Candamã - Putos fazendo ginástica
1. Texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.
NÓS DA MEMÓRIA - 9
(…desatemos, aos poucos, alguns…)
5 - OS PUTOS
Parecem bandos de pardais os Putos… os Putos…
Não, estes não eram esses putos. Estes viviam nas Tabancas de Candamã e Afiá, como em muitas outras por essa Guiné fora.
Alegres, brincalhões, bem dispostos, sorrisos francos e abertos os destes putos.
Felizes? Penso que sim, dentro das limitações impostas.
Tinham pouco, tão pouco e, mesmo assim, nada pediam talvez pela sua timidez e educação. Os olhos esses tudo diziam, olhares iguais a de outros miúdos, aos dos putos do fado ou dos putos de nossas vilas e aldeias que nesse tempo, a maioria, pouco mais tinham que esses putos de Candamã ou das Tabancas.
Aos poucos fomos conquistando a sua confiança. Dava-se algo, tratava-se de uma ferida infectada, pedia-se para executarem uma simples tarefa. A sua curiosidade, a alegria espontânea levava-os a de pronto ajudar.
Para eles éramos pessoas diferentes, não só na cor, mas no vestir, nos hábitos, na comida. As armas eram o poder da força que parecíamos ter.
Andavam à nossa volta timidamente e sem incomodar, aproximando-se mais na hora das refeições mas sem nada pedir. Fomos nós a oferecer do pouco que tínhamos. Talvez pareça estranho mas não abundava a nossa comida e, de quando em vez, havia “
rotura de stock”.
Acabamos, não recordo de quem foi a ideia, por fazer uma Escola para os putos. Não privilegiámos o ensino do
1, 2, 3… ou do
a, e, i, o, u. Procurámos, dentro das nossas possibilidades, transmitir conhecimentos diversos como regras de higiene, tratar dos pequenos problemas de saúde e outros, onde também se inseriam o ensino das letras e números e, talvez mais importante, fazendo deles os elos de ligação entre nós e a comunidade onde nos inseríamos. Seria fundamental esta interligação entre as duas culturas. Já tínhamos algum tempo de Guiné e sabíamos quanto isso era importante. A Escola foi o local onde eles iam aprendendo e apreendendo muito bem tudo o que lhes ensinado e, ao mesmo tempo, o local de integração mutuo.
Eram outros saberes e procurávamos nunca violentar os deles antes apreende-los e assim melhor entender como ali se devia viver. Desse modo creio, mesmo hoje, que todos beneficiaram.
Pouco podíamos fazer pela melhoria da saúde ou higiene deles. Os nossos recursos e conhecimentos eram muito limitados. Pedíamos à sede da Companhia e geralmente apareciam. A sarna era debelada com Thiosan, a pele era melhorada com sabonetes Lifeboy (seriam estes os nomes?) e as pomadas e líquidos L.M. para tudo davam.
Depois das “
aulas”, pouco tempo sentados para não aborrecer, tínhamos a ginástica, o jogo com a bola de trapos e outros jogos simples.
Tudo a passar-se no largo das moranças do Régulo e com a bandeira de Portugal no mastro. Era diariamente hasteada e arreada pelos homens das Tabancas. Muitas vezes assistíamos. Afazeres diversos, que se prendiam com a nossa vida militar, não permitiam a assiduidade que devíamos ter. Era uma vida em que as horas, e muito mais, eram limitativas dessa e de outras disponibilidades. Eram sempre os homens da tabanca a tratar daquela sua bandeira. O Régulo, quando estava, assistia sempre. Um homem extraordinário o António Bonco Baldé.
Voltando aos putos, depois das aulas e dos jogos vinha o banho, os saltos para a água, a lavagem com o sabão e sabonete.
Ressalvo um ponto: nas Tabancas era praticada a higiene. As famílias tinham instalações próprias. Não falamos dela pois sairíamos do tema: - os putos.
Os risos deles, a alegria eram contagiantes para nós, talvez, porque não, sentíssemos, nesses curtos momentos, estar num mundo diferente.
Depois cada um ia à sua vida. À hora do almoço, muitos deles apareciam e da parte da tarde iam para a bolanha tentar apanhar uns pequenos peixes que nós comíamos depois de fritos e polvilhados com piri-piri.
Esta troca, - este “
partir” – estes peixes minúsculos por comida e outros géneros, eram o gesto da troca, da não dádiva, da dignidade da permuta. Dou e recebo.
Eram felizes os putos? Eram!
Além disso faziam de nós mais humanos, mais despreocupados e a guerra naqueles momentos devia parar. Os putos parecíamos nós. Por pouco tempo é certo. Não eram permitidos descuidos ou desatenções, imperdoáveis quaisquer desatenções.
Desdramatizemos e pensemos antes que todos, nós e os putos eram, naqueles momentos, bandos de pardais à solta… como os do fado…
A guerra, essa besta, estava logo ali. Mesmo hoje, ao escrever isto, sinto-a ao alcance da mão.
Esqueçamo-la e desaparece.
O que será feito dos putos?
Cinquentões hoje ou a caminho disso.
Sinto saudades daquela gente. Das Gentes das Tabancas, dos que comigo andavam no mato, dos que connosco combatiam ou, como dizia alguém, talvez tenha também saudades da juventude que passou…
De tudo e tanto há para recordar.
Dou-vos as fotos. Elas dizem mais do que as palavras de um velho e ex-soldado.
Recordem. Vidas… lá ou cá…
Adeus!
Candamã - Escola dos Putos
Candamã - Futuros craques ou yankies
Limpeza colectiva em Candamã
Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9440: Nós da memória (Torcato Mendonça) (8): Segundo dia em Bissau - Fotos falantes IV