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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26181: Notas de leitura (1747): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Declaro que ando de candeias às avessas com o Boletim Oficial da Província da Guiné, todo recheado de nomeações partidas, louvores, muitos relatórios de saúde pública, movimento marítimo, etc. etc., nem dá para ler nas entrelinhas se a agricultura progride, o que melhorou na vida administrativa, o que tem sido a ocupação do território e a chamada pacificação. Por isso me voltei para nova leitura do livro de Armando Tavares da SIlva, ele andou no Arquivo Histórico Ultramarino e fez um levantamento indispensável à documentação oficial. É que por detrás da pasmaceira do Boletim Oficial estavam a acontecer coisas nos Bijagós, em toda a região do Geba, na Costa de Baixo, na região dos Felupes. O governador Herculano da Cunha não quis fazer ondas e tanto quanto parece não tinha dinheiro para organizar expedições. O que aqui se escreve é que Judice Biker, que irá governar a Guiné até 1903, é imparável, move-se nas zonas de conflito, e até ficamos com a ilusão de que já não há insubmissões nos Bijagós, nem no Oio, nem em Cacheu. Vamos agora à atuação do novo governador, Soveral Martins.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (3)

Mário Beja Santos

O governador Herculano da Cunha parte para Lisboa e a 13 de julho de 1900 o novo governador é o 1.º Tenente da Armada Joaquim Pedro Vieira Judice Biker. Herculano da Cunha tudo fizera para evitar expedições. Biker mostra logo claramente que vem empreender operações militares de pacificação. Em Canhabaque, arquipélago dos Bijagós, assaltavam-se lanchas, um dos dois régulos da ilha era condescendente com tais hostilidades. Biker chama o capitão de 2.ª linha Adolfo Eduardo da Silva e encarrega-o de ir à ilha entender-se com o chefe dos atacantes, exigindo-lhe que entregasse o que havia roubado, o régulo recusou e o governador decide fazer um ataque à ilha, mas só passada a época das chuvas. A 27 de outubro larga a expedição, bombardeia-se a povoação, a 29 desembarcam os Grumetes, incendeiam-se povoações, novo bombardeamento e incêndio no dia seguinte. O régulo rebelde pediu perdão.

Biker foi também confrontado com o problema da dispersão da ocupação militar, escreve ao ministro: “Nos postos onde o gentio está perfeitamente submisso, como acontece no Forreá, os soldados exerciam toda a qualidade de violências sobre o gentio, impondo multas, roubando mulheres, etc. Nos postos, como Safim, onde o gentio ainda não está tão submisso, exerciam represálias sobre os soldados, roubando-lhes armas e correame. Com este sistema de ocupações, conseguíamos ter perto de 70 cabos e soldados disseminados pelo interior da província com grande prejuízo para a disciplina militar, o que era péssimo, e uma fonte de conflitos com o gentio que graves dissabores nos podiam acarretar, o que ainda era pior.”

E havia questões em Geba que requeriam a atenção do novo governador. O influente Mamadi Paté morreu no final do ano, o comandante de Geba imaginou que os seus sucessores se apresentavam como régulos independentes, o que não era verdade, o governador substituiu o comandante e viaja até Geba, é cumprimentado por todos os régulos, aconselha os sucessores de Mamadi Paté a serem obedientes ao Governo, vai até ao Xime onde é eleito o novo régulo. E volta-se para a questão do Oio. Houvera uma desastrada incursão em 1897, a gente do Oio continuava a obrigar os negociantes que ali iam a pagar-lhes um imposto, agiam à revelia da soberania portuguesa. Biker envia o chefe dos Grumetes de Bissau ao Oio para ver se conseguia que eles viessem pedir perdão ao Governo, não é acatado. Mudando de direção, Biker faz uma expedição ao Jufunco, faz-se muito fogo, o povo local rende-se. Biker vem até Lisboa e aqui passa uma boa temporada, no regresso à Guiné dá prioridade à questão do Oio, o povo local recusava pagar multa, foi decidido organizar uma coluna para os castigar. Armando Tavares da Silva descreve minuciosamente o ataque ao Oio, tomam-se tabancas, incendeia-se tabancas. A fidelidade à soberania portuguesa parecia restaurada, começam a ser cobrados impostos, chega mais dinheiro aos cofres.

A expedição que se segue tem a ver com o Arame, povoação de Cacheu, o objetivo é castigar revoltosos, tudo vai correr bem à expedição decretada por Biker. Em abril de 1903, é nomeado novo governador, Alfredo Cardoso de Soveral Martins, ele chega a um território que ainda não tem a pacificação completa e onde se tornou um imperativo encontrar novas soluções de organização militar. Falaremos a seguir deste período de 1903-1905.

Armando Tavares da Silva
Quando se consulta o Boletim Official, vale a pena ter em atenção as disposições gerais sobre a política colonial, achei bastante interessante o que menciona em 9 de novembro de 1903, do régio paço: “Tendo chegado ao conhecimento de Sua Majestade El-Rei, que nas províncias ultramarinas está sendo frequente os funcionários públicos envolverem-se e interessarem-se em especulações comerciais, a despeito das disposições legais não derrogadas, que expressamente lho proíbem, manda o mesmo Augusto Senhor, pela Secretaria d’Estado dos negócios da Marinha e Ultramar, suscitar a fiel e exata observância do disposto na régia portaria de 8 de janeiro de 1863.”
Na transição do século, o Boletim Official formalizou-se, predomina a rotina administrativa, é raro abrir espaço para que o leitor entenda a evolução sociopolítica e militar na Guiné. Excecionalmente, temos direito a saber que as autoridades de Bolama reagem a sublevações ou práticas de insubmissão. Num daqueles relatórios habituais que mensalmente Cacheu publicava faz-se menção a uma ocorrência extraordinária, a chamada guerra do Churo, e escreve-se: “Em três saíram com destino ao porto de Churo Uenque as lanchas canhoneiras Cacheu e Farim, rebocando as lanchas que conduziam os auxiliares, para a guerra do Churo, e a canhoneira Cacongo conduzindo as forças de marinha, de infantaria e artilharia que faziam parte da coluna de operações destinada a castigar o gentio rebelde do Churo. Na mesma canhoneira seguiu Sua Excelência o Governadora.” Terá havido êxito, a guerra continuou até se queimarem várias povoações, caso de Cacanda. A 11, o Governador voltou para Bolama.
Jogo do Uri, imagem recolhida em Casa Comum/Fundação Mário Soares

(continua)
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Notas do editor

Post anterior de 15 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26180: Notas de leitura (1746): "A pesca à baleia na ilha de Santa Maria e Açores", do nosso camarada e amigo Arsénio Puim: "rendido e comovido" (Luís Graça) - Parte I

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Confrontado com esta nova linguagem do Boletim Oficial da Província da Guiné que passou a ser omisso quanto à história política, económica e social, reduzindo-se à rotina burocrática, vi toda a vantagem em revisitar o acervo monumental organizado por Armando Tavares da Silva na sua gigantesca obra A Presença Portuguesa na Guiné, 1878-1926. No texto de hoje, são referidos os dois primeiros governadores, Agostinho Coelho e Pedro Ignacio de Gouveia, tiveram que apagar incêndios, sobretudo à volta de Geba e na região do Forreá, são notórios os lugares onde ainda não há presença portuguesa, as hostilidades sucedem-se, exigindo expedições, punições, perdões e tratados de paz, muitas destas iniciativas são pura fantasia, os insubmissos voltarão à carga. A França tudo vai fazendo tudo o que pode para pôr os Fulas revoltosos, aquela região sul ainda é para ela um grande atrativo, para juntar ao Futa-Djalon. Aqui fica o registo de duas governações dificílimas, há pouquíssimo dinheiro, os meios navais são frágeis e até há revoltas no Batalhão de Caçadores nº1, com os oficiais punidos.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2)

Mário Beja Santos

Estamos agora no Governo de Agostinho Coelho, ele é o 1.º Governador da Guiné como província independente de Cabo Verde, desembarca em Bolama a 20 de abril de 1879. Começa por mexer no dispositivo militar, constituiu o Conselho do Governo, a província da Guiné é dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola, Bissau compreende a vila de S. José e o presídio de Geba, Cacheu inclui, além da praça deste nome, os presídios de Farim e Ziguinchor e as povoações de Mata, Bolor enquanto Bolola inclui Sta. Cruz de Buba e todos os mais pontos que venham a ocupar-se no Rio Grande, era esta a divisão administrativa da Guiné autónoma. É claro que havia porções do território ainda não ocupadas, outros com presença duvidosa, e esta situação irá perdurar por algumas dezenas de anos. A divisão administrativa levantou críticas e o Governador seguinte, Pedro Ignacio de Gouveia, fará alterações.

Melhorou o equipamento naval, havia a canhoneira Rio Lima, vai chegar o vapor Guiné, o Rio Lima regressará a Cabo Verde. O coronel Agostinho Coelho tinha à sua espera problemas que requeriam inadiável solução, era indispensável garantir um quadro de normalidade em Buba, os Futa-Fulas impunham tributos aos negociantes. O Governador procurou fazer tratados com régulos, havia pretensões territoriais francesas no sul, o Governador deixou um documento esclarecedor sobre a situação existente no Rio Grande:
“É uma das zonas mais produtivas da província; as suas margens são povoadas até muito para o interior por tribos laboriosas e agrícolas e convém a todo o custo dar-lhe segurança e proteção. Há nas margens deste rio 53 feitorias portuguesas e francesas, onde vão muitos navios à carga; porém, estes agricultores, têm vivido até hoje expostos aos vexames dos Futas, os quais, em diversas épocas do ano, percorriam os vários estabelecimentos e exigiam, mesmo à mão armada, o tributo a que eles chamam dacha. Cobravam a título de senhores do território um imposto de proximamente 12 mil pesos, e os cofres da província nada lucravam. Como medida de transição, determinei que a importância da dacha fosse paga pelos negociantes por uma comissão composta da autoridade militar de Buba e de três negociantes, competindo a esta comissão reunir, em determinado dia do ano, os principais chefes Fulas e Futas, a quem distribuiria com o simples caráter de presentes, alguns donativos em panos, armas, e bijutarias, uma parte do produto do imposto, entrando na Fazenda o resto, quando o houvesse.” E mais adiante dirá que houve resistência dos negociantes franceses que tentaram atrair os chefes indígenas para ações de descontentamento.

O Governador empregou esforços para a ocupação do Rio Grande, assinou em Buba o tratado de paz com os régulos de Biafadas e com o chefe principal do Forreá. O Governador informa Lisboa que com este tratado terminava uma guerra encarniçada entre etnias. Mas havia continuidade de problemas em Geba, encontravam-se em guerra Fulas-Pretos e Mandigas. Atenda-se a um parágrafo de um documento que Agostinho Coelho mandara ao Governo: “Geba era antigamente o principal centro de resgate do ouro e do marfim na Guiné; hoje do primeiro aparece muito escassa quantidade e do segundo nem a mínima partícula. Dirigi-me a Geba, e foi aí tal o espanto produzido pela aparição de um navio a vapor que muito do interior vieram inúmeras pessoas verificar tão assombroso facto. Esta romaria de visita ao Guiné durou nos 3 dias em que nos conservámos em Geba. Os Fulas-Pretos e Mandigas andavam em guerra, Agostinho Coelho reforçou a defesa de Geba. Dá-se a sublevação do Batalhão de Caçadores n.º 1. O capitão e o ajudante suscitavam comentários injuriosos acerca dos actos de Governo da província. Agostinho Coelho aplicou-lhes dois meses de prisão, houve tentativas de levantamento, o Governador respondeu mandando levantar autos do corpo de delito".

Tavares da Silva destaca a dimensão daquela Guiné com o propósito de degredados, estes, por sua vez, eram sujeitos a um tratamento vexatório, o Governador tomou providências para aquilo que hoje se designa reinserção social. Foram efetuados tratados, houve esforço para a pacificação do Forreá, que culminou com o tratado de paz com os régulos do Forreá e do Futa-Djalon. Mas a questão nevrálgica dava pela delimitação da Guiné, havia a presença estrangeira, particularmente a francesa, fazia-se uma enorme pressão para a ocupação de pontos onde a administração portuguesa não se encontrava estabelecida. O Governador pede a Lisboa recursos financeiros; se havia problemas no sul, surgiram novos problemas fronteiriços envolvendo o Senegal. O que se passava no sul era preocupante, o próprio governante comunica que naquele sul era débil o movimento comercial, muita gente a viver em condições miseráveis, o que inaceitável.

Assim se passaram dois anos é nomeado novo Governador, o 1.º Tenente da Armada Pedro Ignacio de Gouveia, toma posse do cargo em dezembro de 1881, após três semanas de permanência no território, manda uma exposição ao Governo, constata que os povos da região estão longe da civilização, fala sobre o cultivo da mancarra, o principal produto agrícola de exportação, manifesta dúvidas que em pouco tempo se faça a substituição desta cultura de um produto pobre como é a mancarra pela cana sacarina, algodão ou café e cacau. Manifestando a sua preocupação sobre as produções agrícolas da província, escreve:
“A árvore que dá borracha e que aqui é abundante também sofre umas incisões primitivas: se na América ainda não compreendem bem a maneira de obter-lhe o líquido sem prejuízo temporário da árvore, aqui o definhamento é quase completo e o produto que sai é perfeito.” Falando do elemento militar ao Governo, é profundamente crítico: “As autoridades subalternas não são sempre aquelas que coadjuvam melhor o magistrado superior da província: o elemento militar tem o seu lado bom e o seu lado mau. Quando o militar não é ilustrado, e que saiu unicamente da fileira, sem noções razoáveis de administração civil, colocado à frente do concelho, vê nos indivíduos que o rodeiam soldados ou, quanto muito, sargentos. Se este indivíduo, entregue aos próprios recursos naturais, e uns hábitos de vida que destoam completamente da sua educação militar, não é vigário a mando, principia a destemperar e, por fim, desproposita, estabelecendo completamente a desarmonia social.” Pede meios de transportes, recorda a dificuldade em obter o combustível apropriados para os navios a favor.

