sábado, 17 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22380: Os nossos seres, saberes e lazeres (460): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (7): A pedra, a fábrica, o rio, a presença da História e da Arte em Tomar (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Andei meses a aboborar sobre o significado desta exposição intitulada "Os Sinais da Pedra". Quem a organizou teve a suave inspiração de pôr muitas forças e elementos num diálogo circular: o património do Complexo Cultural da Levada, ele próprio, é força-motriz na história da cidade de Tomar, começou no século XII, declinou no fim do século XX para se tornar testemunho de um passado singularmente glorioso, oferecendo-se agora como espaço multiusos, onde cabem perfeitamente mercados, exposições, conferências, teatro. Tudo se abre para o Nabão ou para a Vila Velha. E foi um verdadeiro sucesso pôr tanta pedra a circular, homenageando canteiros, artífices e escultores, espalhando toda esta pedra em espaço museológico, aqui se fez eletricidade, moagens, como no passado aqui terão funcionado lagares que deram os seus réditos quer à Ordem do Templo quer à Ordem de Cristo. Exposição inesquecível.
Com alegria aqui a registo

Um abraço do
Mário


A pedra, a fábrica, o rio, a presença da História e da Arte em Tomar

Mário Beja Santos

De um texto emanado do turismo tomarense:
“Sob a designação de Levada de Tomar, identificamos um conjunto edificado com um relevante horizonte cronológico, desde o período medieval, passando pela época moderna, até à época contemporânea.
A sua origem remonta aos finais do século XII e, com uma sucessão complexa de contextos espaciais e tecnológicos, a sua atividade de carácter industrial manteve-se até finais do século XX (e, numa das unidades oficinais daquele conjunto, manteve-se até ao início do século XXI).
O conjunto edificado é contiguo ao rio Nabão. A localização geográfica e o enquadramento urbanístico do sítio, intrínsecos à razão de ser e à funcionalidade técnica, produtiva e económica dos equipamentos ali sucessivamente implantados ou adaptados ao longo dos séculos, confere-lhe uma especial qualidade paisagística, em pleno centro histórico da cidade, onde melhor se dá a ler a permanente interação do homem com o meio, assim como a evolução da ocupação do espaço e das formas de habitar o território.
Com uma disposição integrada em relação ao rio Nabão e à estrutura do açude e da levada (a norte e a poente), destacam-se os edifícios de antigos moinhos e lagares (que eram alimentados pela energia potencial da água, através de rodas hidráulicas verticais ou de rodas horizontais), duas antigas fábricas de moagem (testemunhando o uso quer da energia hidráulica, quer da energia elétrica) e uma central elétrica.
A Levada de Tomar está a ser objeto, desde 2011, de uma empreitada promovida pela Câmara Municipal de Tomar, para execução do projeto de requalificação e reabilitação arquitetónica, com base na decisão de criação de uma entidade museológica, designada por Museu da Levada de Tomar. O Projeto do Museu da Levada destina-se à planificação de ações integradas de salvaguarda e proteção de património cultural através da programação de uma entidade museal que faça parte de um processo de desenvolvimento científico, cultural, educativo e social do território de Tomar e de dinamização da economia e do turismo local”
.
O que desperta a atenção do visitante é ver os séculos de História estampados numa construção que se confunde com momentos fulcrais da vida de Tomar: o aproveitamento nas águas do Nabão para desenvolver a economia, logo no advento da presença templária, temos uma sequência que nos permite chegar à alvorada da eletricidade e ao complexo instituído pela família Mendes Godinho que aqui tinha uma das sedes do seu império. A envolvente é extraordinária, tem a Ponte Velha, bem perto a Várzea Pequena e o Mouchão, a permanente correnteza do Nabão, há visibilidade para a Casa dos Cubos e para os Estaus, são lembranças do Infante D. Henrique e de outro administrador, D. Manuel I; e frente ao Complexo da Levada a presença da Vila Velha, a sua vanguarda, a sua rua mercantil, a Corredoura.
Percorre-se todo este património edificado e não é difícil entender como aqui se concebem eventos que podem ser mercados do livro, conferências, exposições da mais variada índole. Até ao final do ano de 2020 aqui aconteceu uma exposição ousada que pôs em diálogo todo este espaço que fala dos Templários e da era industrial com trabalhos de pedra, lavrada, artística, cantaria feita com esmero e sentimento, peças espalhadas pelo interior e exterior, fotografias a dialogar com máquinas silenciosas, do tempo da primeira eletricidade e das moagens. Quem organizou deve ter dimensionado os riscos de pôr tanta pedra a circular num espaço de diferentes séculos. O diálogo produzido foi um rotundo sucesso. É com imenso prazer que aqui se mostra deslumbramentos a pedra e quem a trabalha para finalidades mil.
Como não ficar impressionado com estes colossos mudos aqui implantados para gerar riqueza industrial, bem perto havia uma fábrica de fiação, mais longe as fábricas de papel, era a Tomar industrial a competir com a Tomar agrícola, empregando muita gente, não foi por acaso que na I República houve na cidade um congresso sindical, para aqui convergiram representantes da classe operária e a Levada era um expoente de progresso, da dinâmica da cidade com o seu castelo e convento lá no alto, já a deslumbrar os turistas da época.
Com a pedra se faz arte, ainda há dias via e ouvia um investigador em Foz Coa a comentar aqueles traços do homem pré-histórico que se servia da pedra a deixar sinais de que era sensível ao que o cercava, esculpia para a posteridade as manifestações do belo. Há aqui pedra artística, pode ficar no interior ou fazer-nos especar no piso de tijoleira, são trabalhos de pedra que alguém pensou ali deixar, detemo-nos muito ou pouco tempo, podemos dar largas à imaginação e ver esta passarada a voar, não há nada de extraordinário pois temos corvos marinhos poisados nas árvores do Nabão, nada temos contra esta passarada que muito bem pode ter acontecido por aqui ter passado, isto é território com muitos séculos de História.
A pedra, o artífice, a fotografia, o ambiente reciclado. E tudo acaba por bater certo, estes sinais da pedra cabem numa palavra: construção, construção para habitar, para calcorrear, para nos impressionar pela beleza que ela provoca, seja património edificado, seja escultura, seja o artista que com o cinzel se prepara para a deixar presente em nossas vidas e nas vidas seguintes.
Por tudo isto somado, demorei tempo a ruminar o significado desta exposição, e como gosto da explicação encontrada, é com o maior dos regozijos que partilho convosco imagens tão convidativas que falam do Nabão e dos sinais da pedra e nas manifestações artísticas que delas emanam. Espero não vos dececionar.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22358: Os nossos seres, saberes e lazeres (459): A doação de José-Augusto França à cidade de Tomar (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22379: Parabéns a você (1979): Jaime Bonifácio Marques da Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

