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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Guiné 761/74 - P27508: (D)o outro lado do combate (69): O "herói do Como", o Pansau Na Isna (1938-1970), em registo de "conto popular africano"“: tuga ka pudi anda na lama (M'bana N'tchigna)




A Pátria não se esqueceu do seu herói,  Pansau na Isna (Ilhéu de  N' Fanta, 1938 - Nhacra, 1970) (*). O verdadeiro herói da "batalha do Como" não foi 'Nino' Vieira, mas este  balanta carismático, camponês, analfabeto, excêntrico. 

Morreu cedo, aos 32 anos, em combate. Já não viu estas notas de 50 pesos,  emitidas pelo Banco Nacional da Guiné-Bissau em 1976 (mas com data retroativa de 24 de setembro de 1975, segundo aniversário da proclamação unilateral da independência), e que circularam entre 1976 e 1997.  O Banco Nacional da Guiné-Bissau resultou da nacionalização do BNU - Banco Nacional Ultramarino, e foi o antecessor do Banco Central da Guiné-Bissau, segundo nos relata  o australiano Peter Symes, especialista em emissões bancárias (**).

Até ao fim do peso, em 1997 (que deu lugar ao franco CFA), circularam as seguintes notas (ao longo de 3 emissões) (1976, 1983 e 1984):  notas de  50 (com a efígie de Pansau Na Isna), 100 pesos (Domingos Ramos),  500 pesos (Amílcar Cabral), 1000 (Amílcar Cabral),  500 (Francisco Mendes) (1983), 5000 (Amílcar Cabral)  e 100000 (Amílcar Cabral).

São relativamente raras as versões, públicas, disponíveis na Net, de antigos combatentes do PAIGC sobre a "luta de libertação".  E menos ainda sobre a mítica "batalha do Como"...Não vamos aqui, para já,  comparar versões dos acontecimentos.  Os combatentes de um lado e do outro (incluindo todos os "cabra-.machos") têm direito a contar e a publicar a sua história, sujeitando-se naturalmente ao contraditório (***)

No nosso blogue temos já cerca de 90 referências sobre a Op Tridente, incluindo o testemunho de quem lá esteve e lutou como os nossos camaradas Mário Dias,   Armor Pires MotaJosé Álvaro CarvalhoVassalo Miranda e outros (sem esquecer o J. L. Mendes Gomes,  os "bravos do Cachil", da CCAÇ 557, o José Colaço, o Rogério Leitão, o José Augusto Rocha, etc.).





Lisboa > Forte do Bom Sucesso > 24 de setembro de 2005 > Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, um pelotão comandado pelo alf mil Maurício Saraiva, fotografados  durante o convívio dos Grupos de Comandos do CTIG (1964/66).

Da esquerda para a direita, (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1º cabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo;

Em cima, (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco. (Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham em 1964).


Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A História de Kpänsau Na Ysna: Como combatente N’tchaagň Conta a Uma Criança


por M’bana N’tchigna


− Vem cá, meu filho, senta aqui pertinho. Vou te contar a história de um homem muito corajoso, um daqueles que a gente não encontra todo dia. O nome dele era Kpänsau Na Ysna, mas muitos o chamavam de Pansau na Isna.

Kpänsau nasceu lá no ano de 1938 [no Ilhéu de N’fandá], numa família camponesa da etnia B’ráassa [Brassa] , os Balanta, gente trabalhadora e forte. Ele era um homem alto, de pescoço bem firme, e que gostava de deixar o cabelo crescer, porque tinha muito, muito mesmo. Quando o vento soprava, parecia até que o cabelo dele dançava.

Ele vivia no sul da Guiné-Bissau, ajudando a família e aprendendo a vida do campo. Mas, um dia, ele percebeu que o seu povo sofria injustiças do colonialismo português. E, olha, M’bana…, quando Kpänsau via injustiça, o coração dele esquentava como fogo. Ele não gostava de ver ninguém oprimido, não.

Então decidiu entrar para a luta armada, bem jovem ainda. E sabe o que aconteceu? Ah, meu filho… ele logo mostrou que era daqueles que não se escondem. Era valente, corajoso, decidido. Eu estava e lutei lado ao lado numa das batalha, Köm [ilha de Como, Op Tridente, jan-mar 1964] . Quando Kpänsau entrava numa batalha, até os mais medrosos se enchiam de força só de olhar para ele.

A maior prova disso aconteceu na batalha de Köm, a ilha de Como, que ele ajudou a libertar. Naquele tempo ele tinha só 26 anos, imagine! Tão jovem… Mas já era visto como um grande combatente.

Passaram-se alguns anos, e Kpänsau continuou a defender o seu povo com o mesmo coração firme de sempre. Até que, em 1970, quando tinha apenas 32 anos, ele morreu em combate, lá em Nhagkrá-Mores na vila de Bumar [sector de Bissau] . Morreu lutando, como viveu.

E você sabe por que eu te conto essa história? Porque homens como Kpänsau Na Ysna não vão embora de verdade. Eles ficam na memória do povo, ficam no peito da gente. Ele lutou para que hoje vivêssemos num lugar mais livre, mais justo.

Então, sempre que você ouvir alguém falar de coragem, lembre-se de Kpänsau. Ele foi um herói de verdade. E heróis assim… ah, meu filho M’bana, esses nunca são esquecidos.


O Significado do Nome Kpänsau Na Ysna na Língua Brassa

Mas afinal, qual é o significado do nome Kpänsau Na Ysna na língua B’ráassa?

Como quase todos os nomes B’ráassa, Kpänsau carrega em si um sentido profundo. Ao pé da letra, significa “Morança acabou” ou “Desmoronou”, e pode ser estendido para expressões como: “a geração acabou”, “minha gente acabou”, “meus parentes acabaram”.

É um nome que evoca o desaparecimento, a perda e, ao mesmo tempo, a força de quem resiste diante da morte ou da destruição.

A preposição “Na” tem papel especial na língua de B’ráassa. Ela equivale às preposições portuguesas “de”, “da” ou “do”, e serve para apontar o clã a que o indivíduo pertence.

Entre os B’ráassa de Ñakrá, raramente se usa o nome do pai junto ao próprio nome; o filho é do clã, e não do pai. Essa escolha revela a horizontalidade e o espírito de democracia e de harmonia de nosso povo.

Um exemplo disso é Dába Na Walna, uma das grandes referências intelectuais da Guiné-Bissau, embora ele próprio não se vê como tal. [É hoje brigadeiro-general.]

Eu nunca conheci o nome do pai biológico dele, e, que eu saiba, “Na Walna” não se refere ao pai. A preposição indica o clã, a morança ou a tabanca à qual a pessoa pertence. O mesmo se aplica ao meu sobrenome, “Na Tchigna”, e a muitos. outros.

Assim, o nome Kpänsau Na Ysna não é apenas um conjunto de palavras: é história, memória e identidade. Ele lembra a coragem, a luta e a resistência de um povo que enfrentou a opressão e o perigo com coração firme.

Faço questão de homenageá-lo neste mês de janeiro de 2018, quando a libertação de Köm completa 54 anos. Foi nesse mês, em 1964, que Köm viu seu valente filho defendê-la como terra indivisível entre guineenses e colonialistas.

E eu o homenageio não apenas porque seu nome batiza uma avenida de Bissau, onde hoje se situa o Hospital Simão Mendes, mas porque sua vida e sua memória merecem ser celebradas, lembradas e honradas para sempre.

Quando criança, sempre fui um menino curioso e amante de histórias. Mas não de qualquer história: gostava de ouvir fatos verídicos, aqueles que carregam sangue, suor e coragem.

Foi assim que, ainda pequeno, fui contado sobre a batalha de Köm, quando Kpänsau Na Ysna, em vida, era comandante de Baraka Garandi [barraca grande] , o quartel-general daquela ilha.

Eu tinha apenas 10 anos, em 1980, quando ouvi, hipnotizado, meu tio N’tchaagň, um dos guerrilheiros e testemunha ocular da batalha, relatar-me os acontecimentos de Köm. Minha pergunta foi simples, mas carregava a curiosidade de uma criança:

− N’tchaagn, abala a ba hër a Köm? (“N’tchaagň, como foi a guerra de Köm?”)

