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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26480: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (167): De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento



Guiné- Bissau _ Região do Cacheu > Barro > 1998 > O A. Marques Lopes (1944-2024), atravessando de piroga o Rio Cacheu, no decurso da sua primeira viagem à Guiné, depois do regresso a casa  em 1969. Voltaria lá ainda em abril de 2006.


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Da autobiografia (ficcionada)  do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  578 pp.), reproduzimos as pp. 564/572) a partir do ficheiro em pdf que ele disponibilizou na sua página do Facebook, para os seus amigos e camaradas poderem ler e lembrar-se dele quando chegasse a sua hora de se despedir da Terra da Alegria.

É uma homenagem a um dos 111 históricos do nosso blogue, falecido ainda recentemente (em 4 de julho de 2024) e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ 3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército: faleceu, aos 80 anos,  com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma.  Conheci-o, pessoalmente, na vésperad e Natal de 2005, na casa dos meus cunhados, na Madalena, Vila Nova de Gaia. Tem mais de 290 referências no nosso blogue.


 De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento
 

por A. Marques Lopes (1944 - 2024)



(...) Passara dez meses ali ao pé do Senegal. Ao fim desse tempo mandaram-no ir para Bissau, era para regressar à metrópole. Estava livre, até que enfim, pensou. Mas, afinal, não esteve.

Tinha chegado há poucos dias e disseram-lhe que tinha de ir montar uma emboscada em Bissalanca, perto do aeroporto, pois suspeitavam de um ataque lá. Deram-lhe um pelotão de uma companhia que não soube se tinha acabado de chegar ou se era das que já lá estavam. Nem quis saber, porque ficou é lixado.

Antes, decidiu ir ao Bar de Oficiais do QG beber uma cerveja. Foi ao balcão, pediu uma e foi sentar-se com ela num dos sofás que lá havia. Tentava acalmar-se, pois não lhe agradara nada ter de ir para o aeroporto armar uma emboscada. Estava em Bissau para curtir antes de embarcar, não para isso, já lhe chegara no mato. No meio destas reflexões chega-se à frente dele um tenente-coronel. Já lhe tinham dito que ele era o gerente da Messe de Oficiais, chamavam-lhe “O lavrador” porque gostava muito de tratar de uma horta que havia na zona da Messe.

Não pode estar aí, nosso alferes   lança-lhe ele.

Ficou mesmo espantado. Não estava a ver porquê.

 – Não posso porquê, meu tenente-coronel? perguntou-lhe, sem se levantar.

 – Porque o seu camuflado está a sujar o sofá.

De facto, era tudo gente fina que estava ali naquele bar. Camisas de manga curta e calças limpinhas e passadinhas a ferro, impecáveis, sapatos pretos brilhantes. E ele com o seu querido camuflado, pele da sua carne em muitos dias e noites de mato, com as suas botas calcorreadoras de zonas de capim e de bolanhas. O camuflado estava já muito amarelado e debotado pelo uso, tinha até um buraco ou outro, ali destoava um bocado, é verdade, mas estava limpo, tinha sido lavado. As botas eram de lona mas estavam limpas da lama do tarrafe. Levantou-se para ver se havia de facto alguma sujidade. O grupo que estava ao balcão observava.

Olhou para as pernas, levantou os braços e mirou para cada um, deu meia volta à esquerda e à direita e observou os flancos.

–  Não vejo nada sujo.

–  Não interessa, assim fardado não pode estar aí.

Tinham-no mandado para uma emboscada e vinha agora este com estas merdas. Foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?, ficou com vontade de lhe dar um murro. Todo ele estava para isso. Um major que estava ao balcão topou e chegou-se ao pé deles.

– Tenha calma, nosso alferes. Meu tenente-coronel, deixe o homem beber a cerveja. Ele vai-se já embora, não é?

Aiveca não disse nada, bebeu o resto da cerveja, pôs a garrafa em cima da mesinha com força e saiu. Alguém lhe disse mais tarde que o major se chamava Carlos Fabião.

Atrás dele veio um alferes que conhecera lá no bar, trabalhava no Gabinete de Justiça do QG. Era magro, moreno, e tinha uma barbicha à passa-piolho.

 – É pá, se quiseres fazer queixa do gajo o Spínola dá-lhe uma porrada com certeza.

 Não faço nada. Quero que o tipo se foda e o Spínola também - e foi-se embora.

Já com o pelotão em viaturas, a caminho do aeroporto, chegaram ao pé do palácio do Governador. Ao lado estava o edifício da Associação Comercial. Havia lá grande festa, janelas iluminadas, ouvia-se música de dança. Mandou parar.

  Porque é que paramos, meu alferes? –  pergunta-lhe um furriel ao pé dele.

   Estou com vontade de ir ali e dar cabo daquela merda toda. A gente aqui e eles a gozar.

O furriel abriu os olhos.

   Mas isso não pode ser. Levávamos uma porrada das grandes. Era mau. Sobretudo para o meu alferes que está prestes a ir embora.

   Está bem, tens razão. Mas daqui a uns meses vais perceber este sentimento. Vamos embora.

E foram para o aeroporto. Não houve nada e lá para as cinco da madrugada regressaram.
Foi para os anexos à Messe de Oficiais onde dormia e onde dormiam também vários alferes que estavam de passagem ou à espera do embarque de regresso. Apeteceu-lhe fazer qualquer coisa para acalmar a fúria. Viu um bidão que estava ali com garrafas de cerveja. É isto. Agarrou em várias garrafas e começou a atirá-las para cima dos telhados do anexo. Que gozo! Bum, bum! Em cima dos telhados de zinco, bum, bum! Riu-se à brava a vê-los sair das portas todos alarmados e em cuecas.

  Que merda é esta?!   gritavam.

Viram que era ele a atirar garrafas e ficaram mais descansados, mas chamaram-lhe todos os nomes antes de voltarem para as camas. Aiveca foi também. Estava mais satisfeito, tinha desopilado.

De manhã, o Almeida Campos, um alferes que andava por lá, convidou-o para ir com ele ao Bento. Era onde se sabia de tudo, porque por lá passavam quase todos os que vinham ou ainda estavam no mato e contavam coisas, tudo, operações, ataques, mortos. Era o sítio das informações, por isso lhe chamavam a 5ªREP, que era a Repartição de Informações do QG. Todos ficavam a saber coisas, todos e também os miúdos e miúdas que entre eles andavam a vender camarão, caju e mancarra ou a engraxar as botas dos mais aprumados. Muita coisa o PAIGC devia saber também através deles.

Comeram uns camarões e beberam umas canecas. O Almeida Campos tinha sido apontador de obus lá para o sul e estava também à espera de embarque para ir embora.

  É pá, e se a gente fosse dar uma volta?    perguntou a Aiveca, que estava de má cara, ainda lixado com o “Lavrador”.

  Uma volta aonde?

   Para fora de Bissau.

Não lhe desagradava.

   Mas precisamos de um jipe para isso   disse Aiveca.

   Eu requisito um jipe ao QG.

   E vão dar-to?...   Aiveca duvidou.

  Está descansado que eu conheço lá um sargento.

