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segunda-feira, 21 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27038: Manuscrito(s) (Luís Graça) (271 ): Pôr-do-sol na varanda do Vigia, GAPAB -Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca: onde a terra acaba e o Atàntico começa, há um varanda que guarda o último suspiro do sol...



Pôr-do-sol na varanda do VIGIA, GAPAB - Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca, Lourinhã... Onde a terra acaba e o Atântico começa, há um varanda que guarda o último suspiro do sol...

(Cartaz gerado por assistente de IA / LG)



Lourinhã, Praia da Areia Branca, 19 de julho de 2025

Fotos: © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cuidado, frágil, adorador do sol

por Luís Graça


No teu testamento vital,
que é também uma declaração de interesse,
vais ter que escrever que não tens religião,
mas és adorador do sol,
veneras o sol como um deus,
deves a vida ao sol.

Fica de fora a lua, 
e mais ainda o "black, dark, side of the moon".
(Passaste há dias por uma mulher 
que escolheu esta frase tão sensaborona
ou se calhar, genial, provocadora, feminista,
para pôr na parte da frente  da sua t-shirt,
intencionalmente preta e suja...
Pensaste:  já é tudo tão vulgar, tão "kitsch", tão triste... 
Ou talvez não, se elevares a frase à categoria do sarcasmo social!).

Não sabes se é pecado maior,
aos olhos do guardião do céu.
Nem sabes se o deus todo poderoso das religiões monoteístas
tem ciúmes do sol,
afinal sua criatura, finita.

Os pobres dos antigos egípcios,
que já tinham a mania que eram astrólogos e astrónomos,
adoravam o sol, o deus-Rá,
um homúnculo com cabeça de falcão,
e sobre a cabeça um disco solar e uma cobra enrolada...
Era ele que trazia a luz e regulava a vida,
viajando pelos céus durante o dia na sua barca solar,
e mergulhando à noite no submundo das trevas,
para combater a entropia e as forças do mal...


Tu,  animista, heliocêntrico, te confessas.
És um tonto de umn girassol.
Perturbam-te os eclipses, totais ou parciais, do sol.
Extasias-te com o pôr-do-sol, 
e não tanto com o nascer-do-sol.
Sabes que o sol é um dado adquirido,
mesmo que não nasça para todos,
como já não nascia no vale do Nilo 
no  tempo dos faraós e do deus-Rá.

Sabes que podes contar com ele todas as manhãs, ao acordar,
mesmo em dias de céu cinzento, nublado, deprimente,

Mas também te aterroriza o pôr-do-sol,
onde se oculta, emboscada, a morte.
Aterroriza-te saber que um dia, 
daqui a alguns milhões de anos,
o sol apagar-se-á.
Ou implodirá.
Perguntar-te-ão: que te  importa, pobre diabo,
se sabes que vais morrer um dia destes ?

Pensava-lo imortal, ao deus-sol, mas é finito:
quando descobriste,  aos teus catorze ou quinze anos,
que um dia o sol iria morrer,
tornaste-te ateu (ou, talvez melhor, agnóstico,
ou talvez nem isso:
tiveste muito simplesmente a tua primeira crise existencial).

Nunca ligaste ao sol na Guiné,
na tua segunda crise existencial.
Ou melhor: odiava-lo, ao sol tropical, 
odiava-lo com um ódio de morte.
Afinal, ninguém faz uma guerra 
sem ter um ódio de estimação. 
Um inimigo.

Não tinhas o mar, no interior, no mato,
para te deslumbrar com o pôr-do-sol.
Não tinhas o "mare nostrum" dos teus antepassados, o Atlântico.
Apenas os poilões, a tabanca, 
a bolanha e os palmeirais e a savana arbustiva.
Ou a floresta-galeria que te tapava o sol.
Nunca foste ao Boé, onde havia pequenas colinas.
A Guiné era plana, horrivelmente plana, chata como a Holanda.

Ah!, como tu odiavas o sol da Guiné.
Detestava o sol porque havia guerra,
e penosas operações a pé que te podiam levar
à insolação, à desidratação e, "in limine", à morte.
Detestavas o sol porque não sabias
por que razão havias de morrer de insolação e desidratação
só porque havia guerra no tempo seco.

Odiavas o sol da Guiné,
razão por que sempre preferias a  noite e os seus pesadelos.
Nunca viste a lua, 
ou então só viste o  "black, dark side of the moon".
Dormias de dia, sempre que podias ou te deixavam.

E, quando tu morreres,
se ainda puderes deci
dir
(isto é, escolher onde, como e quando...),
e, se não for pedir muito a quem de direito,
aos homúnculos do panteão,
com cabeças de falcão e braços de serpente,
pois então que peças para morrer ao pôr-do-sol,
frente ao mar da tua infância,
ao Mar do Serro.
Duvidas que os deuses aceitem cunhas, 
por isso não também rezas.

Não, ainda não escreveste o teu testamento vital,
mas esperas ainda ir a tempo de o fazer
e de lá pôr essa cláusula,
para o cangalheiro ler:
'Quero que no meu caixão,
antes de entrar no forno crematório,
escrevam a tinta anti-fogo:
Cuidado, frágil, adorador do sol".

 
Lourinhã, Praia da Areia Branca,  Vigia-Gapab, 19 de julho de de 2025

______________

Nota do editor:

Último poste da série: 17 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27027: Manuscrito(s) (Luís Graça) (270): Salve, Jaime, ao km 79 da tua picada da vida!

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ainda ontem, ao fim da tarde, estava a escutar as memórias do alferes Carvalhinho, herói da batalha do Como, meu conterrâneo, que ameaçou fuzilar quatro dos seus "corrécios" e "bêbedos" do pelotão...Ele deve estar com os seus oitenta e cinco anos e ainda canta o fado e dedilha a sua guitarra... É um adorador do sol, como eu...

Tinha imenso orgulho nos seus obuses 8.8. E ficou danado quando os substuiram, na Guiné, pelos 10.5 e 14, que não valiam nada... Ele foi um dos heróis do Como, era capaz de pôr um supositório de 18 kg no cu no Nino...