Depois de um jantar simples, numa cabana, com arroz e peixe, ele tomou seu vinho de cíbi [cibe, palma] , feito artesanalmente pelos anciões B’ráassa, e retrucou-me com voz firme:

− M’bana Bláthë, Köm key won nhunthë! (“Bláthë, não deve lembrar-se de Köm.”)

Olhou para o espaço, como se carregasse toda a fúria e a dor da memória. Ficou alguns segundos em silêncio, pensativo, e então começou o conto.

Com seu sotaque Brassa, disse:

− Köm... Köm e Kation...[Como e Catió]

Percebia que precisava de explicação: ele continuou, com paciência:

− Como você ainda não sabe, Köm é um dos setores de Kation. Ou seja, Catió. Do porto de Köm até aos nossos esconderijos distam apenas 7 km.

Durante os combates, alguns portugueses descreveram Köm como uma ilha maldita; para outros, uma ilha que fazia os cabelos de qualquer um ficarem em pé, disse tio N’tchaagň, com olhar distante, lembrando-se dos horrores e da coragem vivida.

− De Kation até a ilha, eu não sei ao certo. Mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E… como os portugueses estavam aquartelados em Catió, não podiam tolerar a presença de ‘terroristas’ — como nos chamavam, nós do PAIGC, naquela época pelos portugueses − prosseguiu o tio N’tchaagň.

Era uma afronta para o exército português conviver lado a lado com um inimigo indesejável. Além disso, Brandão [Manuel de Pinho Brandão] , um comerciante português, tinha um comércio florescente, quase sem concorrência, ao contrário dos comerciantes libaneses que dominavam boa parte da Guiné-Portuguesa. Portanto, era interesse dos portugueses nos expulsar de Köm definitivamente, para assegurar sua hegemonia.

Tio N’tchaagň deu uma pausa, tomou um gole do seu vinho de cíbi, e se calou. Eu, criança curiosa, olhava para ele ansioso, esperando que continuasse o conto. Ele percebeu meu olhar e, com um leve suspiro, retomou:

− E, o comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Além dos informantes que nos alertavam sobre os movimentos e intenções dos tugas na ilha, ele próprio era um homem inteligente, estrategista de guerra, guerreiro nato, corajoso como poucos que já conheci e intransigente quando se tratava de defender nossa posição. Não gostava de perder.

Eu, N’tchaagňs, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tinha seu jeito de comandar, mas Kpänsau permanece uma lenda em minha mente até hoje − disse, com a voz sufocada, tentando disfarçar as lágrimas que brilhavam entre suas pálpebras avermelhadas de emoção.

Eu, sensível como sempre, ao vê-lo tomado pela emoção, senti minhas próprias lágrimas brotarem.

− Bláthë! — chamou-me carinhosamente pelo codinome e prosseguiu:

− Kpänsau não estava dentro de Köm no pré-anúncio da batalha. Estava em missão fora da ilha. Pelo que sei, não muito claro, ele se encontrava próximo a M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém [Jemberém].

De lá, sabendo que Köm seria atacada pelo exército português, apressou-se a voltar, andando na maioria das vezes à noite, atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün e, ainda, pântanos e bolanhas — os campos agrícolas — até chegar dentro de Köm.

Quando Kpänsau finalmente chegou, M’bana, a guerra já havia começado, no dia 14 de janeiro, uma terça-feira. Comandante N’Dìnè Na Abarrna já foi atingido e morto. Mas comandante Guádn Na Ndamy e Biohctá Na M’bátcha, asseguraram as rédeas da guerra como líderes de grupos que já estavam na ilha.

Mas, misteriosamente, Kpänsau caiu enfermo. Suas pernas incharam, e ele não conseguiu andar por duas semanas. Para não criar alarde ou pânico entre os soldados — e muito menos entre os inimigos — ninguém sabia da sua doença. Apenas Biohctá Na M’bátcha e alguns outros líderes conheciam o segredo do lendário comandante.

Perguntaram a ele se seria melhor evacuá-lo de Köm, mas ele esbravejou com voz determinante:


− N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu. (“Não saio daqui. Quem tem que ir embora são os portugueses. Köm é nosso.”)

Pouco depois de duas semanas, recuperou-se do inchaço e estava pronto, invicto, para uma missão que parecia quase impossível de realizar.

Não podemos dizer que Kpänsau fez tudo sozinho, M’bana. Reconhecemos três nomes que foram fundamentais: o próprio Kpänsau, Guádn Na Ndamy e Biohctá Na M’bátcha — bravos colegas que sempre estiveram por perto, obedecendo ou questionando quando necessário. Contudo, as decisões partiam dele, como comandante em chefe.

Ao entardecer, quando o crepúsculo começava, chamava Biohctá Na M’bátcha para tomar vinho de palma, aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar as ações já desencadeadas e preparar-se para o dia seguinte.

Tio N’tchaagn parou e me pediu que levasse vinho de cíbi ao seu primo, na varanda da casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinham se passado 16 anos desde que a batalha havia ocorrido, mas o homem combatente, N’tchaagň, como contador nato de histórias, lembrava com detalhes cada episódio dirigido por Kpänsau Na Ysna.

Continuou, com a voz firme:

− O exército português batizou a guerra contra Köm de ‘Operação Tridente’. Nas suas imaginações, queriam recuperar não só Köm, mas também Katugn, Cayar — onde ficava o batalhão da força portuguesa, fornecendo reforços a qualquer pelotão — e até se instalaram em Kônghan.

Estrategicamente, posicionaram-se no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan — onde se instalou o general português que dirigia a operação. Mas nada disso intimidou o lendário, pois os portugueses desconheciam, e ainda subestimavam, o poderio e o grau de organização de Kpänsau Na Ysna com seus homens, já bem posicionados, sobretudo na tática móvel, que ele dominava como poucos.

Tio N’tchaagň já estava cansado. Passavam das 23 horas, e, tomado pela embriaguez, pediu para interromper o relato. Parou, e eu fui dormir. Empurrei a porta e minha mãe perguntou:

− Você ainda não dormiu, M’bana?

Não respondi, com medo de levar um açoite, e passei silencioso para o quarto. Minha mente ruminava todas as palavras, percorrendo a história inteira, até que o sono me venceu.

Dois dias depois, tio N’tchaagň pediu que eu relatasse novamente tudo o que havia ouvido sobre Kpänsau. Repiti tudo. Ele aprovou e disse:

− Ótimo, bom menino. Guarde bem, para que ninguém te conte outra história que não seja esta.

Prosseguiu:

− Kpänsau organizou seus homens em dois grupos diferentes.

O primeiro grupo era armado de guerrilha e fixo em áreas territoriais específicas. Esse grupo defendia o espaço aéreo de Köm, instalava a defesa antiaérea e improvisava um hospital subterrâneo. Possuíam armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivéssemos.

Ao todo, éramos 300 guerrilheiros contra mais de 800 homens da força portuguesa. Uma desigualdade evidente, claro, com vantagem para os tugas. Além de números superiores, eles tinham armas de maior quantidade e qualidade, aviões, navios e pequenas embarcações para se deslocarem à vontade — facilidades que nós não possuíamos.

− Nós tínhamos armas que começavam a se igualar a algumas deles. Mas a distância entre nós e as armas, que ficavam na fronteira de Conakry, era enorme. Transportá-las até nós era uma dificuldade enorme. O único transporte disponível eram pessoas dispostas — ou obrigadas — a ir a pé buscar armas e munições na fronteira com a Guiné-Conakry.

A viagem para buscar munições durava quatro a cinco dias, se o grupo não encontrasse tugas no caminho. O percurso saía de Köm e passava por: Wedë-Kaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng — até a fronteira de Conakry.

Essa distância em linha reta é de aproximadamente 160 a 200 km, mas, como os viajantes precisavam contornar rios, pântanos e territórios hostis, acredito que percorram 200 a 230 km.

