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sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26398: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (1): o caso o cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, cmdt da CART 1613 (Guileje, 1967(68), morto em São João, em 24/12/1966




guardião das memóras da CART 1613 e de Guileje (1967/68). 
Foi um histórico (e um entusiasta) do nosso blogue
 e o primeiro a "deixar-nos"...  Tem mais de 80 referèncias.




Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 8.° volume: Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro I, 1ª ediçáo. Lisboa, 2001,  pág. 224


1. Houve vários casos de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", erro humano ou técnico, falha no manuseamento de arma de fogo, mina ou armadilha, etc,  ocorridos entre as NT, no TO da Guiné, e que originaram baixas mortais, tendo  invariavelmente sido tratadas, para os devidos efeitos (incluindo estatísticos) como "acidentes com arma de fogo". 

Trata-se de um "eufemismo", ou seja, um figura de estilo que usamos para, sem alterar o essencial do sentido,  encobrir, branquear, disfarçar ou atenuar factos, situações ou ideias  grossseiras, rudes, desagradáveis ou dramáticas, recorrendo a expressões mais suaves ("lerpar", por exemplo, em vez de "morrer", "levar um par de patins" em vez de "ser punido")...

O eufemismo é muito usado pelos seres humanos (não sei se os robôs já sabem usá-lo: depois de aprenderem a matar, aprenderão todo o resto). Os portugueses não são exceção. O eufemismo ajuda-nos a alijar a culpa, escamotear a responsabilidade, humanizar a tragédia, dourar a pílula, aligeirar a realidade, suportar o absurdo, fazer humor...e até "fazer amor" (outro púdico eufemismo).

No caso do meio militar, em tempo de paz ou de guerra, a expressão "acidente com arma de fogo" afeta menos o moral da tropa do que expressões ou vocábulos com "carga negativa" como fogo amigo, homicídio, suicídio., erro humano, falha técnica... Não sei como o exército, durante estes período de 1961/75, dava estas "funestas notícias" à família... De qualquer modo, o eufemismo também a ver com o pudor face à morte e sobretudo à "hipocrisia social".

Talvez por isso, por estas e outras razões, se prefirisse usar a expressão "acidente com arma de fogo" em vez  de "chamar os bois pelos nomes"...E no entanto as forças militares e militarizadas correm mais o risco de usar, indevidamente, as armas que estão à sua guarda... (Mas nós, convém dizê-lo,  não somos especialistas em ciências forenses, nem em justiça militar...)

Alguns destes casos já foram relatados aqui no blogue.. Vamos recapitulá-los, esperando com isso sistematizar esta matéria (que é melindrosa e dolorosa) e suscitar eventualmente novos contributos por parte dos nossos leitores.... Em tempo de paz ou de guerra, estes casos não chegam, em geral,  ao conhecimento público. Não chegavam ontem (nem hoje, apesar da liberdade de imprensa)...


2. Foram contabilizadas durante a guerra colonial (1961/75), no conjunto dos combatentes dos 3 ramos das forças armadas (e incluindo os do recrutamento local), em Angola, Guiné e Moçambique:

  • 10425 baixas mortais ("mortos"), por todas as causas (combate, acidente e doença),
  • a par de 31300 feridos graves (3 feridos graves por cada morto; 10 feridos, graves e não graves, por cada morto)
No TO da Guiné, esses números foram os seguintes:

  • 2854 mortos (dos quais 1717 em combate);
  • 9400 feridos graves.
"Excluindo as milícias", os mortos do Exército na Guiné foram os seguintes, discriminados por principais causas:

  • Ferimentos em combate = 1273 (58,5%)
  • Doença = 281 (12,9%)
  • Acidente com arma = 251 (11,5%)
  • Acidente de viação = 166 (7,6%)
  • Afogamento = 138 (6,3%)
  • Acidente de aviação = 2 (0,0%)
  • Outras causas  = 66 (3,0%)
  • Total= 2177 (100%)
(Fonte: adapt de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra em África". Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2021, cap. II, pp. 97 e ss.)

Pelo menos, cerca de 12% das mortes no TO da Guiné foram devidas a "acidente com arma de fogo"... 

Estarão aqui, nestes casos,  as situações, mais frequentes de falhas no manuseamento de minas, armadilhas, dilagramas,  granadas de LFog e de armas pesadas, disparos acidentais com pistolas, pistolas-metralhadoras, espingardas automáticas, erro humano ou técnico, etc.,  mas também "fogo amigo", homicídio, suicídio, automutilação...



3. O caso do cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz é, inegavelmente, um dos que podemos classificar como homicídio.

 O autor, confesso, do crime, o soldado Cavaco,   foi condenado em Tribunal Militar a 23 anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Vejamos, sumariamente, como tudo ocorreu.

Na vésperas da noite de Natal de 1966, uma tragédia vai ensombrar a história da CART 1613/BART 1896, a companhia que estava em IAO em São João, na região de Quinara, frente á ilha de Bolama, e que iria, seis meses depois, para Guileje (onde esteve, como unidade de quadrícula,  de junho de 1967 a maio de 1968). 

BART 1896, mobilizado no RAP2, Vila Nova de Gaia, esteve originalmente destinado a Angola. Tinha desembarcado em Bissau em 18 de novembro de 1966 (e regressaria à metrópole em 18 de agosto de 1968).  (Além da CCS, e da CART 1613, era formado ainda pela CART 1612 e CART 1614.).

No livro da CECA (8.° volume: Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro I, 1ª ediçáo. Lisboa, 2001,  pág. 224) diz-se que "o cap mil art com o nº mecanográfico 1036/C", de seu nome Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, a comandar a CART 1613, foi vítima  de "acidente com arma de fogo" (sic), ocorrido no aquartelamento de S. João (e não Cachil...), vindo a morrer a 24 de dezembro de 1966 no HM  241, em Bissau.(*)

 (Há aqui, parece-nos,  um erro a corrigir: O cap art Fausto Ferraz não era milicino, pertencia ao QO, e foi-lhe,  "a posteriori", feita a correção de antiguidade, ao abrigo da Lei 15/2000, de 8 de agosto:  alferes com a antiguidade de 1 de novembro de 1952; tenente com a antiguidade de 1 de dezembro de 1954; capitão com a antiguidade de 1 de dezembro de 1956; major com a antiguidade de 25 de Maio de 1966; na ficha da unidade, publicada pela CECA aparece como "cap mil grad art"; o seu nome também não consta da lista dos antigos cadetes da Academia Militar mortos ao ao serviço da Pátria durante a Campanha do Ultramar, 161/74).

O malogrado cap art Fausto Ferraz (de que não temos, infelizmente, qualquer foto) foi inumado no cemitério da Conchada, em Coimbra. Era casado com Maria Fernanda Ferreira da Costa, filho de Manuel Fonseca Ferraz e Ana Rosa Manteigas, sendo natural da freguesia de Pousafoles do Bispo, concelho de Sabugal.

Houve testemunhas desse funesto acontecimento. O cap SGE ref José Neto (1929-2007), um dos históricos do nosso blogue (**), contou-me (e depois contou-nos), antes de morrer,  que o autor dos disparos foi o soldado condutor autorrodas José Manuel Vieira Cavaco. 

O Cavaco era madeirense, tendo recebido na véspera de Natal provisões remetidas pela família, entre elas uma garrafa de aguardente de cana de açúcar (rum da Madeira) (ou mais provavelmente poncha, a bebida tradicional da Madeira, feita de aguardente de cana-de-açúcar, açúcar ou melaço de cana e sumo de limão). 

Já não poderemos confirmar se era rum da Madeira, só regulamentado em 2021,   ou a tradicional poncha da Madeira, cuja produção e comércio também só foi regulamentada há uns anos atrás, em 2014, pelo Governo Regional da Região Autónoma da Madeira; de qualquer modo,  o rum tem um teor alcoólico minimo de 37,5º, superior à poncha (25º).

Chegado à Guiné há pouco mais de um mês, a CART 1613  estava em S. João, frente a Bolama, em treino operacional.

A mobilização para a Guiné (em vez de Angola), as andanças do batalhão e da companhia, 
as saudades da terra, a incerteza face ao futuro, as recordações do Natal na ilha e a poncha (ou o rum)  fizeram uma mistura explosiva. 

Sob o efeito do álcool, e sem qualquer motivo aparente, o Cavaco abateu a tiro o comandante da companhia, "alferes de artilharia, graduado em capitão", Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na véspera de Natal, 24  de dezembro de 1966.

Creio que feriu mais militares. O Zé Neto, na altura 2º sargento a exercer as funções de 1º srgt,  "teve que o esconder para ele não ser linchado" (sic). (***)


3. Voltemos ao relato do Zé Neto (que foi a principal testemunha):

(...) No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia. (...)

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM [Polícia Militar] e dum sistema de deteção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária. (...)

O primeiro ato de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:

 
– Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.

Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o setor da alimentação com os desvarios que o Furriel vagomestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no setor administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.

Em princípios de janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra. 

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:

 – O nosso comandante... é o capitão Corvacho!

Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:

– Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3. (...)

PS - Acrescente-se que a quadra natalícia, coincidência ou não, parece que era propícia à ocorrência de baixas mortais (os nossos camaradas do Portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar publicaram uma lista de cerca de seis dezenas de combatentes, dos 3 TO, que tombaram na véspera e no dia de Natal, por todas as causas, incluindo acidente com arma de fogo, acidente de viação e afogamento. Talvez houvesse mais álcool a correr, nesses dias...
 

4. Eis um excerto do relato do Zé Neto sobre o julgamento do Cavaco, realizado um ano depois em Bissau. (O cap inf Eurico Corvacho ficará entretanto no lugar  do cap art Fausto Ferraz, não sabendo nós o destino que foi dado ao cap art Lobo da Costa que o vinha substituir) (****)


(...) No final do ano [1967], eu, o furriel Martins e o 1º cabo Santos fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do soldado Cavaco . O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido. 

O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.

Tanto eu como o furriel e o cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o juiz auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o caráter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.

Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:

– Um excelente e infeliz soldado.

A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena. (...) (***).
______________


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 
13 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26386: Humor de caserna (95): Os meus Natais de 66 e 67 no HM 241, em Bissau (António Reis)
 
(**) Vd. postes de:


10 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P417: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

sábado, 10 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25826: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (27): A inspeção militar: "Ir à sortes", Sabugal, 1968 (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1969/71)



Foto nº 1 > Sabugal > 1968 > Briosos mancebos acabados de ser specionados e apurados  para  todo o serviço militar... Aqui a cavlo, com saudosismo do passado. Foto tirada no dia da inspeção, no Sabugal, junto ao antigo edifício camarário onde teve lugar a inspeção. É também visível, àq esquerda,  o edifício da antiga prisão.


Foto nº 2 > Sabugal > s/d (c. 2013) > Largo das Eiras, no centro da aldeia de Vale de Espinho. Nas redondezas não havia outra povoação que tivesse um largo tão grande, embora já tenha sido roubado pelas construções da estrada, escola, lar de idosos, junta de freguesia, etc.








Fotos nº 3, 3A e 3B > Sabugal > 1968 > Tirada em 1968, no Freixial, junto ao rio Côa, durante o assado, onde estão a meia dezena de mancebos que foram nesse dia à inspeção, juntamente com juventude convidada e onde não podia faltar o meu professor da 4.ª classe, Zé André, que está de pé no canto direito da foto, com camisa preta.






Fotos nº 4. 4A e 4B > Castelo Branco > BC 6 > Dezembro de 1968 > O início da Guerra Colonial praticamente acabou com a tradição festiva do dia da inspeção. Provocou uma reviravolta de 180 graus no valor do conceito de apto e inapto para o serviço militar. É surpreendente, que no espaço de dois ou três anos o conceito de opinião que se tinha da seleção de apto, que era considerado o boníssimo, se tenha invertido o valor, e o apto passou a ser o maligno, pois a partir do início da guerra o que se valoriza, no querer dos familiares e mancebos, é que fiquem inaptos para o serviço militar, a condição de inapto passou a ser o ótimo! São os dinamismos sociais da adaptação dos interesses!

Fotos (e legendas): © José Corceiro (2013(). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José Corceiro (ex-1.º cabo trms, CCaç 5, "Gatos Pretos" , Canjadude, 1969/71): 

(i) natural de Sabugal

(ii) mora em Lisboa; 

(iii) era de rendição individual (maio de 19969/julho de 1971); 

(iv) integra a nossa Tabanca Gradne desde 25/12/2009; 

(v) tem 62 referências no nosso blogue;

(vi) são 36 os nossos camaradas do Sabugal que morreram na guerra do ultramar / guerra colonial (segundo a preciosa informação do Portal UTW -  Dos Veteranos da Guerra do Ultramar);

(vii) o concelho raiano do Sabugal perdeu 3/4 da população em 70 anos (era de 43,5 mil em 1950, é de cerca de 11,3 em 2021)


1. Excerto do poste P7737 (*), sobre o dia de "ir às sortes",no Sabugal, terra do forcão, terra da capeia arraiana, mas também terra de Ribacoa, terra do demo, terra do lince, e  terra dos cinco castelos (incluindo Sortelha).... E diz a quadra popular: “Castelo de cinco quinas /, só há um em Portugal,/ Fica à beira do rio Côa,/ na vila do Sabugal”.

A inspeção militar: "Ir à sortes", Sabugal, 1968

por José Corceiro


(...) Tanto quanto me lembro desde a minha meninice, que na minha aldeia, Vale de Espinho, concelho de  Sabugal, distrito da Guarda, o dia da inspecção militar ou sortes era um dia festivo para toda a povoação, mas com proeminente destaque para os mancebos naturais da aldeia, que completassem nesse ano o 20.º aniversário, pois a festa era deles.

Nos anos 1950 e princípios de 1960, na minha aldeia, o grupo de rapazes que iam anualmente a dar o nome para a tropa ultrapassavam sempre as duas dezenas, ou bem mais, e era raríssimo que quando chegasse o dia das sortes algum deles faltasse.

O dia da inspecção revestia-se dum certo ritual, tradicional. típico, que continha valor e particularidades para um estudo etnográfico.

Os preparativos para o esperado dia iniciavam-se com algum tempo de antecedência, pois era determinante que no dia da festa tudo corresse de feição. Sempre foram perceptíveis ao longo dos anos, explícitos laivos de ciúme, meio encapotado é certo, mas que levava alguns dos ex-inspeccionados a vangloriar-se ao dizer que a festa deles tinha sido a melhor. Ora, este espírito de geração competitiva impulsionava a rapaziada a um apego de brio viril, que os empenhava em melhorar a sua festa em comparação com as dos anos anteriores.

Para muitos dos jovens, o dia da inspeção seria também a primeira vez que iriam estrear um fato novo, composto por calças, casaco e colete (terno), pois até ao presente não tinham tido a possibilidades de comprar o tecido e mandá-lo confeccionar no alfaiate da terra, visto ser escasso o suporte económico da família.

Era também provável que a partir dessa data, o jovem pudesse começar a amealhar um pezinho de meia, fruto de algum trabalho que executasse com direito a remuneração, jornal ou a passar contrabando, pois até esta altura tudo o que tinha ganho reverteu a favor do agregado familiar.

Quando o esperado dia chegava, nada podia falhar. O fato estava à espera de ser vestido…

Os foguetes já tinham sido comprados e entregues ao mestre-de-cerimónias, que os utilizava conforme a mensagem que queria anunciar, lançando-os para estoirar no ar. A primeira mensagem é logo cedinho, às 05h00, a lembrar que é preciso deixar a cama e levantar, para aqueles que nela se deitaram, nessa noite,a porque alguns fizeram direta. Pois têm que se apressar, ainda há um percurso longo de 16 quilómetros que é preciso trilhar, sempre a cavalgar, até chegar ao Sabugal, concelho da freguesia, onde tem lugar a inspeção.

