$00 valiam (a preços de hoje) 47 € (em 1960)...

  • 45 € (1963), 
  • 39 € (1966), 
  • 32 € (1969),
  • 25 € (1972), 
  • 22 € (1973), 
  • 18 € (1974), 
  • 15 € (1975). 

Fonte: Pordata > Simulares > Simulador de Inflação.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26769: A nossa guerra em números (29): nos quartéis do mato, dentro do arame farpado, a malta consumia em média, por ano e "per capita" , 21 litros de... álcool puro (14 em vinho, 5,4 em cerveja, 1,6 em bebidas destiladas)... (Aníbal Silva / Luís Graça)



O Luís Dias, ex-alf mil,  CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) dizia-nos, em 2010, que ainda tinha lá em casa "5 garrafas de uísque das que trouxe da Guiné"... Eram elas "uma 'President', uma 'Something Special', uma 'Dimple', uma 'Smugler' e uma 'Logan' (conforme foto...). Umas autênticas belezas". (*)

E acrescentava:

 "Alguns dirão que isto é um sacrilégio; porque será que o Dias não tratou destas 'meninas' em conformidade? Outros dirão que não é lá muito de beber e que, por tal facto, foi deixando andá-las lá por casa. Eu respondo: fui bebendo algumas, deixei outras ao meu pai, também ao meu tio Armando – este sim um grande apreciador – e fui ficando com outras e, olhem, ganhei-lhes amizade, porque olhava para elas e ia-as destinando a grandes momentos. Bebi uma, já não me lembro a marca, quando o meu filho nasceu há 30 anos. (...) Vou abrir a 'Dimple' quando fizer 60 anos, se Deus permitir que eu lá chegue,  e as outras serão para outras 'special ocasions' ” (...).

Comentário do editor LG: A Dimple já se foi!... E não faltarão ainda essas ocasiões outras especiais: os 80, os 90, os 100 anos... O uísque bom e velho não se estraga...

Foto (e legenda): © Luís Dias (2010). . Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Quais os artigos que mais se consumiam nas cantinas da tropa, no mato, na Guiné ?

Temos algumas indicações, a avaliar por uma pequena amostra das vendas (mensais)  na cantina da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), de acordo com os dados do balancete que nos foi fornecido pelo nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-fur mil vagomestre.(**)

Os dados respeitam às vendas no mês de maio de 1970. A companhia tinha 150 homens. Não havia subunidades adidas (a não ser um Pel Caç Nat no início da comissão). Por outro lado, só havia uma cantina / bar, embora houvesse refeitório (para as praças) e messe (para sargentos e oficiais).

Os artigos então mais vendidos foram (em unidades) (> 50):

  • Cerveja 0,3 l > 3977 (garrafas):
  • Tabaco Porto > 1034 (maços);
  • Coca-cola > 1402 (latas);
  • Tabaco SG > 754 (maços);               
  • Fósforos > 718 (caixas);
  • Leite c/ cacau 411 > 595 (embalagens);
  • Tabaco Português Suave > 395 (maços);
  • Cerveja 0,6 > 268 /garrafas);
  • Laranjada Shellys > 223 (latas);
  • Bacalhau > 96 (quilo ? embalagem ?);
  • Água Castelo > 65 (garrafas);
  • Sumol > 53 (garrafas ou latas);
  • Pilhas 1,5 v > 51


2, Se agruparmos estes itens por géneros (cerveja, tabaco, refrigentes, bebidas destiladas),  temos:


(i) Cerveja (0,3 l e 0,6 l) > 4245 garrafas (equivalente a 1353,9 l):

(ii) Tabaco (todas as marcas) > 2215 maços:

(iii) Refrigerantes (coca-coca e sumos) > 1680,5 (latas / embalagens)

(iv) Bebidas destiladas (uísque, gin, vodca, aguardente...) > 72,5 garrafas de 0,75l.


3. Admitindo que o mês de maio não era um mês "atípico" do ano, em matéria de consumo na cantina (estava-se no início da época das chuvas, já se saía menos vezes para o mato, embora no tempo seco, a partir de outubro, se pudesse beber mais cerveja...) podemos tentar calcular um valor médio anual "per capita" destas 4 categorias de bens consumidos:


(i) Cerveja:

  • 1353,9 l a dividir por 150 homens (=9,026 l) e a multiplicar por 12 meses, dá um consumo "per capita" anual de 108,3 l;
  • este valor pode estar subestimado; de qualquer modo, 108.3 l  "per capita" era já um valor seguramente muito superior à média nacional de 1970, e mais do dobro do consumo atual (em 2022, foi de 53 litros, segundo dados da European Beer Trends);

(ii) Tabaco:

  • 2215 maços de cigarros por mês dá uma média anual "per capita" de 177,2 maços;
  • é peciso ter em conta  que nem toda gente fumava: a prevalência de tabagismo entre homens com 15 anos ou mais anos de idade, em Portugal,  era estimada entre 40% e 50% em meados da década de 1970; 
  • portanto, aqueles de nós que fumavam, consumiam pelo menos um maço de cigarros por dia;

(iii) Coca-cola e sumos (refrigerantes):

  • 1680,5 latas ou embalagens num ano:  83,4 % corresponde à coca-cola... 
  • consumo anual "per capita" da coca-cola (=1402 x 12 =16824) seria de 112 latas; 
  • recorde-se que era uma bebida  proibida na metrópole, por teimosia de Salazar e das autoridades de saúde: além de ser vista  como um símbolo do ostensivo estilo de vida americano, haveria também um "argumento de saúde pública": além de poder ser facilmente associada à cocaína  ( e à "droga em geral"), o elevado teor de cafeína podia criar "habituação";
(iv) Uísque, gin, vodca, aguardente e outras bebidas destiladas:

  • temos um consumo mensal de 72,5 garrafas de 0,70l (ou de 0,75l, nalguns casos), o que dá 870 num ano;
  • a  maior parte é uísque de várias marcas =61 (84 %);
  • o restante: brandy (Macieira)= 4,5; gin = 6; vodca=1;
  • é mais difícil é saber o consumo destas  bebibas "brancas" (muito mais caras na metrópole) porquanto havia quem comprasse uísque  (mas também conhaque) para fazer "stock" e levar para casa, nas férias ou no final da comissão;
  • apesar de ser mais barato (no CTIG), o uísque (e o conhaque) era ainda um artigo de luxo para a maior parte da malta (as praças); mas era era também uma mercadoria muito apreciada; 
  • temos mais de 60 dezenas de garrafas de uísque vendidas por mês (720 por ano), incluindo o consumo avulso, na cantina (ao copo, com água mineral e gelo, se o houvesse) 
4. Mais difícil ainda é estimar o consumo de "álcool puro", per capita, anualmente...


(i) Vinho:

  • além destas bebidas (cerveja e bebidas brancas), os militares portugueses tinham direito a um copo de vinho à refeição; e  podiam também comprar na cantinha vinhos de marca como o Mateus Rosé ou o vinho verde branco Aveleda, Três Marias, Lagosta, etc.... (Vamos desprezar esses consumos, o vinho engarrafado era caro, a alternativa era a cerveja);
  • se cada militar bebesse 1 copo de vinho (200 ml) à refeição (almoço e jantar), ao fim de 365 dias seriam 140 litros;
  • admitindo que o vinho fornecido pela Intendência não ultrapassava os 10 graus, temos, um volume de álcool puro de 14 litros... (o vinho era mau e "batizado". toda a gente se queixava):

(ii) Cerveja:

  • sabendo que a cerveja Sagres tinha/tem 5º de teor alcoólico, o valor de 108,3 l consumido anualmente por cada militar correspondia a 5,415 l de álcool puro;

(iii) Bebidas destiladas:

  • o consumo anual médio, por companhia, poderia ser estimado (por baixo...) em  870 garrafas (0,70l, a 40º de teor alcoólico);
  • a dividir por 150  homens corresponderia a  5,8 garrafas (pouco mais de 4 litros);
  •  4060 ml x 0,40 (grau alcoolíco, médio)  = 1624 ml de álcool puro;


(iv) Álcool puro:

  • Somando o vinho (14 l), a cerveja (5,4 l) e as bebidas destiladas (1,6), são 21,0  litros no mínimo de álcool puro "per capita";
  • claro que aqui temos a velha história da falácia da média estatística: metade não fumava, mas grande parte bebia; o álcool era uma necessidade fisiológica e psicológica... nas condições de isolamento e de guerra em que se vivia.

5. Agora com a ajuda da Gemini IA /Google, acrescente-se em jeito de comentário:

  • de acordo com as estimativas mais recentes do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), referentes a 2019, o consumo anual per capita de álcool puro em Portugal (para a população com 15 ou mais anos) era de 12,1 litros;
  • este valor inclui o consumo de vinho, cerveja e bebidas destiladas, tanto o consumo registado como uma estimativa do consumo não registado, e exclui o consumo por turistas;
  • note-se que Portugal apresenta um dos consumos de álcool "per capita" mais elevados entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico).

De qualquer modo estes números, nomeadamente  sobre o consumo de bebidas alcoolólicas, têm que ser lidos e analisados com muitas reservas. 

Baseámo-nos no consumo de um só mês (maio de 1970) e de uma única subunidade de 150 homens (CCAV 2483, aquartelada na região de Quínara)... 

Os resultados são extrapolados... Precisamos de os confrontar com outros dados de outras fontes de informação (balancetes das cantinas de outras companhias, fornecimento mensal / anual da Intendência, etc.). 

Em todo o caso, estes números (***) ajudam-nos a ter uma ideia aproximada da "nossa grande sede", a  que pássavamos/passámos no CTIG, ao longo dos 22, 23, 24 meses de comissão... 

O tema do álcool em tempo de guerra é delicado mas não é tabu... Temos 45 referências a este descritor no nosso blogue. Mais de dois terços da nossa malta bebia, com maior ou menor moderação... E alguns já aqui admitiram, sem bravata nem falso pudor, que sim, que também lá apanharam alguns "pifos... daqueles de caixão à cova"... (AS/LG)
 __________________

Notas do editor LG:


(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5672: Estórias avulsas (23): Old Parr e Antiquary a 90$00 (Luís Dias)

(**) Vd. poste de 4 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26764: (Ex)citações (432): Gosto de arquivar para mais tarde recordar e por vezes surpreender os amigos com peripécias vividas há anos (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

Vd. também 2 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26754: (In)citações (269): Quem se lembra destes preços? (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

(***) Último poste da série > 2 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26644: A nossa guerra em números (28): Ainda a nossa 'adorável' ração de combate, nº 20...(que dava 3 refeições para um homem, por dia, no mato)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26754: (In)citações (269): Quem se lembra destes preços? (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Mensagem do nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), com data de 21 de Abril de 2025:

Caro Carlos Vinhal

Na perspetiva de recordar aos camaradas, os artigos vendidos nas cantinas dos mais diversos aquartelamentos dispersos pela Guiné, em anexo envio duas páginas do anexo - 1 do Balancete de 30 de Junho de 1970, da CCAV 2483, "Os Cavaleiros de Nova Sintra", com a descrição dos mesmos e o preço de custo.

Alguns dos artigos eram "Mimos", infelizmente não acessíveis a todos os "Prés", que para além de mitigarem o desconforto de viver no mato, por vezes nos fazia lembrar a vida civil na Metrópole.

A cerveja e o tabaco eram os artigos que faziam parte do "cabaz indispensável" à manutenção duma regular mentalidade para suportar as agruras do mato, pelo que o stock estava sempre devidamente apetrechado, salvo raras exceções devidas a reabastecimentos tardios. Dizia-se até que a guerra poderia acabar se faltasse a cerveja e o tabaco!!!

Mas, já viram o trabalho e as canseiras do "cantineiro" que, para apresentar estas contas, bem como as dos outros anexos, as tinha de fazer à mão, já que máquinas de calcular, mecânicas e muito menos elétricas não havia. Para conferir as contas, repetia o trabalho e só quando encontrava dois resultados iguais é que as considerava certas, o que por vezes era à terceira ou à quarta vez.

Um abraço
Aníbal Silva

2. Comentário dos editores CV/LG:

Aníbal, é uma lista... preciosa!... Como é que tu a conseguiste conservar até hoje?!...São  55 anos!...

Vamos lá fazer algumas contas com a ajuda do simulador de inflação da Pordata:

Quanto valia esse patacão todo em 1970 ? Em euros, arrendondados...  (mil escudos em 1970 valiam hoje 343 euros | 1 escudo = 0,343465 euros).
  • total: 150 569$46 = 51 715 €
  • cerveja: 3$50 e 6$20, respetivamente 1 e 2 euros
  • água Castelo: 6$40 = 2 €
  • vinho verde Alveleda: 23$60 = 8 €
  • uísque Haig's:  47$95 = 16 €
  • uísque Antiquary: 79$40 = 27 €
  • vodca: 70$20 = 24 €
  • conhaque Remy Martin:  120$00 = 41 €
  • nestcafé s/ cafeína: 18$50 = 6 €
  • lata de atum, 8$90 = 3 €
  • lata de salsichas: 9$25 = 3 €
  • bolacha Maria: 21$00 = 7 €
  • pasta dentífrica Pepsodent: 14,44 = 5 €
  • creme de barbear Palmolive: 16$49 = 6 €
  • tabaco LM, 4$50 = 2 € 
Outro pormenor: à data do inventário, 30/6/1979, havia:

  • 8 mil garrafas de cerveja (de 0,3l e 06l);
  • mais de 1400 latas de coca-cola;
  • cerca de 9,8 mil maços de cigarros, de marcas nacionais e estrangeiras (o mais barato era o Sagres, 1$89...).

Isto para uma companhia (mais de 150 homens)...  Mas não sabemos quais os preços de revenda, que se praticavam na cantina de Nova Sintra... 

Um último comentário:  abundavam  as bebidas alcoólicas  e o tabaquinho e faltavam as águas engarrafadas... Como diz o Aníbal e bem, a guerra acabava se faltasse o "bioxene" (o termo é do nosso saudoso Valdemar Queiroz) e o cigarro...


Informação da Pordata:

"Esta ferramenta permite converter,  para preços do ano corrente, qualquer montante monetário do passado, desde 1960, utilizando o deflator anual do Índice de Preços no Consumidor (IPC) 'base 2012'. Trata-se de transformar valores a preços correntes/nominais em valores a preços constantes/reais, descontando a inflação. 

"Para usar a ferramenta, indique o valor monetário, a moeda (euros ou escudos) e o ano a que corresponde esse valor."
_____________

Nota do editor

Último post da série de 30 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26747: (In)citações (268): O mês de Abril e as amêndoas amargas (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (36): quanto valia o dinheiro de há 65 anos atrás ? O orçamento da festa anual de uma freguesia rural do Marco de Canavezes (Luís Graça)



Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de N. Sra. do Socorro > 
25 de julho de 2015 > Esta capela remonta ao séc. XIX, estando erigida num dos pontos altos do território da freguesia...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de N. Sra. do Socorro > 25 de julho de 2015 > Interior, com os andores, prontos para a procissão de domingo, dia 26...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1.  Há festa na aldeia... No sábado para domingo, ao darem as 24 badaladas, rebenta o monumental fogo de artifício que é, de há muito, um dos momentos altos desta festa popular... São 20 ou 30 minutos de fogo... Ninguém sabe quanto custa ( a preços de hoje, talvez 20 a 30 mil euros)... Todo o povo contribui generosamente para este e outros encargos da festa de N. Sra. do Socorro, a padroeira desta freguesia de povoamento disperso.

Terras antiquíssimas estas, com forte trradições de que são guardiãs e continuadoras as nobres e valentes gentes entaladas entre o Rio Tâmega e o Rio Douro.

Estas festas fazem parte dos "nossos seres, saberes e lazeres" e são acarinhadas pelo pessoal da Tabanca de Candoz... Nunca é de mais lembrar, por outro lado, que o extenso concelho do Marco de Canaveses pagou um pesado imposto em "sangue, suor e lágrimas" durante a guerra colonial, tendo 45 dos seus filhos lá morrido, em terras de Angola, Guiné e Moçambique.  

A população do concelho era na altura de 39,3 mil (em 1960) e 42,1 mil (em 1970), Sabendo nós que a população portuguesa em 1970 era de 8,59 milhões, e tendo sido mobilizados 570 mil militares metropolitanos (70% de 800 mil, incluindo a tropa do recrutamento local), o número de jovens marcoenses que foram parar ao ultramar (Angola, Guiné e Moçambique) terá sido da ordem dos 2800.

Em chegando o verão, há foguetes e alegria no ar. Há festa, há a festa anual da padroeira de Paredes de Viadores, da freguesia do mesmo nome (mas agora mais comprido, já que á Paredes de Viadores juntou-se também a antiga freguesia de Manhuncelos). 

Por estas terras também andou o lendário herói do "banditismo social", Zé do Telhado ( Castelões de Recesinhos, Penafiel, 1818 / Mucari, Malanje, Angola, 1875). e o seu bando, cujas façanhas ficaram na memória das gentes dos vales do Sousa e Tâmega (onde nasceu Portugal). Desterrado, Zé do Telhado morreu em Angola (onde a sua memória ainda é, ao que parece, venerada).

Por aqui, Marco de Canaveses e Baião, passa também a rota do românico... que os portugueses de hoje deviam fazer pelo menos uma vez na vida!...

Por curiosidade, qual o orçamento desta festa ? Não tenho dados recentes, mas encontrei na Quinta de Candoz um apontamento de há 65 anos atrás.

 Trata-se da folha,  manuscrita,  com a escrituração das despesas e receitas, feita por José Carneiro (1911-1996), mordomo da festa, proprietário da Quinta de Candoz.

 Segundo a filha,  Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares, "Nita" (1947-2023), era referente  à festa do ano de 1960, em que ela própria também participou,  então com os seus 13 anos. (#).


Lista 1 - Despesa  / Valor (em escudos | em euros, a  preços de 1960)

  • Fogo de quatro fogueteiros > 7600$00 | 3941 €
  • Música (sic) dos B. V. Portuenses > 4100$00 | 2126 €
  • Iluminação > 2750$00 |  1426 €
  • Música (sic) dos B. V. de Rio Mau  [Penafiel] > 2500$00 | 1297 €
  • Carne para os músicos [ das bandas] > 1222$00 | 634 €
  • Vinho para os músicos  > 1000$00 | 519 €
  • Armação [dos andores] > 1000$00 | 519 €
  • Mercearias > 763$60 | 396 €
  • Zés Pereiras > 450$00  | 233 €
  • Padres  450$00 | 233 €
  • Guarda [Nacional] Republicana > 360$00 | 187 €
  • Tipografia: programas e estampas > 290$00 | 150 €
  • Autofalante > 250$00 | 130 €
  • Carpinteiro do sr. Geraldes [do Juncal] > 162$00 | 84 €
  • Câmara  [Municipal]: Energia e eletricista > 137$50 | 71 €
  • 4 quilos de cavacas para os anjinhos > 100$00 | 52 €
  • Pão de trigo e de milho > 96$00 | 50 €
  • Licença da Câmara para as músicas > 66$00 | 34 €
  • Flores e correio > 58$80 | 30 €
  • João de Magalhães [que deitou o fogo] > 50$00 | 26 €
  • Gratificação para o electricista > 50$00 | 26 €
  • Carro em que regressou a GNR [ao posto, que era na vila]  > 40$00 | 21 €
  • Expediente > 28$80 | 15 €
  • Selo de 35 programas > 14$40 | 7 €
  • Despacho do fio de cobre para iluminação > 9$70 | 5 €
Total = 23447$6 | 12160

Lista nº 1 - Discriminação das despesas, por ordem decrescente,  da Festa de Nossa Senhora do Socorro (1960), Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.   


Lista 2 - Receita   / Valor (em escudos | em euros, a  preços de 1960)


  • Recebeu-se dos mordomos de Paredes > 5791$60 | 3004  €
  • Recebeu-se dos mordomos de Viadores > 5186$50 | 2690 €
  • Rendeu a festa em dinheiro > 4240$20 | 2199 €
  • Apurou-se em ouro  [oferecido à santa]  > 1817$50 | 943 €
  • Renderam as flores [de papel] > 642$00 | 333 €

Total =17677$80 | 9168 €

Lista nº 2 - Discriminação das receitas, por ordem decrescente,  da Festa de Nossa Senhora do Socorro (1960), Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.   

O prejuízo da festa (c. 5,8 contos)  foi dividido pelos 6 mordomos da comissão organizadora (cabendo 961$63, a cada um, ou seja, 499 € a preços de 1960…).  Outros tempos, outras gentes, outros valores!...


O famoso "santo Antoninho" dos anos 60...   A nota de "20 paus" (cópia)...(Segundo o Museu de Lisboa , a nota de 20$00 com a imagem de Santo António foi emitida pela primeira vez a 16 de janeiro de 1965.  Com a data de 26 de maio de 1964, no total foram emitidas  299,1 milhões de  notas. A 30 de maio de 1986 foram retiradas de circulação.)







Como termo de comparação, registe-se que nessa época  (1960) um jornaleiro ganhava, em média, 20 escudos (10 euros) por dia, enquanto um oficial (como o José Carneiro, ramadeiro, construtor de ramadas) cobrava 50 escudos (25 euros) pelo seu trabalho diário.(##)

A "Nita" lembrava-se, tinha ela 13 anos já feitos, de andar na festa a angariar dinheiro com as florinhas de papel que eram espetadas, com um alfinete, na lapela do casaco dos homens, à entrada do recinto. As receitas que daí provieram ainda atingiram uma cifra razoável para a época: 642$00 (333 €)... (###)

Também era vulgar as as pessoas ofereceram à santa padroeira da freguesia, a  Nª Srª do Socorro,  objetos em ouro (fios, anéis, mo sebrincos, cordões, etc.), como forma de pagamento de promessas.

Repare-se, por outro lado, que o foguetório já nessa altura representava 1/3 do total das despesas, e mais de outro tanto a contratação de duas bandas de músicas (uma do Porto e outra local, Rio Mau, Penafiel, concelho vizinho), pagas em dinheiro e em géneros (38%).  As duas bandas tocavam à compita.

Nas despesas com os padres (450 escudos, 233 euros com a correção da inflação), inclui-se o pregador, que vinha de fora.

Quanto às receitas, note-se que mais de 60% do total era constituído pelos peditórios, casa a casa, feitos por 2 grupos de mordomos, os de Paredes e os de Viadores, representando as duas metades do território da freguesia ( era, em geral, um padre com grandes dotes de orador).

Também como termo de comparação, refira-se que,  hoje em dia, o compasso pascal da freguesia gasta facilmente em 10 ou 20 minutos de fogo artifício 10, 20 a 30 mil euros...É uma estimativa, grosseira, de quem está por dentro do assunto.

José Carneiro foi mais de uma vez mordomo destas festas de N. Srª do Socorro, que se realiza todos os anos no último domingo de julho.  Tem um recinto encantador.
_________________

Notas do autor:

(#) Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 30 agosto 2012 > José Carneiro (1911-1996). mordomo da festa da Nossa Senhora do Socorro em 1960

(##) Vd. logue A Nossa Quinta de Candoz > 29 agosto 2012 >  José Carneiro (1911-1996), construtor civil de ramadas

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26204: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (10): paguei o mesmo que o Carlos Vinhal, na viagem de férias, ao Porto, em meados de 1971 (Esc. 6430$00, o equivalente, a preços de hoje, a 1944 euros), mas... em três prestações (António Tavares, ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72)




O miraculoso bilhete da TAP que dava "direito" ao tão almejado mês de férias na metrópole...Bilhete de avião Bissau - Lisboa - Porto - Lisboa - Bissau, 1971

Foto (e legenda): © António Tavares (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Ainda a propósito do nosso sagrado mês de férias na metrópole (luxo que era só para alguns),  o nosso camarada António Tavares (ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72; vive na Foz, no Porto, e tem 74 referências no nosso blogue, estando cá desde 24/6/2009) já aqui lembrou (*) que:

(i) em 3 de agosto de 1971 levantou, na  conhecida Agência Correia, de Bissau, o bilhete de viagem na TAP que lhe custou a exorbitância de  6430$80, que era então o custo da  viagem Bissau-Lisboa - Porto -. Lisboa - Bissau (a mesma importância foi já aqui reportada pelo  nosso coeditor Carlos Vinha, equivalente a 1944 euros, a preços de hoje) (**);.

(ii) essa importància, vá lá, foi paga  em três prestações ("suaves"):
  • 4.430$80,  em 3 de agosto de 1971; 
  • 500$00,  em 22 de setembro de 1971;
  • 1.500$00, em 21 de outubro de 1971,
(iii) na cópia do bilhete (vd. imagem acima) consta uma taxa de aeroporto de 110$80;

(iv)  o escudo, na época,  era trocado, em Bissau, "com uma agiotagem de 10%.";

(vi) viajou a 4 de agosto de 1971 e regressou no dia 7 de setembro de 1971;

(vii) e ainda teve direito a um "saco de pernoita" (!);

(ix) ... "os camaradas mais atentos verificarão que acabei de pagar a totalidade das prestações depois da minha chegada de regresso ao CTIGuiné; porque o 'patacão'  não transbordava das algibeiras,  tinha de aproveitar todas as facilidades de pagamento autorizadas"

 (Ssleção, revisão / fixação de texto: LG)
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15216: O nosso querido mês de férias (18): Viagem Bissau-Lisboa-Porto-Lisboa-Bissau paga a prestações porque o patacão não transbordava das algibeiras (António Tavares)

(**) Último poste da série > 24 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26188: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (9): uma viagem na TAP, de Bissau a Lisboa, em finais de 1970, custaria hoje c. 1450 euros (Valdemar Queiroz); uma viagem de férias (ida e volta), c. 1900 euros, em fevereiro de 1971 (Carlos Vinhal)