E o Almeida Campos conseguiu-o. Saíram de Bissau não sem antes meterem uns whiskys no bar da Messe de Oficiais. Chegaram a Nhacra eram horas de almoçar. Pararam numa tasca á beira da estrada para comer. Foi frango de chabéu regado a muito vinho fresquinho. Era o preferido de Aiveca.

–  A gente podia ir mais longe  –  opinou Aiveca.

Estavam bem aviados e ele já estava por tudo.

 
– Claro  – disse o Almeida Campos . – Metemos pela estrada sempre em frente e logo se vê.

Grande homem, era dos dele!

Foram pela estrada cerca de uma hora. Nada, não viram nada pelo caminho, só mato dum lado e doutro, até que chegaram a uma povoação. Muita gente os olhou, admirada, quando entraram.

–  Eu acho que isto é Mansoa  – pareceu a Aiveca.

Era. Um grupo de militares veio ao encontro deles. Cumprimentos, interrogações.

–  Que vieram cá fazer?

–  Nada. Só passear.

–  São doidos. De Bissau aqui só em coluna militar.

Havia um jogo de futebol e foram até lá para ver. No fim do jogo houve festa com muita cerveja e eles entraram nela.

–  Ó Almeida Campos, é melhor irmos embora que está a fazer-se tarde.

Já tinha passado muito tempo.

 
– Tá bem. Mas antes vamos pedir aqui umas cervejas para o caminho.

Eles deram-lhas, e um fuzileiro, nunca soube porque é que ele lá estava, pediu-lhes boleia. Foi com eles.

Uma viagem de regresso muito alegre. O Almeida Campos ia a conduzir e Aiveca ao pé dele, de pé, sempre a cantar. O fuzileiro ia no banco de trás. Iam bebendo as cervejas ofertadas e a cantar.

Já tinha começado a escurecer quando viram ao longe as luzes do aeroporto. Aiveca ia de pé, agarrado ao para brisas e sempre a cantar. Às tantas o Almeida Campos sai da estrada. O jipe andou uns metros e espetou-se contra uma árvore.

Foi uma sensação já vivida quando fora projectado pelo rebentamento da mina. Foram uns segundos, ou minutos?... Não deu para saber, porque é um tempo de nada. Há o choque, ou o rebentamento, e a seguir é o vazio completo, sem ah! nem oh!, só se sabe quando se bate no chão. Foi o que sucedeu. Deu por si no meio do capim. Levantou a cabeça e viu o jipe a arder, ao seu lado o fuzileiro gemia. Olhou melhor e viu o Almeida Campos estendido sem dizer nada. Chegou-se ao pé dele e pegou-lhe na cabeça. Ficou alarmado pois a mão ficou-lhe cheia de sangue.

–  O fuzileiro ainda mexe mas este não.

Viu umas casas não muito longe. Levantou-se e foi bater às portas mas ninguém lhe respondeu. Estava preocupado com o Almeida Campos. Umas luzes aproximavam-se vindo do lado do aeroporto.

Era uma patrulha que vira as chamas do jipe e queria saber o que se passava. Foram eles que os levaram para o hospital.

O Almeida Campos e o fuzileiro ficaram lá. Este tinha uma costela partida, vinha atrás e batera no banco da frente. O alferes tinha um lanho na cabeça e uma ferida profunda na perna direita. Aiveca não tinha nada, só a farda chamuscada, e regressou ao anexo da Messe de Oficiais.

No dia seguinte foi ao hospital. O fuzileiro tinha sido transferido para a enfermaria da Marinha. O Almeida Campos estava na cama com uma perna engessada, a cabeça ligada e uma cerveja na boca. Riu-se para Aiveca e perguntou-lhe:

–  Estás bom, pá?

–  Eu estou, mas tu não pareces.

 – Estou, sim senhor. Cervejas não faltam.

Dois dias depois, um major, encarregado da peritagem chamou Aiveca para ir com ele reconstituir o acidente.

–  Ó meu major, nós íamos devagar. Houve qualquer problema com a direcção do jipe.

Ele riu-se e mostrou-lhe o sulco dos pneus fora da estrada. Eram uns vinte metros na berma capinada, antes da árvore em que tinham batido.

Aiveca foi apenas testemunha. O Almeida Campos, que requisitou o jipe e o ia a conduzir, e era mais antigo, levou uma porrada de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe e ficou mais uns tempos na Guiné.

Foi curta a estadia em Bissau, porque de alguns dias apenas lá passados antes de embarcar para o puto, mas foi intensa, porque aproveitada como oportunidade para dar largas à loucura que se apossara dele durante todo o tempo em que estivera no mato. Ali não necessitou de cautelas e precauções para garantir a sobrevivência, dele e dos outros. E aquelas do “lavrador” e do aeroporto até o incentivaram para isso.

Muito boas recordações dos restaurantes, onde fez grandes tainadas e apanhou grandes bebedeiras com outros camaradas tão necessitados disso como ele. Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa, um quarto apenas, dormiu algumas noites, numa cama onde dormia também o bebé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, numa das noites lhe fez a proposta de ele trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes.

 – Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.

Boas noites lá passou. Uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:

–  Está ocupado.

E ele a ajudá-la dizendo:

–  Estou eu, vão pra outra.

Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que teve de sair a meio. É que o bebé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, teve de lhe dizer:

 – Fatinha, já não dá. Assim não. Vou-me embora.

Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha umas filhas mulatas. A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Foi lá uma ou outra vez, só para beber porque, perante aquela situação, sentia que o raio da consciência ainda lhe zurzia e não quis mais nada..

Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Mas houve uma que até lhe deu muito gozo. Tinham-no encarregado da elaboração do processo a um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG, onde só estes e as suas respeitáveis e limpas senhoras é que podiam tomar banho. Fora escandaloso, inadmissível porque pegajoso. Na véspera do seu embarque de regresso olhou para o processo e achou que não lhe devia dar futuro. Rasgou-o aos bocadinhos e meteu-o num caixote de lixo. Ninguém lhe perguntou por ele. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título : LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26106: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (15): Uma ida, algo dramático-burlesca, da CCAÇ 3, ao Senegal

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26342: Notas de leitura (1760): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Permitam-me que insista neste aspeto: ler o Boletim Official da Província da Guiné nesta época tem extrema utilidade para se entender que a Guiné passou a ter atrativos comerciais, a sua legislação harmoniza-se tendencialmente com a da metrópole,os conteúdos são marcadamente burocrático-administrativos, só episodicamente se plasma no documento oficial que há conflitos interétnicos, que o Oio/Morés continua inexpugnável, etc. Chega Carlos Pereira, ele irá confessar ao ministro que encontrou a administração num caos e que a causa republicana tinha na Guiné um peso modestíssimo. Escreve isto um mês depois de lá chegar, em novembro de 1911. O seu tempo de governação, inevitavelmente, conheceu hostilidades entre indígenas, uma epidemia de febre amarela, vai aparecer o Capitão Teixeira Pinto nomeado como chefe do Estado-Maior, empreenderá uma campanha no Oio com sucesso, foi criada a Liga Guineense, que muito dará que falar por se ter oposto às tropelias e roubos praticados pela trupe de Abdul Indjai, sobretudo na Península de Bissau. A muralha de Bissau irá desaparecer, Teixeira Pinto terá sucesso no Oio e será condecorado. A colonização da Guiné parece avançar, Carlos Pereira virá a ser substituído por José António de Andrade Sequeira, que não aquecerá o lugar. Nesta altura já há inúmeras queixas contra Abdul Indjai.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século e depois (8)

Mário Beja Santos

Carlos Pereira, o 1.º governador do regime republicano, toma posse a 23 de outubro e a 17 de novembro envia o seu primeiro ofício confidencial sobre a situação administrativa e política da província ao ministro da Marinha e das Colónias.