O cavalo, adereçado com os seus melhores arreios estava pronto e à espera. Ricamente aparelhado. A sela, a cinta, o cabresto, as rédeas e o freio foram diligentemente limpos e engraxados, as fivelas e os estribos foram polidos até ficarem a brilhar, sem esquecer as patas do equídeo que foram aparadas, limadas e convenientemente ferradas, pois há mais de 30 quilómetros para calcorrear, ida e regresso, com o mancebo sempre montado e a espicaçar, e quiçá poderá surgir algum amigo mais íntimo que o queira apadrinhar e arrisque a boleia no lugar da garupa, e o ritmo tem que ser constantemente a trotear.

O acordeonista foi atempadamente contratado, personagem aglutinadora e imprescindível, que nunca pode faltar esperando-se sempre dele alguma novidade musical, para excitar o bailarico e a festa abrilhantar.

Os vitelos ou cabritos, cuja quantidade depende do número de mancebos e seus convidados, foram antecipadamente encomendados ao açougueiro, e já estão prontos e preparados com algum tempero à espera para se dar início ao apetecido assado, realizado sempre em local aprazível, junto à margem do rio Côa e por tradição no sítio do Freixial.

Por volta do meio-dia o povo aguardava impacientemente, no Largo das Eiras, a chegada do mensageiro, que se antecipava ao regresso dos mancebos. O arauto, açoitando o seu cavalo, incutia-lhe celeridade, para se adiantar e mais rápido chegar para a notícia poder dar, metia-se por atalhos e veredas para o caminho encurtar, e lá chegava ele ofegante à freguesia onde revelava, com voz de pregão, os nomes dos mancebos que ficaram livres e os que foram apurados para o serviço militar.

Quando se ouvia o nome dum mancebo que ficou apurado era sempre um momento de regozijo, algazarra geral, com aplausos, acompanhados de vivas e parabenização à família, contrastando com o comportamento da multidão que, ao ouvir o nome do mancebo que ficou livre, reagia com tristeza e constrangimento, sobretudo os seus parentes.

Mais uma largada de foguetes, anunciavam que a comitiva dos heróis estava prestes a chegar. A multidão eufórica, que não tinha arredado pé do Largo das Eiras, estava curiosa e queria ver ao vivo a chegada dos briosos mancebos. 

Uns ostentavam com orgulho e altivez na lapela do casaco a insígnia, fita verde, que os declarava aptos para o serviço militar. Esta distinção podia ser um trampolim para uma vida melhor, com mais possibilidades para um emprego, quiçá Polícia, Guarda-Fiscal ou Republicana, ou Exército, ou alguma Repartição Estatal.

A fita vermelha era colocada nos inaptos, e notava-se neles um ar de acanhamento, quase vergonha, por suportar na lapela o estigma que os remetia para a exclusão de prestar serviço militar, era como que o apontarem-lhes que eram débeis, ou tinham uma deficiência física, e isso não era tranquilizante para o seu ego.

Depois de dadas as boas-vindas, procedia-se a mais uma largada de foguetes, a convidar toda a povoação para que houvesse união e acompanhassem festivamente os mancebos, que iriam desfilar montados nos seus cavalos, ao som da concertina, pelas ruas da procissão. Findo esse percurso, duma maneira geral, toda a juventude se dirigia para o local onde os esperava o assado, já devidamente confeccionado.

Manjar ansiosamente esperado, a desejada carne grelhada era um pitéu divinal. A carne é seleccionada, excelentemente grelhada com apuro na brasa, bastante condimentada com um molho assaz apimentado, comida acompanhada de batata bem apaladada acabada de tirar da terra e assada na borralheira, tudo regado convenientemente com molho, iguaria que provoca no mais prudente dos mortais anseios que o incitam a deixar-se seduzir, e a exagerar no beber a boa pinga, que inebria qualquer convidado fazendo-o esquecer as amarguras do dia-a-dia, até surgir um comensal mais inspirado, que se encoraja e ousa desafiar a qualquer um para uma salutar desgarrada… e a partir daqui tudo incita a que a folia seja inflamada!

E toda a tarde era passada em farra agitada, sempre regada de boa pinga em ambiente de animado bailarico, onde não era permitido a nenhuma moça recusar dançar com qualquer que fosse o mancebo dos inspeccionados, uma recusa dessas, era interpretada como ofensa familiar.

Com o surgir da guerra nos anos 1961/1962, a juventude da minha terra abandona a aldeia, em massa, e vai a salto para o estrangeiro. O número dos mancebos que anualmente iam a dar o nome para a tropa caiu das duas ou três dezenas que eram habituais, para menos de meia dúzia.

Continuaram-se a comprar vitelos, cabritos e até porcos inteiros, para satisfazer a gula dos falsos profetas que só anunciavam desgraça e tinham bem estudada a arte da mentira, pois aos crédulos muito prometiam, mas nada faziam. Convenciam os inocentes que lhes livravam os filhos da guerra, e alguns caíram na ratoeira, mas cedo se convenceram que nada lhes tinha sido feito. E lá vinham a terreiro os profetas com argumentações abonatórias, utilizando desculpas esfarrapadas… (**)

José Corceiro

PS1: - Significado do termo “sortes” aqui utilizado, que creio estar certo, pela ideia que me ficou segundo aquilo que ouvi noutros tempos:

Antigamente, devido ao grande número de jovens que se apresentavam à inspecção, eram muitos os que ficavam aptos, e para os aptos não havia lugar para todos no serviço militar. Para solucionar o excesso dos já seleccionados, procedia-se a um sorteio aleatório entre os que tinham ficado aptos, para assim se apurar aos que cabia a sorte de cumprir o serviço militar.


PS2 -  Por terem já passado tantos anos, creio que me terei enganado no significado simbólico, que era atribuído às cores das fitas que eram colocadas na lapela do casaco, no dia da inspecção, para distinguir os mancebos que ficaram esperados, livres, ou apurados para o serviço militar.

Falei com um conterrâneo da minha geração, que me lembrou: A fita vermelha que simbolizava apuramento para o serviço militar, fita verde que ficava esperado, ou seja que no ano seguinte tinha que ir novamente à inspecção, e fita branca que ficava livre do serviço militar. Penso que assim estará correcto.

 José Corceiro | 7 de fevereiro de 2011 às 17:57

(Seleçáo, revisão / fixação de texto, negritpos: LG)
 
____________

(**) Último poste da série > 9 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25823: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (26): A inspeção militar: "ir às sortes", em Alcanena, em 1 de junho de 1965 (Carlos Pinheiro, ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, Bissau, 1968/70)

terça-feira, 11 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25632: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: Heróis da montanha!


Timor Leste > s/l > 2016 > O Rui e o seu acordeão, levando às montanhas de Liquiçá a alegria, a esperança e a solidariedade das gentes da Malcata/Sabugal,  e de outros lados de Portugal, de Coimbra à Lourinhã. A foto não traz legenda, mas parece-nos o Rui com a família Sobral, em Dili, no bairro 
Ailok Laran.


Uma Escola em Timor

Rui Chamusco, nascido em Malcata, pessoa bem conhecida na nossa aldeia e em todo o concelho do Sabugal e outras terras, juntamente com Gaspar Sobral, este nascido em Timor, quis o destino que constituísse família com Glória, nascida em Malcata. "Uma Escola em Timor" levou-os até Boidau, em Timor Leste, com a missão de construir uma escola para as crianças dessa zona timorense.
De Timor, Rui Chamusco, através da internet, tem-nos enviado notícias a contar como está a desenvolver-se o projecto.
 
Do Jornal Cinco Quinas retirei estas palavras:

"A nossa obrigação como cidadãos do mundo é sermos úteis a quem e aonde precisarem de nós. O projeto 'Uma Escola em Timor' é uma iniciativa de amigos que pretendem contribuir para o progresso e o bem estar do povo de Boidau.

(...) "Enquanto entre nós, em Portugal, se fecham escolas, noutros países como Timor Leste há necessidade de se construírem e abrirem. A nossa obrigação como cidadãos do mundo é sermos úteis a quem e aonde precisarem de nós, fazer o que pudermos para melhorar o mundo. Instruir e educar é um dever de todos, dos estados e de cada um de nós. Poder participar num projeto de solidariedade é uma honra.

"O projeto de solidariedade 'Uma Escola em Timor'  é uma iniciativa de amigos que, motivados por uma grande afeição a Timor, pretendem contribuir para o progresso e o bem estar do povo de Boidau, através da construção e funcionamento dum complexo escolar que inclui duas salas de aula (pré escolar e escolar, 1º ciclo), uma cantina, uma biblioteca e uma capela. 

"Boidau é uma região do interior de Timor Leste que, à semelhança de outras aldeias do interior de qualquer parte do mundo, carece de estruturas e apoios para o seu desenvolvimento. Todas as ações humanitárias com este fim serão sempre uma mais valia no caminho do progresso. Este projeto pretende ser uma resposta a este apelo". (Fonte: http://www.cincoquinas.net/...)

Foto: © Rui Chamusco  (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


1. Esta é a segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, uma missão solidária que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.


O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã. 



Rui Chamusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra. A família Sobral andou 
vários anos pelas montanhas de Luiquiçá, tentando
escapar à tirania dos ocupantes indonésios
Foto: LG (2017).


Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta). 

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. Juntamente com outros destacadas figuras, como o Gaspar Sobral (nascido em Timor) e a Glória Sobral (natural da Malpaca, Sabugal).

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores.  E um obrigado ao nosso cronista, 
extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,
 à Aurora, à Adobe e outros protagonistas 
destas histórias luso-timorenses (LG).


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: Os heróis da montanha


18.02.2018, domingo - Grande Abeka!...

José Alves Sobral, entre nós o Abeka, é o quarto dos irmãos Sobral. Pouco mais de trinta quilos, num corpo de pele e osso. Mas nem por isso deixa de ser um verdadeiro Sobral, sendo pai de oito filhos vivos e de dez netos. 

Como muitos outros tem a sua história de resistência cheia de interesse para ser contada. Em 1997 foi capturada à traição. Como ele fazia de correio (levava recados aos combatentes daresistência), houve algúem cujo nome ele bem lembra, que se infiltrou no seu mundo fingindo “comprar-lhe o serviço” e que de seguida o entregou para ser preso. Foi algemado e com um garruço na cabeça foi levado em carro de polécia indonésia porruas e lugares impossível de identificar. Sabia-se na altura que as autoridades indonésias carregavam pessoas em barcos para depois as fazer desaparecer no mar.

Também o Abeka foi embarcado, sempre de cabeça coberta, e segundo ele sempre a pensar que teria esse destino. Para seu bem, ele mais os outros tres prisioneiros tiveram sorte diferente, pois foram distribuídos por várias prisões. 

O Abeka foi levado para Baucau, onde esteve dez meses preso. Conta episódios de arrepiar quanto às condições de vida: alimentação sempre a mesma <supermi”, sem banhos, saída das celas de quatro em quatro dias para fazer as necessidades maiores. Para as menores serviam-se de garrafas. 

Sujeitos a interrogatórios sob pancada, conta o Abeka que quem o salvou das dores foi a oração à Senhora do Desterro que ele por sorte apanhou do chão, porque se tinha desprendido da bota de um dos guardas da prisão. Ainda hoje mostra o papelinho, que é guardado religiosamente na sua pequena carteira. 

Conta também que sujeito a murros no estômago nada lhe doía,como se o agressor batesse em plástico ou outra matéria amortecedora.

Finalmente foi trazido para mais perto da sua morada em Ailok Laran, até que um dia o deixaram junto à ponte aqui perto. Ele sempre com receio de que fosse para lhe darem um tiro e acabassem com ele, quando verificou com surpresa que eramesmo para regressar a casa, onde ninguém sabia do seu paradeiro já havia mais de dez meses.

Com certeza que ele já contou esta peripécia da sua vida várias vezes. Mas eu notei que os irmãos que o ouviam (Gaspar, Mário e Eustáquio) lhe prestavam toda a atenção, e com ele reviviam, a seu modo, a história das suas vidas.

19.02.2018, segunda feira - Preparando  a inauguração da escola

É urgente ir a Boebau para nos certificarmos do estado de construção da escola. Só no local nos daremos conta do que já está e do que faz falta para marcarmos o dia da inauguração. Vamos a ver se hoje conseguimos realizar o nosso desejo. Mas está a ser difícil. Os transportes são o problema principal. Não há disponibilidade de “motores” para fazer a viagem. O Eustáquio tem tudo tentado, através dos amigos, que devem ser para as ocasiões, mas que nem sempre é assim. 

Será que as nossas esperanças vão ser também hoje defraudadas? Há dias em que tudo corre bem, mas há outros que nem vale a pena tentar. Já são onze da manhã e ainda nãoconseguimos resolver o problema.

Entretanto aguardamos, com impaciência, melhores notícias. E mais uma vez nos damos conta de que nada somos, ainda que às vezes pensemos que somos os maiores. Como diz o salmo “ se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham osseus construtores”. Estamos nas suas mãos...


Quem espera sempre alcança


E eis que chega o dia e a hora. De repente, aparece o Bartolomeo com a motorizada.

Até os olhos se me arregalaram! Num ápice, preparei o essencial para irmos à montanha. Era mais ou menos meio dia quando as motas arrancaram de Ailok Laran.

Depois de alguns recados aviados em Dili, lá vamos nós, cabelo ao vento, a caminho da “terra prometida”. Pelas 14.30 estávamos em Liquiçá, em casa do Fernando que é irmão do Bô Zé,  nosso anfitrião em Boebau. Recebidos com toda a gentileza,podemos saborear os produtos da sua agricultura caseira: anona ata, bananas...tudo produtos de alta qualidade biológica. 

Não posso deixar de referir a atitude corajosado senhor Fernando: tem nove filhos aos quais fez sempre questão de proporcionar o ensino escolar. Um já está licenciado e trabalha em Baucau. Diz-nos ele que ainda está com vontade de arranjar outra mulher para ter mais filhos. Grande Homem!

Prontos para recomeçar a aventura, eis o primeiro contratempo: a mota em que eu viajava, precisamente a roda que me suportava, estava vazia. Foi mais uma hora de espera até que o problema se resolvesse. É tudo por Deus! Olha se o furo acontecesse num dos lugares mais críticos do caminho?

Pelas 16.00h lá vamos nós cheios de pica. Eis então que a chuva aparece.

Francamente penseio no pior. Será que conseguiremos chegar ao destino? Mas graças à perícia dos condutores Eustáquio (pai) e Amali ou Zinígio (filho) os obstáculos foram sempre superados, ainda que por vezes tivéssemos de descer das motas para contornar as situações. 

Molhados e cansados, chegamos finalmente ao local da escola. Até os olhos se nos arregalaram ao avistar o edifício! Não imaginam a emoção de, pela primeira vez, entrar nesta escola que é fruto de um projeto de solidariedade do qual todos nós fazemos parte. 

Esta escola não é minha, nem do Gaspar, nem da Glória, nem do João Crisóstomo. Esta escola é nossa, de todos nós que acreditamos e colaboramos na sua edificação. Esta escola é dos timorenses, das pessoas de Boebau/Manati. 

Ficamos impressionados como, em pouco tempo, a obrase ergueu, Demos um grande abraço ao Abílio que é o empreiteiro e ao João Moniz (Eustáquio) que é o nosso braço direito porque ele é tudo (chefe da obra, engenheiro, condutor, contabilista, repórter, etc, etc...) Eles tudo tem feito para que o nosso sonho se concretize.

À noite, em casa do Bô Zé, pusemos as conversas em dia, até que o cansaço e o sono nos permitiram. Amanhã será outro dia.


20.02.2018, terça feira  - A montanha dos heróis

Bem cedo se começa o dia. Então eu que pouco ou nada dormi, não sei se pela emoção se por estranhar a cama e o ambiente natural sonoro (insetos, galos, galinhas, cães, porcos e eu sei lá quantos mais seres vivos ). 

Quase de imediato fomos para a escola onde já estava a trabalhar o Abílio. Ideias e mais ideias para melhorar algumas coisas, preparação da inauguração, datas, entidades, e claro sem esquecer as crianças, que neste momento estão à nossa volta, e que são a razão de ser deste projeto solidário.

Tivemos ainda a oportunidade de nos deslocarmos na floresta, pelas veredas que nos levam ao túmulo onde estão sepultados os ascendentes (avós) do Gaspar. Como eu ia à frente feito herói, não deixava de ouvir o aviso do Gaspar: “ Rui, cuidado com a Samodo!”, uma cobra verde venenosa (há quem diga que é mortal) frequente e disfarçada na luxuriante vegetação por onde passamos. 

Fomos acompanhados por Bô Zé e um guerrilheiro desde 1975, que já no local da campa nos explicava os combates de que ali, a 20 metros de distância, foi protogonista. Sempre de catana na mão, explica que numa noite, das três às seis da manhã, limparam quase todo o batalhão indonésio. Só se safaram uns quarenta. 

Diz que ali, e desenhava no chão com o dedo indicador, era como se fosse o jogo do gato e do rato entre os resistentes e as tropas indonésias. Diz também que uma vez, o soldado Mauquinta foi lá cima à procura de alimentos e que, na volta, o comandante do seu grupo suspeitou que ele tivesse ido a levar informações aos indonésios. Quando o avistou disparou contra ele uma rajada de metralhadora da qual o Mauquinta se conseguiu livrar. O comandante pediu ao que estava a seu lado mais balas, que lhe forneceu então mais uma. Também desta Mauquinta se safou. Foi então que Mauquinta avançou para o comandante e com a catana lhe cortou a cabeça.

Este guerrilheiro, que também foi comandante, há semelhança de outros estão como que abandonados. Nada recebem do Estado, em contradição com aqueles que pouco ou nada fizeram pela independência do país. Dignamente afirma: 

“Eu resigno-me porque sei que lutei pela independência do meu país”. 

Este senhor tem muita coisa para nos contar, e prometeu que quando voltarmos ele e outros antigos guerrilheiros irão ter connosco para que nós saibamos mais pormenores.

Pois é! Estamos no local onde se travaram os grandes combates, muito perto da fronteira com Timor Oeste de domínio indonésio. A vista panorâmica é impressionante, e ouvir em primeira mão, relatos que apontam “ aqui...além...acolá...” deixam-nos sem palavras, com vontade de abraçar estes heróis. 

E assim o fizemos e as fotografias documentam.


De volta a Dili...

Feitas as despedidas, estamos de volta a Ailok Laran. O tempo ajudou, não apanhamos chuva pelo caminho, embora as subidas e os caminhos lamacentos nos metessem em cuidados. Paramos em Liquiçá para falar com o César Bruno que tam bém faz parte da comissão de instalação da esola. Na Cruz Vermelha de Liquiçá, local onde ele trabalha, resolvemos alguns problemas em relação à inauguração da escola. 

Depois seguimos para Tíbar a fim de dar um abraço aos irmão capuchinhos que aqui têm uma das suas fraternidades em Timor. Recebidos fraternalmente pelos irmão presentes, falamos de pessoas, locais, projetos, e claro está do grande abraço que trouxemos de Portugal, particularmente do Provincial dos Capuchinhos Frei

Fernando, que já tem dez ou onze anos de vida em Timor. Obrigado, manos!...

Chegamos a casa por volta das 18.00h, onde a alegria e a algazarra das crianças se fez logo ouvir: “Boa tardi, Ti Rui!...Confesso que nunca na minha vida tinha ouvidotanto a saudação “Boa tardi!..., pois a crianças que ao longo do caminho fomos encontrando de regresso das suas escolas foram tantas, que é impossível ficar indiferente. E eu a lembrar-me da frase que há tantos anos eu decorei “ Cada criança que nasce é sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade”.


23.02.2018, sexta feira  - O anúncio esperado...

Está tomada a decisão: a escola construída em Boebau será inaugurada o dia 19 de Março, e terá o nome “Escola de São Francisco de Assis - Paz e Bem ”. 

O César Bruno ficou responsável por fazer os convites às entidades oficiais. Já assim foi na instalação da primeira pedra. O Laurindo, residente em Boebau e chefe da aldeia vai reunir e ensaiar as crianças. O Rui ensaiará as crianças de Ailok Laran. Vai ser uma grande festa com rituais e anções timorenses, com músicas e canções portuguesas, e quem sabe até algumas danças de Portugal. As crianças, em Ailok Laran, adoram cantar e dançar o malhão e o vira.

Possivelmente ainda hoje eu e o Eustáquio vamos a Dili encontrar um alfaiate que faça “as fardas” para os alunos, que a minha afilhada Adobe desenhou.

Estamos em pulgas, como soe dizer-se, com a preparação deste acontecimento, e queremos que seja marcante para a região e para as nossas vidas. Sabemos que uma inauguração não é o mais importante, mas é o primeiro passo. Depois virá o andarnormal de modo a podermos caminhar de cabeça erguida. 

Claro que muitos desafios nos esperam, sobretudo a garantia de funcionamento, mais concretamente de professores que nos permitam continuar. Temos confiança em Deus e nos homensque este problema se irá resolver. Para já, e devido a este ano escolar já estar em andamento, a escola irá funcionar experimentalmente (ano zero se quiserem) com uma sala de mais ou menos trinta alunos, nas valências de Tetum, Português e Música. Diz-nos o Laurindo que, se houver ensino da Música vai haver muitos alunos, porque deve ser a primeira escola onde se ensina música. Muita gente toca e canta em Timor, mas poucos sabem ler e interpretar uma pauta. 

Veremos o que podemos fazer. Mas se formos por aqui, talvez sejamos mesmo uma escola de referência.


Data da Inauguração da Escola



A escola, em 2018:
os últimos retoques...
Está decidido: será no dia 19 de Março. Os convites estão a ser elaborados, as músicas e canções estão a ser ensaiadas, as “fardas” já foram encomendadas. Hoje também tivemos de comprar cadeiras (mais de 50), porque o equipamento escolarangariado em Portugal com destino à nossa escola está retido nos contentores do barco Hoksolok, que infelizmente nunca mais arranca dos estaleiros de Figueira da Foz. Será que ninguém tem solução para este problema? Valha-nos Deus!...

Entretanto, esperamos com alguma ansiedade a chegada do nosso amigo                                                                                          e colega do projeto de solidariedade João Crisóstomo e do seu amigo Ralph Niemeyer, que participarão na inauguração da escola e noutros atos de referência da sociedade timorense. A data da inauguração foi decidida tendo em conta as suas presenças em território timorense.

No próximo dia 7 de Março eu e o Gaspar iremos ser recebidos na Embaixada de Portugal, onde esperamos dar a conhecer o nosso projeto e angariar alguns apoios, particularmente no destacamento de professores. Sabemos que vai ser muito difícilencontrar professores disponíveis para lecionar em Boebau, devido às dificuldades de transporte e outras. Mas a Deus nada é impossível. E acreditamos que apareçaalguém que pode e quer entregar-se a esta nobre missão de servir os maisnecessitados. Que Deus nos ajude!...


Ida ao Hospital Guido Valadares

Já não foi a primeira vez que aqui me desloquei, não para tratar da minha saúde mas da saúde dos outros. Hoje vim com o Eustáquio que, devido à falta de prevenção, aocortar uma barra de zinco com a reverbadora, ficou com duas ou três limalhas noolho direito. Foi observado e tratado. Felizmente está tudo bem.

Desta vez, à luz do dia, dei-me conta do que da outra vez durante a noite não me apercebi. Guido Valadares é o hospital público de Dili, onde tudo e todos vêm parar.

Enquanto esperava pelo Eustáquio, chegou um pequeno grupo de quatro pessoas, creio que uma senhora doente acompanhada de família e uma senhora, médica comcerteza, que falava espanhol (cubano) e que tentava que alguém traduzisse o quedizia à doente. “No pudes comer fritos!...) Felizmente passou uma enfermeira que lhe fez a tradução. Não intervi porque, embora perceba e me expresse com facilidade em espanhol (estudei em Espanha), o meu tétum ainda não me permitefazer-me entender. 

Mas este episódio fez-me pensar no que já me disseram: “Se não fizermos nada pela promoção da língua portuguesa, o espanhol vai passar-lhe à frente, porque há pessoas que, por necessidade de entenderem os médicoscubanos, desejam aprender o espanhol”.

Mais uma vez me dei conta da importância que o sorriso tem para esta gente. É compensador passares por uma multidão de pessoas e que, sem te conhecerem, esboçam sorrisos. Fazem-nos sentir bem...


24.022018, sábado - O concerto das cigarras...

Segundo consta, as cigarras levam a vida a cantar, que tem sido mais ou menos o meu lema, enquanto a formiga se mata a trabalhar. É assim em todo o mundo. Mashoje, ao ouvir cantar as cigarras do local, lembrei-me da viagem de regresso deBoebau, do percurso que por necessidade tive de fazer a pé. O barulho era ensurdecedor. Tanto que perguntei ao Eustáquio que ruído era aquele. Primeiro respondeu-me que eram as moto serras que ali perto trabalhavam. Depois, perante a minha incredulidade e fazendo-o ouvir os mesmos sons, decididamente me disse que eram as cigarras. 

Podem crer, num cenário inimaginável, com as Madre-Cacau (árvores com mais de 50 metros) e os caféeiros a servirem de tapete, assisti a um dos concertos mais potentes da minha vida, tal era o volume do som.

Até nisto convém estar atentos, para não perdermos estas oportunidades únicas.

Falando de música e de sons, hoje foi dia de ensaio das crianças de Ailok Laran, em preparação da cerimónia de inauguração da escola São Francisco de Assis em Boebau. Também por coincidência, eu mais o Amali fomos comprar duas guitarraspara a nova escola, e que nos servirão desde já para os ensaios. Pois é! Viajar no “motor”duas pessoas e duas guitarras não é nada fácil. Passar rés vés nas ruas desta cidade que tanta movimentação tem, com medo de partir a cabeça ou o braço das novas guitarras meteu-me em cuidados. 

Felizmente chegamos sem incidentes, e prontos para apresentar e cuidar destas lindas meninas...


25.02.2018, domingo  - Um encontro desejado

Há muito tempo que o D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau [ 1950- 2021, foto à esquerda, cortesia da Agência Ecclesia] , e eu, que fomos colegas de trabalho no princípio da década de 80 na equipa pastoral da Comunidade de Gentilly nos arredores de Paris (França) não nos encontrávamos para jantar e conversarcomo hoje fizemos. Depois de muitos emails e telefonemas lá conseguimos dar o abraço do reencontro e pôr a conversa em dia. Recordações, projetos, atualizaçõestudo isto nos ocupou algumas horas. Connosco esteve também o amigo Gaspar que, como sempre, falou muito e muito bem. Não seja ele timorense de primeira linha,com capacidades cerebrais e emocionais incomuns.

Claro que nos encontraremos mais vezes, porque há projetos comuns que a isso nos obrigam e porque, entre amigos, “os amigos são para as ocasiões”. Porque somossolidários, esperamos que a nossa ação se estenda também ao território  (zonas mais carenciadas ) da sua jurisdição pastoral. É com prazer que verificamos, através de conversas cruzadas que nos chegam, que o amigo D. Basílio é neste momento uma das pessoas mais acreditadas e respeitadas em Timor Leste. E é uma honra que, depois de tantos anos em que estivemos “longe da vista”, o Basílio,  como eu lhe chamo, ainda me tenha no grupo dos seus amigos. 

Espero que a nossa amizade se mantenha e fortifique, aproveitando a ocasião da minha permanência em Timor Leste e a possibilidade de mais encontros que aí virão. Obrigado, Basílio!


26.02.2018, segunda feira  - “Nobreza a quanto nos obrigas!...”

Vem isto a propósito da preparação do dia da inauguração da escola. O César Bruno, um dos elementos da comissão instaladora veio de Liquiçá até nós a fim deprepararmos o ato inaugural. Fiquei atónito com tanta minuciosidade. “Há queseguir o protocolo”; “Temos que convidar este e aquele”; “ Qual a hierarquia na utlização da palavra”; “Quem corta a fita”; etc,etc... Ou seja a complexidade em vez da simplicidade. Mas dizem eles que em Timor tem de ser assim, temos de respeitar e cumprir o protocolo. E quem sou para contestar este modo de ser? Bem me custa, mas terei de aceitar.

Vim assim a saber que a sequência da importância vai do mais pequeno ao maior. O mais importante é sempre o último a falar. “ Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. E assim, por mais paradoxal que pareça, o representante da igreja católica falará em último. 

Eu sei a importância, a consideração e a veneração que a Igreja Católica tem em Timor. Mas, para quem teve formação franciscana, não cai nada bem esta atitude. O Tau, que é um símbolo franciscano (S. Francisco subscrevia os seus escritos com o Tau por ser a última letra do alfabeto grego,indicando assim que cada irmão se devia considerar como o mais humilde e o mais pequenino de todos) e é também símbolo da escola, faz-nos lembrar que ser o primeiro ou ser o último é uma questão insignificante para o desenrolar da cerimónia.

Desculpem estas minhas considerações que mais parecem revestidas de falsa humildade. São um desabafo... O importante é que a escola está construída, vai ser inaugurada no dia 19 e estará ao serviço das crianças e da comunidade de Boebau/Manati.


Niki, a criatura amaldiçoada

Pteropus vampyrus , "Niki" (em Timor).
Cortesia de Wikimedia Commons

Cada dia que passa em Ailok Laran, estando sentados na pequena esplanada da casa do Eustáquio, temos como horizonte um grande mangueira (árvore com mais de 5metros de altura). Desde há mais de uma semana que temos vindo a acompanhar a maturação de uma manga situada mesmo lá no cimo, e que agradavelmenta para o nosso paladar, já nos acenava como que a dizer “ daqui a pouco estou pronta para ser comida”. 

Pois é! Hoje a olhar para ela demo-nos conta de que ela já não estva inteira. Uma criatura qualquer já a tinha provado. Foi então que o Eustáquio atalhou convencido: “Foi o Niki!...”

E eu sem saber quem era o Niki, pedi de imediato explicação. Então o Niki é o morcego, que em Timor é uma criatura maldita porque é a única que vira as costas (melhor, o rabo) a Deus, uma vez que dorme de cabeça para baixo.

E vamos lá entender todas estas crendices!... Mas que têm lógica, lá isso têm...

Nota de LG: Vd. Wikipedia > Pteropus vampyrus ou raposa voadora: A pteropus vampyrus ou raposa-voadora é uma espécie de morcego gigante do gênero Pteropus; é considerada o maior espécie de morcego: o  corpo pode ter  mais de 30 centímetros de comprimento;  é duma espécie frugívora, natural do sudeste asiático (incluindo Timor Leste); pesa mais de 2 kg e tem cerca de 2 metros de envergadura.


27.02.2018, terça feira  - “A melhor papaia do mundo...”

Há momentos em que tudo nos sabe bem. Gostar de papaia é coisa comum, até porque anunciam que faz bem a isto e àquilo, ao intestino (dizem por aqui que as sementes nem á para mastigar mas sim para engolir inteiras), ao estômago e não seiquantas coisas mais. É uma fruta muito abundante por aqui, e qual é o quintal que, na sua variedade botânica, não inclui umas quantas papaieiras? Tudo se consome nesta bendita planta: folhas, flores, fruta verde, fruta madura. Mas a mim o que maisme deleita é o seu fruto bem maduro. 

Hoje eu e o Gaspar (claro está os privilegiados dos presentes), num ápice devoramos uma papaia, com certeza bem perto de um quilo. Foi colhida agora mesmo e a sua apresentação enche-nos os olhos e aguça o palato. Tanta gula que até acho ser pecado. Mas pronto, já está nas nossas entranhas e nada mais há a fazer que agradecer a quem nos proporcionou tão agradável momento.

Mãe há só uma...

Logo cedo, o Gaspar recebeu uma chamada do Painô, eletricista da casa Ramos Horta, na Areia Branca, para lhe comunicar que a mãe do seu amigo (estudaram juntos) Ramos Horta tinha falecido, e que o seu corpo estava em velório em ....

O funeral serã no dia 27. Claro que a notícia correu já Timor, se não o mundo. E as conjunturas começam a aparecer: quem irá ao funeral; muitos grandes estrão lá; quem de nós quer ir; etc...etc... 

Eu que já por duas vezes estive com este importante senhor (Prémio Nobel da Paz, Presidente da República, ministro dos Negócios Estrangeiros e muitas coisas mais) manifestei-me de imediato: “ eu não vou “. Sei que mãe há só uma, mas por toda a consideração que eu tenho pelo Ramos Horta e pela mulher que é sua mãe, não me apetece ir para ver... ver navios talvez. Que Deus a tenha no seu descanso e que rogue por nós enquanto por aqui andarmos. R.I.P.


28.02.2018, quarta feira  - Expresso Boebau

Não. Não é autocarro, comboio ou avião. Hoje tivemos de alugar uma carreta para que nos leve alguns materiais necessários ao acabamento da escola. Ontem, eu e o Eustáquio andamos às compras, e hoje vão a caminho do seu destino. A pouco epouco a obra está erguida. Vamos esperar que até ao dia 19 do próximo mês tudo esteja pronto. Com certeza que mais viajens serão necessárias. Mas, qualquer que seja o meio de transporte para nós será sempre “expresso para Boebau”. Está tudo pronto, a carga está acondicionada e o motor já trabalha. É uma questão de arrancar, e boa viajem!...

Ramiro... Ramiro...

Ramiro é um jovem com 19 anos, natural de Ilurhau, uma aldeia na vertente montanhosa do outro lado da ribeira de Laoeli. Nada me levaria a escrever sobre ele se alguns acontecimentos a seu respeito não me despertassem a atenção.

 A saber, Ramiro é irmão do empreiteiro da escola construida em Boebau que trabalhou na obra até que um dia, na fase da cobertura do telhado, deslizou pelas chapas molhadas e veio estatelar-se cá em baixo. Ficou inanimado, sem poder mexer-se durante algumas horas, até que a ambulância vinda de Dili o foi buscar rumo ao hospital Guido Valente. 

Imaginem a nossa apreensão e preocupação quando fomos informados do acidente. A todo o momento esperávamos as informações do Eustáquio, e sempre a pensar no pior. Sei que o Gaspar, a Glória e eu pusemos a nossa confiança nas mãos de Deus e dos seus médicos, mas os momentos de afliçãoprevaleciam. 

Dia após dia, íamos sendo informados do resultado dos exames. E, para nossa tranquilidade, ao fim de uma semana internado, foi dada alta do hospital porque o Ramiro não apresentava qualquer lesão corporal. Graças a Deus! Passou mais alguns dias na casa do Eustáquio, mas a sua vontade era sempre de voltar a trabalhar na obra da escola. Ramiro vai ser pai dentro de dois meses. No entanto,talvez porque ainda é muito jovem, tem a inocência e a simplicidade de uma criança.

Estes dias apareceu por aqui e por cá ficou. Muito serviçal e alegre, mas também muito ingénuo nas suas crenças. Vou relatar algumas, e em particular as que me dizem respeito.

Anteontem à noite, estando ele, o Gaspar e o Eustáquio em conversa, o Eustáquio trouxe à baila o assunto da crença nos antepassados, que é assunto sagrado aqui emTimor. E então disse que eles estão sempre vendo o que faz cada um dos viventes.

Que castigam os que fazem o mal, e que aqueles que roubaram os sacos de cimento e o ferro na obra da escola irão receber o seu castigo. (Conversa psicológica do Eustáquio ou, quem sabe, também crença sua!?). 

Foi então que o Ramiro reagiu,todo atrapalhado, comentando: “Oh! Então qundo eu caí foi castigo...” E o Eustáquio perguntou: “Então tu também roubaste?” "Não!", retorquiu o Ramiro, "mas colaborei"... "Eu vi o roubo, e eles deram-me dinheiro para que não dissesse nada”. 

Em conclusão, ali se soube, informalmente, quem roubou o quê.

Também é crença, sobretudo entre os timorenses da montanha, de que o “malai”, o branco estrangeiro, de noite se transforma em serpente para voltar à sua terra, neste caso a Portugal. O rapaz olhava para mim e estudava a minha reação. Quando eu me ria,  ele desconfiava da conversa, mas quando eu me mantinha sério o Ramiro dizia: “Tenho medo”. Medo tenho eu que algum dia de tecem em mim a serpente e a tentem matar... 

Já durante a outra estadia, na montanha em Boebau, me relataram algo parecido. Como eu me ausentei por alguns minutos, falavam entre eles que tinha ido a ter com a serpente, e que se transformaria na mesma para depois ir até à ribeira, encontrar um tronco e embarcar até Portugal. Boatos e crendices que nos vão ocupando o tempo e divertindo.


01.03.2018, quinta feira  - Presença indonésia

“Não há males que não venham por bem”, ou então, “Deus escreve direito por linhas tortas”. Vem isto a propósito da forte influência indonésia que se faz sentir em Timor Leste. É a comunidade estrangeira mais numerosa, mas a sua presença não é só física. É sobretudo a nível da língua, do bahassa, que é a mais falada a seguir ao tetum. Nem o inglês, nem o português, nem o espanhol (cubano) lhe chegam aos pés. Basta frequentar casas comerciais, mercados, escolas e outros lugares mais comuns para nos darmos conta desta realidade. Tudo o mais poderá ser folclore. 

E, se é certo que os anos de ocupação indonésia deixaram marcas indeléveis pela negativa nas vidas e mentes destas gentes ( morreram mais de 200 mil pessoas num universo de 700 mil), também não podemos ignorar as coisas positivas que fizeram e ainda perduram, a saber: uma considerável rede escolar, vias de acesso razoáveis, particularmente caminhos rurais, que hoje estão deteriorados (veja-se o caminhopara Boebau), estabelecimentos comerciais com abundância, uma língua de comunicação, e outras coisas mais. 

Aqui fala-se bahassa em casa, na rua, no trabalho em todo o lado. A televisão que se vê são programas daos canais indonésios que atétêm boa cobertura.

Claro que a independência de Timor Leste foi a melhor coisa que aconteceu aos timorenses, porque por ela lutaram e tantos deram a vida. Claro que o governo timorense ter decidido adoptar a língua portuguesa como segunda língua oficial é muito prestigioso para Portugal, para os portugueses mas temos que ser realistas.

Neste momento, entender e falar o portugês é um privilégio: embora conste no currículo do ministério da educação timorense, os esforços que se têm feito por parte dos governos e entidades responsáveis pouco se têm feito notar. 

Eu diria mais. Será necessário investir muito mais em prol desta segunda língua oficial, e de preferência do ministério de Educação de Portugal, se quisermos que a nossa língua seja utilizada pelos timorenses: sim, porque a prática de uma língua não se pode resumir à aprendizagem e utilização de umas quamtas palavras ensinadas por professores que têm diiculdades de se expressarem em português corrente. 

É urgente haver mais escolas de referência; é urgente promover e realizar estágios e intercâmbios linguísticos; é urgente que as pessoas compreendam e falem oprotuguês. É a segunda língua oficial!...

O paradoxo é que os timorenses têm uma incrível afeição pelos portugueses ( e não é só por causa do futebol), talvez fruto dos longos anos de presença (entenda-se colonização). E daqui a justificação para empreender ações neste território ou emterritório lusófono que garantam e reforcem o ensino e a aprendizagem do nosso idioma.


02.03.2018, sexta feira  - “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos...”

Hoje, à noite, ouvia-se chorar fortemente em casa. Nada mais nada menos que a

Adobe minha afilhada, num pranto de suor e lágrimas, agarrada ao braço da sua irmã Eza, solicitando-lhe perdão. E como a Eza, que é mais velha, se recusava a perdoar-lhe uma pequena ofensa, porque respondeu à irmã de uma forma nãoconveniente e fora da regulação familiar. Literalmente a Adobe mais parecia a Maria Madalena lavando com o seu choro os pés de Cristo. Mas como o tempo tudo resolve, ao fim de uma dezena de minutos a Eza anuiu e concedeu-lhe o perdão.

Acabaram as lamentações e a Adobe já ria e fazia a sua vida normal junto de nós. Relato esta episódio para dar a conhecer o valor do perdão neste povo. Disseram-me que este espírito se incute nas crianças desde muito pequenas. A Adobe já sabia quenão devia responder à irmã e que, o seu choro incessante de devia a que ela pensava que, quando for grande pode-lhe acontecer o mesmo (quase em jeito de castigo) emrelação aos seus filhos. 

Já nas primeiras crónicas contei também um caso de perdão impressionante. Bartolomeo. Um senhor que vive aqui à nossa frente e que nestemomento até é o chefe da aldeia, foi agredido à catanada em diversas partes docorpo, com maior incidência na cabeça e nos braços, facto que e levou a estar emcoma ae a passar alguns meses no hospital. O agressor foi condenado a dois anos de prisão, mas o Bartolomeo, logo que lhe foi possível, foi à cadeia dar-lhe um abraço

de perdão. A justificação que ele nos dá para tal atitude é sempre a mesma: “Se Jesus perdoou a quem o matou e perdoa a todo a a gente porque é que eu não devo também perdoar?” Hoje são grandes amigos e até compadres.

Quem puder entender que entenda...


03.03.2018, sábado - Longe da vista,perto do coração


Hoje de manhã, durante um ato rotineiro - limpeza dos óculos - dou comigo a pensar, a 25 mil quilómetros de distância, no amigo Rui Coutinho, proprietário da Ótica Coutinho na Lourinhã de que sou cliente há muitos anos. 

Bastante antes do regresso a Timor,  passando por lá, e contando as aventuras da primeira estadia, pedi ao Rui que me desse algumas armações já sem venda comercial para serem trazidas e oferecer a estas gentes. Foi-me entregue um saco com umas quantas unidades doproduto solicitado, que religiosamente trouxe comigo. 

Já em Ailok Laran, não se imaginam a alegria desta gente em experimentar estas novas armações, algumas mesmo sem lentes. Todos viam muito bem com ou sem graduação e sem receita médica. O novo visual era confirmado num pequeno espelho que, sem esforçonenhum esforço, refletia a imagem narcisíaca de cada um.

Ora aqui está. Pequenas coisas que fazem a diferença. Mesmo que o ditado “longe da vista, perto do coração” seja verdade, eu direi que mesmo vendo mal, pordeficiência visual ou por distância quilométrica, um pequeno objeto poderá desfazero ditado e levar-nos a dizer “longe da vista, perto do coração”.

 “E Deus providenciará...”

Se há algum problema que nos preocupa neste momento, sobretudo a mim e ao Gaspar, relacionado com a escola é a constituição do corpo docente. E nem a nossa disponibilidade para exercer tal munus pelo menos durante os primeiros tempos nos deixa tranquilos. 

Assim, têm-se multiplicado esforços no sentido de contactar entidades e pessoas que nos possam valer. Sobretudo o Gaspar, que é um grande conhecedor desta sociedade timorense e que é conhecido de todo o mundo (eu sou testemunha do que afirmo), tem tudo tentado na resolução deste problema; cartas,emails, telefonemas, encontros..., alguns de difícil concretização. Por exemplo ocontacto com o Ministério da Educação Timorense que depois de muitas tentativas nunca responderam a nada.

Hoje de tarde, em jeito de amizade, fomos ao aeroporto de Dili esperar dois casais portugueses que vêm passar alguns dias em Timor. Não sabendo nem o número de voo nem a hora de chegada, aproximamo-nos da porta de chegada e aí esperávamos impacientemente que eles aparecessem. Foi então que me dei conta do regozijo do Gaspar ao abraçar uma senhora, duas a três vezes mais forte que ele.

Ambos contentes, perguntando “há quanto tempo a gente não se encontra?!”

Chegou a minha vez, e o Gaspar apresentou-ma à sua amiga, dizem que ainda de família, nada mais nada menos que a senhora Lurdes Bessa, vice ministra da Educação no governo de Timor. Claro que logo a seguir aos cumprimentos o Gaspar pô-la ao corrente do nosso projeto e tentou envolvê-la em ajudar-nos a resolver o problema que nos aflige. Facilitou-nos os contactos e pensamos que Deus a colocou no nosso caminho para nos ajudar. Pelo menos assim desejamos.

“E Deus providenciará”...


04.03.2018, domingo  - Chegada do amigo João Crisóstomo

A meio da tarde soou o meu telemóvel. Era o amigo João Crisóstomo dizendo: “Já estou em Timor. Acabo de chegar!” Fiquei perplexo e perguntei: “ mas então a tua chegada não estava marcada para amanhã?” Respondeu: “vindes a ter comigo que depois conto tudo”. Claro que a sua chegada era por nós esperada com ansiedade, pois o João é um elemento fundamental no projeto de solidariedade que temos em mãos. Ele dinamiza tudo e todos. E nem os anos que já tem lhe retiram essa capacidade de mobilização. 

Homem de causas, com êxitos internacionalmente reconhecidos, concretamente no apoio aos timorenses durante a luta pela independência, encontrou no nosso projeto de construção de uma escola em Boebau um exemplo e um começo da sua visão sobre o problema da educação em Timor Leste: criação de escolas nas zonas de montanha mais carenciadas. 

Por isso nos tem apoiado desde o primeiro momento; por isso integra a comissão de construção; por isso chegou hoje a Timor para, de entre outras coisas importantes que pretende fazer durante a sua estadia, estar presente na inauguração da escola que será no dia 19 de Março. 

O João é um fisicamente um homem pequeno mas com um enorme coração. Para além da nossa amizade e cumplicidade ele merece onosso respeito e gratidão. Por isso estamos aqui, de braços abertos para o receber e conviver, embora que, por troca de horários, não tivéssemos estado no aeroporto à sua chegada.

À noite, eu, o Gaspar e o Eustáquio fomos ter com o João e partilhamos abraços, conversas, programas, e até o jantar. Foram momentos que, só quem está longe do seu país, sabe e pode apreciar. Obrigado, João. E que todas as tuas expetativas tenham o desenvolvimento desejado...

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25617: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: "E as crianças, meu Deus, porque lhes dais tanta dor?!"

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25617-ii-viagem-timor.html