terça-feira, 25 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11763: Bom ou mau tempo na bolanha (15): Os verdes anos (Tony Borié)

Décimo quinto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Quase todos os antigos combatentes, quando escrevem as suas memórias, mencionam os companheiros que estiveram a seu lado, durante o horroroso conflito armado por que passaram.

É uma verdade, todos, mesmo todos, se fecharmos os olhos por momentos, recordamos o amigo, aquele que não era muito amigo, e até aquele que era mesmo um pequeno inimigo, e fazemos isso, talvez porque naquela altura, estávamos numa idade jovem, eram os “verdes anos”, ainda estávamos a gravar no pensamento tudo o que era novo, as pessoas que nunca tínhamos visto antes, umas que eram parecidas connosco na sua maneira de proceder, outras não, algumas eram instruídas e absorvíamos as suas palavras que para nós era novidade, outras que eram rudes na maneira de se exprimirem, mas com bons sentimentos, enfim, sem nos apercebermos estavamos a frequentar, embora num cenário perigoso, uma boa “escola da vida”.


O Cifra teve um amigo no cenário de guerra, que nunca o mencionou aqui, e também nunca lhe colocou qualquer nome de guerra, e não é agora que lho vai pôr, porque sempre respeitou o seu sofrimento, portanto vai tratá-lo única e simplesmente por “amigo”, era das ilhas, falava com um sotaque diferente, também era primeiro cabo operador cripto, sofria a ausência da sua esposa e um filho que deixou nas ilhas, todos os dias procurava um local um pouco afastado, colocava-se de joelhos, quase sempre com a cara virada para o que julgava ser a ilha de onde era oriundo, murmurava umas lamúrias, que devia ser rezar, chorava, de vez em quando levantava a cara e as mãos e fazia umas preces em voz alta.


Este amigo que trazia a fotografia da esposa e do filho sempre consigo, fez um pequeno quadro onde colocou essa fotografia, e sempre que entrava de serviço, esse quadro era posto na mesa onde decifrávamos as mensagens. De vez em quando o Cifra via-o a falar sozinho, e questionado, dizia que falava com a esposa. Escrevia um aerograma por dia para ela e talvez para a família, um maço de cigarros durava-lhe para três dias, bebia um pouco de vinho, na altura da refeição, não ia para a tabanca, não convivia com mais ninguém, a não ser com o pessoal da cifra ou das transmissões. A sua roupa estava sempre impecável, e dizia que era assim que a sua esposa queria que ele andasse. Durante dois anos nunca criou problemas com ninguém, por outras palavras, vivia o seu mundo de saudade da sua família, sofrendo e criando alguma angústia.

O Cifra, sempre pensou que este amigo, sim, sofreu com a guerra, sofreu tudo o que aquela zona de conflito onde estava estacionado lhe provocava, menos talvez o contacto directo com os guerrilheiros, que os militares de acção tinham, mas tirando essa vertente, este amigo sofreu todas as horas, todos os dias que foram a sua estadia em Mansoa. O seu aspecto, no final da comissão, era de uma pessoa com muito mais idade do que na realidade tinha, criou algumas rugas e já caminhava um pouco curvado.

Dizia que era oriundo das “Flores”, a ilha mais linda dos Açores, e mais perto de outro continente.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11750: Bom ou mau tempo na bolanha (14): "Tarrafo", um livro, um documento (Tony Borié)

1 comentário:

Cesar Dias disse...

Tony, o teu amigo Cifra consegue fazer-me recordar que estive dois anos na Guiné, tão reais são os seus relatos, tão comuns são as histórias que se encaixam em muitos de nós.
Continua a escrever amigo, eu gosto.
Um abraço amigo
César Dias