É um relatório bem desassombrado, diz ter encontrado a administração da província num verdadeiro caos, está a procurar obstar a abusos e ilegalidades, tem como objetivo o saneamento moral e todos os problemas vitais da economia. Diz ter encontrado muito poucos republicanos e muitos vira-casacas. Falando do problema orçamental da Guiné, classifica-o como ingovernável, o orçamento fora organizado no estertor da monarquia, promete apresentar soluções positivas e práticas para a província. Visita depois Bissau, ouve as queixas dos republicanos, e mais tarde viaja para Cacheu e Farim. É logo confrontado no regresso a Bolama com um processo levantado pelas autoridades judiciais contra o ex-governador Oliveira Muzanty, queixa apresentada por Graça Falcão, homem que Carlos Pereira classifica “sem escrúpulos e sem moral”. Em fevereiro de 1911, têm lugar episódios de hostilidade entre os indígenas, os Baiotes tinham atacado os Mancanhas junto do posto fiscal de S. Domingos, o novo governador não quis envolver-se em campanhas militares.

Havia um problema crónico de mão de obra para S. Tomé que passava por pedidos insistentes à Guiné. Carlos Pereira logo apurou que era enorme a relutância dos naturais da Guiné em se expatriar, quer evitar perturbações e descontentamentos, não deu seguimento aos pedidos de Lisboa.

Entretanto, a Guiné é abalada por uma grave epidemia de febre amarela, virão médicos de Cabo Verde, a Guiné só será considerada limpa em agosto, mas a epidemia voltou no final do ano, permanecerá até 12 de janeiro. Em julho de 1911, o governador aprova os estatutos da Liga Guineense, foi criada numa assembleia de nativos da Guiné e entre as suas finalidades tem a de fazer propaganda da instrução de estabelecer escolas em toda a província, e de trabalhar na medida das suas forças para o progresso e desenvolvimento da Guiné. Nesse mesmo ano iriam realizar-se eleições para a Câmara dos Deputados e Conselho Colonial, nos quais a Guiné tinha um representante. O nome mais estimado vindo de Lisboa era o de António da Silva Gouveia. Algo Carlos Pereira terá feito para lhe assegurar a eleição, pois foi enviada ao ministro uma exposição apresentando várias queixas contra Carlos Pereira, exposição apresentada por 92 nativos da Guiné, incluindo na exposição havia a queixa da transferência do capitão médico Francisco Regalla, chefe do serviço de saúde, era o único médico na capital, não se entendia a sua transferência para fora da capital. A queixa será arquivada em janeiro de 1912.

Em setembro de 1911, um violento temporal meteu ao fundo em Bissau a canhoneira Flecha, morreram quatro praças de marinhagem e dez indígenas, o comandante, José Francisco Monteiro, acabou por ser salvo exausto de forças. O tenente Monteiro conseguiu um verdadeiro milagre de pôr a Flecha a flutuar. Nos inícios de 1912, aquando da cobrança do imposto de palhota, deram-se vários desacatos da circunscrição de Cacheu, os indígenas da povoação de Jobel envolveram-se em tiroteio com a canhoneira Zagaia e o vapor Capitania. O Residente de Cacheu, contrariando a opinião geral dos habitantes, atacou Jobel e foi forçado a retirar-se, abandonando cinco mortos, mas incendiaram cem casas. Em meados de fevereiro, os Balantas de Binhone tinham assassinado um comerciante francês. O governador reconheceu a necessidade de ir pessoalmente à região. Há tiroteio, o governador regressa a Bissau e organiza uma forte coluna de Grumetes, retorna-se a Binhone que é destruída e queimada.

Aproveitando esta onda de resultados, o governador decidiu seguir para Cacheu para pôr na ordem os Felupes que tinham atacado a Zagaia, obrigando-os a fugir.

Mas os desacatos prosseguiram na região Felupe, voltam a ser batidos e incendiadas as povoações. A paz provisória será estabelecida em finais de maio. É durante a governação de Carlos Pereira que teve lugar a demolição da muralha de Bissau do lado confinante com a antiga povoação dos Grumetes, ligando o baluarte da Balança ao fortim de Pidjiquiti. A demolição desta muralha, que tinha três metros de altura, veio a originar alguns protestos no comércio e receio da população por temerem o ataque dos Papéis. A demolição decorreu sem qualquer incidente.

Em setembro de 1912, chega um novo Chefe do Estado-maior à Guiné, o capitão João Teixeira Pinto, que traz aura do serviço prestado em Angola. Vai dedicar-se ao estudo da ocupação e pacificação da província; cedo conclui que este processo se deveria iniciar pela ocupação das regiões de Mansoa e Oio, isto devido aos efeitos sob a economia da província e até prestígio das forças militares. Conversa com o chefe de guerra Abdul Injai e fica com a convicção que os subordinados era gente arrojada que poderia empregar como auxiliares. O administrado de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, pôs-se à disposição de Teixeira Pinto para o acompanhar com toda a gente que pudesse levantar da região. Fica acordado com o governador em que se estabelecesse um posto em Porto Mansoa, elemento-chave para fazer o cerco à região do Oio. Teixeira Pinto disfarça-se de inspetor da Casa Soller e atravessa o Oio de Mansoa a Farim e de Farim a Mansoa, observando toda a região. Conclui então que, sendo o ataque pelo lado de Farim impossível, ele só podia ser feito pelo lado de Geba-Gussará ou Mansoa-Bissorã. Como se ia estabelecer um posto em Mansoa, e ao norte de Morés todas as tabancas eram Soninqués, opta por este percurso. Mas estava gravemente doente, teve de se recolhera Bolama.

Carlos Pereira apercebeu-se que os Grumetes não queriam fazer parte da coluna que seria comandada por João Teixeira Pinto, a Liga Guineense também não mostrou disponibilidade. Teixeira Pinto aproveitou os irregulares de Abdul Indjai e pediu apoio ao administrador de Geba. Os ataques ao Oio começam no dia 1 de abril, haverá episódios de hostilidade até maio, sentir-se-ão muitas dificuldades: Ao chegar ao território do Oio os carregadores fugiram, caiu uma chuvada torrencial, atacou-se a tabanca de Cambaiu, ficou destruída, entrou-se no Morés, gente de Mansabá apresentou-se a pedir paz, procedeu-se à construção do posto em Porto Mansoa, prendem-se rebeldes, estava feita a submissão dos Balantas do Oio, Teixeira Pinto contou não só com o apoio de Vasco Calvet Magalhães como da lancha-canhoneira Flecha. Carlos Pereira saldou o acontecimento, foi criado o comando militar de Bissorã, Carlos Pereira pede a concessão a Teixeira Pinto da medalha de ouro de valor militar, ele será galardoado com a medalha de ouro da classe de serviços distintos pelos atos heroicos praticados como comandantes das forças que operaram nas regiões de Mansoa e Oio. Adiante, dar-se-á a exoneração de Carlos Pereira, virão seguidamente dois governadores que se irão suceder em tropel, José António de Andrade Sequeira e José de Oliveira Duque.