Ignacio de Gouveia lança uma nova expedição contra os Biafadas de Jabadá, a exposição acontece em janeiro de 1882, está ciente de que deu uma lição aos rebeldes, é feita a paz com o régulo de Jabadá, fará outros tratados de paz, é confrontado com novos atritos com os Fula-Forros de Bakar Quidali. Muitos anos mais tarde, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Fausto Duarte louva o documento enviado por Pedro Ignacio de Gouveia a Lisboa, dizendo a seu favor: “Espírito lúcido, observador arguto e com uma cultura digna de apreço […] Não faz literatura, nem procura servir-se de artifícios de linguagem para esconder ou mesmo diminuir certas deficiências da administração local. Num período incerto para a vida da província que adquirira a tão almejada autonomia política, mas se via a braços com toda a sorte de dificuldades, era preciso expor ao Governo de Sua Majestade em toda a sua crueza variadíssimas contrariedades que mantinham dentro de certos limites a ação do Governador.”

Mas ainda iremos falar adiante deste Governador, haverá acusações de alegada escravatura, novas desavenças em Geba e Buba, o alferes Marques Geraldes entra em cena, haverá perda do vapor Guiné, operações em Nhacra, a criação de escolas em Bissau e Bolama, dar-se-ão passos na organização administrativa e na ocupação do território.
1902, o Boletim Oficial passa por uma fase burocrática, não há conflitos, não há tensões políticas, é só rotina administrativa
Notícia da chegada de novo governador, em novembro de 1902, o 1º tenente da Armada Judice Biker
Pedro Ignacio de Gouveia
Imagem do que foi o último Palácio do Governador em Bolama

(continua)
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Notas do editor

Vd. post anterior de 8 de novembro de 2024 > 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Não escondo o pasmo e admiração do conteúdo dos anos mais recentes do Boletim Oficial da Província da Guiné, tornou-se numa enfadonha rotina administrativa: nomeações, exonerações, movimento marítimo, questões orçamentais, boletins do estado sanitário das principais povoações, questões alfandegárias, etc., etc. Até parece que a província vive num estado de serenidade absoluta, não há rebeliões, nem necessidade de tratados de paz, não há conflitos com a demarcação das fronteiras, até parece que acabou a guerra do Forreá. Vi-me, pois, na contingência de procurar material que desse contraponto ao que vem no Boletim Oficial. Ora, temos um documento de peso, o vasto e importante acervo documental é que procedeu Armando Tavares da Silva em A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926, Caminhos Romanos, 2016, obra indispensável para quem pretende estudar este período. Ele abre o seu trabalho com os estabelecimentos portugueses do distrito da Guiné em 1888, por conflitos em Bolor e em Geba, e depois de diferentes peripécias chegamos à transformação da Guiné em província independente de Cabo Verde, estava-se em 1879.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1)

Mário Beja Santos


Em 2016, era publicado "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926", por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos. É, indiscutivelmente, um acervo documental de peso, uma investigação minuciosa com a justificada chamada de atenção para acontecimentos relevantes de uma Guiné que deixava de ter categoria de distrito na dependência de Cabo Verde e passava a ser província autónoma.

Apropriadamente, o autor chama a atenção para o apelo feito pelo ministro da Marinha e Ultramar para que os governadores habilitassem o Governo com elementos suficientes para poder nessas províncias fomentar a implantação e desenvolvimento de diferentes ramos da indústria, a que melhor se prestem as condições especiais de cada uma delas. E 18 de fevereiro a 21 de março de 1878, o Governador-Geral de Cabo Verde visita os estabelecimentos portugueses na Senegâmbia. Em abril dá conta da visita: há possibilidades de desenvolvimento do território, Bolama tem uma excelente posição geográfica (estava então indicada para capital de distrito) e fez notar que os antigos estabelecimentos em Geba, Farim e Ziguinchor, Cacheu e Bissau se encontravam em notável decadência. Previa para Buba um próspero futuro. O Governador conta a Lisboa que se encontrou com os principais chefes das tribos, ele notou disposição amigável destes chefes com os portugueses. Face a este ofício, o ministro da Marinha faz publicar uma portaria em que determina ao Governador-Geral de Cabo Verde que fossem elaborados plantas e orçamentos dos edifícios a construir em Bolama. Havia uma grande insatisfação quanto à atenção prestada aos poderes públicos do distrito da Guiné. Ainda o Governo não tinha tomado medidas efetivas quando a situação muda totalmente devido ao chamado “desastre de Bolor”.

Havia neste ponto do Norte da Guiné um grave conflito interétnico, fora arrasada Bolor, o Governador Cabral Vieira fez juntar uma força para punir os conflituosos, dá-se um massacre que deixou as autoridades de Lisboa em sobressalto, vão barcos de homens armados para intimar as populações e elabora-se um relatório, quem o escreve é o Secretário-Geral do Governo de Cabo Verde, Castilho Barreto. No documento afirma ter havido um procedimento inconveniente por parte do administrador do concelho de Cacheu que forneceu pólvoras e balas aos rebeldes. Havia indiscutivelmente influência estrangeira que alimentava estas insubordinações, eram sobretudo súbditos franceses, estava em curso o plano para ocupar o rio Casamansa.

O assunto vai à Câmara dos Deputados, elaborara-se um projeto para transformar a Guiné em província independente, como observa o autor a opinião dos deputados não foi unânime, mas mesmo assim houve luz verde em março. Estabelecia-se que o Governo da província teria a sua sede na ilha de Bolama, transferia-se para a Guiné o Batalhão de Caçadores n.º 1, o Governo fica autorizado a organizar uma bateria de artilharia para guarnecer as fortalezas da província da Guiné, previa-se o estabelecimento de comunicações regulares a vapor entre a Guiné e a metrópole, o que só virá a acontecer mais tarde, em 1881, foi celebrado um contrato com a Empresa nacional de navegação para o serviço de navegação por barcos de vapor entre Lisboa e os portos de África Ocidental. Vamos agora ver o Governo de Agostinho Coelho, 1.º Governador da Guiné.
Armando Tavares da Silva

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25897: Timor: passado e presente (19): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte X: O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli






Timor > Díli > c. 1945 > Ruínas de Díli após a II Guerra Mundial. Relatório do governo da colónia de Timor, 1946-47. Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Cortesia de RTP > 4.A II Guerra Mundial e o início das descolonizações (com a devida vénia...)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte X:   O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli (pp. 80-87)


(i) 1944 é  mais um ano de martírio para a pequena colónia portuguesa de Timor,  para a população timorense (que não seria mais do que 400 mil em 1940) e para a não-timorense (umas escassas 3 centenas de portugueses) com frequentes bombardeamentos da aviação dos Aliados, por um lado, e a continuação das arbitrariedades e prepotências dos ocupantes japoneses, por outro. 

O ano fica marcado pela prisão de dois elementos-chave da população portuguesa da colónia, o engenheiro Artur Resende do Canto e o tenente António Oliveira Liberato. O primeiro pertencia à Missão Geográfica de Timor, e estava a exercer, voluntária, abnegada e corajosamente,  as funções de administrador do concelho de Díli. O segundo era o adjunto da Companhia de Caçadores, que já tinha perdido, em 1942, o seu comandante, o cap inf  Costa Freitas.

Há uma novo cônsul nipónico, que fala espanhol, e um vice-cônsul que fala português (sendo casado com uma brasileira). Mas nem por isso a situação dos portugueses, detidos na ilha, vai melhorar. 
Nem muito menos a da população autótone, 
que os japoneses insidiosamente tentaram virar contra Portugal.

Quando se comemora os 25º aniversário do referendo de 30 de agosto de 1999, em que 4 em cada 5 timorenses (78,5%) se manifestaram livremente pela independência do território, curvamo-nos à memória de todos aqueles que, durante a ocupação japonesa, 
na II Guerra Mundial, 
 deram-nos exemplos de dignidade, coragem e patriotismo.  

A questão de Timor chegou a ser um foco de tensão entre Portugal e os seus velhos aliados ingleses. A invasão por tropas autralianas e holandesas foi a gota de água e o pretexto de que os japoneses precisavam para, por sua vez, ocuparem o território,  de importância estratégica para ambos os lados,

 Portugal chegou a estar em risco (ou foi ponderada a hipótese pelos ingleses) de entrar na II Guerra Mundial por causa da minúscula e longínqua parcela do império que era Timor, segundo revelam documentos do arquivo do Foreign Office, estudados pelo diplomata e investigador português, Carlos Teixeira da Mota (1941-1984),  "O caso de Timor na II Guerra Mundial : documentos britânicos", Lisboa,  Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, 202 pp.   

Em 28 de novembro de 1944, Portugal assina finalmente um acordo (secreto) com os EUA (com mediação inglesa):  em troca da concessão de facilidades militares nos Açores (ilhas de Santa Maria), Portugal conta com a ajuda americana para recuperar a soberania de Timor, território ocupado prlosd japoneses e objeto da cobiça dos australianos.

Timor é paradigmático: é aqui, no Sudoeste Asiático (mas também no norte de África, ambos sangrentos palcos de guerra) que, em boa verdade,  começa(m) a(s) descolonização(ões)...


(...) A 23 de janeiro recebemos em Lahane comunicação de Liquiçá informando-nos que, no dia anterior, aviões australianos haviam atacado Liquiçá tendo metralhado a enfermaria onde estava hasteada a bandeira portuguesa!

Haviam ficado feridos quatro timorenses e a esposa do chefe dos correios Fortunato Mourão, senhora D. Aida Cassagne Mourão, que ali estavam internados, tendo esta última cegado de um dos olhos atingido por um estilhaço de bala.

No dia 17 de fevereiro, com evidente prazer nosso embora não isento de natural desconfiança sobre as suas intenções, retiraram os japoneses as guardas ao hospital e ao palácio, cessando daí em diante qualquer fiscalização do trânsito dos portugueses entre esses dois edifícios. (...)

Em princípios de março, o engenheiro Canto trouxe de Liquiçá para Lahane, acompanhada de sua mãe, uma menina de 17 anos, filha do velho colono sr. Gregório José Morato. Apresentava uma volumosa tumefacção sobre a omoplata esquerda que diagnostiquei ser um lipoma que facilmente seria extirpado por uma operação de pequena cirurgia, se os dois médicos portugueses a praticassem, dispondo dos meios normais que antes tinham, sobretudo de material asséptico.

Verificada por mim a impossibilidade de tratarmos a menina pediu o engenheiro Canto a ajuda nipónica, no respectivo consulado, conseguindo que a operação se viesse efectuar no hospital japonês, no dia 15, sendo a menina, logo após a operação, transportada para a nossa ambulância onde terminou o tratamento.

Por este tempo, constou à população portuguesa que o engenheiro Canto havia pedido a exoneração do cargo de administrador do concelho de Díli. De facto, ele há tempos me confidenciara que a sua atuação em Liquiçá e Maubara se apresentava cada vez mais cheia de escolhos, sobretudo por nada de importante poder resolver, no momento preciso e no local, pois todas as medidas necessárias que poderia aplicar para a resolução de problemas prementes e urgentíssimos tinham, obviamente, de esperar por despacho favorável do Governador, necessariamente moroso pela dificuldade de comunicações entre a zona e o palácio.

Assim, ele estava na disposição inabalável de se demitir, no caso de o Governador não o nomear seu delegado na zona de concentração. Confirmada a apresentação do pedido de exoneração do administrador do concelho de Díli, foram presentes ao Governador duas exposições, uma de chefes de família e outra de «mulheres e mães portuguesas» pedindo a sua não concessão.

Redigidas e assinadas pela grande maioria da população da zona, foi, a primeira, trazida ao hospital de Lahane onde lhe foram apostas as seguintes assinaturas (1) : José dos Santos Carvalho, Roque da Piedade Pinto e Rodrigues, António de Oliveira Oscar Lemos, Manuel da Costa, Júlio Madeira, Adão Exposto, Joaquim Francisco da Silva.

O despacho do Governador a estas petições (1) não pôde ser favorável, o que nele era lamentado, pelo que foi nomeado administrador do concelho o capitão Manuel do Nascimento Vieira, por portaria de 9 de março de 1944. (...)


(ii) A visita, de uma semana, iniciada em 19 de março de 1944,  do cap art José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau, fazendo-se transportar numa aeronave japonesa, não trouxe benefícios percetíveis à população do território.

Em 29 de abril, dia em que se comemorava o aniversário do imperador do Sol Nascente, Dília sofre forte bombardeamento por parte da aviação  dos Aliados.  O engº Canto e o tenente Liberato são presos. Sabe-se também da prisão do tenente Pires, antigo administrador de Baucau.


(...) Após estes acontecimentos foi a população informada de que estava para chegar a Timor um enviado do Governo de Portugal.

De facto, no dia 19 de março aterrou no campo de aviação de Díli um avião japonês que trazia o capitão de artilharia José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau comandante Gabriel Teixeira, o qual vinha a Timor como delegado especial do Governo português.

Neste mesmo avião viajaram o novo cônsul japonês em Timor, senhor Sotaro Hossokawa e o vice-eônsul, senhor Suzuki.

O capitão Silva Costa demorou-se em Timor uma semana,  tendo-se deslocado a Liquiçá e Maubara, para entrevistar vários portugueses e assistido a um almoço no palácio e a um jantar no consulado, para os quais o engenheiro Canto e eu fomos convidados e em que estiveram presentes o general comandante dos japoneses e os seus oficiais ajudantes, os dois cônsules, o Governador e o seu ajudante, capitão Vieira.

Das entrevistas que o capitão Silva e Costa teve comigo e com outras pessoas, depreendeu-se que ele estava a fazer um inquérito sobre os acontecimentos passados e a situação atual na Colónia. Bem informado, regressou a Macau no dia 26, seguindo no mesmo avião o ex-cônsul, senhor Yodogawa e o chanceler senhor Irie.

O novo cônsul japonês falava espanhol e o vice-eônsul senhor Suzuki, falava fluentemente português, pois, segundo referiu era casado com uma senhora brasileira. O novo chanceler do consulado, senhor Yanaguiwara, não comprendia ou falava senão o inglês.

A vinda do capitão Silva e Costa não trouxe melhoria de situação, como se esperava. Logo a seguir a ela, no dia 9 de abril, o tenente Liberato foi preso, na sua residência em Liquiçá, por três agentes da Kêmpy, dois dos quais eram o sargento Nerita e o cabo Kato, acompanhando-os como intérprete o chinês Há-Hói, filho do comerciante Mie-Hap de Díli, e três soldados armados de espingardas (2).

Levado de automóvel para Díli, pelo sargento Nerita, foi metido na cadeia de Díli e aferrolhado numa cela. No dia seguinte começaram os seus interrogatórios, sempre acompanhados de pancada e violências físicas, feitos pelo comandante da Kêmpy, tenente Akusawa, e pelo sargento Nerita, com o Ha-Hói como intérprete (1).

No dia 29 de abril, manhã cedo, apareceram as barracas dos aquartelamentos nipónicos, à roda do hospital de Lahane, ornamentadas com bandeiras japonesas, nas portas e outros espaços, inclusivamente nos telhados, sentindo-se bem um ar de festa e alegria da tropa. Mais tarde soubemos pelos criados timorenses que era o aniversário do Imperador do Japão que estava a ser comemorado.

Porém, ainda não eram nove horas a sereia japonesa anunciou a aproximação de aviões inimigos que não se fizeram esperar. Seguiu-se um terrível bombardeamento por dezenas de aviões que, conforme era de prever pelo tremendo estrondo e depois soubemos, reduziu a escombros a cidade de Díli, não havendo qualquer espaço que não tivesse sofrido a acção aliada.

As bandeiras nipónicas, escusado seria dizê-lo, logo desapareceram como por encanto e nunca mais as vimos em qualquer lugar, até ao fim da guerra.

Também, este bombardeamento deu origem à destruição por cargas de dinamitei das altas e elegantes torres da catedral de Díli, o que constou ter sido motivado por constituírem um precioso ponto de referência para os aviões atacantes.

Aquando do bombardeamento, estava o tenente Liberato aferrolhado numa cela da cadeia de Díli pelo que pôde num dos seus livros (2) descrever o terrífico espectáculo com um realismo que ainda hoje nos esmaga.

Atingido o compartimento onde se encontrava, transferiram-no para outra dependência menos danificada e onde já tinham sido reunidos os restantes presos, entre os quais reconheceu, a custo por estar magríssimo, ferido na cabeça, e coberto de cabeça, o chefe de posto Matos e Silva (2) .

Recebeu deste, então, algumas informações. O tenente Pires havia voltado da Austrália, num submarino americano e ficara em Timor, em serviço de observação, com um pequeno grupo de portugueses, oferecendo informações aos aliados (3).

Obrigado o grupo a fraccionar-se, para escapar às "colunas negras", haviam sido, sucessivamente, presos o tenente Pires, os chefes de posto José Tinoco e Matos e Silva, o enfermeiro Serafim Pinto e os irmãos, cabos Cipriano Vieira e João Vieira (3).

Presos, durante meses, em Baucau, foram mais tarde transferidos para Díli (3) e aí havia já falecido o chefe de posto José Tinoco e os irmãos Cipriano e João Vieira (2) . Quanto ao enfermeiro Serafim Pinto nada sabia, pois vira-o entrar um dia na prisão, de olhos vendados, mas desconhecia o destino que lhe haviam dado. Provavelmente, já não pertencia, também, ao número dos vivos (2) .

O senhor Matos e Silva, ferido na cabeça por um estilhaço de bomba, foi transferido, tempos depois, para uma casa de China Rate, onde se presume que tenha morrido (3), a 8 ou 9 de maio (2) .

«Fora de dúvida é que todos eles sofreram horríveis maus tratos e as agruras da fome, que os japoneses impunham a todos os seus prisioneiros» (3).

No dia 4 de maio, o tenente Liberato foi algemado, vendaram-lhe os olhos, meteram-nos num automóvel e levaram-no para China Rate onde o meteram na casa que era das máquinas da T.S.F., num compartimento sem janela. Aí viveu ( !) sessenta e sete dias, completamente incomunicável, a juntar aos vinte e inco passados na cadeia de Díli (2) .

Por estes tempos e, infelizmente, nos que se lhe seguiram, o cabo Kato, chefe da polícia japonesa em Liquiçá, continuava  fazer tropelias, insultando e vexando com prepotência os não- timorenses da zona de concentração.

No dia 5 de julho registou-se um ataque aéreo aliado, com fogo de metralhadoras, a Liquiçá e Maubara. Em Liquiçá ninguém foi atingido, mas em Maubara sofreram ferimentos graves  (...).

Uma das mais infelizes e inexplicáveis prepotências da polícia japonesa surgiria, com uma bomba, a 10 de julho. Cerca do meio-dia, apareceu no hospital de Lahane o sargento Nerita acompanhado de alguns soldados armados, transortado num automóvel do exército.

Não procurando o engenheiro Canto, como costumava fazer, dirigiu-se à sala onde estava instalado o telefone que estabelecia comunicação com o palácio, arrancou-o e levou-o consigo.

Apareceu, então, o Engenheiro e logo compreendemos ser ele a vítima escolhida, pois o sargento não o cumprimentou, antes lhe disse qualquer coisa, com modos bruscos, que nós não ouvimos, por estarmos afastados.

O  Engenheiro dirigiu-se, então, ao seu quarto, já acompanhado por soldados, enquanto c sargento foi procurar o gerente do Banco Ultramarino, senhor João Jorge Duarte, para o intimar a acompanhá-lo, também. Tal com estavam, em mangas de camisa, tiveram de seguir com os esbirros, levando o Engenheiro uma malinha de mão e despedindo-se com um olhar que, para sempre, ficou no nosso
pensamento.

Logo que o automóvel se afastou, o chefe de posto Torresão correu para o palácio com o fim de avisar ao Governador, seu primo, o sucedido. Mas, em vão atuou. Chegado ao cruzamento com a estrada que liga ao palácio aí encontrou um soldado japonês que lhe impediu a passagem, forçando-o a regressar ao hospital.

No dia seguinte já não houve entraves e o Governador pôde ser inteirado do acontecimento, não tendo os protestos que, pronta, enérgica e repetidamente, pessoalmente apresentou no consulado nipónico, obtido resultado favorável nem qualquer explicação para tão arbitrário ato. (...)


(iii) Surpreendente, ou talvez ou não, é a situação do tesouro público: o gerente do BNU é preso, e o seu quarto fica trancado...É lá que ele guardava parte do pecúlio da colónia, ou seja, o "mealheiro" do Governador, o cofre forte do  banco... ~

Como pagar agora aos funcionários, civis e militares,  que restam na colónia, incluindo os deportados (que também comiam à "mesa do Estado" )?... Sem esse dinheiro, agravar-se-ia  a situação de miséria em que já todos viviam, apesar da solidariedade de muitos timorenses  que, apesar de tudo, tinham os seus meios de subsistência... 

Uma solução "ad hoc", expedidta, à portuguesa foi encontrada, o clássico "desenrascanço"... Um momento algo hilariante no meio de um drama coletivo...

 (...) Entretanto, verificáramos no hospital de Lahane que o Gerente havia fechado a porta do quarto onde estava instalado e não pudera entregar a chave aos seus dois funcionários ali presente ou a qualquer de nós, pois nem sequer lhe fora permitido calçar uns sapatos em substituição das chinelas que trazia quando foi preso.

Conforme, então, o Dr. Tarroso Gomes (4) me contou,  situação complicava-se porque o Gerente, visto lhe ser impossível ir ao edifício do Banco, situado em Díli, conservava guardados no seu quarto, uma parte dos fundos da Colónia. 

Aguardaram-se vários dias, na esperança de a detenção ser temporária, mas como não houvesse indícios duma libertação próxima, o Governador, obrigado pelas circunstâncias e porque não  era possível deixar a população sem dinheiro, porque isso representava a fome, determinou que se arrombasse a porta do quarto e se retirassem os fundos da Colónia que passariam à responsabilidade do Dr. Tarroso.

Coube esta tarefa a uma comissão, nomeada pelo mesmo espacho que determinou o arrombamento, constituída pelo capitão Vieira, o Dr. Tarroso, o secretário e o tesoureiro do Banco Nacional Ultramarino, senhores Anselmo Bartolomeu e Almeida e Fausto do Amaral e eu e o sargento Vicente, como testemunhas.

Encontrou-se bastante dinheiro em gavetas e malas, mas havia vários cofres que só mais tarde o deportado, senhor Serafim Martins, habilíssime serralheiro, vindo de Liquiçá para o efeito, conseguiu arrombar e depois tornar a reparar à força de muito trabalho e competência técnica.


 (iv) A "zona de concentração" fica agira reduzida a Liquição, com a transferência forçada dos portugueses "residentes" em Maubara, que perdem os seus parcos haveres e as suas pequenas hortas...

Os bombardeamentos continuam, mais intensos em outubro e novembro. Díli é agora um monte de ruinas. 

Timorenses e portugueses vão entrar no último ano da guerra, sem saber qual é o seu desfecho, completamente isolados do mundo...


(...) Em meados de setembro surgiu mais uma grande crise para a população não-timorense de Maubara que na sua totalidade, não poupando as mulheres e crianças, foi obrigada pelos japoneses e abandonar a vila, onde tinha todos os seus haveres e cultivava hortas pelos próprios meios, e seguir para a já superpovoada Liquiçá, fazendo o percurso a pé!

Chegaram esses desgraçados, mortes de fome e de cansaço,  Liquiçá, no dia 15, tendo pernoitado na noite da véspera em palhotas de timorenses caridosos que fraternalmente os acolheram (5).

Assim, na vila de Liquiçá mais se agravou o problema alimentar que só não se tornou completamente desesperado por os japoneses permitirem que alguns nossos serviçais timorenses se dedicassem a trabalhos agrícolas na Granja Eduardo Marques, fornecendo géneros alimentícios. 

Outra grande ajuda foi sempre a da plantação de Fátu-Béssi que nunca foi ocupada los japoneses, embora eles requisitassem daí o melhor para as suas tropas. Porém, a diplomacia do senhor Jaime de Carvalho conseguiu furtar-lhes quantidades preciosas para entregar aos seus famintos compatriotas.

No mês de outubro, violentos bombardeamentos aéreos incidiram sobre a área onde os japoneses se tinham instalado em Lahane, bem junto do nosso hospital, os quais só por milagre não nos atingiram. Ficaram memoráveis para nós os realizados nos dias 14, 29 e 30 (de setembro).

Continuaram os ataques aliados em novembro, ainda a Lahane, mas, agora, nas proximidades da residência do governador. Assim, no dia 8, caíram dezoito bombas a uma distância, entre 20 e 50 metros; no dia 10, sete bombas, à mesma distância; e no dia 15, mais nove, oito das quais muito próximas (entre 20 e 30 metros) e uma que providencialmente não rebentou, a dois metros de um dos torreões da frente da residência, onde cavou um buraco. (6) .

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

________________

Notas do autor (JSC):

(1) As exposições da população ao governador Ferreira de Carvalho, pedindo para não conceder a exoneração ao engenheiro Canto, podem ler-se no In Memoriam a Artur do Canto Resende, publicação do Sindicato Nacional dos Engenheiros Geógrafos, Lisboa, 1956, pp. 37 a 41.

(2) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(3) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(4) O Dr. Tarroso Gomes, desde Dezembro de 1942 que vinha regularmente a Díli, uma vez por mês, a fim de levantar da caixa de tesouro os fundos necessários para as despesas oficiais do mês e despachar com o governador os assuntos da Repartição de Fazenda. Hospedou- se  sempre no hospital.

(5) A odisseia dos portugueses de Maubara foi-me relatada pelo Dr. Tarroso Gomes que assistiu à sua chegada a Liquiçá onde o seu mísero estado provocou, em todos a maior indignação e profundos desejos de vingança.

(6) Os efeitos dos bombardeamentos da zona vizinha do palácio do governador, foram por mim directamente observados. O número de bombas caídas foi-me referido pelo próprio governador.
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Nota do editor LG: 

(*) Vd. postes anteriores da série >





quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24601: Historiografia da presença portuguesa em África (383): Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII na "Revista Itinerarium", ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O Padre Manuel Pereira Gonçalves bem investigou no Arquivo Histórico Ultramarino e está na posse da mais recente bibliografia sobre a ação missionária no período que canaliza, a segunda metade do século XVII. Era imperioso para a Coroa fazer um esforço de missionação a partir da diocese de Cabo Verde, que tinha uma ampla extensão e pouquíssimos missionários, recorde-se que a terra firma da costa da Guiné ia desde o rio Gâmbia até ao rio de Santo André. O autor jamais ilude como todo aquele trabalho foi precário e sem sequência, diz mesmo que a presença portuguesa na Guiné foi praticamente nula não só naquele século mas como nos seguintes. Dá-nos um bom histórico sobre o chamado período dos Rios da Guiné e da Etiópia Menor, é muito elucidativa a sua exposição sobre este período missionário que abrangeu a Província de Nossa Senhora da Piedade e a Província da Soledade. E também o autor enfrenta uma questão poderosa que era a ligação entre missionários e comércio, procura dar justificações e recorda que ainda há muitos arquivos por consultar.

Um abraço do
Mário


Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII (2)

Mário Beja Santos

Confesso que desconhecia por inteiro os trabalhos que o Padre Manuel Pereira Gonçalves tem dedicado à Guiné e este seu trabalho publicado na Revista Itinerarium (revista semestral de cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal), ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022, como o leitor comprovará, introduz elementos novos face ao que já sabemos, sobretudo depois das incontornáveis investigações do Padre Henrique Pinto Rema.

O seu trabalho intitula-se "A Missionação dos Franciscanos Observantes (1656-1700), na Guiné ou nos Rios da Guiné". Recorda-se o que já se deixou escrito, o nascimento da diocese de Cabo Verde, que se estendia desde o rio Gâmbia até ao rio de Santo André; uma síntese sobre a presença portuguesa nos Rios da Guiné ou Etiópia Menor (1432-1438); os testemunhos dos Jesuítas na Serra Leoa; o trabalho desenvolvido pela Província de Nossa Senhora da Piedade, um apostolado que irradiava de Cacheu para Norte e Sul. E fica bem claro que a Guiné e a missão de Cabo Verde nos finais do século XVII e durante o século XVIII não atraíam vocações.

Temos agora o registo da Província da Soledade. Em 1674, partiram dez religiosos da Província da Soledade e tinham como superior de missão Frei Vicente de Celorico. O problema era melindroso, apareceram religiosos espanhóis que diziam ter sido enviados com o beneplácito papal, de quem dependiam diretamente, obrigaram a uma intervenção diplomática em Roma. Os religiosos franciscanos arvoravam-se como mensageiros do espírito de S. Francisco, pregavam a alegria e a fraternidade. Mas a missionação era precária. Em 1697, o Conselho Ultramarino sugere às autoridades que em Cabo Verde e na povoação de Cacheu haja catequista indígenas que saibam as línguas da terra e sejam eles os encarregados de preparar os escravos para o batismo, antes de seguirem para o seu destino.

Esta ideia de evangelizar através dos catequistas foi um método que os missionários voltaram a utilizar no século XX. E o autor profere a sua própria observação:
“Uma religião dogmática, intelectual, não tem razão de ser na linguagem do africano. A nossa opinião é que ontem como durante muito tempo no século XX, a Igreja procurou sacramentar, marcar os indivíduos antes que os outros fizessem a sua pedagogia. Mas no século XVII este sempre na mira dos navegantes que o importante era impedir que outras religiões chegassem antes de nós.”

E diz-nos, igualmente, que a presença efetivas dos franciscanos era feita através de hospícios, pequenas capelas, catequeses, os franciscanos na costa ocidental da Guiné não se estabeleciam em lugares fixos. Construíam pequenos locais de catequese mais ou menos provisórios por onde o missionário passava de tempos a tempos. E faz as suas críticas:
“É verdade que nem sempre os missionários foram benévolos para como o comportamento do gentio. Partilhamos da opinião de que, na maioria das vezes, os sacerdotes foram cúmplices em muitas cerimónias que tinham muito de paganismo e muito pouco de vestígios religiosos (…) Em alguns aspetos, a presença religiosa foi inovadora. Religiosos houve que procuraram aprender as línguas nativas, utilizaram catequistas africanos no sentido da catequese e condenaram os métodos utilizados pelos compradores de escravos.”

E disseca o trabalho missionário: “Construíram pequenos locais de catequese mais ou menos provisórios, por onde o missionário passava de tempos a tempos. A falta de clero secular fez com que muitos religiosos tivessem substituídos os sacerdotes na missão de paroquiar. Esse trabalho paroquial impediu uma presença mais efetiva e mais franciscana nas comunidades. O primeiro hospício terá sido construído para frades na povoação de Cacheu, por volta de 1660. Em 1677, já estava arruinado. O segundo hospício foi construído para apoio dos religiosos, em Bissau. Foram os Capuchinhos espanhóis que iniciaram as obras.” E diz-nos igualmente que a pregação apostólica dos religiosos da Província da Soledade tinha esta particularidade singular que era a itinerância. O cronista da Soledade informa que do hospício de Bissau se ia todos os anos ao rio Nuno. No século XVIII, as vocações para esta missão eram cada vez em menor número, o apostolado ficou localizado à volta dos dois hospícios existentes, Cacheu e Bissau.

E o autor debruça-se sobre outra questão delicada, os missionários que se dedicavam ao negócio. Em 1753, era o rei a admoestar o Provincial da Soledade por terem os seus religiosos uma casa clandestina de negócios em Farim, na direção da casa estava um irmão leigo. Mas havia outras queixas: casa aberta de comércio em Geba, contratação de escravos em vários portos, muita dedicação aos negócios e pouca ação no campo religioso.

Prestes a terminar o seu artigo, o autor interroga-se do porquê deste engodo do comércio e procura dar explicações:
“A vida dos missionários não era um mar de rosas. O grande benfeitor, quase único benfeitor, era o Governo de Portugal materializado nas côngruas e viáticos, o pagamento andava sempre muito atrasado. Os religiosos não podiam contar com o auxílio da população. Será escandaloso o terem necessidade de se dedicarem a processos de ordem económica para poderem garantir a sua subsistência sem aludir já ao apoio que ele representava para obras materiais e para o seu apostolado, tais como: igrejas, conventos, hospícios e todo o recheio necessário? A comunidade cristã não tinha estruturas económicas para poder ajudar os religiosos missionários. Há casos isolados, que apenas confirmam a regra geral. Nos finais do século XVII, as crianças Felupes ajudavam na construção da igreja local pelo seu próprio trabalho manual; há ainda a informação de que os Bijagós da ilha de Carache se ofereceram para ajudar a presença dos missionários com arroz e com uma vaca para auxiliar no sustento e no trabalho. É esta a situação económica destes religiosos que partem para a missão de espalhar o Evangelho. Nestas circunstâncias, era natural que um ou outro religioso se dedicasse ao negócio para sobreviver. Só assim nos parecesse justificado o trabalho comercial com o qual angariava o necessário para si e para a missão.”

Mas há um outro aspeto crítico que o autor levanta no termo do seu artigo: “Sabemos de religiosos que deixaram de evangelizar para viver, naquelas paragens, a comerciar. Longe do seu pensamento estava a conversão do indígena e o desenvolvimento socioeconómico do africano. Contudo, legitimar estes factos é complicado, pois que a documentação é escassa.” O autor conclui o seu trabalho com o levantamento que pôde fazer de alguns missionários franciscanos na missão da Guiné no século XVII.

Consideramos este texto do maior interesse dado que o Padre Manuel Pereira Gonçalves trabalhou no Arquivo Histórico Ultramarino e está na posse de bibliografia mais recente sobre a missão franciscana da Guiné.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24580: Historiografia da presença portuguesa em África (382): Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII na "Revista Itinerarium", ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24235: Historiografia da presença portuguesa em África (364): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
O que foi a atividade da Casa Gouveia na Guiné é um dos assuntos relevantes que continua por investigar em profundidade. Esta comunicação de Maria Eugénia Mata num simpósio que se prendeu com as comemorações dos 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva ilumina o tempo histórico dessas atividades, quando se iniciaram, contemporâneas da circulação da moeda com o BNU, não se conhece a documentação (estará perdida?) referente ao desempenho da Casa Gouveia em nome do BNU entre 1903 e 1917, fica-nos um quadro, dado por esta importante comunicação, do papel económico e financeiro da Casa Gouveia. A documentação existente na Fundação Mário Soares sobre a Casa Gouveia parece pouco elucidativa, resta saber o que há noutros fundos documentais, desde o arquivo da CUF, Arquivo Histórico Ultramarino, Sociedade de Geografia de Lisboa, Biblioteca Nacional, e por aí adiante. Grande empreitada que aguarda candidato...

Um abraço do
Mário



Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2)

Mário Beja Santos

Há anos que procuro saber por onde andam os arquivos da Casa Gouveia, a principal empresa comercial da Guiné, associada à CUF. Finalmente abriu-se-me uma porta, há um arquivo no Barreiro, indicaram-me o nome de alguém que durante anos na Guiné estivera na gestão dos Armazéns do Povo, depois da libertação para eles convergiram o património da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita, hoje assunto passado, tal como outros grandes empreendimentos, caiu na água levando ao tempo mais de 5 mil trabalhadores para o desemprego. Recebido com enorme afabilidade na Fundação Amélia de Mello, tenho a promessa de uma viagem ao Barreiro, ver o que há e não há. Entretanto, recebi uns bons quilos de publicações, comecei por este título Globalização em Português, atas do simpósio que se realizou na Academia das Ciências em Lisboa, Princípia, 2021. Chamou-me à atenção a comunicação de Maria Eugénia Mata com o título "Casa Gouvêa: Monetarização e Integração da Guiné na Economia Mundial". Vale a pena aqui respigar alguns dados pertinentes que permitem desvelar o poder deste empreendimento.

A autora, como vimos, revela a grande aproximação que existiu entre os negócios da Casa Gouveia e o BNU. Este, no período da Primeira Guerra Mundial, e muito depois, teve um papel determinante no sistema monetário, emitiu para as transações de pequeno valor (cédulas).

“Em pequenas cadernetas eram destacadas estas cédulas, um espaço deixado vazio permitia que fossem carimbadas em todo o Ultramar, foram emissões que se prolongaram até à Segunda Guerra Mundial, por razões de entesouramento e fusão do metal das moedas.”

Vimos igualmente que se adotou um novo sistema de pesos e medidas, difundiram-se as máquinas de costura, criou-se a frota da Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, que assegurava as ligações marítimas para o comércio bilateral de mercadorias e o transporte de passageiros.

Como a autora observa: 

“Nas exportações da Guiné, a Casa Gouvêa reunia e transportava para a metrópole os cultivos locais (mancarra, purgueira, rícino, algodão, mandioca) e as produções espontâneas de palmares, mangais, arrozais, bananais e outras frutas tropicais. Na segunda metade dos anos 1920 a procura internacional de produtos como a borracha e as oleaginosas desceu e bem assim os seus preços, no contexto das dificuldades da Grande Depressão de 1929-1933.” 

E adianta que a recuperação da Grande Depressão e os anos 1940 marcaram o aumento das produções e dos negócios na Guiné, o que se tornou visível com o crescimento de Bissau, tornada capital da colónia, uma capital que tinha um porto, onde afluíam navios nacionais e estrangeiros, em 1947 o Pidjiquiti recebeu uma nova construção de cais em estacaria de betão. 

Em que se transforma a Casa Gouveia? Tinha a sua sede em Bissau e como agente em Lisboa a CUF, Secção África-Guiné, situada na Rua do Comércio, 49, 4.º andar, em Lisboa. Era agente da Sociedade Geral Socony Vacuum Oil Company, para o transporte e distribuição de combustíveis da marca internacional e dos pneus MABOR.

É um tempo de pavimentação de estradas que permitiram a circulação de veículos de transporte. Em 1947, a colónia contava com telégrafo em 23 centros urbanos, melhorara a sua rede telefónica, tinham começado as emissões experimentais de rádio da estação de Bissau, foi reconstruída a fortaleza da Amura (desta vez em pedra em vez de barro e madeira), a capital encheu-se de equipamentos: o museu, o hospital com maternidade, a cadeia, a estufa, o liceu, o estádio, paióis, uma catedral, um palácio para o governador, uma mãe de água no Alto Crim para canalização e aprovisionamento doméstico; e foram construídas moradias para funcionários guineenses.

A Casa Gouveia servia a totalidade do território devido às suas sucursais, em 1948 eram 14: Bafatá, Bambadinca, Binta, Bissorã, Bolama, Brames, Cacheu, Teixeira Pinto, Farim, Nova Lamego, Geba, Mansoa, Sonaco e Pelundo. Sucursais em que se vendiam bens adaptados à vida em contexto rural e atmosfera étnica (têxteis, bicicletas, aparelhos de rádio, máquinas de costura, utilidades domésticas e querosene). 

A Casa Gouveia tem novos estatutos em 1961, passou de sociedade por quotas a sociedade por ações. Tinha obtido concessões por aforamento de pequenos territórios delimitados para o exercício dos seus propósitos na Guiné. As suas maiores propriedades rústicas localizavam-se em Buba, Bafatá, Farim e Canchungo.

E a autora dá-nos conta dos aspetos económico-financeiros em que emergiam os seus negócios, chama à atenção de que a circulação monetária do escudo da Guiné era diferente da circulação do escudo da metrópole, as exportações de produtos da Guiné eram pagas em escudos metropolitanos, ao preço da cotação desses produtos tropicais na Bolsa de Lisboa, incidia o pagamento de impostos alfandegários. Dá-nos conta da percentagem de cambiais obtida da exportação que devia ser entregue ao Fundo Cambial. Tive oportunidade, quando procedi a investigações no antigo Arquivo Histórico do BNU, de avaliar toda esta momentosa questão dos cambiais, as múltiplas petições das empresas que se queixavam da dureza de tributação. E escreve a autora: 

“O problema das cambiais tem a ver com o montante em escudo da metrópole com que ficavam os exportadores, e, portanto, condicionava a repatriação de lucros. E o poder político também o sabia. Quanto maior a percentagem de cambiais a entregar, menos lucros podiam repatriar. Toda a atividade da A. S. Gouvêa Lda. assentava em negociações com as autoridades políticas e administrativas locais e centrais (da metrópole) numa base de defesa dos seus resultados financeiros.”

A autora evoca testemunhos descrevendo os mecanismos económicos, cita mesmo o trabalho de Martinho Simões, datado de 1966, "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o terrorismo", o repórter descreve as “casas grandes” do comércio guineense, visitou o centro industrial da Casa Gouveia no Ilhéu do Rei. 

Retomando a questão dos cambiais, a autora releva que a atividade da Casa Gouveia e da CUF da família Silva Mello eram decisivas para o sistema monetário e cambial da Guiné, explica o câmbio e as taxas, o papel do BNU como agente do Fundo Cambial da Guiné para fazer os pagamentos à metrópole em escudos metropolitanos e os ajustamentos operados a partir de 1961 no sistema de pagamentos interterritoriais, quando o Governo quis fazer uma união monetária de todo o espaço económico português, criando a Zona Monetária do Escudo.

Assim se chega à luta pela independência, somos confrontados com a atividade económica do período e após a independência a Casa Gouveia foi integrada nos Armazéns do Povo, uma integração que ficou concluída a 31 de dezembro de 1975. O imenso descalabro que se seguiu já não conta para esta história.

Finda aqui a recensão ao trabalho de Maria Eugénia Mata, vamos confiar que há outras fontes documentais à espreita de consulta.


Casa Gouveia em Bissau
Instalações da então Casa Gouveia no Ilhéu do Rei, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
Antiga casa comercial António Silva Gouveia, posteriormente, utilizada para instalações militares do quartel de Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24219: Historiografia da presença portuguesa em África (363): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1) (Mário Beja Santos)