Imagina, M’bana, percorrer essa distância carregando munições pesadas na cabeça… às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano dissolvido em água? Não posso deixar de mencionar Kidèlé Na Arítchgň, herói desta história. Devo contar um pouco sobre ele, nessa situação das munições.

Quando as munições chegavam ao porto, introduzi-las na ilha era ainda mais difícil do que a própria luta. Os tugas vigiavam toda a volta de Köm, dia e noite, atentos a qualquer tentativa de reforço. Literalmente, ninguém se atrevia a atravessar o mar para a ilha.

Foi aí que surgiu Kidèlé Na Arítchgň. Ele carregava as munições numa B’sahë Në Brassa — a canoa tradicional Brassa/Balanta — e remava atravessando um mar perigoso, vigiado incessantemente pelas tropas inimigas.

Kidèlé conseguiu atravessar o mar várias vezes, sem jamais ser flagrado pelos tugas. A pergunta que não se cala até hoje é: “Como nunca encontrou tugas?” Será milagre? Coincidência? Talvez. Não é à toa que seus pais o chamaram de Kidèlé, que em Brassa significa literalmente 'Milagre'. E, de fato, um verdadeiro milagre aconteceu no abastecimento da guerra da ilha, graças a ele.

Kpänsau sabia da força do inimigo. Admitia a inferioridade numérica e material antes de encarar a batalha, mas soube provocar os tugas, desgastando-os física e materialmente. Até mesmo simples silhuetas de soldados falsos, colocadas na escuridão da noite, faziam os tugas gastarem munições desnecessárias.”

− Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois ou três guerrilheiros. Seduzia e deslocava a marinha portuguesa para desembarcar de um lado, quando, na verdade, nós, homens de Kpänsau, estávamos posicionados do outro.

No tabuleiro de guerra, procurava sempre deixar as peças do adversário vulneráveis, para obter vantagem. Por exemplo, fazia com que os fuzileiros tugas desembarcassem ilusoriamente em pântanos enlodados, que dificultavam sua movimentação, ou em caminhos estreitos de mata densa, através de alarmes falsos. Quando os tugas caíam nessas armadilhas, era hora de nós, homens de Kpänsau, tirarmos vantagem, derrotando e danificando o maior número possível de inimigos ou de seu armamento. Daí surgiu a expressão: “tuga ka pudi anda na lama” — os tugas não sabem andar no lodo.

Kpänsau conhecia todos os espaços favoráveis a nós. Por isso, não admitia que a marinha portuguesa se aproximasse ou controlasse esses locais. Sempre atraímos os tugas para o lado do lodo, mangue, traves fechadas e clareiras seguidas de mato denso, onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados.

Sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a dispararem contra embarcações portuguesas que ousassem avançar pelos rios da floresta adentro.

O céu da ilha estava coberto de fumaça, resultado dos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E por terra, homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados pelo lendário Kpänsau Na Ysna, não arredavam pé de onde estavam.

A população de Köm sofreu. Mães com crianças de colo amamentavam enquanto tentavam sobreviver. Quando os bebês choravam, a força portuguesa respondia sem piedade, metralhando ou lançando morteiros e bombas napalm contra o local, matando civis indiscriminadamente.

O povo de Köm viveu situação desumana por 75 dias. Djigân (bicho de pé) e lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos das pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desacreditados, chamando Kpänsau de “Balanta teimoso”, acreditando que não venceria a guerra contra os brancos.

Chegaram relatos dizendo que Amílcar Cabral pediu que Kpänsau e os guerrilheiros em Köm abandonassem a luta, para poupar a população civil do massacre que as tropas coloniais praticavam. Mas Kpänsau, intransigente, meneou a cabeça e dizia: “Wisaguë Kanã” (não acredito nisso). Ignorou a ordem e prosseguiu seu trabalho, certo de que a vitória estava próxima.

Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste no dia 19 de fevereiro, quarta-feira de 1964: os tugas queimavam deliberadamente o arroz do Brassa, para impedir a persistência dos guerrilheiros do PAIGC. Sabiam que nós, Balanta, éramos mais de 90% da guerrilha, e produtores de arroz de excelência, essenciais para alimentar os combatentes.

− O que eu, N’tchaagň ?!− esbravejei com lamento.

− ‘Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú… bë thëd malu ni Brassa tida! Hack, Bëbábm match bu! Weñan miin yá ki Brassa a bi ka hera.’ ("Meu Deus! Ignoraram impanpan de Fulas, Biafadas de Quinára e de Tombaly… só queimam arroz dos Brassa! Então, os tugas nos detestam! Já está claro que declararam guerra a nós, Brassa!") [Impampan ou pampan, em crioulo, arroz de sequeiro] − dizia N’tchaagň, horrorizado, lembrando daquele episódio.

No dia 20 de março, sexta-feira de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais uma informação: os tugas estavam matando bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era destruição clara, com a intenção de causar prejuízo ao nosso povo.

Sempre, durante a guerra, as vacas e os bois dos Brassa serviam de alimento para eles. Sempre que invadiam terras Brassa, pilhavam, saqueavam, matavam, mas escolhiam os melhores animais para consumo em seus quartéis. Agora, ao perderem a guerra, matavam sem levar nada. N’tchaagň se horrorizava contando isso para mim.

Nunca foram aos povoados de outros grupos étnicos para cometer tal destruição, pois representavam pouco valor para o abastecimento dos guerrilheiros do PAIGC.

Mas, num só dia, M’bana, antes mesmo de você nascer, o exército português queimou arroz nas tabankas de: Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, Saráck-Djaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãnthä, N’dala-Yièll e até o arroz do pai de Kpänsau em Banta-Sillá.

Ou seja, 14 aldeias dos Brassa sofreram perdas enormes, por serem tabancas que abrigavam armazéns e produzam arroz em larga escala para abastecer os guerrilheiros.

Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau, que permaneceu em silêncio por um instante antes de responder ao informante:

−Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu. ("Por que não vêm nos combater? Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que têm que sair da nossa terra.")

O abuso que as tropas coloniais cometiam ao matar civis doía profundamente em Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica, pregada pelos homens de Salazar, para intimidá-lo e fazê-lo abandonar as armas.

Kpänsau não se abateu e manteve firme seu propósito de libertar o povo. Circulava pessoalmente pela linha de frente, observando cada detalhe da batalha. Não era um comandante que apenas dava ordens do quartel-general. Ao chegar à linha de frente, via alguns combatentes famintos, que não comiam há dias, misturando apenas açúcar cubano com água para continuar entrincheirados.

Encorajava-os com palavras de coragem:

− ‘Herá, botche-bo win! ("Lutemos, a terra é nossa!")

O dia de Kpänsau começava entre 5h e 6h da manhã, quando toda movimentação para mais um dia sangrento se iniciava. Instalado na Baranka Garandi — quartel-general do PAIGC — elaborava planos e decretava ordens para missões quase impossíveis.

No plano espiritual, Kpänsau era animista. Reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi, buscando proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardião da ilha de Köm), os sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam o Baloba, enquanto as sacerdotisas, ladeadas por seu povo, murmuravam palavras inaudíveis, pedindo proteção para Kpänsau e seus guerrilheiros, que combatiam os tugas ferozmente.

As árvores, M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo o que hoje te conto. Assim foram os dias de 14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) de 1964, na ilha de Köm.

Antes de terminar, [eu, M’bana N’tchigna] faço um pequeno esclarecimento.

Vamos escrever a nossa história como ela realmente aconteceu. Já ouvi muitas pessoas tentando associar a vitória de Köm ao ex-presidente Nino Vieira. Uma coisa é verdadeira: general Nino Vieira foi comandante de frente Sul, sim, por um período.

Mas, de acordo com relatos de vários combatentes, Nino não lutou na batalha de Köm. Estava em Conakry. Perguntei a N’tchaagň, que confirmou: realmente não viu Comandante Nino Vieira em Köm durante os 75 dias de combates, e não soube precisar o que Nino estava fazendo em Conakry, afirmando apenas que ouviu dizer que ele estava internado por motivo de doença.

Com todo respeito aos meus leitores: não sou dono da verdade absoluta. Se alguém tiver outra versão sobre Köm, em que Nino realmente participou e dirigiu a luta, entre em contato comigo. Eu, M’bana N’tchigna, transferirei essa homenagem a ele, pois o justo é justo.


Conclusão:


Mbana Ntchigna,
Brasil, 2018

Enquanto isso, só posso concluir, em breves linhas, que render homenagem a Kpänsau Na Ysna é mais do que homenagem. É devolver louros a quem realmente merece. E é, sobretudo, um olhar profundo em direção ao resgate da nossa história.


M’bana N’tchigna, Mestre em Políticas Públicas.

Fonte: página pessoal de M’bana N’tchigna, no Facebook > 6 de dezembro de 2025.

(Revisão / fixação de texto, links, itãlicos, parênteses  retos, edição de imagem: LG)


2. Comentário do editor LG:

M'bana N'tchigna é um "intelectual balanta da diáspora", que estudou e vive no Brasil.

(i) Perfil académico e profissional: formação: possui licenciatura  
em Filosofia, bacharelado em Teologia e mestrado em Políticas
 Públicas (Dissertação de 2017: "A educação no processo de libertação 
da Guiné-Bissau: a percepção de Amílcar Lopes Cabral");

(ii) Atividade Principal: é (ou foi professor do ensino secundário, onde leciona(va) a disciplina de Filosofia;

(iii) Residência: vive em Vila Velha, Espírito Santo, Brasil. 

(iv) Temas de interesse: etnia Balanta: é um notável representante da etnia Balanta na diáspora, sendo autor do blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora"; tem escrito sobre o tribalismo, a cultura,a  história, e as questões sociopolíticas que afetam os Balantas e a Guiné-Bissau.

(v) História e memória: M'bana N'tchigna tem procurado preservar a história e as histórias, não escritas, do seu povo, como esta, sobre Kpänsau Na Ysna  ou Pansau Na Isna (1938-1970),  um dos  "heróis da liberdade da Pátria" cujos restos mortais repousam no panteão nacional, na Fortaleza da Amura, em Bissai. (A sua principal fonte de informação sobre este caso foi o  seu tio N'tcháagnň, que lutou ao lado de Pansau na Isna, na ilha do Como, faleceu em 2006).

(vi) Questões nacionais: tem escrito sobre temas cruciais para a Guiné-Bissau, como a produção agrícola (nomeadamente o arroz) e a necessidade de erradicar a fome e a pobreza.

M’bana N’tchigna  tem utilizado as redes sociais  para dizer o que pensa do  futuro e d os desafios políticos, económicos e sociais do seu país. Tem página no Facebook, Mbana Ntchigna (donde reproduzimos esta versão, mais recente, sobre o  "herói do Komo",   em registo de "conto popular  africano") (*****)
_________________

Notas do editor LG:

(*)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (1938-1970) (Luís Graça)


(**) Vd. Symes, Peter (2000). «The Bank Notes of Guinea-Bissau») (ogionalmente publicado nio International Bank Note Society Journal, .Volume 39, No.1, 2000). (Revisto e atualizado em novembro de 2000).

sábado, 6 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27499: A nossa guerra em números (47): mais de 2/3 do consumo, do valor de vendas em junho de 1970 (n=89 contos), na cantina, da CCAV 2483, em Nova Sintra, foi em álcool e tabaco (Aníbal Silva / Luís Graça)





Imagens de bebibas alcoólicas que só podem ser "(re)vistas" por antigos combatentes, tudo rapaziada com mais de 18 anos...  A saudade não paga imposto, por enquanto... Fonte;: arquivo da Tabanca Grande.




Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradasa da Guiné (2025)





Documento  nº 1 > Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 > 30 de junho de 1970 : Resumo do balancete da cantina

A cantina de Nova Sintra, que era "democrática",  isto é,  "comum" ( aberta a oficiais, sargentos e praças), ao tempo da CCAV 2483 (1968/70), facturou 89,4 contos nesse mês de junho de 1970.

Recorde-se que a CCav 2483 assumiu, em 7mar69 a responsabilidade do subsector de Nova Sintra, com um pelotão destacado em S. João, até 31mai69, rendendo a CArt 1743. Em 23set70, foi  rendida pela CCav 2765, sendo transferida para Tite, a fim de substituir a CCav 2443, na sua função de intervenção do sector, cumulativamente com a responsabilidade da quadrícula. Em 14dez70, foi rendida pela CCav 2765 e recolheu a Bissau para o embarque de regresso. 

Portanto, em junho de 1970 o mercado do nosso  "cantineiro" Aníbal Silva andaria  à volta dos 160 militares (o efetivo normal de um companhia de quadrícula).

Não havia concorrência ali á volta (nem "bajudas" para distrair a vista), o Aníbal nem sequer precisava de promover os seus produtos: a rapaziada,  sempre sequiosa, e com algum poder de compra,  só queria é que os abastecimentos mensais não falhassem. E,  ainda por cima, já "velhinhos", a seis meses de terminar a comissão. Não havia população local nem milícia. Era um "bu..,rako", Nova Sintra, quem lhe pôs o nome devia ter um grande sentido de "humor... negro".

Em 1 de julho de 1970, em Nova Sintra estavam 3 Pel / CCAV 2483, 1 Pel / CCAV 2443 e 1 Esq Pel Mort 2114. Mas alguém sabia lá onde ficava Nova Sintra ?|... Nem sabia nem queria saber...











Documento  nº 2 > Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 > 30 de junho de 1970  > Balancete da cantina


 A cantina, nesse mês de junho de 1970, vendeu artigos no valor de 89,4 contos (o que convertendo para preços de hoje são 30,7 mil euros).. Bom negócio, mil euros por dia.

 Cada militar gastou, em média 560 escudos (arredondando) (=192 euros). O que era muito dinheiro, em especial para as praças. 

Mas o "sargento da cantina", e vagomestre, o nosso camarada Aníbal José da Siva, ex-furriel mil SAM, tem uma explicação que parece razoável: como o pessoal estava já próximo de ir para Tite (em setembro) antecipou o Natal, e fez mais umas compras "supérfluas" já a pensar na "peluda"... De facto, houve ao ao uísque, de tal se esgotarem os stocks da maior parte das marcas... E não foi  precviso fazer nenhum "Friday",,, Venderem-se 250 garrafas, do mais barato (Churtons, 47$00) ao mais caro (Long John, 86$00). Ainda sobraram 41... Boa parte destes artigos (bebidas importadas, mais caras na metrópole, eram para guardar e levar para casa).

Mas o que dizer da cerveja ? Quase 31 contos de cerveja é muita cerveja:  o equivalente a 7,8 mil garrafas de cerveja de 0,33 l dá cerca de 2,6 mil (uma média de 16 litros "per capital"... num só mês).

Com base nos preciosos elementos que o Aníbal Silva nos forneceu, há já alguns meses, respeitantes ao balancete da cantina de que ele era o gerente (juntamente com o alf mil Vasco César Tavares S. Silva), pudemos apurar alguns números sobre o nosso provável consumo de bebidas alcoólicos e de outros bens (como o tabaco, a coca-cola, o leite achocolatado e o leite estirilizado, outros produtos alimentares, etc.). (Claro, faltam-nos termos de comparação: outras cantinas, outros meses.)

De acordo com os gráficos nºs 1 e 2, o álcool (cerveja, vinho, bebidas destiladas, com o uísque, o gin, o vodca, o brandy...) representou nesse mês mais de  50% das vendas.

O consumo de coca-cola também é notável: quase 2,8 mil latas num mês (19 latas "per capita"), 

Já agora comparem-se, a título exemplificativo, os preços particados, por unidade e tipo de artigo:

  • Cerveja 0,33 l > 4$00
  • Cerveja 0,66 l ("bazuca")  > 6$50
  • Coca-cola (importada, em lata) > 5$00
  • Água de Castelo > 7$00
  • Maço de tabaço > 2$50 ("Porto", 3$00)
  • Uísque (importado) > c. 50$00 (novo)
  • Leite c/ cacau > 5$00
  • Laranjada / Sumol > 6$00
  • Lata de polvo ou sardinhas de conserva > 6$00
  • Creme p/ barbear >  7$00
  • Sabão azul > 13$00

A seguir à cerveja, uísque e coca-cola (em termos de valor de vendas),  o tabaco aparece em quarto lugar... Venderam-se nesse mês 3481 maços de cigarro e 1253 caixas de fósforo. Aqui o "Porto" deu  uma cabazada ao "Sporting": 1706 contra 1!

A seguir ao "Porto", as duas marcas mais consumidas foram o SG (n=886) e o Português Suave (n=677).

O leite (com cacau e estirilizado), a par das conservas, também tinha alguma expressão: 9% do total do valor das vendas... O resto eram os artigos de higiene e limpeza... 

Já não me lembro se a tropa nos fornecia papel higiénico: em Nova Sintra, nesse já longínquo mês de junho de 1970, só se venderam 12 maços de rolos de papel higiénico  (a 6$00 cada um!).. 

Como eu dizia, com "humor negro" em Bambadinca, na noite de 26 de novembro de 1970, depois da tragédia da Op Avencerragem Candente, a malta limpava (com a sua licença!) o cu às folhas do RDM...

Obrigado, Aníbal, gastei umas horas à volta dos teus papéis, mas diverti-me. É bom para quem tem insónias. Sáo seis horas da manhã. Vou voltar para a cama. 

PS - Aníbal, vou passar o Natal à Madalena, como habitualmente, desde há 40 anos. Temos que nos conhecer pessoalmente. Depois dou-te  um toque.

(Documentos: arquivo do Aníbal Silva | Infografias e legendas: LG)



1. Mensagem do Aníbal José da Silva, ex-fur mil SAM, CCAV 2583 (Nova Sintra e Tite, 1969/1970):

Data - 08/05/2025, 17:49
Assunto -  Balancete da cantina. Nova Sintra, junho de 1970

Caro Luís Graça

Após a nossa conversa telefónica de hoje, fui ao meu arquivo verificar se tenho algo mais para acrescentar, ao teu maravilhoso estudo, relativo a quantidades e preços dos artigos vendidos nas cantinas em tempo de guerra (*).

Dos quatro balanços em meu poder, só o de junho de 1970, tem o anexo relativo aos artigos vendidos, que junto envio , bem como os restantes, estes para teu conhecimento. 

Então, constato que em junho desse ano se vendeu quase o dobro da cerveja vendida em maio (4.245 para 7171). Não vejo uma razão plausível que o justifique, até porque, ao consultar a História da Unidade, verifico não ter havido atividade operacional para além do habitual. 

Creio haver justificação para o aumento das vendas do tabaco (2215 para 3481) e do whisky (61 para 250 garrafas), uma vez estarmos a dois meses de deixar Nova Sintra e o pessoal ter começado as compras para trazer para a metrópole. 

Face a estes números, provavelmente vais reformular o teu estudo. Noutro email vou enviar mais uns tantos anexo. (**)

Um abraço de amizade

Aníbal Silva 



Guiné > Região de Quínara > Mapa de São João (1955) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bolama, São João, Nova Sintra, Serra Leoa, Lala, Rio de Lala (afluemte do Rio Grande de Buba)


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26769: A nossa guerra em números (29): nos quartéis do mato, dentro do arame farpado, a malta consumia em média, por ano e "per capita" , 21 litros de... álcool puro (14 em vinho, 5,4 em cerveja, 1,6 em bebidas destiladas)... (Aníbal Silva / Luís Graça)

(**) Último número da série > 24 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27461 A nossa guerra em números (46): de 1958 a 1974, em 25 cursos (CEORN / CFORN), foram incorporados 1712 cadetes da Reserva Naval, 3/4 dos quais entre 1967 e 1974; cerca de mil oficiais RN foram mobilizados para o ultramar - Parte III

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27398: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte V: preços só para meninos ricos ou gente da classe média-alta... Hoje daria para dar a volta ao mundo em 100 dias.





Fotogramas do filme de San Payo (1936), O I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente.
Os dois primeiros (minuto 35) mostram a praxe na passagem pelo Equador. A "cerimónia" é presidida pelo então popularíssimo ator do teatro de revista, Estêváo Amarante (Lisboa, 1894 - Porto, 1951). No último fotograma mostra-se o grupo musical do Mindelo que animou o baile oferecido aos "excursionistas" no Liceu Infante Dom Henrique.

Cortesia de Cinemateca Digital, documentário "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente", realizado em 1936 por San Payo. Disponível aqui (*)

http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=1378&type=Video



1. Ainda  a propósito do I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (de 10 de agosto da 4 de outubro de 1935), e do documentário, de  longa metragem (c. 1 hora e meia), que foi feito por encomenda  do Secretariado Nacional de Propaganda (**)...

Já aqui o dissemos: o navio a vapor "Moçambique", da CNN, levava a bordo uma exposição de produtos de empresas portuguesas. Isso foi uma fonte de receita, adicional, a par de outras formas de publicidade paga. Uma terceira fonte de receita foram as  inscrições dos excursionistas (cerca de 200, dos quais 7 dezenas de estudantesm sendo o resto familiares, professores, funcionários públicos, civis e  militares, etc.)

A viagem contou ainda com um subsídio governamental de 150 contos.

Acrescente-se que o filme (**) acabou por ser uma deceção, não chegando a passar nas salas de cinema: ao que parece, o filme da viagem terá sido projectado apenas uma vez, no S. Luiz, em Lisboa, a 29 de junho de 1936, e apenas para os participantes do cruzeiro. 

A realização foi entregue a um fotógrafo, de talento, mas próximo, política e ideologicamente, do regime do Estado Novo. O San Payo não era propriamente um grande cineasta. Era sobretudo um bom retratista.

De qualquer modo, o leitor hoje tem curiosidade em saber mais alguns pormenores sobre o Cruzeiro, tais como o número e o tipo de passageiros (Quadro I) bem como o preçário, por classes (Quadrto II):

Quadro I— Passageiros oficialmente inscritos  no I Cruzeiro de Férias às Colónias, por categoriaqs  (entrre parènteses o número de mulheres)

  • Estudantes = 69 (6)
  • Professores =  19 (2)
  • Família / Convidados = 93 (31)
          Total = 181

 Fonte: Roteiro do I Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, iniciativa do ‘Mundo Português’ , 1935, Biblioteca Fernando Pessoa, pp. 26-31. (cit por Sílvia Espírito-Santo (2019: 109).


As mulheres (tiranda as da classe alta) ainda viajavam pouco em 1935: neste cruzeiro representam apenas 21,5% do total de 181 passageiros. 

 O número total de passageiros rondaria os 200, segundo o filme de San Payo (1936). Mas este número é controverso. Entre eles, incluia-se o popular ator do teatro de revista, Estêváo Amarante (Lisboa, 1894 - Porto, 1951).

Quanto ao preço dos bilhetes... Bom, havia 3 classes, como era normal na época. Os nossos emigrantes viajavam em 3ª classe.

Quadro II— Tabela de Preços para o  I Cruzeiro de Férias às Colónias por  Classes (Alunos e professores;  Família de alunos e de professores)

Classes: Alunos e professores / Valor

  • 1.ª  > 3.000$ 
  • 2.ª > 2.500$
  • 3.ª  > 2.000$ 
Classe: Família de alunos e de professores / Valor

  • 1ª > 3.500$ 
  • 1ª > 3.000$ 
  • 3ª > 2.500$

Fonte: A. Cunha, «Os cruzeiros de Férias às colónias», in Mundo Português, vol.1, 1934, p.  306  (cit por Sílvia Espírito-Santo (2019: 105).

Segundo o organizador,Augusto Cunha, o  preço do bilhete não reflectia os preços de mercado dado que o Cruzeiro beneficiava de facilidades concedidas pela Companhia Nacional de Navegação e pelo Caminho de Ferro de Benguela, além do subsídio estatal.

2. O que se comprava, em Lisboa, em 1935 com 150 mil escudos portugueses (1 milhão de euros a preços de hoje) ? Qual era o salário médio, na função pública ?

Com a ajuda da assistente de IA /ChatGPT, apurámos que era um "pipa de massa"...Se não, vejamos:


(i) O poder de compra de 150 contos em 1935 (1 conto= 1000 escudos)

Com base em estudos do INE, Banco de Portugal e cálculos de historiadores económicos (como Jaime Reis, Pedro Lains, Nuno Valério), 150 mil escudos em 1935 equivaleriam grosso modo a cerca de 1 milhão de euros de 2025 ( um valor coerente com o índice de preços ao consumidor e a evolução dos salários reais)

(ii) O que se podia comprar em 1935 com este dinheiro




Conclusão: om om 150 000 $00, uma família podia: (i) comprar uma casa confortável em Lisboa
e mobilá-la, (ii) comprar um automóvel e (iii) ainda ficar com capital investido,,, Era um valor
de elite, correspondente ao rendimento de um médico abastado, industrial ou proprietário rural.


(iii) Salários na função pública (Lisboa, 1935)



Conclusãoo: 150 000 $00 correspondiam a 5 a 10 anos de salário de um diretor-geral,ou 20 a 30 anos de salário de um funcionário médio; 50 anos do "salário mínimo" (figura jurídico-económica que ainda não existia)

(iv) Síntese comparativa (entre 1935 e 2025) (1$00=6,666 euros, em termos de poder de compra)

  • Salário médio anual na função pública > c. 6 contos = c. 40 mil euros | Idêntico ao rendimento de um indivíduo da classe média atual (em Portugal);
  • 150 contos = c. 1 milhão de euros | Fortuna pessoal.
Podemos concluir, sem exagero, que não eram módicos os preços cobrados aos estudantes, professores e famílias...Pelas nossas contas. e considerando que um 1 escudos em 1935 valeria hoje 6,666 euros, esse cruzeiro de menos de dois meses custaria, para um estudante ou um professor, o seguinte, conforme a classe escolhida: 
  • 20 mil euros (1ª classe); 
  • 16,7 mil euros (2ª classe); 
  • 13, mil euros (3ª classe).

Convenhamos, terá sido um cruzeiro só para meninos ricos ou de classe média-alta (como o Ruy Cinatti, por exemplo). Até porque os filhos do povo náo frequentavam, nessa época, o liceu.
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Fonte consultada: 

Sílvia Espírito-Santo: O 1.º Cruzeiro de Estudantes às Colónias (1935): 'Uma Excursáo Onde Havia de Tudo'. In: Castro, Maria João, coord. Empire and Tourism: An Anthology of Essays. 1.ª ed., Lisboa, abril 2019. Universidade Nova de Lisboa, pp. 103-112. https://run.unl.pt/bitstream/10362/61873/1/Impe_rio_e_Turismo_MIOLO.pdf

(Pesquisa: LG + Assistente de IA / ChatGPT)
(Revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 4 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27386: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte III: um documentário de hora e meia, que diz muito (até pelo que omite) sobre o que era o "ultramar português" há 90 anos

(**) Último poste da série : 6 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27391: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte IV: impressões de viagem do Ruy Cinatti: Mindelo e Bolama

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27340: A nossa guerra em números (42): com um "per diem" (verba de alimentação diária) de 24$50 (hoje 4,10 euros) dava para fazer uma... ometela simples mas saborosa!



Cartum: O "per diem"

Fonte: LG + ChatGPT (imagem gerada pela IA, 
sob instruções de LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



1. Recorde-se que cada militar, do soldado ao general, tinha direito no nosso tempo, no CTIG,  a um "per diem" de 24$50 (=4,10 €, a preços de hoje). Para se alimentar.

O Estado pagava a "ração diária" dos seus soldados  em géneros. 

Nunca vi isso escrito em parte nenhuma, o valor da verba para a alimentação diária. Nem com a ajuda da "Sabe-Tudo"... Mas recordo-me que, no meu tempo (1969/71), um soldado da CCAÇ 12, do recrutamento local, uma praça de 2ª classe (!) ganhava 600 escudos por mês, mais o tal "per diem" de 24$50. 

Por ser "desarranchado": os nossos camaradas guineenses comiam a sua "bianda" na tabanca  (havia duas em Bambadinca, uma a mais antiga, entre o quartel e o rio Geba; e outra, um reordenamento, a oeste,  a Bambadincazinho; ou seja, eles viviam com as suas famílias fora do perímetro de arame farpado...). 

Quando iam para o mato, em operações, também não tinham direito a ração de combate, por serem "desarranchados":  levavam um lenço atado com um mão  cheia de arroz cozido e nozes de cola para aliviar a fome e a sede... 

De resto, o exército (ou o serviço de intendência) não tinha rações de combate para os soldados portugueses muçulmanos (pelo menos no meu tempo). 

Em suma, um soldado guineense de 2ª classe recebia em média 1300 escudos ("pesos"), o que para um tabanqueiro guineense era "manga de patacão" naquele tempo.  Era quanto ganhava um 1º cabo de transmissões, metropolitano.

 Vejamos: 1300$00 em 1969 seria equivalente a 466,00 euros, a preços de hoje, dava para comprar dois sacos de arroz, 200 kg, na loja do Rendeiro, em Bambadinca, e ter duas mulheres.

O vagomestre com esses 24$50 do "per diem" (não sei se a tropa usava esat expressão latina, que quer dizer "por dia"...)  tinha que nos dar de comer e beber,  a nós, metropolitanos:  pequeno-almoço, almoço e jantar.  Não havia lanche nem ceia... 

Os petiscos, o leitão, o cabrito, o vinho verde,  a cerveja,   o uísque, etc.,  isso era tudo por conta do "freguês". A tropa não pagava esses luxos.  "Tainadas e berlaitadas  o nosso primeiro  que não pagava" (dizia, com graça, o nosso 2o. sargento, o saudoso José Manuel Rosado Piça, a exercer funções de primeiro).

Parece que também tínhamos direito a uma dose....de bagaço.  Mas eu nunca o vi nem o cheirei em parte nenhuma.

Em 17 de junho de 1974, na CCS/BART 6523/73 (Nova Lamego, 1973/74), segundo a relação dos víveres existentes (*), o "per diem" dava para "comprar" o equivalente a uma dúzia... de ovos (=24$30) (importados da metrópole, custavam tanto como uma garrafa de vinho verde de marca!)...

Era, pois, um luxo fazer uma generosa omeleta (que tinha que dar.... para  3 refeições)!...Já não dava para juntar umas rodelas de chouriço (1 kg = 64$80,  ou 10,85 euros, a preços de hoje).

E se quisesses beber um copo ? Quanto representava a tua ração diára de vinho no "per diem" ?

2. Façamos as contas:

(i) tinhas direito a dois copos de vinho por dia (tinto, mais frequentemente, branco às vezes, e oxidado), o equivalente a 0,25 dl em junho de 1974;

(ii) valor, de resto, que ainda está por confirmar: um ano depois, a ração diária de vinho, em Lisboa, era de 0,40 l, para qualquer militar dos 3 ramos das Forças Armadas); (**)

(iii) o preço de um litro de vinho, em Nova Lamego, era de 11$60 (o equivalente hoje a 1,94 euros);

(iv) o quarto de litro ficava, portanto, por 2$90 (=0,485 euros);

(v) se considerarmos o valor mais provável da ração diária de vinho,  no ultramar, no fim da guerra, que seria os 0,4 l (1 copo de 2 dl  a cada refeição principal), terias gasto 4$60 do teu "per diem"  (à volta de um 1 euro, sobravam-te 3,1 euros para o conduto...).

3. Não te assustes: em 1969/71, a verba para a alimentação diária da rapaziada do Exércita  já era insuficiente...No relatório anual do Comando-Chefe referente a 1971 já se pede a atualização da verba de alimentação diária para os 33$00 (!). Claro, no Terreiro do Paço devem ter-lhe feito orelhas moucas ou mandado apertar o cinto.

Com certeza que o gen António  Spínola não estava a fazer "humor de caserna", como nós aqui, no blogue...

De facto, a inflação , galopante, desde o início da década de 1970 (e que se vai agravar em finais de 1973) (**), já estava a baralhar as  contas do vagomestre, do 1º sargento, do capitão e por ai fora até ao  governador e comandante-chefe ,o gen António Spínola,  em Bissau,  e no topo da cadeia o ministro das Finanças, em Lisboa (que já ninguém sabe quem era) ... 

Pois é,  camaradas, é a economia (e o moral das tropas...) que faz ganhar ou perder guerras... É como na política, "o pão e o circo" é que fazem ganhar ou perder eleições...

E tu, camarada Zé Saúde (que foste vagomestre por um mês, se bem percebi) (***), com um "per diem" de 24$50, já lerpavas... em Nova Lamego, nessa altura.  De larica, galga, fomeca. (Não sabemos, nem isso agora é relevante,  se, em junho de 1974, a verba para a alimentação da tropa no CTIG ainda eram os desgraçados 24$50 diários "per capita", para o soldado e para o general, para o branco e para o preto, o "tuga" e o "nharro"...).

O que vale é que já estavas de abalada para Lisboa... (Recorde-se que o teu batalhão "comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuadas nos subsectores de Madina Mandinga e Cabuca, em 20ag074,  e de Piche, em 29ag074", e que em 7 de setembro já estavas, em Lisboa, a caminho de Beja para comeres as tuas saudosas  migas...

Mas pergunto-te: quantas vezes passaste sede ? quantas vezes deixaste de beber a tua pinga ? e porquê ?

Nunca se davam explicações na tropa. Especulava-se: atrasou-se o barco, ou foi atacado em Mato Cão, acabou-se ou estragou-se o vinho que havia no barril de 100 litros, ou no bidão metálico de 200/210 litros, etc... (Estes bidões metálicos são do teu tempo, Zé Saúde, não são do meu, enfim "modernices" da Intendência, ou então já indícios da crise dos tanoeiros.)

E não havia Jesus Cristo para fazer milagres, ele  que não chegava para todas as encomendas e nunca parou (nem reparou) em Nova Lamego, para fazer o milagre da conversão da água em vinho e da multiplicação dos pães!...

Mas alguém terá ficado no bolso com os teus tostões, os teus cêntimos, do teu mísero "per diem"... 

4. Sabemos que a 3ª Cart / BART 6523 tinha, em 18/6/1974, na despensa da CCS, à sua guarda,  um stock de vinho na ordem dos 1145 litros... Se multiplicares por 11$60, dava a bonita soma de 13 contos e mais uns trocos: 13.282$00 (= 2593,00 euros, a preços de hoje).


Essa 3ª Companhia deveria ter uns 160 homens, mais coisa, menos coisa... Famintos, sequiosos...Se todos bebessem (e não houvesse coluna de reabastecimento), só teriam vinho para menos de um mês:

(i) 29 dias, se a  ração diária de vinho fosse de 0,25 l (2 copos pequenos);

(ii) 18 dias, se a ração diária fosse de 0,40 l (2 copos de 2 dl cada, como nos parece mais provável, até de acordo com o volume do copo da tropa que nos foi distribuído com o cantil).

De qualquer modo, havia apenas  vinho para menos de um mês... A menos que fosse  "batizado"... coisa que o Aníbal Silva, em Nova Sintra, desmente categoricamente. 

Enfim,  era mais um quebra-cabeças logístico:
  • tinha-se que ir buscá-lo, ao vinho,  a Bambadinca, onde havia o destacamento da Intendência mais próximo, noutra ponta da zona leste (a estrada já era alcatroada, passando por Bafatá, ao menos isso);
  • pensando em termos de recipientes, 1145 litros de vinho eram 5 bidões metálicos de 200 litros + 1 barril de 100 litros e uns tantos garrafões de 5 litros  ( parece que em 1969/71 já não se viam garrafões de 10 l)...

Aníbal Silva
Falando, por telemóvel com o Aníbal Silva, o ex-fur mil vagomestre, da  CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), um rapaz do meu tempo, dizia-me ele que a malta, em Nova Sintra  "estafava" um barril de 100 litros em menos de 3 dias. 

Noutros sítios, a malta queixava-se que  às vezes o raio do vinho oxidava--se, envinagrava-se, estragava-se... Ou então evaporava-se, sumia-se, e ninguém sabia como... "Obra de profissionais" ? Para quê se não havia "mercado local" ou "regional" ? !... 

Não seria para revender à população,  que os de Nova Lamego, por exemplo,  não podiam beber "água de Lisboa", por serem muçulmanos... E em Nova Sintra não havia população. Muitas vezes era "pró petisco" dos "tugas" (sendo o cozinheiro sempre convidado)...

De qualquer modo, nada como falar com números ! (***). E sobretudo ouvir as histórias dos nossos tão bravos quão pacientes vagomestres, como o Aníbal Silva, que é catedrático nestas matérias...

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)

(**) Vd. este excerto do Relatório Anual do Cmd-Chefe das FAG, referente a 1971:

 (...) "Intendência

(i) Pessoal

A actual organização do Serviço de Intendência do CTIG é manifestamente deficiente. OS QO carecem de actualização, conforme proposta já apresentada por aquele Comando.

É premente a necessidade de montar no TO um Apoio Avançado eficiente, com níveis adequados, por forma a descentralizar o apoio logístico do serviço, descongestionando os órgãos-base. Para isso reconhece- se a necessidade, já há muito apresentada, de um reforço dos órgãos do Serviço de Intendência do CTIG.

(ii) Víveres

Ao longo do ano verificou-se uma melhoria do reabastecimento de víveres frescos às Unidades do TO pela utilização do sistema de reabastecimento aéreo com o lançamento em paraquedas.

Verificou-se também uma melhoria nos meios de frio nos órgãos-base avançados e Unidades, que permitiu que o reabastecimento de frescos às Unidades se processasse em condições mais eficientes.

(ii) Verba de alimentação

Em resultado do aumento do custo de géneros de 1a necessidade e ainda do aumento do custo dos transportes da Metrópole para a Província, tem--se vindo a agravar o custo da alimentação. Nesta conformidade e com vista a não baixar o nível de alimentação das tropas, toma-se necessário actualizar a verba diária actual para um valor da ordem dos 33$00" (...)

Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 59. 

sábado, 20 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27232: Felizmente ainda há verão em 2025 (35): os vinhos verdes que aprendemos a gostar na guerra: Casal Garcia, Aveleda, Gatão, Três Marias, Lagosta, Palácio da Brejoeira (...sem esquecer o Mateus Rosé, da Sogrape)


Rótulo (histórico) do vinho verde Gatão, da Sociedade dos Vinhos Borges & Irmão Lda. Um dos vinhos verdes que consumíamos na Guiné, em garrafa tipo cantil. A sua história remonta a 1895. Deve ser uma das marcas mais antigas.


Casal Garcia, da Aveleda, Penafiel. O mais conhecido na Guiné, ao tempo da guerra colonial. A marca nasceu em 1939. È a marca de vinos verdes mais vendida em todo o mundo.



Outro vinho verde apreciado, em garrafa tipo cantil, o "Três Marias", das Caves Casalinho,  Vizela A empresa foi fundada em 1944.  Esta marca foi lançado em 1956.



Vinho verde branco, "Lagosta", da Real Companhia Vinícoal de Portugal. Rótulo.  É uma das marcas mais antigas (1902). POertecne hoje à Enoport Wines.




Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 (1972/73) > Legenda: "Nesta foto está o Figueiral em frente (ao meio) de óculos escuros e a comer uma cabritada com a garrafa de Casal Garcia à frente. Eu estou do lado esquerdo da foto (...).. De costas para a foto está o Pinto Carvalho. Do lado direito da foto, em primeiro plano está o alferes Bastos, o homem do obus (alf de Artilharia) e logo a seguir, portanto à esquerda do Figueiral, está um segundo tenente de que não me recorda o nome. Era habitual haver um abastecimento via barco por mês e que vinha sempre escoltado pela Marinha, ficando o Oficial instalado lá no quartel [em Bedanda, na margem esquerda do Rio Cumbijã]" 

Foto (e legenda): © António Teixeira (1948-2013) Todos os direitos reservados. Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné (2013). 




Hélder Sousa, ribatejano do Cartaxo
ex-fur mil de trms TSF
 (Piche e Bissau, 1970/72)

 
1.  O verão está a chegar ao fim... Acaba amanhã, no calendário; dia 22, segunda feira,  já é outono (astronómico), prolongando-se até 21 de dezembro.

As vindimas também acabaram en Candoz. Já fizemos o nosso vinho. Já nas cubas de inox. E ainda entregámos maos 3 toneladas e tal  de uvas na Aveleda, em Penafial,  a  empresa de que somos fornecedores há muitos anos...Uvas de altíssma qualidade (arinto ou perdená, como se diz aqui, mais azal)... Sem um único cacho podre ou seco... Estão com  13,8 graus de álcool provável, segundo as medições da Aveleda.

Estamos, na região dos vinhos verdes,  ainda em plena azáfama... Ainda há vizinhos a vindimar. Fica bem, por isso,  falarmos um pouco dos vinhos verdes, se não se importarem os nossos leitores... Vinhos verdes de que só ouvimos falar (e provar), muitos de nós, na Guiné... 

(...)  "De Piche, em termos de Messe também não me lembro como era. Sei que cá fora, no Tufico, bebia cerveja. Mas no Quartel lembro-me bem de "estrear" Alvarinho "Palácio da Brejoeira". 

Nunca tinha bebido (para mim 'vinho verde' era Casal Garcia e similares) e isso foi possível porque um dos Capitães era uma pessoa de gostos refinados (até mandou vir, a suas custas, um aparelho de ar condicionado que mandou montar no quarto)  e fez com que fossem fornecidas algumas caixas e, como uma delas se "partiu",  lá tivemos a sorte (eu, o vagomestre cúmplice e mais uns dois ou três esforçados companheiros) de experimentar esse vinho. E gostei! (...) (*)

2. "Palácio da Brejoeira", alvarinho (só para capitão de "gostos refinados" e oficiais superiores...) e "Casal Garcia" (para alferes e furriéis milicianos): já temos duas marcas de "vinho verde" que se consumiam no CTIG.

Aliás, foi na Guiné que muitos de nós,"mouros",  "sulistas", começaram a apreciar o vinho verde branco: quem ainda não se lembra de marcas históricas, para além do Casal Garcia e do Palácio da Brejoeira ? Quem não se lembra  do Aveleda,  Casal Garcia, Três Marias, Garcia,  Lagosta, Gazela, Casal Mendes, etc. ?

A malta do Norte, de Minho e Entre-Douro-e-Minho, estava habituado ao "verde tinto", boa parte dele de fraca qualidade,  proveniente de castas locais como o  bom "vinhão" mas também de "produtores diretos", como o Jacquet, ou Jaquê, e o "americano",  hoje completamente banidos...

3. Acaba de se assinalar os 117 anos da publicação da Carta de Lei de 18 de Setembro de 1908, que instituiu a Demarcação da Região dos Vinhos Verdes, uma das mais antigas na Europa, a segunda em Portugal, a seguir à Região Demarcada do Douro, a mais antiga região vitícola regulamentada do mundo (remonta a 1756).

Lê-se no novo portal sobre os Vinhos Verdes, da CVRVV (Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes), que "curiosamenmte, ao contrário da imagem que hoje apreciadores de todo o mundo têm do Vinho Verde, terão sido, sobretudo, tintos, os vinhos que começaram por trazer fama à região".

Foi a partir de finais do século XIX que os vinhos brancos, elaborados a partir das castas locais, começaram a ser apreciados nos grandes centros urbanos.

Foi preciso esperar pela "guerra colonial", para os vinhos brancos ganhassem uma crescente quota quer na produção, quer na exportação. Os vinhos verdes tintos ficaram progressivamente remetidos a um consumo maioritariamente local (o que durante muitos anos também foi uma "injustiça": hoje recomeçam a ser "descobertos", têm de resto uma enorme importância na culinária local...

Decisiva, neste processo de "renascimento" dos vinhos verdes brancos , foi "a investigação efetuada a partir dos anos 60 e 70, que não apenas estudou em profundidade as variedades brancas autóctones (castas como Loureiro, Trajadura, Arinto ou Alvarinho, por exemplo), como revolucionou a forma como se plantavam e conduziam as vinhas na região, fazendo a transição de uma viticultura de subsistência, focada no mercado regional, para uma viticultura profissional, orientada para o mercado nacional e de exportação" (Fonte: portal da CVRVV).

Os vinhos verdes brancos portugueses começaram a ganhar maior projeção, inclusive no Ultramar, a partir dos anos 60 e 70, momento em que marcas como Aveleda, Casal Garcia, Gatão, Lagosta, Três Marias e Palácio da Brejoeira se tornaram presenças constantes em restaurantes, cantinas e messes militares do império colonial, acompanhando também o Mateus Rosé—embora este último não seja técnica e legalmente um vinho verde.





Na cantina de Nova Sintra, em meados de 1970, o vinho verde (da Aveleda)  custava à volta de 8 euros (a preços de hoje), o equivalente a metade de um garrafa de uísque bovo (16 eruos), segundo documentos disponibilizados pelo Aníbal José Soares da Silva, ex-fur mil vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70). 

Em 30 de junho de 1970, havia 221 garrafas de vinho verde em "stock", no valor de cerca 4,7 mil escudos (preço médio de custo=21,2 escudos). Uma refeição em Bafatá (bife com batatas fritas e ovo a cavalo) andava à volta dos "vinte pesos".

Nesse mês de junho de 1970 venderam-se 4 garrafas de Mateus Rosé, a 20$50 cada uma (de 15 requisitadas em armazém). Mas de 17 garrafas de vinho Aveleda (requisitadas, em armazén) não se vendeu nenhuma...

Fonte: Excerto de Balancete da Cantina, 30 de Junho de 1970, CCAV 2483, "Os Cavaleiros de Nova Sintra".


4. Marcas icónicas no Ultramar

Aveleda e Casal Garcia (produzidos pela Aveleda) destacaram-se por serem vinhos leves, frescos, fáceis de beber, com baixo teor alcoólico e enorme aceitação em climas quentes, como os de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Gatão, Lagosta. Três Marias, etc., tornaram-se marcas populares, apostando em vinhos brancos jovens, relativamente acessíveis em África...

Palácio da Brejoeira consolidou-se como símbolo de prestígio, sobretudo o seu Alvarinho, sendo mais apreciado por elites e em ocasiões especiais.

Mateus Rosé, embora não seja vinho verde, fez história como um vinho jovem, acessível, e amplamente consumido no Ultramar e internacionalmente (era serviço nba TAP), alcançando notoriedade após as décadas de 50 e 60 em restaurantes, missões diplomáticas e unidades militares portuguesas em África.

Lembro-me de outras marcas em Bambadinca, no bar de Sargentos (que era bem fornecido): Gazela, Campelo, Casal Mendes (das Caves Aliança, hoje Bacalhoa)... 

Nunca bebi o "Palácio da Brejoeira", alvarinho: era raro e caro... Mesmo assim os verdes brancos masi correntes não eram baratos: andavam, pelos 25 escudos nas nossas messes e cantinas (e, se bem recordo, 35, nos restaurantes em Bafatá). Não se bebiam todos os dias, longe disso: bebia-se em dias especiais, festas de aniversário, por exemplo.

Mas os nossos leitores, camaradas desse tempo, têm por certo recordações que vão partilhar connosco.

(**) Último poste da série > 16 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27222: Felizmente ainda há verão em 2025 (34): Mata-mouros e outros apelidos e alcunhas, raros, exóticos, pícaros, brejeiros, etc.