Armando Tavares da Silva
Governador Carlos de Almeida Pereira (o primeiro governador da República), 1910-1913
Demolição das muralhas de Bissau, em 1913

(continua)
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Notas do editor

Post anterior de 27 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26319: Notas de leitura (1758): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (7) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26327: Notas de leitura (1759): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26129: Efemérides (445): Passam hoje 51 anos que este louvor foi publicado na Ordem de Serviço do Comando Territorial Independente da Guiné (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Inf)


1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Undunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de 8 de Novembro de 2024:

Passam hoje 51 anos que este louvor foi publicado na Ordem de Serviço do Comando Territorial Independente da Guiné.

Ainda não sabia naquela altura, (já tinha então acabado a Comissão Militar de 21 meses), quando seria o meu regresso a Portugal.

A CCAÇ 15 dos Balantas de Mansoa, era então a minha família e, embora desejasse obviamente muito regressar a casa, isso não constituía uma preocupação permanente.

Passado pouco mais de um mês, em Dezembro, fui surpreendido, verdadeiramente surpreendido, com a ordem de regresso a Portugal, de tal modo que quase não tive tempo de me despedir de todos aqueles que comigo estavam, porque a mala era então fácil de fazer, pois era apenas um pequeno saco com mais whisky do que roupa. E assim regressei a tempo de ainda quase no limite passar o Natal de 1973, com a família em Monte Real, o que obviamente, foi para os meus pais, irmãs e irmãos, e para mim, um belíssimo presente de Natal.

Ainda hoje em dia me orgulho deste louvor e nele me revejo inteiramente.

Aqui fica a recordação.
Por Portugal, sempre!

Monte Real, 8 de Novembro de 2024
Joaquim Mexia Alves

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Nota do editor

Último post da série de 15 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26047: Efemérides (444): 15 de outubro de 1969, perdas, inesquecíveis, uma saudosa amizade e porquê

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25844: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (56): Partida do Olossato para Nhacra em 09 de Junho de 1971 e ataque a Nhacra mal chegados



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


PARTIDA DO OLOSSATO E ATAQUE A NHACRA - 09 DE JUNHO DE 1971

1971/JUNHO/09 - ATAQUE A NHACRA

Partida do resto da Companhia do Olossato para Nhacra (2.º grupo de combate, 4.º grupo de combate e resto do comando e dos serviços).

Durante o trajeto entre Bissorã e Mansoa uma viatura da coluna "avariou"? por duas vezes.
Como eu era o graduado mais próximo desta viatura, comuniquei ao capitão que mandou parar a coluna.
Pouco tempo depois a viatura voltou a trabalhar e a coluna prosseguiu.

Perto de Mansoa a mesma viatura voltou a "avariar"?.

Após pedir ao capitão para parar a coluna, dirigi-me ao condutor e disse-lhe que estava quase a escurecer e não podíamos ficar ali parados. Desta forma só tinha duas alternativas:
1) - Ou punha a viatura a trabalhar e seguia com a coluna ou
2) - Ficava lá sozinho, porque a coluna tinha de prosseguir.

Dei sinal ao capitão para a coluna avançar, e passados poucos minutos a tal viatura já seguia na coluna.
Trajecto entre o Olossato e Nhacra com escala em Bissorã e Mansoa
Infografia: © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Chegados a Mansoa tomamos a estrada asfaltada que liga Bissau a Mansabá.
Poucos minutos depois a "viatura avariada" ultrapassou a coluna em grande velocidade e nunca mais ninguém a viu.

Deduzo que este condutor tinha "instruções" para retardar a nossa chegada a Nhacra, porque os nossos quartéis entre Mansoa e Nhacra foram todos ou quase todos atacados ao mesmo tempo que Bissau foi atacada com foguetões 122 mm, lançados do Cumeré.

Chegados a Nhacra fomos instalar os soldados no edifício que estava em construção, para instalar o posto emissor da Emissora Oficial da Guiné, que ficava ao lado do nosso quartel.
Depois fomos para o quartel para descarregar a nossa bagagem e instalarmo-nos nos quartos que reservaram para os furriéis.
Com a viatura parada junto aos nossos quartos e alguns furriéis em cima, a tirar a nossa bagagem, e os outros no chão a recebê-la e arrumá-la para depois nos instalarmos.

Nesta altura começaram a passar balas tracejantes, do lado do Cumeré para a estrada Bissau/Mansoa.
Pela trajetória das balas parecia que vinham dum edifício do quartel e nós, os furriéis da CCAV 2721 a pensar que era alguma brincadeira do pessoal que íamos render dizíamos:
- "Ide brincar com o car(v)alho"...
- "dos tiros vimos nós"...
- "Estamos fartos da guerra"...
- Etc...

Passado pouco tempo rebentou uma rocketada numa das árvores que tinha ao lado das instalações militares.
Nessa altura percebemos que não era brincadeira.

Era mesmo um ataque.

Perguntamos aos "velhinhos", que estavam connosco, onde eram as valas ou qualquer local onde nos pudéssemos proteger.
Como responderam que não havia valas nem locais protegidos, meti-me debaixo da viatura, do lado de dentro da roda de trás. Passados alguns segundos, estavam lá todos os furriéis, nossos e da companhia que íamos render.

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Nota do editor

Último post da série de 8 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25820: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (55): 5.º ataque do PAIGC ao Quartel do Olossato ao anoitecer do dia 07 de Abril de 1971

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25838: Em busca de... (326): Camaradas do malogrado Fur Mil Op Esp Dinis César de Castro, da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2885, que morreu em combate, no dia 12 de Outubro de 1970, durante a emboscada a uma coluna auto no itinerário Mansoa-Infandre

1. Mensagem de Ana Marques Ribeiro, enviada ao nosso Blogue através do Formulário de Contacto do Blogger em 10 de Agosto de 2024:

Boa tarde, caro Sr. Luís Graça.
Sou amiga da prima do Furriel Miliciano Dinis César de Castro, morto na emboscada de 12 de Outubro de 1970, no trajecto Braia-Infandre, na Guiné-Bissau.
Os membros da família que o conheceram, em número muito escasso e pouco dados às novas tecnologias (daí ser eu quem descobriu este blog nestas férias e quem está a redigir este pedido), gostaria de entrar em contacto com alguns dos combatentes que o conheceram e que, eventualmente, possam ter registos fotográficos e testemunhos sobre a última parte da sua brevíssima vida.
Desde já, agradeço tudo o que puder fazer para dar informações aos primos, já idosos, que não esquecem o rapaz muito simpático, brincalhão , amigo do seu amigo, sempre bem disposto, alegre, e um filho único que nutria uma grande veneração pela sua mãe. A sua morte foi uma perda irreparável para a família.