 

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22367: Parabéns a você (1978): António Tavares, ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72)

Guiné 61/74 - P22378: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XII: Las Vegas, Nevada, Estados Unidos da América, 2005: What a wonderful world!

 




EUA, Nevada, Las Vegas > What a wonderful world!

[ Texto e fotos recevidos quinta, 1/07/2021 à(s) 20:33 ]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.


Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.


Las Vegas, Nevada, Estados Unidos da América, 2005


Las Vegas, a cidade do jogo, da transitória felicidade, onde quase tudo vale.

Chego em 2005, ao volante do alugado Buick, le Sabre, depois de cavalgar meio farwest, desde o estado do Colorado, por estradas, auto-estradas e sinuosos caminhos, por canyons e desertos de pedra, por cidadezinhas perdidas entre o nada e areias douradas.

Alojo-me no Stardust, Las Vegas Boulevard, poiso de gente boa, Frank Sinatra e outros simpáticos mafiosos. O conforto do hotel, a piscina, o casino, ganhar, o inevitável perder, a defenestração do sentir por janelas semi-abertas para os encantamentos do dia. Adiante. O rasgar das avenidas, as águas coloridas dançam no Bellagio, ao sabor da música. A Strip, um enxame de hotéis e casas de jogo, Céline Dion, no Ceasers Palace -- "pour épater le bourgeois", ou seja, o endinheirado turista de passagem, -- canta, de permeio com outras canções, a odisseia de naufrágios titânicos em águas geladas do Atlântico Norte, lá, do outro lado da América.

Pelos boulevards, entre pastiches de Nova Iorque – uma estátua da Liberdade incluída –, recordações fingidas de Luxor, no Egipto, uma falsa torre Eiffel, imitações de Veneza, e tantas coisas mais. Há prostitutas bonitas e feias, gigolôs de passagem, sobretudo simples cidadãos americanos no despautério infernal da jogatana, desbaratando milhões de dólares. Celebram-se convenientes casamentos de ocasião, em capelas plasmadas em corações vazios.

Dez mil fantasias, um carrilhão de lágrimas, um breve carrão de alegrias para entreter o célere perambular das gentes no mundo. Até os deuses se distraem com os pecados dos homens.

 What a wonderful world!
 
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22337: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XI: Japão, Hakone, março de 2014

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22377: Tabanca Grande (521): Manuel Domingos Ribeiro, ex-Fur Mil Art MA da CART 6552/72 (Cameconde, Cacine, Cabedu e Catió, 1972/74) que se senta no lugar 844 do nosso Poilão


1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, Manuel Domingos Ribeiro, ex-Fur Mil Art/MA da CART 6552 (Cameconde, Cacine, Cabedu e Catió, 1973/74), com data de 15 de Julho de 2021:

Sou Manuel Domingos Carneiro Ribeiro, natural de Rio Tinto, Concelho de Gondomar, morador na freguesia de Cête, Concelho de Paredes, Distrito do Porto.

Ex-Furriel Mil Atirador de Artilharia/Minas e Armadilhas e pertenci à CART 6552.

Fui mobilizado para servir na ex-Província Ultramarina de S. Tomé e Príncipe em Outubro de 1972, mas fui desviado para a Guiné em Maio de 1973, onde estive até 7 de Setembro de 1974.

Junto, como é da praxe 2 fotografias, uma atual e outra do tempo da Guiné - Cameconde, Cacine, Cabedu e Catió.

Sou seguidor do blog desde 2011, mas só agora consegui tentar inscrever-me.

Junto com a minha foto do tempo da Guiné a bordo de uma lancha da Marinha com destino a Cacine, seguem mais duas de Cameconde.

Sem mais de momento
Os cumprimentos
Manuel Ribeiro


Fur Mil Manuel Domingos Ribeiro a caminho de Cacine.
Manuel Domingos Ribeiro, "hoje"
Vistas parciais de Cameconde

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2. Nota do coeditor:

Caro Manuel Domingos,
Muito bem-vindo à tertúlia, em nome de quem te deixo desde já um abraço. Ficas com o lugar n.º 844, à sombra do nosso Poilão, "sítio" onde poderás publicar as tuas memória escritas e fotografadas.

Quase ias perdendo a grande oportunidade da tua vida. Já viste o desperdício de uma comissão de serviço em S. Tomé, quando a Guiné estava aqui tão perto? Também não sei o que esperavas, sendo Atirador e tendo o curso de Minas e Armadilhas, e tudo, o que ias fazer para uma ilha paradisíaca, armadilhar coqueiros? Fazer tiro ao alvo?

Agora a parte séria. A vossa Companhia foi para Cameconde (subsector de Cacine) quando aquilo estava mesmo muito quentinho. Não nos queres dar o teu testemunho daqueles últimos dias, já que a CART 6552 ali permaneceu até à entrega do aquartelamento ao PAIGC?

Parece que o vosso destino era entregar aquartelementos porque após a retirada de Cameconde foram para Cabedu, onde também passaram o testemunho ao PAIGC. De tudo isto nos poderás falar e enviar fotos dos momentos mais marcantes do fim da nossa permanência na Guiné.

