Guiné >Região do Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968> Um prisioneiro do PAIGC.
Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados
1. O A. Marques Lopes fez parte do pelotão da frente do nosso blogue, ou seja, foi dos primeiros camaradas a aparecer, em meados de 2005, a dar a cara, a escrever, a fornecer fotos, a publicar histórias e relatórios, a comentar... Ele, o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o David Guimarães, o Luís Carvalhido, o Afonso Sousa, o João Varanda, o Fernando Chapouto, o Jorge Santos, o Manuel Castro, o António dos Santos Almeida, o Belmiro Vaqueiro, o João Tunes, o Paulo Salgado, o Virgínio Briote...
Recorde-se que ele é coronel DFA, na reforma, tendo sido alferes miliciano no TO da Guiné em 1967/68 (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)... Ferido em combate, foi evacuado para o HMP, ainda no tempo da CART 1690, mas não se safou de ter de voltar, sendo então colocado na CCAÇ 3, em Barro. O seu Gr Comb era conheciodo por os "Jagudis", uma mistura de balantas e fulas. Natural de Lisboa, vive em Matosinhos. E tem hoje a o seu próprio blogue, que arrancou em 30/9/2010: Coisas da Guiné. Também foi um dos fundadores da Tabanca de Matosinhos.
Da sua muita e valiosa colaboração na I Série do nosso Blogue, fomos repescar um artigo de opinião sobre um tema que na altura (maio de 2006) esteve na berlinda e deu origem a vários postes, saudavelmente polémicos, a começar pelo título da série "O colaboracionismo sempre teve uma paga"... Reproduz-se aqui o primeiro poste da série, que foi justamente da autoria do A. Marques Lopes, bom amigo e melhor camarada, ou bom camarada e melhor amigo...
O poste, mesmo integrado na seleção dos melhores postes da I Série (*), não deixa ser de ser atual e oportuno, encaixando-se no teor dos muitos comentários (já vão em 46!) suscitados pelos trágicos acontecimentos em Cuntima, novembro de 1976, revelados pelo Cherno Baldé. Infelizmente faltou à Guiné (bem como a Angola e Moçambique) a lucidez e a grandeza de um Nelson Mandela que soubesse fazer a paz, sem exclusão de ninguém, sem ódio, sem revanchismo. O curso dos acontecimentos, pós-independência, com Amílcar Cabral, se fosse vivo, seria muito provavelmente diferente ? Podemos especular, mas nunca saberemos a resposta à pergunta. (LG).
Página de rosto do blogue de A. Marques Lopes, Coisas da Guiné... De que trata ? "Lembranças da Guiné, na guerra e já fora dela. Pesquisa, comentários e factos. A memória sempre presente. Não está por ordem. É conforme me vou lembrando. Tudo o que tem a ver com a Guiné, a sua história, as etnias, a colonização e as guerras de resistência. Também a minha experiência durante a guerra colonial (está nos primeiros posts). Para quem não sabe ou viveu que veja e avalie se é realidade ou ficção. Para quem sabe ou viveu são lembranças".
O colaboracionismo sempre teve uma paga (**)
por A. Marques Lopes
Caros camaradas e amigos:
Tenho lido tudo o que têm escrito sobre os fuzilamentos e outras mortes dos comandos africanos e outros guineenses que estiveram a combater do lado da tropa portuguesa durante a luta de libertação na Guiné. Já escrevi, em tempos, sobre isso para o blogue. Porque o tema está aceso, vou ver se me lembro do que disse na altura e acrescentar mais algumas coisas.
Também sei de alguns dos meus jagudis que foram mortos após a independência, e de outros que tiveram de fugir para o Senegal. Falei-vos já, no blogue, do Braima Seidi, o meu guia em Barro, conhecedor dos trilhos e das zonas do tarrafe por onde os guerrilheiros passavam, tendo resultado da sua colaboração muitas e pesadas baixas para o outro lado.
Contei-vos que, em 1998, quando perguntei ao Cacuto Seidi por ele, este chefe da tabanca de Barro me disse, um pouco atrapalhado:
─ Mataram ele depois da independência...
Também vos falei da filosofia de vida dos meus soldados da CCAÇ 3, da sua atitude perante os feridos que o PAIGC deixava no terreno, e que era:
─ Deixa estar, alfero, vem jagudi e come...
O Braima Seidi, caçador conhecedor da zona, recebia 2.000 escudos por mês por essa sua colaboração, vivia bem na tabanca, com quatro mulheres. Um cabo daquela companhia recebia 1.400 escudos mensalmente (não me lembro quanto recebiam os soldados), com comida, bebidas sempre à disposição, e assistência médica em Bigene, quando necessário. Apesar de também andarem na guerra, uma vida muito diferente do pessoal da guerrilha que vivia no mato.
No final da segunda grande guerra, a resistência francesa matou muitos colaboracionistas, a italiana assim fez, no Vietname, após a vitória, fizeram o mesmo, os franquistas fuzilaram muitos republicanos...
─ Vae victis! Ai dos vencidos! - já os romanos diziam.
Não estou a fazer a apologia desses procedimentos, estou a dizer que eles sempre fizeram parte da história dos vencedores. Claro que também houve os Nurembergas em que os vencedores, muitos também com culpas no cartório, fizeram o julgamento daqueles que venceram. Mas foi diferente, evidentemente.
Tenho pena e gostava que as coisas não se tivessem passado assim na Guiné, porque, como vós, vivi e convivi com aqueles guineenses que lutaram ao meu lado. Não sei dos meandros das conversações em Londres para formalizar a independência (...).. Mas parece-me que a solução desse problema, o futuro dos que estiveram do nosso lado, não teria sido tarefa fácil.
Num país saído de uma revolução, como foi nosso, em ebulição em 1974, perto da guerra civil em 1975, que poderia ter sido feito? Embarcar toda essa tropa guineense, habituada à guerra e a matar, misturá-los com os muitos milhares de retornados que cá estavam já, acasalá-los com os vários grupos políticos que se degladiavam, às vezes de forma violenta, encostá-los ao MDLP...? Tentar que fossem para outro país africano, tentar passar a batata quente? Mas qual dos países africanos, já com gente da mesma estirpe, os aceitaria?
Outra hipótese, que me disseram ter existido, seria negociar a integração deles nas Forças Armadas da nova Guiné-Bissau. Mas, há que admitir, isto também terá sido demasiado complicado conseguir. Com os ódios todos ao de cima (que é natural que houvesse entre guineenses que se combateram mutuamente, embora connosco isso não sucedesse), não os estou a ver em conjunto numa caserna, não estou a ver um capitão dos comandos africanos a comandar uma companhia de ex-guerrilheiros... Não estou a ver o Marcelino da Mata em convívio com o comandante Lúcio Soares.
Gostaria que tivesse havido uma solução. Mas não foi fácil, acredito. Não por cobardia, nem pusilanimismo, nem por abandono dos responsáveis portugueses da altura, governo, MFA ou Conselho da Revolução. Num país em agitação revolucionária, mesmo em polvorosa, com militares politicamente inexperientes, terá sido extremamente difícil manobrar de forma ardilosa e segura, havendo tantas coisas de difícil tratamento por cá.
Está visto que o problema teve que ficar nas mãos dos vencedores, donos da Guiné. Estes poderiam, se com uma mão firme e esclarecida a dirigi-los, ter optado pelo menos chocante e, na situação, aceitável até para nós: deixá-los estar, remetendo-os ao abandono. O tempo traria outra soluções (ou outros problemas, sabe-se lá...). Mas o caboverdiano Luís Cabral, como me disse o ex-paraquedista Camará, não conseguiu ter pulso e foi ultrapassado pelas iniciativas dos ex-comandantes das guerrilhas locais, pelas iniciativas das figuras históricas do PAIGC naturais da Guiné, como o Nino Vieira, o Gazela e o Chico Té. E foram estes que incentivaram à vingança dos vencedores... a outra paga. E, como se sabe, o próprio Luís Cabral teve de ir embora.
Mas cada um tem a sua visão pessoal desta questão, é claro. Acontece em tudo. Sobre o outro lado da moeda, isto é, as atrocidades cometidas pelos comandos africanos, pela PIDE e outros que tais, não vou acrescentar mais ao que o João Tunes e o Pepito já disseram. Estou completamente de acordo com eles.
Um abraço
A. Marques Lopes
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 30 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11654: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (15): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Parte III : O Dauda (filho do vento e mascote da companhia), o 1º cabo escriturário Cardoso, o faxina Rochinha, e...o batismo de fogo, no final das chuvas, em outubro de 1967
(**) Vd., I Série, poste de 25 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCV [795]: O colaboracionismo sempre teve uma paga (1) (A. Marques Lopes)