Cumprimentos,
Ana Marques Ribeiro


********************

2. Comentário do editor CV:

Cara Ana Marques Ribeiro,
Muito nos sensibilizou a sua mensagem onde procura camaradas do malogrado Fur Mil Op Esp, Dinis César de Castro, que caiu em combate no dia 12 de Outubro de 1970, numa emboscada a uma coluna auto no itinerário Mansoa-Braia-Infandre.
Estou a publicar este post no sentido de se encontrar camaradas que queiram de algum modo lembrá-lo.

Entretanto pode encontar os textos publicados no nosso Blogue, referentes à fatídica emboscada à coluna auto no itinerário Braia-Infandre, de que resultou a sua morte, assim como à condecoração com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe com que foi agraciado, a título póstumo, clicando aqui: Dinis César de Castro.
Poderá assim informar os primos do Dinis das circunstâncias que levaram à sua morte e que eventualmente desconheçam.

Este dossiê foi elaborado pelo nosso camarada Afonso Sousa, ex-Fur Mil TRMS da CART 2412, a quem estamos gratos pelo seu trabalho de pesquisa.

Lembremos agora, a transcrição do Despacho publicado no OE n.º 022 - 3.ª Série, de 1971:

Furriel Milicianio de Infantaria Dinis César de Castro, CCaç 2589/BCaç 2885 - RI 15, Guiné > Cruz de Guerra de 4.ª Classe (Título póstumo)

"Agraciado com a Cruz de Guerra de 4.ª classe, a título póstumo, nos termos do artigo 12.° do Regulamento da Medalha Militar, promulgado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 21 de Junho findo, o Furriel Miliciano de Infantaria, Dinis César de Castro, da Companhia de Caçadores n.º 2589/Batalhão de Caçadores n.º 2885 - Regimento de Infantaria n.º 15.

Transcrição do louvor que originou a condecoração (Publicado na OS n. 024, de 17 de Junho de 1971, do QG/CTIG):

Que, por despacho de 09Jun71, o Brigadeiro Comandante Militar louvou, a título póstumo, o Furriel Miliciano, n.º 15398468, Dinis César de Castro, da CCaç 2589/BCaç 2885, porque, numa emboscada levada a efeito por um grupo inimigo numericamente muito superior e tendo a viatura em que seguia ficado na 'zona de morte', patenteou invulgares qualidades de coragem, decisão, sangue-frio e muita serenidade debaixo de fogo.

Ligeiramente ferido num braço logo aos primeiros tiros, reagiu prontamente, tentando a todo o custo aproximar-se da testa da coluna, onde o número de baixas era mais elevado, sendo mortalmente atingido quando prestava ajuda a um camarada que se vira cercado por quatro elementos inimigos.

Com o seu acto, pleno de generosidade, demonstrou o Furriel Castro uma compreensão nítida dos seus deveres que o levaram até à dádiva da sua própria vida, o que além de constituir exemplo inesquecível, ficará a merecer a maior admiração e o respeito de todos."

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 5.° volume: Condecorações Militares Atribuídas, Tomo VI: Cruz de Guerra (1970-1971). Lisboa, 1994, pág. 491.

Guiné > Região do Oio > Trajecto Mansoa - Braia - Infandre > 12 de Outubro de 1970
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Vamos dar conhecimento da sua mensagem aos nossos camaradas, ex-Cap Mil Jorge Picado, ao tempo Comandante da CCAÇ 2589 a que pertencia o Dinis e ao ex-Fur Mil Sapador César Dias, que pertencia à CCS do Batalhão 2885. Pode ser que se lembrem dele.

Por uma questão de salvaguarda da sua privacidade, não publico os seus contactos. Quem a quiser contactar pode e deve utilizar os endereços do Blogue para nós encaminharmos para si.

Muito obrigado por se nos dirigir e creia-nos ao seu dispôr.
Carlos Vinhal
Coeditor

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Nota do editor

Último post da série de 27 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25453: Em busca de... (325): O ex-cap inf Manuel Figueiras, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); cor inf ref, morava em Faro em 2005 (Humberto Reis, ex-fir mil op esp, CCAÇ 12, 1969/71)

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25757: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte III: Desobstruir uma ponte ao km 28 da estrada do Olossato


Foto nº 1 > "O José Carvalho é o 5º a contar da esquerda. Eu sou o 2º. "


Foto nº 2 > O José Carvalho é o 1º. do lado esquerdo, eu sou o 4º. a contar da direita... Em momento de descontração na messe de oficiais em Catió.

Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 619 (1964/66) 


Fotos (e legendas): © João Sacôto (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho")
(em 1º plano,  à esquerda) e João Sacôto,
em 2º plano, à direita)
1. Mensagem de João Sacôto, ex-alf mil, CCÇ 617 / BCÇ 619 (Catió, 1964/66; cmdt da TAP reformado), com data de /2024, 18:50:

"Caro Luís, boa tarde. Eu e o artilheiro José Álvaro Carvalho (ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65), o “Carvalhinho”, vivemos de 64 a 65 em Catió. Ele era um ótimo fadista e fazia lembrar o velho fadista “Marceneiro”. Falei agora com outro alferes da minha CCAÇ 617 em Catió, o Gonçalves, que também se lembra e com saudade das horas passadas a ouvir o inesquecível “Carvalhinho”. Um forte braço para todos, em particular para o C.


José Álvaro Almeida de Carvalho, "Livro de C", Lisboa, Chiado Books, 2019, 707 pp. (Coleção, "Palavras Soltas"). Dedicatória a Luís Graça: "Caro amigo Luís, muito obrigado por se interessar pelo que escrevi. Esta é a primeira versão do Livro de C. Com um abraço, José Álvaro" (s/l, s/d, c. julho de 2024).



Capa do livro. Está disponível em papel e em ebook (por exemlo, na plataforma "on line" da FNAC)


Catió, 1964 > João Sacôto, o 1º à esquerda;
o "Carvalhinho", o último, à direita.


2. O José Álvaro Carvalho, 85 anos, natural de Reguengo Grande, Lourinhã, entrou recentemente para o nosso blogue, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). 

Com 26 meses de tropa, o alf mil art Carvalho acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963, não sabe precisar a data. Foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau. Com o ataque  a Tite, na região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963, o PAIGC tinha aberto mais uma frente, na "guerra do Ultramar", a seguir a Angola.

O nosso camarada deve ter cumprido mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965. Passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou na Op Tridente (jan-mar 1964).

No CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico do fado, "Carvalhinho" (*) .  
Era também amigo do então alferes  'comando' Maurício Saraiva, que será depois visita da sua casa, em Lisboa.

De acordo com as as suas memórias de guerra, ao oitavo mês de Guiné, o Carvalho (ou "Carvalhinho") ainda estava no Olossato. E no excerto que passamos a reproduzir,   tnha acabado de fazer um golpe de mão ao K (tabanca junto ao rio Farim,a 2 km do  K3 / Saliquinhedim ( ao km 3 da estrada Farim-Mansabá, tabanca que será ocupada mais tarde, no último trimestre de 1965, pela  CCaç 1421).

Na versão, digital, que nos facultou, em formato pdf,  das suas memórias de guerra(ou melhor, ddo seu "alter ego", C) , os topónimos da Guiné aparecem só com as iniciais (como é o caso  de O, de Olossato). Não há nomes de militares.  Nem datas. (**)

Esclarecimentos  e informações  complementares têm sido obtidas através das  nossas conversas na Praia da Areia Branca (onde reside atualmente).

Pelas nossas contas (e apenas com base dos livros da CECA), essa companhia para a qual ele terá ido, inicialmente, em rendição individual,  pode ter sido a CCAÇ 273 (mo
bilizada pelo BII 17, Angra do Heroísmo): esteve no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses.)  

Sabe-se que a CCAÇ 273 teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas voltemos às memórias do Olossato, destacamento que ele vai reforçar,  dois meses depois de estar em Bissau, a fazer segurança a Bissalanca (de 3 em 3 dias) e patrulhamentos nos arredores.  (**)

3. Do autor do "Livro de C" (Lisboa, Chiado Books, 2019, 710 pp.),  encontrei  esta autoapresentação:


(...) "Na juventude, comecei por escrever pequenos contos e alguns artigos para o jornal do colégio, pensando sempre, em mais tarde, dar continuidade a este projeto. Infelizmente, não foi possível.

Após um ano a trabalhar em várias atividades, fui chamado para o serviço militar, que cumpri, dois anos cá e outros dois em África. No regresso casei, e concluí que escrever não me permitiria sustentar a família, mais uma vez, esta tarefa foi adiada, até chegar à idade da reforma, quando finalmente comecei a fazê-lo.

Ganhei o vicio de ler com o meu pai, tendo sido muito influenciado pelos escritores que tive a ocasião de conhecer. Entre muitos, lembro-me dos livros do americano Mark Twain, depois dos de John dos Passos, também americano, mas de ascendência portuguesa, o que mais influenciou a minha forma de escrever, seguido por William Faulkner, também Norte Americano e outros com a mesma origem. Seguiram-se os nacionais, a começar por Gil Vicente, e os brasileiros, principalmente Jorge Amado. Quanto aos russos, Dostoievky que li em tenra idade (Crime e Castigo), impressionou-me, fortemente, até hoje." (...)
 

O "Livro de C", classificado pela editora como "não-ficção", é um género difícil de arrumar nas prateleiras das nossas bibliotecas. É um misto de ficção histórica com material memorialístico (guerra na Guiné, aventuras em Lisboa, Angola e Ártico): "
Meu pai sempre me chamou por C. Sendo esse o nome que dei ao livro" (pág. 5).

Na introdução (pág. 5), o autor esclarece: 

"Este livro é  um conjunto de narrativas, desfasadas entre si no tempo e no espaço, reunindo uma pequena  parte da história da civilização, reflexões, projetos, aventuras, relatos históricos, ficções, memórias - minhas e do meu pai - e marcadores constituídos por fados que o meu pai cantou ao longo da vida, porque tinha esse divertimento como passatempo".

 Em 700 e tal páginas, há, na 1ª versão (2019), 4 personagens (pág.    11): 

(i) Menés, "o primeiro faraó do Egipto há 5000 anos";
(ii) C, "aventureiro dos Séc. XX/XXI com grande admiração pelo pai já falecido";
(iii) Holandesa, "rapariga bonita e robusta e obrigada a prostituir-se, no sul da Europa, mais tarde companheira de C";
(iv) Pai de C: "pertenceu à geração colonial. Gostava de escrever. Escreveu páginas e páginas que deixou ao filho".

Em boa verdade, o "pai de C" é um "alter ego" do autor... As memórias de guerra, na Guiné, são atribuídas ao "pai de C" e não ao "C"...

O livro terá começado a ser escrito, ainda em meados dos anos 60, quando  o José Álvaro Carvalho regressou do CTIG e ainda tinha memórias frescas da guerra.  Na última versão, manuscrita, inédita, em 2 volumes, que eu possuo, por cortesia do autor, há agora apenas 3  personagens, Menés, C e a rapariga ("jovem nórdica bonita que vagueou alguns anos pelo Sul da Europa, até se vir fixar em Portugal, mais tarde companheira de C"), sendo o C definido como  um "aventureiro dos Séc. XX/XXI com grande admiração pelo pai já falecido"...


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65)


Parte III: Desobstruir a ponte ao km 28 da estrada do Olossato  


Entrou no seu compartimento formado por uma estrutura rudimentar de paus, revestida com esteiras indígenas. Sentado na cama começou a escrever o relatório semanal.

"Há 3 dias sofremos uma flagelação, no seguimento da qual foi efetuado um reconhecimento à volta da povoação. Encontraram-se rastos de sangue.

O informador B comunicou que continuam a passar grandes quantidades de abastecimentos e homens em K 
 [?nas margens do rio C [acheu]

Apesar das ordens recebidas para não nos afastarmos da povoação mais do que o indispensável para não por em risco a sua segurança, porque julgo que uma secção do destacamento a consegue defender durante algumas horas, decidi atacar K. , como acção de flagelação ao inimigo, semelhante a algumas que já temos efectuado, ainda que mais perto.

Partimos às 0 horas da madrugada do dia... com 3 viaturas pesadas e 1 ligeira. Além do equipamento habitual. levamos 1 metralhadora e 1 lança roquetes. Às 4 horas encontrámos a estrada principal que liga M
[Mansabáa K. Deixámos os carros escondidos e avançámos a pé.

O ataque foi iniciado por volta das 6 horas, tendo terminado 15 minutos depois. Foram confirmadas 4 baixas inimigas e recolhidas as respectivas armas.

Destruímos 10 canoas, 2 barcos de borracha e 1 depósito com munições e abastecimentos.

Chegámos ao aquartelamento por volta das 11 horas do mesmo dia."


Entrou na única loja que existia na povoação.

 Boa tarde,  senhor alferes.

 Boa tarde.

 O que é o lanche?

 Ostras.

O homem seguiu para as traseiras da loja, seguido pelo alferes. No quintal uma mulher negra abria ostras nas brasas dum fogareiro a carvão.

No meio do quintal, à sombra duma velha árvore, estava posta a mesa com 2 bancos, a toalha, dois pratos e duas tigelas de sumo de limão com piri-piri.

A mulher cumprimentou o alferes, retirou as últimas ostras do lume para uma travessa que colocou na mesa e retirou-se.

Sentaram-se os dois e começaram a comer.

 O chefe de D 
? confirmou hoje que o agrupamento inimigo destinado a esta zona estaciona junto à aldeia que fica em frente à sua, na margem Sul do pântano que as separa, a cerca de 8 kms. e que os habitantes desta, os apoiam abertamente fornecendo-lhes arroz e vindo aqui comprar-lhes mantimentos como fósforos, sal, lanternas eléctricas, tabaco, etc. Disse ainda que os chefes desse acampamento, costumam frequentá-la principalmente nos dias de festa e que cada um tem uma rapariga com quem dorme quando lá vai.

 As ostras estão muito boas.

− Nem sempre se arranjam assim.

Depois do lanche, a caminhar na estrada para o aquartelamento, pensava que devia lutar de novo para criar uma milícia de defesa civil armada, talvez com base na que já existia embora desarmada. Fora organizada pelo velho poliíia africano e 3 subalternos a quem em tempo de paz estava entregue o policiamento da região.

Esta organização de polícia estava debaixo do seu comando e passou a encarregar-se de vigiar a povoação mantendo-a rodeada de dia e de noite de elementos da sua confiança, que se revezavam e tinham por missão informar o destacamento da ocorrência de qualquer infiltração inimiga na aldeia e fugir em seguida.

Utilizavam uma senha que era mudada com frequência para dar o alerta.

Já tinha tentado armar estes homens e dar-lhes mais alguma recompensa,  além da habitual, que , como a dos informadores, consistia no pagamento de abastecimentos na loja, até montantes que combinava com o gerente.

O pelotão era rico. Sobrava-lhe dinheiro por não haver géneros frescos para comprar, principalmente carne, e a dotação ser generosa. Valia-lhe isso, abandonado e esquecido nos confins do território da guerrilha.

Um acampamento inimigo com oito grupos de 10 homens armados a 7 kms de distância, era preocupante.

Completou o relatório semanal com as informações que recebera do gerente da loja e disse ao soldado operador de transmissões:

 Envie este relatório ao comando da companhia.

Durante a noite, a chuva continuou a cair apesar do inicio da época seca. Os sapos coaxavam em sinal de trégua. Os pássaros noturnos gritavam no mato próximo.

***

Uma coluna militar motorizada, entrou na aldeia e parou no aquartelamento. Chamaram-no da porta. Veio ainda espantado pela visita. A primeira desde que ali estava.

Da primeira viatura saiu um alferes que conhecia e convidou para tomar uma bebida. Conversaram sobre o que se passava na zona,  de copo na mão. O pelotão de passagem estava instalado na povoação a norte do rio C
 [acheu p
ara onde o seu se dirigia quando foi desviado [Bigene  .

O Alferes disse-lhe:

 Quem é um fulano às direitas é o Oficial da Marinha comandante da lancha que patrulha o rio
C[acheu],

Sem me conhecer de lado nenhum, há dias atracou a embarcação no cais de B
 [igene], mandou-me chamar e ofereceu-me um dos melhores jantares que já comi.!

Não disse nada mas pensou:

− Este jantar era meu!

Despediram-se e o pelotão partiu.

Alguns dias mais tarde. Chovia. Deus resolvera inundar a terra. O céu, cinzento, baixo, estava ao alcance da mão. Na floresta próxima não se sentia qualquer sinal de vida. Uma coluna militar de cinco viaturas ligeiras, entrou no aquartelamento. Vinha da sede do batalhão. O alferes que a comandava coberto por uma capa impermeável, saiu da primeira viatura e entrou no celeiro de amendoim que servia de aquartelamento. Os soldados seguiram-lhe o exemplo e entraram na divisória que servia de refeitório com os habituais ruídos de satisfação de quando se encontra um conterrâneo em ambiente remoto e longínquo.

Cumprimentaram-se.

O Alferes disse:

 Trago ordens do novo comandante do batalhão 
 [?para destruirmos o acampamento inimigo de F ?]. que pertence à tua zona.

Respondeu :

 − Quer brilhar e quem se fode somos nós. O acampamento de F
 ?]  tem 8 grupos de 10 homens bem armados e não muito longe há outro acampamento semelhante que facilmente pode ajudar. Os nossos dois pelotões juntos não chegam a perfazer 40 homens. Não podemos beneficiar da surpresa, porque estes acampamentos são bem disfarçados na floresta densa. Com a excepção de um,  todos os trilhos são falsos. Mesmo os melhores guias têm dificuldade em orientar-se. Tudo isto já foi descrito por mim nos relatórios que tenho vindo a enviar regularmente, para o comando da companhia, mas isto é uma merda de guerra.

Fez-se noite e continuava a chover. Passado algum tempo disse:

− Penso que o comando do Batalhão já podia brilhar se lhe entregássemos um ou dois prisioneiros importantes.

Não sei. O comandante chegou há dias, traz muito prestígio e está cheio de gás para ganhar a guerra.

Ainda chovia. Decidiu ir pela primeira vez à aldeia onde o chefe e os dois filhos eram os seus melhores informadores. Era arriscado, mas não podia contactá-los doutra forma. A aldeia estava muito perto do acampamento inimigo, que o comando do Batalhão mandava atacar e duma outra povoação na qual este acampamento se apoiava e podia ser considerada também inimiga.

Aquela aldeia era terra de ninguém onde o inimigo já fizera varias sessões de mentalização embora a população lhe continuasse a ser hostil, apesar de desarmada e indefesa. Era uma aldeia pequena e de pouca importância como tantas outras, á qual não era possível garantir segurança e o único amparo que dava era a oferta de abastecimentos pagos na loja da povoação e também remédios fornecidos na mesma ocasião.

Tentou criar uma milícia indígena armada, e, no caso desta aldeia, executar uma vedação de arame farpado a toda a sua volta, e trincheiras nos pontos fundamentais, mas a cavalgadura do capitão que comandava a defesa civil respondera-lhe:

− Isso de armas para indígenas é muito complicado.

Viria a ser mais tarde incendiada num acto de retaliação da guerrilha e a população obrigada a refugiar-se numa pequena cidade ao Norte. Assim se foram entregando as populações a um destino duvidoso.

À chegada, deixou o carro com o motorista ainda longe e seguiu com outro soldado até á povoação na direcção do terreiro central onde entrou. Debaixo dum coberto de colmo sustentado por troncos de madeira, à volta duma fogueira, embrulhados em panos, estavam vários homens entre os quais conheceu o chefe e os dois filhos. Com a habitual fleuma que os caracterizava, não mostraram qualquer espanto pela sua presença como se já o esperassem há muito.

Entrou e disse ao Chefe:

 Preciso de saber se está hoje alguém importante a dormir em T
 [?] .

Ao que este respondeu no seu crioulo arrastado:

− Há vários dias que dormem lá dois comandantes que estão de visita à zona. Já estiveram aqui com uma grande conversa acerca da guerrilha.

Agradeceu e foi-se embora como chegara.

Faltavam duas horas para o romper do dia. Os dois pelotões saíram com todos os carros do aquartelamento. Passados dois kms as viaturas reduziram a marcha, o pessoal saltou em andamento e embrenhou-se no mato. Os carros andaram mais um km e estacionaram. Era aí o ponto de encontro.

Caminhavam lentamente, sem ruído, em fila indiana no estreio trilho do mato cerrado. por onde o guia os conduzia. Chegaram próximo da povoação de B 
 [ Binta ?] que se situava no cimo duma pequena colina. Dispersaram-se e iniciaram o cerco. Não havia sentinelas. Foi montada uma emboscada na direcção do acampamento que a povoação apoiava.

Surgiam os primeiros sinais de claridade quando foi informado pelo rádio de que estava tudo a postos. Confirmou com o outro alferes e deu a primeira rajada de tiros para o ar.

Notou-se alguma confusão de movimentos rápidos dentro da aldeia, ruídos confusos, desordenados, cães que ladravam aflitos, vozes, gritos, e dois homens armados saíram na direcção do acampamento da guerrilha. Foram apanhados na emboscada e aprisionados.


***

Trovejava. A luz intensa dos relâmpagos iluminava tudo de branco. Pouco depois o som espantoso da fúria dos elementos fazia-se ouvir. Anoitecera há pouco. Quase por milagre a rádio funcionava e estava a transmitir uma mensagem codificada. Vinha do comando do batalhão e ordenava-lhe que fosse desobstruir uma ponte ao Km 28 da estrada de O
 [lossato] onde por reconhecimento aéreo fora referenciada uma grande quantidade de arvores derrubadas.

Esta estrada, que atravessava varias zonas pantanosas, e de muitas linhas de água, tinha todas as pontes e pontões principais nesta situação desde que a guerrilha entrara em actividade na região. Era a espinha dorsal dum território que o inimigo já considerava como seu, e defendia com unhas e dentes. A ponte referida estava muito próximo já referido acampamento inimigo com oito grupos de 10 homens.

Não havia qualquer utilidade naquela operação de elevado risco para a vida de vários militares sem qualquer beneficio aparente.

Pensou logo que aquela ordem era o resultado da inexperiência do piloto aviador responsável pelo reconhecimento e do Comandante de Batalhão que chegara havia dias e queria brilhar.

Não formava grande opinião acerca de alguns oficiais do quadro permanente que - salvo algumas excepções - se comportavam de forma desmotivada, quando não pareciam morrer de medo quando se punha a hipótese de saírem dos aquartelamentos em operações, ou mantinham um comportamento ilógico, teatral, que conduzia geralmente a erros graves.

Parecia que eram sempre conduzidos por más informações ou informações mal digeridas, como naquele caso que reunia as duas situações.

Ainda não amanhecera. A manhã devia tardar, porque o céu se encontrava ao alcance da mão. As nuvens negras e apressadas roçavam o telhado das casas e a copa das arvores da floresta reduzindo-lhe o ruído nocturno.

Era madrugada mas já o calor húmido entrava nos ossos. O pelotão depois dos últimos preparativos para cumprir a missão de que fora incumbido formou com os dois guias junto das viaturas e aguardava a sua vinda.

Chegou e ao mesmo tempo que caminhava à frente dos homens, disse:

 − Como já sabem todos vamos desobstruir a ponte ao Km 28 da estrada de O
 [lossato]. Seguimos dentro do possível com as viaturas a corta mato - ainda não há minas nas estradas mas não deve faltar muito -. Dentro de duas horas amanhece. A ponte fica a sete quilómetros daqui. Devemos lá chegar ao romper da manhã. Como de costume, sempre que os carros pararem por qualquer razão todos se abrigam rapidamente na floresta e montam a segurança de acordo com as instruções do respectivo Furriel. Em caso de contacto com o inimigo não há tiros desordenados. Só se abre fogo à minha ordem ou do respectivo Furriel. Por cada tiro desordenado tem que aparecer um inimigo ferido ou morto.

Depois de desobstruirmos a ponte, se estiver destruída como julgo, tentamos passar a linha de água a vau, com a ajuda dos guinchos das viaturas, para não regressarmos pelo mesmo caminho. Neste caso vamos ter que andar 40 Kms. com pequenas linhas de água que conseguimos atravessar, para voltar aqui . Penso que o inimigo ao tomar conhecimento de onde estamos, montará uma emboscada no caminho do regresso por parecer improvável passarmos o rio a vau com as viaturas.

No sentido Sul, o sentido do nosso caminho, esta é a ponte mais importante da estrada de O
 [lossato]. o resto para sul, são pequenos pontões que julgo não estarem obstruídos e se estiverem, deve ser possível atravessá-los facilmente. Podemos partir. Boa sorte.

Depois de cada um ter subido para o seu lugar, as viaturas iniciaram a marcha lentamente na direcção do Nascente. Ia na da frente ordenando ao motorista que seguisse pelos trilhos precários que os guias lhe iam indicando. Durante duas horas, lutaram com o calor, os mosquitos, procurando sentir os mais leves indícios de contacto com o inimigo.

Perto da ponte ordenou que o pessoal se apeasse e avançasse disperso e que os carros saíssem da estrada e avançassem a corta-mato. Tinha medo das minas anti-pessoal e outras armadilhas. Já tinham aparecido algumas mais a Sul . [A prime
ira mina A/C, IN, desta guerra terá sido acionada pelas NT na estrada São João - Fulacunda, na região de Quínara (LG)].

Quando finalmente chegaram, constatou que fora destruída com explosivos e obstruída nos dois sentidos com troncos derrubados. Parte do, pessoal montou a segurança, emboscado a alguma distancia em locais de provável acesso. Tudo era feito com precaução e o menor ruído possível. O restante pessoal removeu com os guinchos dos carros os grandes troncos que obstruíam a estrada na margem Norte. Quanto à estrutura da Ponte, destruída com explosivos, não havia meios nem tempo para a reparar .

Num local a Nascente da Ponte, onde a linha de água alargava e a profundidade parecia menor, atravessou a pé para ver a altura da agua e a consistência do terreno. Enterrou-se até à cintura, mas conseguiu passar parecendo-lhe possível que aí a coluna atravessasse a vau para a margem Sul. A profundidade da corrente era pequena e a zona de terreno lamacento até se chegar à água ou dela sair também não era muito profunda nem extensa.

Escolheu na margem Sul uma arvore sólida e dimensionada. Mandou envolvê-la num cabo de aço com 12mm de espessura e argolas nas extremidades a ligar com manilha. Mandou puxar a corda ligada ao cabo do guincho do Unimog ( a viatura mais ligeira da coluna) que se começou a desenrolar até chegar à arvore que envolveu e o gancho da extremidade deste cabo engatar na manilha que o prendeu. Em seguida mandou a viatura avançar com todas as reduções e tracções metidas. Ao mesmo tempo que o guincho se enrolava a viatura inclinou-se na direcção da água com as rodas a patinar na lama, lentamente até chegar à outra margem.

Com a ajuda do guincho deste carro e dos guinchos próprios, os camions GMC foram passando com maior ou menor dificuldade, sendo depois afastados os troncos que obstruíam a estrada nesta margem.

Meteram-se então a caminho para sul para atingir o aquartelamento daí a 40 Kms.

Estava o Sol a pôr-se quando chegaram. Aguardavam-no o cabo cipaio da policia indígena e um guia, que o informaram de que a cerca de 3 Km, vários grupos de guerrilheiros num total de algumas dezenas de homens, tinham montado uma emboscada no caminho de regresso, e ainda aí se encontravam a aguardar a passagem do pelotão.

Depois de lhe identificarem o local da emboscada numa zona baixa, pantanosa que a estrada atravessava, ordenou ao furriel responsável pelo paiol de munições que lhe fornecesse o morteiro pequeno e seis munições e depois a uma secção armada somente de granadas de mão que o acompanhasse numa viatura. Andaram algum tempo na estrada, esconderam o carro no mato e a pé, cada homem com uma munição do morteiro, um furriel com a base , o guia com o tubo e ele com o aparelho de pontaria, pediu ao guia que os levasse a uma zona sobrelevada donde se avistasse toda a área da emboscada, e, aí chegados, o, morteiro foi rapidamente armado e disparadas de forma dispersa todas as granadas para o local onde lhe parecia mais provável que estivesse a maior concentração de homens.

Ouviram-se na zona disparos em todas as direcções por não saberem donde lhes vinha aquela desgraça. O morteiro foi de novo desarmado e regressaram rapidamente ao aquartelamento, enquanto tiros e rajadas de metralhadora sem sentido se continuavam a ouvir na zona da emboscada. (...)

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos: LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão