Décimo quinto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Quase todos os antigos combatentes, quando escrevem as suas
memórias, mencionam os companheiros que estiveram a seu
lado, durante o horroroso conflito armado por que passaram.
É uma verdade, todos, mesmo todos, se fecharmos os olhos
por momentos, recordamos o amigo, aquele que não era muito
amigo, e
até aquele
que era
mesmo um
pequeno
inimigo, e
fazemos
isso,
talvez
porque
naquela
altura,
estávamos
numa idade
jovem,
eram os “verdes anos”, ainda estávamos a gravar no pensamento tudo o que era novo, as pessoas que nunca tínhamos visto antes,
umas que eram parecidas connosco na sua maneira de proceder,
outras não, algumas eram instruídas e absorvíamos as suas
palavras que para nós era novidade, outras que eram rudes na
maneira de se exprimirem, mas com bons sentimentos, enfim, sem
nos apercebermos estavamos a frequentar, embora num cenário
perigoso, uma boa “escola da vida”.
O Cifra teve um amigo no cenário de guerra, que nunca o
mencionou aqui, e também nunca lhe colocou qualquer nome de
guerra, e não é agora que lho vai pôr, porque sempre
respeitou o seu sofrimento, portanto vai tratá-lo única e
simplesmente por “amigo”, era das ilhas, falava com um sotaque diferente, também era primeiro cabo operador cripto,
sofria a
ausência
da sua
esposa e
um filho que
deixou
nas
ilhas,
todos os
dias
procurava
um local
um pouco afastado,
colocava-se
de
joelhos,
quase
sempre com a cara virada para o que julgava
ser a ilha de onde era oriundo, murmurava umas lamúrias, que
devia ser rezar, chorava, de vez em quando levantava a cara e
as mãos e fazia umas preces em voz alta.
Este amigo que trazia a fotografia da esposa e do filho sempre
consigo, fez um pequeno quadro onde colocou essa fotografia, e
sempre que entrava de serviço, esse quadro era posto na mesa
onde decifrávamos as mensagens. De vez em quando o Cifra via-o
a falar sozinho, e questionado, dizia que falava com a esposa. Escrevia um aerograma por dia para ela e talvez para a família, um maço de cigarros durava-lhe para três dias, bebia um
pouco de vinho, na altura da refeição, não ia para a tabanca,
não convivia com mais ninguém, a não ser com o pessoal da cifra
ou das transmissões. A sua roupa estava sempre impecável, e
dizia que era assim que a sua esposa queria que ele andasse. Durante dois anos nunca criou problemas com ninguém, por outras
palavras, vivia o seu mundo de saudade da sua família, sofrendo
e criando alguma angústia.
O Cifra, sempre pensou que este amigo, sim, sofreu com a
guerra, sofreu tudo o que aquela zona de conflito onde estava
estacionado lhe provocava, menos talvez o contacto directo
com os guerrilheiros, que os militares de acção tinham, mas
tirando essa vertente, este amigo sofreu todas as horas, todos
os dias que foram a sua estadia em Mansoa. O seu aspecto, no
final da comissão, era de uma pessoa com muito mais idade do
que na realidade tinha, criou algumas rugas e já
caminhava um pouco curvado.
Dizia que era oriundo das “Flores”, a ilha mais linda dos
Açores, e mais perto de outro continente.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11750: Bom ou mau tempo na bolanha (14): "Tarrafo", um livro, um documento (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Tony, o teu amigo Cifra consegue fazer-me recordar que estive dois anos na Guiné, tão reais são os seus relatos, tão comuns são as histórias que se encaixam em muitos de nós.
Continua a escrever amigo, eu gosto.
Um abraço amigo
César Dias
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