Uma nota de rodapé para te dizer que, morando tu no Grande Porto, tens perto de ti a Tabanca dos Melros, com sede e Museu na Quinta dos Choupos, em Fânzeres/Gondomar, onde no segundo sábado de cada mês a malta se reune para conviver a apreciar deliciosos almoços servidos pelo nosso camarada Gil Moutinho, ele próprio ex-Fur Mil Piloto que sobrevoou os céus da Guiné. Como os tempos vão conturbados é melhor confirmares.

E pronto, aqui fica o abraço dos editores deste Blogue com a certeza da nossa disponibilidade para dar estampa às tuas memórias e fotos dos teus, e nossos, tempos de combatentes à força.

CV

Guiné 61/74 - P22376: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Está para breve a digressão em torno de vários cemitérios na Flandres, Paulo prometeu a um amigo identificar e fotografar lápides de vários familiares. Sempre zelosa, e ajudada por um bambúrrio da sorte, Annette adquire num alfarrabista de Bruxelas um Guia Michelin sobre campos de batalha da I Guerra Mundial, as batalhas de Ypres entre 1914 e 1918, cerca de dois milhões de mortos, o sonho da Alemanha Imperial em obrigar os britânicos a retirar e conquistar a França. Annette confessa a Paulo que aquelas fotografias mostrando Ypres completamente arrasada, templos e casas vetustas reduzidas a escombros, os impressionantes cemitérios dos Aliados e dos Alemães pareciam suficientes para jamais se pensar em guerra, só que ela regressou cerca de 20 anos depois mais avassaladora que os gases-mostarda e aqueles canhões que à distância de 14 quilómetros reduziam cidades a cinzas. Ficou estupefata quando leu o comentário que naquele dia 9 de abril de 1918 o Corpo Expedicionário Português sofrera um desastre tão grande, que aproximava a tragédia a algo que não se via desde Alcácer Quibir. E Annette vai escrever logo de seguida uma operação que Paulo viveu na região do Xime, em 8 de março de 1970, a cerca de meio ano de findar a sua comissão, será a única operação que lhe deram para delinear e executar, e Paulo confessa que teve muito orgulho nos resultados obtidos, regressou sem mortos e feridos e apanhou os guerrilheiros numa surpresa total.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, mon triomphe de l’amour, imagina tu a sorte que tive, num alfarrabista do Boulevard Lemonnier, a uma curta distância da Rua do Eclipse, encontrei a um preço irrisório, de um conjunto de guias ilustrados Michelin da I Guerra Mundial, uma edição de 1919 sobre Ypres e as batalhas de Ypres, propondo viagens com partida e chegada em Lille (diga-se, de passagem, que depois de consultar as cartas geográficas, é o mais lógico itinerário que devemos seguir para encontrar as lápides funerárias dos tais John Minton, Craig Lloyd, Robin Stewart, e depois seguimos para Calais, ando à procura dos cemitérios). Confesso-te que dormi mal, sei que esta guerra foi o horror dos horrores, que na região de Ypres morreram dois milhões de homens, que se travaram batalhas sanguinolentas, autênticas carnificinas, e sei o que os portugueses sofreram na última ofensiva alemã, iniciada em 7 de abril e que apanhou o contingente português a 9 de abril, ali acontecendo uma tragédia, diz o guia que foi a maior que os portugueses sofreram depois da batalha de Alcácer Quibir.

Os próprios autores do guia se interrogam como foi possível escolher aquele terreno, uma bacia natural formada por uma planície marítima cheia de canais, com pequenas colinas arborizadas, mas sobretudo pensar que esta rede de canais do rio Yser, cheia de riachos, um verdadeiro sistema hidrográfico incompatível com o modelo de guerra que ocorria noutros sítios, o das trincheiras. Daí a singularidade desta frente, onde os nevoeiros e as chuvas torrenciais descarnaram o solo que está quase ao nível do mar, é uma terra esponjosa, a 30 centímetros da crosta parecem logo lençóis de água, imagina agora a potentíssima artilharia a destruir Ypres e os destacamentos dos Aliados, uma região cheia de quintas que se irão tornar fortins com bunkers cimentados cercados de arame farpado. É neste cenário que em breve iremos visitar que irão ocorrer a violenta ofensiva alemã de 1914, a contraofensiva aliada de 1915, um compasso de espera até 1917, a ofensiva alemã de 1918 e a resposta aliada nas planícies da Flandres, quando a Alemanha já está exangue e pedirá o Armistício.

Estou a sublinhar alguns dos dados destas quatro grandes batalhas que envolveram a Alemanha Imperial que aqui implantou dois exércitos e um sistema impressionante de artilharia, alguns dos melhores canhões da época, do outro lado britânicos, canadianos, neozelandeses, franceses e belgas. Os alemães pretendem chegar até ao Mar do Norte, destroçar os britânicos, o imperador alemão pretende fazer uma entrada solene em Ypres, haverá lutas encarniçadas à volta da saliência de Ypres, recuos e avanços de um lado e do outro, tudo isto entre outubro e novembro de 1914, tudo ficará num impasse. Exasperada pelo seu insucesso, a Alemanha Imperial vai sistematicamente destruindo Ypres com bombas incendiárias. Pelas consultas que fiz, creio que Craig Lloyd irá morrer a 17 de dezembro, o Exército Alemão lançou um violento ataque sobre Langemarck e Bixschoote, foi uma autêntica tempestade de lama, na retirada os belgas inundaram os campos.

Espero não te estar a aborrecer com estes pormenores, é na ofensiva alemã de 1915 que surgem os gazes asfixiantes, tudo começava com uma nuvem de fumo de cor verde, uma brisa ligeira avançava para o campo dos Aliados que caíam asfixiados num sofrimento atroz. Tu já me tinhas feito a referência a um livro escrito por um historiador português, Jaime Cortesão, médico, que descreve o horror de um contingente português a entrar em Lille afetado por esses gases, em carne viva e muitos deles cegos, claro que mais tarde, visto que a vossa presença é posterior à ofensiva aliada de 1917 que, segundo o guia, teve seis fases, a tomada de linhas alemãs entre julho e agosto e a resposta alemã de agosto a setembro, uma resposta dos Aliados entre setembro e outubro e a ofensiva britânica de outubro, novos ataques entre outubro e novembro, a partir daí considera-se que Ypres fica fora de perigo de uma ofensiva brutal dos alemães. O resto tu deves saber perfeitamente. Com o Tratado de Brest-Litovsk, a Rússia é posta fora de combate, a Roménia assina a paz, a Itália está neutralizada, a Alemanha Imperial desloca todos os homens e equipamentos para a frente ocidental, o general Ludendorff, à frente de um número impressionante de divisões pretende atirar os britânicos para o mar e temos a rotura da frente em 9 de abril, demorou semanas a neutralizar estes assaltos alemães que se irão prolongar até 29 de abril. O resto tem a ver com a ofensiva libertadora e o fim da guerra.

Meu adorado, é evidente que tudo mudou desde 1919, Ypres foi reconstruída bem como todas as povoações-mártir, temos museus em locais onde se travaram batalhas, penso que era útil partirmos de Bruxelas para Lille e fazermos a primeira viagem até ao cemitério britânico de Tloegsteert, iríamos depois de Messines até Passchendaele, aqui está sepultado o tio do teu amigo Colin, John Minton, há vários cemitérios alemães, indico-te, pois, quais são, na eventualidade de os quereres visitar. E iríamos de Passchendaele a Ypres, o memorial é impressionante, há todos os dias sem interrupção um cerimonial de homenagem a todos os que caíram em nome da liberdade, já anotei o cemitério ao pé de Ypres onde está sepultado Robin Stewart. Este Guia Michelin é assombroso, mostra-nos ainda Ypres completamente em ruínas, palácios e casas muito antigas reduzidas a escombros, os templos religiosos muito danificados. Tens que me dizer abertamente se achas bem este itinerário para as visitas dos cemitérios de Ypres. A última etapa seria de Poperinghe para Lille, folheio esta obra e interrogo-me como foi possível cerca de 20 anos depois termos voltado às carnificinas e às dezenas de milhões de mortos.

Está praticamente coligido o material referente à Operação Rinoceronte Temível, pelas informações do meu coordenador, trabalho amanhã numa reunião do Comité Económico-Social, provavelmente acabará muito cedo, venho para casa e enviar-te-ei o meu relatório, se me permites usar a expressão. Não me tivesses tu enviado um documento policopiado dessa operação e ter-me-ia passado pela cabeça que era tudo pura ficção. Quem é que pode acreditar que andaste com centenas de homens numa noite escura dentro de quilómetros de arrozais, na mira de obteres surpresa sobre os guerrilheiros? E o que me admira é que foste bem-sucedido, bateste a zona ocupada e retiraste sem um ferido. Vem depressa, sei que é repetitivo, talvez muito cansativo para ti, mas é uma dor insuportável a tua ausência. Bisous, milles, mon amour éternel, Annette.

(continua)

Imagem iconográfica da terceira batalha de Ypres
O interior de uma trincheira, imagem do consagrado filme 1917
Tropas de assalto alemãs emergem de uma espessa nuvem de gás fosgénio estabelecido por forças alemãs que atacam linhas de trincheiras britânicas, na França (1917). A nuvem de gás oferece cobertura para os soldados atacantes.
A chegada da fotografia aos campos de batalha, veja-se o moinho marcado pelos estilhaços das granadas
Museu dos campos da Flandres, cemitério
Batalha de Passchendaele, homenagem aos seus mortos gloriosos
Monumento que não necessita de palavras
Excursão aos campos de batalha da Flandres
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22355: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22375: In Memoriam (398): José Martins Rosado Piça (1933-2021), 1º srgt inf ref (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71), nosso grã-tabanqueiro nº 660... Mais do que "o nosso primeiro", um grande amigo e melhor camarada.



Tabanca da Ponta de Sagres - Martinhal > 2014 > O José MartinsRosado Piça, em fotograma de vídeo que nos mandou o régulo, o Tony Levezinho (*)... Conheci-o em Santa Margarida, por volta de abril de 1969, por ocasião da formação da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), mobilizada para o CTIG. Teria então 38 anos (, pelo que terá nascido em 1931), e já com três comissões de serviço no ultramar (se não erro). 

Foi o sargento mais "bacano" que conhecia na vida e, em Bambadinca, foi um grande camarada e um amigo... para a vida!...Para todos os efeitos, foi o "nosso primeiro", substituindo o Fragata quando este foi frequentar a Escola Central de Sargentos em Águeda. 

Integrou a Tabanca Grande em 2014. Ainda nos vimos, depois da "peluda", duas ou três vezes, e falámos várias vezes ao telefone. Lamentavelmente, nunca o cheguei a visitar em Évora onde vivia. E também, infelizmente,  tem poucas referências no blogue. Mas vai deixar-me uma grande saudade,  a mim, ao Tony, ao Humberto Reis e demais camaradas que tiveram o privilégio de com ele conviver, nomeadamente na tropa e na guerra. 

O José Martins (e não Manuel...) Rosado Piças nasceu em Aldeias de Montoito, em 25 de setembro de 1933. Morreu, pois, com 87 anos anos, (LG).


1. Acabo de saber, pelas redes socais, da triste notícia da morte do nosso querido camarada e amigo, José Martins Rosado Piça, ontem, quinta-feira. 

Hoje, sexta-feira, chegará o corpo por volta das 17h30m à capela de Montoito (Évora), sua terra natal.  O funeral será amanhã, sábado, dia  17, às 12h00, seguindo posteriormente para o crematório de Elvas.

A sua neta, psicóloga. Tânia Caçador, escreveu o seguinte, na sua página do Facebook:

(...) O meu avô Zé! Que me acompanhou, guiou, orientou e protegeu desde que sou gente, um PAI, partiu, e com ele leva um pedaço de mim. Homem de trato fácil, com uma gargalhada inconfundível e altamente sociável, nunca encontrei quem não gostasse dele!

 Foi um BRAVO avô, o mais bravo deste pelotão da vida, essa é a verdade, e os bravos jamais serão esquecidos. Hoje o céu está em festa, disso tenho a certeza, e nós, eu, profundamente infelizes...para mim é insuperável, enfrentar um mundo do qual já não faz parte, simplesmente terei de 8esperar até que possamos novamente nos reencontrar, mas, e quando chegar a hora, sei que estará lá e será a sua mão que agarrarei...amo-o com todo o foi um privilégio tê-lo como avó e estou imensamente grata pela sua vida e pelos momentos e memórias inesquecíveis que me proporcionou, que nos proporcionou. Até sempre...Até já...(...)


2. Escreveu, com grande propriedade e ainda maior carinho, em 2014,  o Tony Levezinho (**);

(...) Sobre o nosso Sargento José Martins Rosado Piça ("Piça para servir V. Exa.",  como ele gostava, por brincadeira, de se apresentar) não serão precisas muitas palavras para descrever este homem simples.

Oriundo de Aldeias de Montoito, Évora, este alentejano, na altura em que convivemos, apenas o separava de nós, a idade, (teria uns 40 anos) e o facto de ser um profissional do quadro permanente do Exército.

Quanto ao mais, a sua relação com os milicianos do Bando (era assim que ele se referia à nossa companhia) fazia toda a diferença, pela positiva, dos demais elementos da sua classe, com quem nos cruzámos, ao longo da nossa aventura pelas fileiras do Exército.

Com efeito, era homem de piada fácil, mas também muito sensível aos afetos. Era disso expressão óbvia o brilhozinho nos seus olhos. De alegria, quando partilhávamos momentos de relaxamento, tais como, as cartadas, os copos, as cantorias, etc., ou de preocupação/tristeza sempre que nos via partir, em missão, para fora do perímetro do aquartelamento.

Era clara para nós a necessidade que sentia de estar por perto dos seus furriéis, muito mais do que partilhar a mesa de jogo com os seus iguais, do quadro. E este seu comportamento teve a sua expressão maior, depois da partida do 1.º Sargento da companhia, o que se compreende.

Diria que o elenco que ele encontrou na CCaç 12 o terá tocado, de forma particular. Atrevo-me a fazer esta afirmação porque, há um par de meses, encontrei-o, em Portimão, ao fim destes anos todos, acompanhado da mulher.

A alegria e o abraço apertado foram mesmo espontâneos. Achei ainda muito significativo o facto da sua mulher, que eu não conhecia, ter dito que ele não se cansa de falar de nós. Logo me pediu o contacto do Henriques, do Reis, o meu, e a verdade é que, desde então, já falamos algumas vezes, ao telefone, e está combinado um encontro em Sagres, quando a oportunidade surgir.

Ele continua no Alentejo e tem um apartamento em Portimão, terra onde a filha vive, passando, por isso, algum tempo nesta cidade algarvia.

Apesar dos seus 80 e picos anos, continua com uma memória de elefante, tal foi o desbobinar de episódios daquela época que evocou, em detalhe, nos breves 20-30 minutos que durou o nosso encontro acidental.

Que continue com a mesma capacidade de comunicar, como a que lhe reconheciamos, à época e que, acreditem, se mantém.

Se há elemento que merece ser puxado para a nossa tabanca é, sem dúvida, o Sargento Piça. (...)


3. Na apresentação à Tabanca Grande, eu escrevi o seguinte (**):

(...)  Meu amigo, camarada, compincha: como vês, somos uma espécie em vias de extinção, os últimos soldados do império... É por isso, também, que te queremos cá, sentado sob o poilão da nossa Tabanca Grande. Passas a ser o nosso grã-tabanqueiro n.º 660, um  número bonito e fácil de decorar. Um dia destes telefono-te a dar-te mais dicas para te manteres ligado a nós. O Tony Levezinho já disse tudo ou quase tudo a teu respeito. Não poderias ter melhor "padrinho". Muita saúde e longa vida porque tu mereces tudo. E faz favor de partilhar o teu álbum fotográfico connosco!.. Um xico...ração. O Henriques.(...)


E acrescentei em comentário, ao poste P13325 (**): 

(...) O Piça era (e é) dotado de um desconcertante sentido de humor... Recordo-me de nos ter contada esta, dos seus primórdios da tropa...

Como muitos alentejanos, pobres, da sua geração, o Piça casou-se "à maneira da época"... As famílías de um lado e de outro não tinham dinheiro para custear a despesa de um casório com boda... A única solução, para não se ficar mal perante amigos e vizinhos, era "simular o rapto"... O noivo "raptava" a noite e ficava o assunto resolvido...Juntavam os trapinhos e esperavam por melhores dias...

Um das soluções - para além da emigação interna e externa - era a tropa. Foi o que fez o Piça. Meteu o xico. Mas agora era preciso dos papéis e regularizar o seu estado civil: casado "de facto", mas não "de jure"...

Um belo dia, foi lá ao padre, às 8 da manhã, com a noiva para receber o santo sacramento do matrimónio... E logo a seguir, às 9h, trouxe a filhota para batisar...O padre, espantado, interpelou-o:
- Já, tão cedo?!
- Ó sr. padre, de mamhã é que se começa o dia! (..:) 


 Uma figura impagável da Bambadinca do meu/nosso tempo!... Um grande amigo, para além de camarada, no verdadeiro sentido da palavra...Nunca conheci sargento tão "bacano" como ele... Como eu era do "reviralho", chamava-me na brincadeira o "Soviético"...

Daqui envio para toda a família, e para os seus amigos mais íntimos, os votos de pesar, meus, da Alice, e de toda a Tabanca Grande. (***)
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(***) Último poste da série > 10 de julho de  2021 > Guiné 61/74 - P22360: In Memoriam (397): Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), ex-fur mil, CART 2439 / CART 11 (Contuboel e Piche, 1969), e CART 2520 (Xime e Enxalé, 1969/70)... "Morreu o meu querido amigo, no passado dia 7... Escrevo a notícia a chorar" (Valdemar Queiroz)

Guiné 61/74 - P22374: Tabanca do Atira-te Ao Mar (8): "Círio" à Senhora dos Remédios, Cabo Carvoeiro, Peniche, 13/7/2021 - Parte II: uma capela, que merece uma visita, totalmente revestida por painéis cerâmicos, a azul e branco, do séc. XVIII, representando cenas da Virgem Maria



Foto nº 1 > Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remedios > Painel de azulejos no lado do Evangelho > Pormenor:   "Nascimento da Virgem"  



Foto nº  2 > Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > Painel de azulejos no lado do Evangelho > Pormenor: "Apresentação da Virgem no Templo"



Foto nº 3 > Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > 13 de julho de 2021 > Nave: painel de azulejos na parede fundeira (do lado do Evangelho) (i)



Foto nº 4 > Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > 13 de julho de 2021 > Nave: painel de azulejos na parede fundeira (do lado do Evangelho) (ii)


Foto nº 5 >  Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > 13 de julho de 2021 >  Painel de azulejos no lado da Epístola > Pormenor: "Adoração dos Pastores"


Foto nº  6 > Peniche > Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > 13 de julho de 2021 >  Painel de azulejos no lado da Epístola > Pormenor: "Adoração dos Pastores" e  cartela com a inscrição, em latim, "C(h)ristum Canamus Principem Natum Maria Virginae": Cantemos a Cristo, nosso príncipe, nascido da Virgem Maria


Foto nº  7 > Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > Painel de azulejos no lado do Evangelho > Pormenor: "Apresentação do Menino no Templo"  ou será a  "Adoração dos Reis Magos" ? Ficamos na dúvida...
  > Na cartela pode ler-se: "Vocatum est nomem eius Iesus" ("Então era esse o nome de Jesus").



Foto nº 8 > Peniche >Largo dos Remédios > Santuário da Senhora dos Remédios > Fachada lateral direita (muro do adro), lado Norte, com o mar em frente. Está situada junto à costa o num nível mais baixo em relação aos edifícios que o circundam.



Foto nº 9 > Peniche >Largo dos Remédios > Santuário da Senhora dos Remédios > Entrada, virada para nascente.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  A capela da Senhora dos Remédios está classificada como imóvel de interesse público desde 1996. Confesso que já só tinha uma vaga ideia do seu interior, devo ter cá vindo  na segunda metade da década de 1970. E lembrava-me, não tanto dos fabulosos azulejos que revestem toda a nave da capela, como sobretudo da sala dos ex-votos, alguns deles ofertados por antigos combatentes da guerra do ultramar / guerra colonial, e que me causaram alguma impressão por serem moldes em cera de certas partes do corpo, com destaque para pernas e braços. Mas desta vez a sala de oferenas  e a tribuna não estavam acessíveis... (São revestidos, as paredes e o tecto, a azulejos polícromos seiscentistas, que não pude observar nem fotografar.)

Há sempre uma "lenda" por detrás destes locais de culto cristão, em geral mariano. No caso da Senhora dos Remédios, tudo remonta à ocupação da península ibérica pelos "inféis" (sic), vindos do Norte África, a partir de 711...

Segundo a lenda, os cristãos da região da Atouguia, atemorizados, teriam escondido uma imagem de Nossa Senhora, numa pequena gruta ou caverna junto ao mar, a norte do Cabo Carvoeiro, com as Berlengas ao fundo... "Milagrosamente", a imagem é encontrada no séc. XII, por um foragido...que calhou entrar na gruta... Nessa altura, Peniche era um ilha e a Atouguia da Baleia... um dos portos mais importantes do novo reino. (A "descoberta" da imagem da Virgem seria mais ou menos contemporânea da da Senhora da Nazaré, por volta de 1179, ou seja, 3 dezenas de anos depois da "reconquista" da região que é hoje o oeste estremenho. Diz a tradição a capela-mor terá sido construida na tal gruta onde terá "aparecido" a pequena imagem da Virgém com o Menino Jesus nos braços...e foi a partir deste local que se desenvolveu o santuário,)

O culto da Sra dos Remédios estará, pois, associado à "Reconquista Cristã"... Com o tempo tornou-se importante, à escala regional. E mantém-se até aos nossos dias, cm peregrinações anuais, os "círios", que vêm das redondezas (, desde Mafra à Nazaré, de Torres Vedras a Alcobaça, da Lourinhã a Óbidos), mas também até, imaginem!, da vizinha Espanha (Valladolid)...

 2. A capela, que chegou aos nossos dias,  é  de pequenas dimensões, e de estilo maneirista e barroco, e tem planta retangular, sendo  composta por: (i) capela-mor (onde se venera a imagem da Virgem com o Menino Jesus nos braços) e nave, abobadadas; (ii) com espaço de culto prolongado por um grande alpendre (que  estabelece a comunicação com a zona exterior e sala de oferendas );  e (iii) adro e pátio envolventes. (O extenso pátio ou terreiro fronteiriço é orlada das casas destinadas ao ermitão, aos mordomos e aos romeiros, incluindo as indispensáveis cocheiras ou  cavalariças; hoje é local de feira, em dias de romaria).

No adro, que é vedado, ergue-se, do lado poente, a fachada do santuário e a torre sineira,

A  criação do atual  santuário remonta ao séc. XVII (, embora a sua origem seja mais antiga). As paredes da nave são totalmente revestidas por azulejos azuis e brancos, setecentistas, que representam episódios da vida da Virgem, sobre um rodapé com cartelas de emblemas marianos. Esta exuberância de painéis cerâmicos significava que, na altura, o santuário era rico ou tinha benfeitores ricos.

Do lado do Evangelho, os painéis de azulejos representam cenas do Nascimento da Virgem (Foto nº 1), da Apresentação do Templo  (Foto nº 2) e o Casamento. 

Da parte da Epístola, a Anunciação foi interrompida pelo púlpito, sendo, por isso mesmo, posterior aos azulejos, e seguindo-se  a "Adoração dos Pastores"  (Foto nº 5). 
 
A cobertura da nave é também revestida a azulejos. A Assunção da Virgem é o tema principal,envolto pela figuração das virtudes. 

Lê-se no sítio Património Cultural:

(...) Assinados, na nave, por António de Oliveira Bernardes, estes azulejos constituem um importante testemunho da fortuna que este género de decoração alcançou no nosso país, e em particular em Peniche, onde pela mesma época (década de 1720), encontramos mais duas igrejas totalmente revestidas por painéis cerâmicos - Nossa Senhora da Ajuda e Nossa Senhor da Conceição. Uma diferença, no entanto, isola a ermida dos Remédios neste contexto, e que é a ausência de talha dourada, aqui substituída por talha a imitar mármore, no retábulo-mor, denotando um certo afastamento dos modelos nacionais e reflectindo um gosto mais erudito e "joanino". (Rosário Carvalho) (..:)

Horário de culto e visitas: todos os dias, exceto à sexta-feira, das 10h00 às 17h30. O santuário pertence à freguesia da Ajuda, Peniche. Pároco: padre Diogo Correia.

Fico com vontade de, um dia destes, visitar as duas referidas igrejas, Nossa Senhora da Ajuda e Nossa Senhor da Conceição. Confesso que sou fã da nossa azulejaria, uma arte única que nos veio dos árabes, e tem 500 anos de produção. "O azulejo português é uma das marcas que representa a cultura de Portugal", diz o National Geographic. E devemos ter orgulho nisso!

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22373: Tabanca do Atira-te Ao Mar (7): "Círio" à Senhora dos Remédios, Cabo Carvoeiro, Peniche, 13/7/2021 - Parte I: "Pagadores de promessas"

Foto nº 1 > Peniche > Santuário de Nossa Sra dos Remédios > Adro > 13 de julho de 2021 > O grupo de "romeiros" fotografaddos no adro, tendo ao fundo a achada principal da igreja: da esquerda para a direita (...e para "memória futura"), o Joaquim Pinto Carvalho (Porto das Barcas, Lourinhã) o António Pinto da Fonseca (Estrada, Peniche),o Joaquim Jorge (Ferrel, Peniche), a Esmeralda Silva Costa (irmã do Jaime) e o marido, Francisco Costa (Lourinhã), a Lurdinhas (a prima do Jaime e da Esmeralda) (Seixal, Lourinhã), a Alice Carneiro (Lourinhã), o Jaime Silva (Seixal, Lourinhã) e o José Carvalho (Roliça, Bombarral). O fotógrafo foi o nosso editor, Luís Graça.



Foto nº 2 > Peniche > Santuário de Nossa Sra dos Remédios > Adro > 13 de julho de 2021 > Os "quatro magníficos", os "romeiros" que vieram a pé desde a Praia da Areia Branca e chegaram à meta: da esquerda para a direita, Maria do Céu Pinteus, Joaquim Pinto Carvalho, Jaime Silva e Esmeralda Silva Costa.



Foto nº 3 > Peniche > Santuário de Nossa Sra dos Remédios > Adro > 13 de julho de 2021 > Painel de azulejos afixado na parede do lado sul, com listagem, por ordem alfabética, dos círios que aqui vêm (ou vinham) tradicionalmente.  O painel foi oferta da Misericórdia de Óbidos e remonta a 2008. Oito das povoações que realizam (ou realizavam) círios, num total de 33, são da Lourinhã (Atalaia, Areia Branca, Miragaia, Moledo, Reguengo Grande, Reguengo Pequeno, Toledo e Vimeiro)... Só um é da terra (Peniche), o que vem dar razão ao provérbio popular, "Santos da casa, não fazem milagres"...



Foto nº 4 > Peniche > Santuário de Nossa Sra dos Remédios > Terreiro >  13 de julho de 2021 >  Jaime Silva, um "pagador de promessas"...


Foto nº 5 > Peniche > Restaurante "Toca do Texugo" >  13 de julho de 2021 >   O José Carvalho, um "barão do K3", que veio expressamente do Bombarral, para se juntar, na parte final,  aos "caminheiros" da Tabanca do Atira-te ao Mar... Viu, a tempo, a notícia no nosso blogue (*)...  Aqui à conversa com o régulo Joaquim Pinto Carvalho, seu vizinho do Cadaval... Contemporâneos na Guiné , descobriram agora que andaram no mesmo colégio, pelo menos um ano...



Foto nº 6 > Peniche > Santuário de Nossa Sra dos Remédios > Terreiro >  13 de julho de 2021 > Sala de oferendas, onde se acendem velas à Virgem e se depositam ex-votos.


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Os tabanqueiros da Tabanca do Atira-te ao Mar andam agora... "numa" de peregrinações, romarias, romagens, círios, caminhadas a pé até a um lugar de culto sacro-profano... desde que seja num raio de 20/30 km... 

Uns movidos pela fé, outros para pagar promessas antigas, outros ainda pela nostalgia da infância, e a maior parte... pela simples vontade de (con)viver!... Bolas, três anos de tropa e guerra e, agora, ano e meio de pandemia, não há cristão que aguente!... É caso para erguer as mãos aos céus e perguntar: "Que mal fiz eu a Deus ?!... Se foi o pecado original, bolas, já está mais que pago pago ao fim de tantas e tantas gerações!"...

Há dias foi o "círio" ao Senhor Jesus do Carvalhal (c. 26 km / cinco horas, da Lourinhã ao Carvalhal, no concelho vizinho de Bombarral). Anteontem, 13,  foi a "romaria" à Sra. dos Remédios, em Peniche, a caminho do Cabo Carvoeiro (c.18 km / 4 horas, pela orla costeira, partindo da Praia da Areia Branca, e seguindo por Paimogo, São Bernardino, Consolação. Peniche, Remédios).

A organização foi da parelha Joaquim Pinto de Carvalho / Jaime Silva, dois "antigos combatentes", o primeiro na Guiné (alf mil at inf, CCAÇ 3398, e CCAÇ 6, Bula e Bedanda, 1971/73) e o segundo em Angola (alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72), e ambos membros da nossa Tabanca Grande.

O Jaime contou-nos, em grupo, que foi pagar uma promessa, atrasada, de meio século. E ele não me levará a mal que eu partilhe aqui esse "pequeno segredo"...com a Tabanca Grande.

Quando ele regressou de Angola, "são e salvo", depois de uma dura comissão, sobretudo no Leste, que lhe deu direito a uma cruz de guerra, a mãe, naturalmente aliviada mas emocionada, confessou-lhe:
– Agora, meu filho, temos que ir a pé à Senhora dos Remédios, pagar a promessa...
– Ó senhora minha mãe, temos que ir ?!...Que história é essa ?... Eu não fiz nenhuma promessa!... E muito menos a de ir a pé à Senhora dos Remédios!
– Ó filho, fui eu que pensei por ti!...
– Então, vá a mãe, que eu estou cansado de andar a pé pelas chanas do leste de Angola...

Fez-se silêncio, criou-se um impasse... Mas a mana mais nova, a Esmeralda, que estava a assistir à conversa, veio salvar a honra da família:
– Ó mano, se não te importas, eu vou por ti!...

E foi, com a mãe, a pé, do Seixal da Lourinhã até aos Remédios, em Peniche,  pagar a promessa à santa, que era devida pelo facto de o Jaime ter regressado "são e salvo"... Enfim, uma "história bonita"...

Quase cinquenta anos depois, em homenagem ao gesto solidário da irmã mas também à grandeza de alma e coração da mãe (já falecida), o nosso camarada Jaime Silva planeou este "círio" (sem vela...). E liderou o grupo dos 4 magníficos que, partindo às 7h30  da Praia da Lourinhã, e seguindo pela costa, chegaram, frescos e felizes, à meta, por volta das 12h30, com uma "paragem técnica", pelo caminho... para "verter águas" e beber um café... (Fotos nº 1 e 2).


2. Os "círios" e os "pagadores de promessas"

Nos anos 60/70 do século passado, os nossos santuários (a começar, "naturalmente", pelo de Fátima) eram locais, muito concorridos, por peregrinos, muitos deles "pagadores de promessas", como os militares, regressados do Ultramar, e/ou suas famílias... (Isso está devidamente documentado nas reportagens da RTP antes e depois do 25 de Abril: Soldados em peregrinação a Fátima (11 de julho de 1965); Peregrinação a Fátima ( 13 de agosto de 1969); Silva Cunha recebe peregrinos da Guiné (22 de maio de 1972);  Assistência aos Peregrinos em Fátima (17 de novembro de 1975)...

"Manifestações de fé" do povo português, escreviam em títulos de caixa alta os jornais da época (, mais apolegéticos do que críticos, e sobretudo rigorosamente vigiados pelos "senhores coronéis da comissão de censura"), sobre as peregrinações a Fátima (Nossa Senhora do Rosário), que ocorriam ao dia 13 de cada mês, entre maio e outubro.

Fátima era então (e continua a ser) o mais "mediático" e "popular" santuário mariano do país. Mas havia (e há)  outros, inúmeros, alguns não  menos conhecidos do que Fátima, de Norte a Sul do país: São Bento da Porta Aberta (Terras de Bouro), Sameiro (Braga), Bom Jesus do Monte (Braga), Nossa Senhora dos Remédios (Lamego), Nossa Senhora da Abadia (Amares), Penha (Guimarães), etc.  todos no Norte, curiosamente...

Outros há, espalhados pelo país, que também eram (e continuam a ser) procurados pelos fiéis, embora a uma escala mais reduzida, local e regional... É o caso, por exemplo, do Senhor Jesus do Carvalhal (Bombarral) e da Senhora dos Remédios (Peniche) ou ainda o da Nossa Senhora da Misericórdia (Misericórdia, Moita dos Ferreiros, Lourinhã)...

O êxodo rural, a emigração (interna e externa), a guerra do ultramar / guerra colonial, a industrialização e urbanização do país, a par do aumento da escolaridade, tiveram reflexos na mudança de "usos e costumes", incluindo as normas e as práticas da religiosidade dos portugueses...

Com a emigração e a guerra do ultramar / guerra colonial, muitas terras ficaram  sem homens adultos... E a incerteza dos tempos terá ajudado a retomar e/ou a fomentar práticas mais tradicionais de religiosidadee como as "peregrinações" e o "pagamento de promessas"... Ia-se a Fátima ou à Senhora dos Remédios (tanto em Lamego como em Peniche) "pedir graças" e "pagar promessas", que a religi~so dos portugueses também era a do "deve e haver": dás-me isto (o "milagre" da cura ou do regresso de um filho da guerra, "são e salco") e eu pago-te (em orações, penitências, ex-votos, dinheiro, géneros...).

Numa época em que a mobilidade ainda era reduzida, e o poder de comnpra reduzido,  e ir a Fátima ficava longe e era caro, ia-se de preferência aos santuários da região, a pé, ou de carroça (só depois de motocultivador, tractor e carro...).

Em todo o lado, este culto é sacro-profano, realizando-se de preferência no verão, findo o essencial dos trabalhos agrícolas... Não é só uma "manifestação de fé", tem sempre uma componete lúdica e festiva. As romarias no Norte metem sempre muito fogo de artifício, música, comes & bebes...

Mas voltemos ao início da nossa conversa... ou ao ponto em que estávamos...

(Continua)
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Nota do editor: