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sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964


 Lisboa > Benfica > Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella > 27 de novembro de 2008 > Cristóvão de Aguiar,à esqureda, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".

Foto (e legenda): © José Martins (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da (re)publicação  do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer. 

Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, este "Diário de Guerra", que nos chegou às mãos, por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).

A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).

O "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar,  abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970.

Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Na altura a revisão e fixação do texto foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado) Virgínio Briote. Mais uma vez agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor.

Esta é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar.



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


1964

Fevereiro, 3 – Afinal, houve fim-de-semana.

Mas, aqui, nunca nada é dado como certo. Deve fazer parte da filosofia da instrução esta constante expectativa em que nos fazem andar as altas patentes. Assim como o boato. Só no sá­bado de manhã, depois da ginástica de aplicação militar, mais dura do que nos dias prece­dentes, é que nos deram carta de alforria.

Fui a Coim­bra passar parte da tarde e a noite de sábado e o domingo todo o dia, até às dez da noite, hora da camionete. Vi-a a uma janela do lar. Cumprimentei-a, mas não vi jei­tos de ela querer al­guma coisa co­migo. Agora estou arrependido de me ter derramado em duas fo­lhas de carta. Paciên­cia.

Tenho alguns mús­culos do corpo doloridos, mas já me vou sentindo besta. Não preguei olho durante a noite de domin­go noite de domin­go - a camionete che­gou a Mafra, três horas e pouco antes de princi­piar a ins­trução e ao contrário da maioria dos cama­radas não consigo dormir em transportes. Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha, onde Ela ficou. Apesar de estar tresnoitado, aguentei bem a dureza militar do dia.

Fevereiro, 4 – Quando um homem aflito se abre a medo com al­guém e logo depois se acha falando a mesma linguagem, ilumina-se-lhe o íntimo do prazer que os primeiros cristãos deviam sentir quando um desenhava um peixe no chão e o outro lhe respondia com o mesmo gesto...

O Júlio Freches do meu pelotão, que tem a sua tarimba ao lado da minha, tornou-se meu amigo. Ele iluminou-se e eu acendi-me. O Júlio engraxava as botas ao pé de mim, o tempo e a tinta escorrendo pelos dedos. A caserna era, ao meio-dia e ao fim da tarde, após a instrução, uma enorme caixa e banco de engraxador profissional. As nossas conversas eram ciciadas como na penumbra de um confessionário. E quem poderá revelar o segredo da confis­são?

Fevereiro, 24 – Principiei o dia e a semana com um cross de cinco quiló­me­tros.


Já vou tendo resistência de atleta. Nenhum do pe­lotão arreou, o que sa­tisfez o alferes, que ia à frente marcando o ritmo. Depois, fomos para a ta­pada, para rece­ber­mos in­s­trução sobre gra­na­das e explosivos. Um alferes da 1ª com­panhia ficou sem um dedo. Rebentou-lhe um detonador nas mãos.

Março, 5 – O meu fato-macaco cheira mal que se farta.

Não admi­ra. Estive quase toda a manhã a rastejar e a dar cam­balhotas na lama. Só não con­segui saltar a vala. Caí dentro dela e fiquei com as botas e as meias en­charca­das. Mas se­ca­ram. As meias e as botas e o fato zuarte. No próprio corpo. Faz parte do endure­ci­mento do corpo e da alma.

Março, 19 – Mudámos de comandante de pelotão.

O tercei­rense foi de novo mobilizado, desta vez para a Guiné. Houve jantar de despedida na Eri­ceira. Foi o pelotão em peso. Era um alferes maluco, mas no trato não era de­su­mano.

Uma segunda-feira, cheguei mais tarde a Mafra, por se ter avariado a ca­mionete. Pelo regu­lamento, tinha obrigação de ser castigado. Felizmente que me mandou à ca­serna vestir a farda de trabalho e disse-me que, por ele, não vira nada nem de nada sabia. Fe­chou os olhos. Alguns camaradas de outros pelotões não tive­ram a mesma sorte. Apa­nharam um fim-de-semana de castigo. Chama-se a isto solidarie­da­de entre ilhéus!

O novo coman­dante é um aspirante da Academia, que acabou de fazer o seu tirocínio aqui em Mafra. É um puto reguila, que nos vai fazer a vida ainda mais ne­gra. Traz todo o tesão de mijo da Academia.

Março, 20 – Dos novos aspirantes tirocinados que aqui fi­caram nesta unidade, há dois que foram meus colegas no Liceu.

O Luciano e o Rocha, de Ponta Delgada e de Água de Pau, respecti­vamente. A primeira vez que os vi, fiz-lhes a continência, não fosse o diabo tecê-las. Havia muitos mili­tares por perto. Ri­ram-se. Conversaram comigo sem qualquer problema, mas disseram-me que, sem­pre que es­tivessem outros graduados à vista, devia bater-lhes a pala. Por causa das coisas.

Hoje de manhã, no render da guarda e do oficial de dia, a Banda do Regi­mento tocava a mar­cha Angola é Nossa. Toda a gente estava em sentido. Eu, que estava ao pé de um dos muros da parada, fui-me encostando vagarosamente a ele. Ainda não tinha aque­cido nem as costas nem o rabo ao en­costo, e o Rocha de longe fazendo-me um gesto muito delicado e sub-reptício para que me pusesse direito.

Mais tarde, quando teve oportuni­dade de falar comigo, disse-me que tinha sido o coman­dante da companhia que lhe ti­nha chamado a atenção a meu respeito. E como na tropa as ordens são dadas em ca­deia, ele teve de a transmitir. Pena não ter chamado um sargento. Tenho de to­mar cui­dado, que os estudantes de Coimbra são, aqui, considerados sub­versivos...

Março, 25 – Corre por aí que temos bufos por todo o lado.

Até no próprio pelotão os há. Disseram-me que ontem foi visto um cadete sen­tado a uma mesa, sozinho, num café da Vila, com um microfone disfarçado no quépi, es­trategi­ca­mente abandonado sobre o tampo. Hoje fiz versos...

Março, 27 – Há dois meses com uma farda e uma espin­garda, que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo.

Quando a não te­nho, e raro é, fico com a impressão de que me falta qualquer coisa. É a besta, salvo seja, crescendo cada vez mais dentro de mim. Durmo como uma pe­dra e até engor­dei.

Hoje, à tarde, na Vila, com a dispensa de recolher e da ter­ceira refeição no bolso, eu e o Camargo fomos jantar num restaurante barato, para variar. A dada altura, disse-me que queria falar comigo. Mas ali, não, que havia muitos ouvidos. Fomos então passear para um descam­pado.

E disse-me longamente da sua justiça. No fim da par­lenga, per­guntou-me:

– Queres per­tencer à organi­za­ção? – res­pondi-lhe que sim senhor, que não me im­por­tava nada. – De­pois serás con­tac­tado por alguém; temos muito traba­lho a fazer no quartel.

(Continua)
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Nota do editor:

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21453: (Ex)citações (375): recordando mais trágicos acidentes com minas e armadilhas (Joaquim Sabido, advogado, Évora; ex-alf mil art, 3.ª CART / BART 6520/73 e CCAÇ 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974)

1. Comentário (*) de  Joaquim Sabido [, ex-alf mil art, 3.ª CART / BART 6520/73 e CCaç 4641/73, JemberémMansoa e Bissau, 1974); hoje, advogado, a viver em Évora; é nosso grã-tabanqueiro desde 24/8/2010; tem 13 referências no nosso blogue; foto à direita]


Ao ler sobre esta temática das M/A [Minas e Armadilhas] (*), veio-me a memória a recordação de um Amigo que, sendo ele já Alferes Miliciano no Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz (cidade onde passei a minha infância e adolescência), não seria já mobilizado.
 
Foi em Estremoz, como digo, que tive a honra de o ter conhecido e o gosto por termos sido Amigos. Talvez pelo ano de 1967 ou 1968, o Morgado, era o instrutor do Regimento em M/A. Dando instrução nesta matéria aos pelotões que compunham os Batalhões e as Companhias que por ali Iam sendo mobilizamos para as várias colónias ou PU, como queiram.

Junto à ribeira de Tera, perto da cidade, instrução de M/A a um ou dois pelotões, o pessoal disposto em círculo e um dos cabos miliciamos de M/A, inadvertidamente ou por inexperiência, espoletou a mina A/C que servia de modelo, segundo o relatado posteriormente por quem lá estava,

Quando aquele meu Amigo se apercebeu do erro do instrutor, atirou-se para cima da mina e, com esta sua acção minimizou os danos abafando o engenho com o seu corpo, e houve feridos, não me recordando já se mais alguém morreu, para além dele, que ficou em pedacinhos.

Para mim foi e sempre será um verdadeiro e saudoso Herói. Creio que, com toda a justiça, o nome dele figura no memorial existente na parada principal do RC3. Mas irei confirmar um destes dias. Será que algum Camarada se recorda deste episódio? Seria aquela instrução dirigida a pessoal a caminho do CTIG?

Já quando eu estava na EPA em 1973, salvo erro, aqui em Évora, no RAL 3, ocorreu um erro idêntico que teve um desfecho bem mais fatídico: 7 ou 8 mortos e uns quantos feridos. Instrução de M/A no interior de uma sala. Pasme-se.

Com amizade e camaradagem. Joaquim Sabido, Évora (**)

domingo, 11 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16473: (In)citações (99): Porque continuamos a precisar de comandos e outras tropas especiais... (Garcia Leandro, ten gen ref)

1. Texto do ten gen ref Garcia Leandro,  que vai ser publicado hoje no "Correio da Manhã", e que nos chegou ontem por mão do Virgínio Briote, nosso editor (jubilado), com autorização do autor para publicar no nosso blogue.


[Garcia Leandro, com uma brilhante carreira militar, fez também um comissão de serviço na Guiné (1965/67), Foi comandante da Companhia de Comandos do Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG).   entre 20 de fevereiro e 30 de junho de 1966, data em que foi extnta,]


NECESSIDADE E FORMAÇÃO DE FORÇAS ESPECIAIS

por Garcia Leandro (ten gen ref)

Ninguém que tenha conhecimento dos atuais caminhos da Estratégia, da evolução tecnológica, das novas e imprevistas ameaças que se podem por a qualquer momento, em qualquer lugar, tem dúvidas que Forças Especiais Nacionais e Internacionais são algo de que todas as Nações e Organizações de Segurança e Defesa Internacionais precisam em quantidade e com grande qualidade para poderem atuar nos ambientes climáticos e operacionais mais exigentes; e quando se fala em Forças Internacionais o nível de cada participante nacional tem que ser semelhante para que possam trabalhar em conjunto. Portugal, em todas as suas missões internacionais tem recebido os mais justos louvores pelo modo brilhante como as nossas FA e FS se têm comportado; têm sido mesmo grandes embaixadoras de Portugal.

Dito isto, é sempre de sublinhar que havendo a necessidade dos militares que as constituem poderem ser chamados a atuar nos ambientes mais difíceis e rigorosos (geografia, clima, populações, distâncias, violência generalizada), muitas vezes isolados e com pouco apoio, a sua exigente preparação não pode ter a mínima falha (condições físicas e garantias de saúde, alimentação sólida e líquida, equipamentos adequados, treino individual e coletivo, criação do espírito de corpo entre os seus membros, mútua confiança, apoio médico e psicológico, etc); o Homem é ainda a mais importante peça de qualquer Força Operacional e quando desaparece não há outro igual; cada Soldado de uma Força Especial é, em si, todo o nosso Universo e Alma Coletiva. As Chefias têm essa consciência. Quem está de fora tem, por vezes, dificuldades em perceber!

E, por isso, uma morte ou acidentes em instrução têm de ser rigorosamente raros e com justificação. Tudo deverá ser feito por eles e por nós, para quem eles são treinados a honrar.

Ninguém pode compreender uma morte não justificada, o que é uma tragédia, mesmo para quem viveu situações de combate, sejam camaradas ou Comandantes; pode acontecer, mas não deve acontecer!

A questão recentemente ocorrida será certamente resolvida rapidamente porque precisamos dos Comandos, mas resolvida pela Instituição Militar com todo o rigor, humano e profissional, necessário dando assim contas à Nação através do nosso Poder Político. Este deve dar as condições e aquele é sempre o responsável pela preparação. O Estado tem aqui os seus patamares.

Lisboa, 9 de Setembro de 2016,

GARCIA LEANDRO
TEN-GENERAL (R)

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Nota do editor:

domingo, 8 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16063: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - IX Parte: VI - Por Terras de Portugal: (iii) Lamego, Oeiras...


Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.


1. Continuação da publicação do cap. VI - Por Terras de Portugal. Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8), faz o curso de "ranger" em Lamego e é mobilizado para a Guiné. Unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra")

Texto e foto da capa : © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VI - Por Terras de Portugal: Tavira, Elvas, Lamego, Oeiras...> (iii) Lamego e Oeiras (pp. 30-33)

por Mário Vicente [, foto à direita, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]

Em Lamego aprende muito e sofre mais. Leva pancada por ignorância, ao tentar responder nos percursos fantasmas, só depois de muito levar compreende que o melhor é não tentar responder. Passa fome, sede, e é ensinado a matar. Com a faca aprende o golpe de cigano e com todo o tipo de armas aprende a tudo destruir, escola perfeita. 

Instrutores acabados de chegar do curso nos EUA, o Cobrinha e outros vão construindo máquinas de guerra. Na serra do Marão onde o sol qual bola de fogo, se esconde por sobre montes de róseo algodão ou alvo espelho de neve, apenas desflorados pelo saliente píncaro do Alto do Muel no Mesão Frio, à noite ouvem-se os lobos uivar. Na das Meadas, sobranceira à cidade e onde as noites gelam, as neblinas matinais, chuva miudinha “molha parvos” se infiltra pela roupa deixando os já pouco resistentes rangers como pintos de penas coladas, a quem meteram em alguidar de água. Não só estas mas também a serra do Poio e outras são calcorreadas dia e noite, socalco a socalco, até os pés sangrarem.

O rio Douro, desde o Pinhão até à Régua, é reconhecido palmo a palmo. As rochas duras buriladas por água mole da corrente nos rápidos, são acarinhadas por barcos de borracha, berços flutu­antes que rodopiam e se esfregam nelas como anfíbios cacha­lotes em louco bailado de cio. Navegando, remada a remada, aqui se assiste à trágica manipulação dos homens ignorantes e medrosos. O barco rodopia e encalha num rápido, com catorze homens a bordo. Só três sabem nadar. Num segundo, o Resende entra em pânico, ajoelha no meio do barco e, numa cena trágico-marítima, grita para os céus:
– Senhor Jesus Cristo, valei-nos!...
– Salvai-nos, Senhor!...
– Assim perdeu meu pai a vida! ...

Chora como criança em plenos terrores nocturnos. Tarragona e Vagabundo saltam do barco com o Bracarense e, nadando, puxão para a esquerda, puxão para a direita, desencalham o bar­co e levam-no para a margem esquerda. Os não nadadores sal­tam todos e metem pernas ao caminho até à Régua. O barco não podia ser abandonado. Os três nadadores tomam o comando da enorme banheira de borracha. Maravilhoso! Parecem três putos, a quem deram desejado brinquedo. 

As guerras académico-mi­licianas, entram no esquecimento, Bracarense e Tarragona inter­rompem as disputas de ginástica aplicada e forma-se a equipa. Bracarense à ré, faz de timoneiro, Vagabundo e Tarragona a meio do barco para melhor equilíbrio, vão remando quando necessário. Nos rápidos, ou quando a corrente é mais forte os três ficam mais próximos. O barco levanta a proa e atinge uma velocidade louca e estonteante que deixa os três rangers felizes. Divertindo-se, chegam à Régua como miúdos brincando com a loucura do rio.

Mais tarde, Tarragona será mostrado ao Mundo Portu­guês, recebendo a Torre e Espada no Terreiro do Paço. Oculta, ficou a estátua figura do capitão: pés decepados, gastrocnémios desfeitos por prostituta mina, erguendo-se sobre os sangrentos cotos ósseo-tibiais, e mesmo assim tentando continuar a coman­dar os seus soldados!

Nas escarpas do rio faz-se rapell e alpinismo. No rio Balsemão, volta-se a brincar para esquecer a dureza de Penude.

Há largadas em Resende, São João de Tarouca e noutros locais. A chegada a Penude não pode ser detectada. Por montes e vales, povoações, caminham só de noite e mesmo assim, o raio dos cães denunciando a malta. Salzedas, seis da madrugada. Abre-se uma porta, e uma mulher chama os três rangers que cautelosamente passavam pela rua.
–  Os senhores são militares, não são?
– Sim, sim ... somos!
– São de Lamego?
– Sim!
– Deixai-me dar-vos um beijo e que a Senhora dos Remédios  vos proteja, meus filhos. Entrem, comam qualquer coisa que vos aconchegue o estômago.

Abriu a porta e obrigou os três rapazes a sentarem-se a uma grande mesa de lavrador. Trouxe broa, presunto, salpicão e um jarro grande de vinho. A conversa da tropa começou, e ela foi dizendo que o seu António estava em Angola, escrevera havia dias e dizia estar muito bem, que faziam patrulhas como os de Lamego, e que tudo lhe corria maravilhosamente bem!

Boina dos "rangers" de Portugal. Cortesia do blogue Coisas do MR 
(, do nosso camarada e coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro)

Como António, Vagabundo compreendeu mais tarde que também teria de mentir aos pais. O
presunto era maravilhoso e o vinho também. A senhora continuava a falar do filho mas os três rapazes tinham de partir. A senhora ficou à porta com as lágrimas caindo-lhe pelo rosto e pensando no seu filho António, enquanto os rangers alegres, contentes e de barriga cheia continuaram a caminhada. Vagabundo ainda pensou, quantos Antónios não darão a alegria do regresso a estas santas mães!?

À noite, em pleno jardim, das viaturas militares em anda­mento, saltam gandulos reguilas dando o seu grito de ran­ger. As miúdas deliram e os gandulos tornam-se uns heróis. Nos jardins e nas escadarias da Senhora dos Remédios, inebria­dos pelos odores das madressilvas e jasmins, eles embrenham-se entre etéreas promessas de amor incontidas, navegando em lon­gos beijos de aventura!...

Os esgotos da cidade tomam-se caminhos conhecidos pela matula, em noites de percursos fantasmas, com petardos de trotil pelo meio.  Aqui existe outra mulher especial na vida do ranger que consegue incutir força para a resistência. Apesar dos seus dezoito anos, Maria de Deus explica ao jovem militar a razão das coisas, mas não consegue influenciá-lo a fugir das terras para Norte. No entanto aqui começou uma louca doação. Ao aquartelamento de Cufar na Guiné chegarão, mais tarde, montes de cartas e aerogra­mas, trocar-se-ão poemas, falar-se-á da vida, da guerra e da mor­te. Haveria que fazer qualquer coisa!... A jovem incute no militar a aventura da fuga para França durante as férias. O militar prepara-se para a loucura, mas… há os velhotes e, nas terras para os lados do Norte, Tânia essa estranha força mais forte que o vento, não deixa voar o pensamento acorrentado de Vagabundo. Tão forte na guerra e tão frágil pela imagem de uma mulher que nunca será sua!... Uma mulher, que possivelmente até a sua existência já desconhece.

Traição!...  Como se sentiriam António e Francisca na sua terra com um filho traidor à Pátria? E seu avô? O velhote morreria de desgosto e vergonha. Fuga anulada! Vagabundo escolhe o cumprimento do dever jurado na parada de Tavira.

Como Niotetos, Maria de Deus insiste com Vagabundo. Ele é em espírito e corpo inteiro uma parte dela, nesta loucura entregou-se toda e tenta modificá-lo. Não dá, ele já é prisioneiro de si próprio e à sua volta criou uma barreira, um casulo de arame farpado.

Mais tarde, Maria de Deus, com apenas vinte e quatro anos, morre jovem na pujança da vida, brutal arrancar de botão de flor ainda não aberto. Obrigado Mimê, por tudo o que por Vagabundo fizeste, mesmo pelas tontearias que tentastes e fizeste! Quem sou eu para não te aceitar como tu eras!? Que descanses em paz! Que Deus te tenha em bom lugar!

A vinte e três de Setembro os rangers Vagabundo e Almeida, apresentam-se no RI1, na Amadora unidade mobilizadora, para fazerem parte de uma Companhia de Caçadores com destino à guerra no Ultramar. Após a concentração de todo o pessoal, é dada a instrução de especialidade durante sete semanas, às quais se seguem mais duas de aperfeiçoamento operacional na região da Serra da Lua, sagrada para os Lusitanos, a bela Sintra.

A 19 de Dezembro a CCAÇ 763 é mobilizada para o CTIG Comando Territorial Independente da Guiné. De farda amarela, o furriel miliciano, segue de comboio para passar o Natal na sua aldeia. O casal espanhol, companheiro de viagem, é extraordinário. O homem andará pelos cinquenta e poucos anos e a senhorita aparentava ser um pouco mais nova. Nota-se que têm a noção do que é a guerra e abordam um pouco a política. Falam com algum conhecimento de Salazar e Franco, o militar estando muito cru nesse aspecto aprende algumas coisas. Na despedida, desejam: 
Buena sorte! La guerra es una monstruosidade!...

É o único passageiro a tomar a camioneta na velha estação da CP. Inverno, oito da manhã, faz um frio de rachar e sopra aquele vento leste que se entranha na roupa e trespassa os ossos. É reconhecido pelo revisor, velho resistente ainda dos tempos em que Vagabundo era estudante.
–  Então também te calhou,  rapaz?
– É verdade!
– Para onde?
– Guiné!
– Oh,  pá!... Olha, boa sorte!
– Obrigado, ti Chico.

A camioneta pára em terras do lado Norte. Entram quatro pessoas desconhecidas. Passam pelo militar e olhan­do para a farda amarela, dão um bom dia de misericórdia como que a um pedinte em porta de igreja, ou, talvez interiormente desejem uma boa sorte como o Ti Chico revisor. O militar olha pela janela tentando ver o impossível.

Natal sem sabor. O furriel tem de se apresentar no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) em Oeiras, a dois de Janeiro, onde aguardará embarque.  A dezanove de Janeiro, com toda a pompa militar, a CCAÇ 763 recebe o seu Guião com o lema «Nobres na Paz e na Guerra». À noite recorda-se que no dia seguinte, comemora-se o Santo Mártir Sebastião, padroeiro de arqueiros e soldados, venerado em terras de lados do Norte. 

Recordando, pega no bloco e começa a escrever uma carta de amor contra o esquecimento. Quando o sofrimento ultrapassa o medo, a sub­missão dissipa-se e relança-nos, geralmente em força para a conquista ou reconquista. Escrevendo, verifica que é um hino à Natureza aquilo que escreve e sente-o como se uma carta de criança. Revolta-se, rasga a carta e sai para ir para Lisboa, decidindo passar a noite com uma prostituta. Quando sai tem vontade de bater em tudo, no entanto o ar da rua faz-lhe bem. Na estação encontra o Carretas de Almeirim que pertence à Companhia que também aguarda embarque na Parede.
–  E pá anda até ao Limo Verde, a malta vai lá juntar-se. Aceita o convite do colega e larga Lisboa e a puta, saltando mais esta vala de lama.

9 de Fevereiro de 1965. Sobe a rua Morais Soares devagar, atravessa a Paiva Couceiro e entra na Mouzinho de Albuquer­que, onde se encontram os pais em casa de sua irmã mais velha. António está a convalescer de uma operação delicada. Eles não sabem que seu filho, no dia onze pela manhã, embarcará no navio “Timor” com destino à Guiné. Mas apercebem-se que há algo estranho.

Como vai ser? Vagabundo não delineou nenhuma estra­tégia, mas há que resolver a questão. Entra um pouco nervoso, consegue manter conversa evitando o assunto. Sabe que sua irmã estará no Cais, mas de seus pais tem de se despedir sem o dizer. No dia seguinte seguirão de comboio, para a sua aldeia e levarão Pedrito. Mais umas palavras de circunstância, e já é hora de partir.
–  Amanhã estarei no comboio!

Mas a experiência de vivência feita, não engana os velhotes. Eles sabem que o filho não está a dizer a verdade. Aguentam-se todos sabendo que estão a fazer jogo viciado e a mentir uns aos outros. Com as lágrimas de Francisca não há problemas. Sempre assim foi, mesmo que partisse para perto. Com António não, raras vezes tinha visto as pérolas rolando naquele rosto.
–  Combinado? Amanhã lá estarei em Santa Apolónia, as melhoras e adeus!

Aguenta-se e sai. Pede a Amália para se segurar. Já no elevador não resiste, sente os olhos húmidos. Vai encontrar-se com Picolo e solicita-lhe que vá ele à estação dizer que está de serviço, pelo que não pode comparecer. Picolo, como sempre fixe, aguenta a barra.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13068: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (27): Guardo Elvas e as suas gentes no meu coração (Henrique Cerqueira)


Foto nº 575


Foto nº 559


Foto nº 568


Foto nº 578


Foto nº 528

Elvas > 2 de março de 2014 > Os fortes de Santa Luzia  (foto nº 575) e da Graça (foto nº  559) e Museu Militar  de Elvas (fotos nº 568, 578 e 528).  Infelizmente, o muncípio de Elvas ainda não tem disponível, na sua página oficial, todas as informações imprescindíveis (história, itinerários, etc.) para se conhecer  melhor e divulgar o seu património mundial, classificado pela UNESCO em 30/6/2012.

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Comentário,   com data de  11 do corrente,  ao poste P12961 (*), subscrito por Henrique Cerqueira [ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74]:

Como eu adorei Elvas!

Eu penso que o meu encanto por Elvas também tem um pouco a haver com a minha nova condição militar na altura. É que era a primeira vez que me via na condição de Cabo Miliciano e para mais logo a seguir a ter estado no CISMI em Tavira. Por tal e logo á partida comecei a gostar de Elvas o único problema era estar muito longe de casa e só me permitia ir a casa de quinze em quinze dias.

Mas Elvas tratou-me tão bem, mesmo o quartel o BC8,  comandado pelo Sr.Tenente Coronel Romão Loureiro,  assim como o meu comandante de companhia de instrução na altura o Sr. Capitão do QP Henrique Cerqueira Barreira . Tudo "gente humana" e sensível para com os novos recrutas e milicianos. 

A população de Elvas era altamente simpática e até á semelhança de Tavira tinha muito comércio gerido por militares do QP, mas tinham um comportamento diferente dos seus congéneres de Tavira.
Enfim amei Elvas e guardo no meu coração aquela cidade alentejana e suas gentes. (**)

Henrique Cerqueira

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

8 de abril de  2014 > Guiné 63/74 - P12948: Fotos à procura... de uma legenda (26): Mais um sítio de passagem, para alguns de nós, no tempo de tropa... Qual ? (Luís Graça)

10 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12961: Fotos à procura... de uma legenda (27): Oh Elvas, oh Elvas, Badajoz à vista!... (Parte I) (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 9 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12956: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (26): Leiria, o pior tempo do meu início de vida militar; Santarém onde a Cavalaria não é melhor nem pior, é diferente; Tavira, onde ia morrendo; Carregueira do bidonville; Mafra onde a instrução era levada a sério (Augusto Silva Santos)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13003: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte I: Finalidade, Funcionamento, Provas de aptidão, classificação e Faltas


















Reprodução da primeira parte do guia do instruendo do COM (Curso de Oficiais Milicianos), usado na EPI - Escola Prática de Infantaria, em  Mafra: I. Finalidade dos C. O. M.; II Funcionamento; III - Provas de aptidão, classificaçaõ e exclusões; e IV - Faltas.

Imagens: © Mário Vasconcelos (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. O documento original, sem data, chegou-nos, devidamente digitalizado, por mão do nosso camarada Mário Vasconcelos [ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72. Mansoa, e Cumeré, 1973/74].

Recorde-se que já publicámos o guia do instruendo do CSM - Curso de Sargentos Milicianos,  documento que nos chegou por mão  da parelha Fermando Hipólito / César Dias, e que é claramente mais "ideológico" do que o guia que começamos agora a publicar.

Não encontro este documento na Biblioteca do Exército nem sei de que data será.

Estas "indicações" ( e não "instruções") dadas aos instruendos dos COM remetem, por sua vez, para o Regulamento Geral de Instrução do Exército (RGIE).

quinta-feira, 6 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12797: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (20): Tavira e o CISMI: Nunca um fim-de-semana à inglesa rendia tanto como naquele tempo: tudo nele cabia - família, namorada, amigos e muito desejo de viver (Tony Levezinho, CCAÇ 12, 1969/71)




Tavira > Quartel da Atalaia > CISMI > 3º turno de 1968 > Pormenor do jantar do dia do juramento de bandeira... O Tony Levezinho, visto de perfil, aao centro, tendo em frente (lado direito da foto, a olhar para a máquina) o César Dias, que por sua vez tem à sua direita o Fernando Hipólito... Os três tiveram destinos diferentes: o Hipólito foi para Angola, o Levezinho e o Dias para a Guiné, um para Bambadinca e outro para Mansoa... Na foto original, há duas marcas de caneta de feltro, a vermelho e a verde, sinalizando o Tony e o César, respetivamente. 


Foto:: © César Dias (2014). Todos os direitos reservados.[Edição: L.G.]


1. Mensagem do António (Tony, para os amigos) Levezinho, com data de 3 do corrente

Assunto: À volta das memórias de Tavira (CISMI)


Olá,Luis

Tentei, na passada 6ª feira, deixar diretamente no blog um comentário a propósito do tema em título, mas fui mal sucedido.

Assim, peço-te o favor de encaminhares o texto abaixo.

Um beijo para a Alice e um grande abraço para ti.

Tony Levezinho



Tony Levezinho e Henriques, à civil,
Bambadinca, 1969. Foto: LG
2. Semana inglesa no CISMI, ou o até já, Tavira!

por Tony Levezinho (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71) [, foto à esquerda, com o nosso futuro editor Luís Graça, Bambadinca, 1969]



No contexto da ronda que tem vindo a ser feita por aqueles que tiveram o início da sua carreira militar no CISMI, a propósito da semana-inglesa, recordo o seguinte:
Despois de uma semana em que as "diversões" eram muitas e variadas, chegava o sábado redentor.

Tudo na vida tem um preço, bem sabemos e, assim, tal dia começava com um crosse, bem puxado, com arma e que aumentava 1 km, em distância, em cada semana que passava.

Com efeito, o fim-de-semana começava já só perto das 13.00h. e só para aqueles que, depois de uniformizados com a farda nº 2 e prontos para a revista, em plena parada, beneficiavam do ámen do oficial de dia, isto é, não eram vítimas de qualquer reprensão quanto ao seu aprumo final, o que, a acontecer, podia significar o cancelamento do seu "passaporte".

A propósito da benevolência, ou da falta dela, por parte dos oficiais, o César lembrou, há dias, a lamentável figura do senhor tenente Madeira que, na sua antipática voz de falsete,  fazia questão em afirmar-se, perante os indefesos instruendos, com as atitudes mais mesquinhas e atentatórias da nossa dignidade de que era capaz e, neste campo, sou testemunha, ele podia muito (interrogo-me, hoje, como eram as suas competências militares em cenário de guerra – se é que ele alguma vez os experimentou?). Parecia até que a sua capacidade de atingir um orgasmo estava intimamente ligada e dependente de tal comportamento.

Mas adiante, porque os autocarros não esperavam…
Vencida a porta de armas lá estavam eles, os autocarros, perfilados e preparados para rumarem à capital (normalmente dois). Começava então outra chamada, esta com sabor bem diferente, uma vez que se destinava a distribuir os passageiros inscritos para a viagem.

Como já referido, esta iniciativa, semanal, era levada à prática por um cabo miliciano, jovem empreendedor, alfacinha, do bairro da Graça (lamento não recordar o seu nome) que viu uma janela de oportunidade, como agora se diz, com este tipo de iniciativa, uma vez que os clientes estavam garantidos.

Pela minha parte, durante os seis meses que passei em Tavira, na recruta  [, 3º turno de 1968, 3ª companhia,]  e na especialidade, apenas num fim-de-semana não fiz e também não houve a tal viagem para a liberdade. Na verdade, aconteceu aquilo que muitos ansiavam e que, alguns até, de tanto esperarem, já duvidavam se tal dia chegaria – Salazar é afastado do poder [, em 27 de setembro de 1968, 6ª feira,  por motivo de incapacidade, na sequência da  "queda da cadeira", em 3 de agosto de 1968,] e o "preço" imediato foi o de vermos as portas do CISMI fecharem-se, com toda a gente lá dentro, de prevenção.

Com o roncar dos motores das viaturas, em movimento, já ninguém duvidava que o fim-de-semana (à inglesa, pois claro) tinha começado. Vencida a serra do Caldeirão, alguns quilómetros mais à frente, tinha lugar a única paragem. Ali (já não recordo a localidade) serviam-se umas sandes de presunto divinais (delas ainda retenho o seu cheirinho tentador). A azáfama era grande, mas o dono da tenda, dada a rotina, estava treinado e preparado para a pacífica invasão militar semanal, tudo indicando que, também aqui, havia uma relação comercial com o promotor das viagens.

De regresso à estrada, quem conseguia, deixava-se embalar pelos balanços do autocarro e fazia uma soneca. A ânsia da chegada ao seu mundo real não permitia, no entanto, a uns quantos, tão retemperador momento. Confesso que me incluía no lote destes últimos.

Finalmente, entre as 18:00 e as 19:00.  ali estava ele, o Campo das Cebolas, a dar-nos as boas vindas, mas a lembrar também que, no dia seguinte, pelas 24:00h, os autocarros fariam o percurso inverso, para, logo pela manhã de 2ª feira, nos devolverem às incontornáveis práticas, sendo a primeira uma indesejada sessão de aplicação militar, quase sempre nas salinas - punição demasiada para tão poucas horas de fruição.

Apesar de tudo, ainda hoje acredito que nunca um fim-de-semana à inglesa rendia tanto como naquele tempo. Tudo nele cabia - família, namorada, amigos e muito desejo de viver.

(Quaisquer imprecisões e/ ou incorreções são, peço desculpa, devidas a este meio século que nos separa dos acontecimentos)

Um Grande Abraço,

Tony Levezinho




Lisboa > Campo das Cebolas, visto da Casa dos Bicos (sede da Fundação José Saramago) > 6 de outubro de 2013 > Em 1968, o aspecto do local onde paravam as camionetas que vinham de Tavira seria bastante diferente... Durante anos, o Campo das Cebolas funcionavam como terminal rodoviário e era uma zona degradada... Há um projeto atual, com a assinatura do arquiteto Carrilho da Graça,  para a sua requalificação... Prevê_se que as obras possam começar em 2015...

Foto:: © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.


quinta-feira, 20 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11737: FAP (74): A instrução do AL III no meu tempo: em Janeiro de 68, eu e mais cinco pilotos do P1 de 67, juntamente com quatro pilotos da Academia Militar e o Senhor Dom Duarte de Bragança, iniciamos com o Al II o curso de helis... Saí de Tancos com um total de 291 horas de voo, e no dia 1 de Outubro de 68 fazia uma evacuação (TEVS) em Cabuca.... (Jorge Félix)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (Out 64 / Jul 66) > O pessoal em operações militares: na foto, acima, transporte às costas de um ferido, evacuado para o HM 241, em Bissau, por um helicóptero Alouette II (versão anterior do Alouette III, que nos era mais familiar, sobretudo para aqueles que chegaram à Guiné a partir de 1968). Foto do Alberto Pires, editada pelo Jorge Félix.

Fotos: © Alberto Pires (Teco) / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Jorge Félix (2009). Direitos reservados.



Tancos > Base Aérea nº3 > 1967 > 1º Curso de Pilotos de Helicópteros, onde pela 1ª vez também foram incorporados milicianos, segundo informação do Jorge Félix, aqui, junto a um Allouette II, no meio dos seus camaradas, onde se inclui o Duarte Nuno de Bragança.

Os primeiros pilotos milicianos de helicópetros da FAP > 14 de Março de 2008 > "Éramos oito milicianos (Eu, Antolin, Cavadas, Melo, Baeta, Pinto e Duarte) e três da Academia Militar (Braga, Afonso e Costa). O Pinto faleceu em Outubro de 2007, em Lisboa, vítima de doença. O Oliveira faleceu no acidente de aviação em Tancos, em 72 ou 73. Estes dois companheiros estiveram comigo na Guiné. O Melo anda em sítio incerto na Venezuela (vou saber pormenores da 'chatice' que foi a vida dele por lhe terem roubado um Allouette III da FAP). O Baeta faleceu em Gago Coutinho, Angola, Março de 1969, num acidente, voo nocturno, Heli. O Cavadas também já faleceu em acidente de Heli, andava nas pulverizações, no Alentejo. O Antolin está de perfeita saúde, Comandante da TAP reformado, a viver em Lisboa. O Duarte é... Sua Alteza D. Duarte Nuno de Bragança, esteve em Moçambique [ou Angola ?]  e vive em Lisboa. O Pinto, também reformado da TAP, faleceu há quatro meses. Do Braga, Afonso e Costa, sei muito pouco (...). Jorge Félix".

Foto (e legenda): © Jorge Félix. Todos os direitos reservados  [Cortesia de: Blogue do Victor Barata > Especialistas da BA 12, Guiné 1965/74.]



Guiné > Algures > Jorge Félix, allf mil pil heli Al III (BA 12, BA 12, Bissalanca, 1968/70) e António Spínola (Com-Chefe e Governador Geral, CTIG, 1968/73)... O tratamento por "pilav" era reservado aos pilotos-aviadores que vinham da Academia Militar.

Foto: © Jorge Félix (2010). Todos os direitos reservados



1. Mensagem do Jorge Félix [, ex-alf mil pil, AL III, Esq 122, BA 12, Bissalanca, 1968/70,], com data de ontem, em resposta ao nosso convite para nos contar como se tornou um valoroso e glorioso "maluco" do heli AL III que faz agora 50 anos na nossa querida FAP (*)


Meu Caro Luis Graça: 

já tinha respondido a este mail, quando me apercebi que seria para os "50 anos do AL III", e como isso aconteceu no dia 20 de Abril, em Beja, onde eu estive, apaguei tudo, por pensar estar fora de tempo. Como voltas "à carga", vou tentar ser útil.

Desde já um abraço ao Pardete Ferreira pelas simpatiquissimas palavras.

Caro Fernando Leitão:

Aproveito para contar algo que será desconhecido da maioria. No ínicio da FAP, os primeiros pilotos vieram da arma de Cavalaria, razão existirem tantos termo da sua gíria:

(i) O "pilão", par de coices - afocinhamento do avião; 

(ii) "borrego", nega ao saltar um obstaculo - aterragem não conseguida; 

(iii) "cavalo de pau",  instrumento que dá o equilibrio do avião - ...

No meu tempo, as idades para concorrer, eram os 17 e 21 anos. Fazia parte das condições ser solteiro, ter autorização do pai.... Centenas de "mancebos" concorriam, uns para "andarem mais perto de Deus", outros para fugirem do "diabo"...

Depois de apertados exames medicos aparecem em São Jacinto (Fevereiro 67), BA7, meia centena de alunos para iniciar as "voadelas". Recordo que  havia um Alferes, um Aspirante e um Cabo, portanto ,recrutados das FT.

O avião de inicio de instrução foi o CHIPMUNK, onde aprendíamos os pequenos segredos de voo.
Fui largado depois de 15 horas,  no dia 21 de Abril de 67 no 1635.[ não sentir o instrutor a corrigir, a emendar, a ajudar ... (o silencio dos Deuses) foi a alegria plena]. 

 Depois da aterragem, na placa, o instrutor esperava-nos para o "caldaço no pescoço e o pontapé no traseiro". Quem estivesse por perto e já fosse Pilav também "molhava a sopa". 

O banho na Ria,  ao fim da tarde,  fazia parte da praxe dos "recém-largados". Fazia-se coincidir com a partida da lancha da Marinha, assim, os que estivessem sobre a ponte de atracagem também poderiam ir ao banho .

Era também tradição oferecer uma garrafa de "whisky" ao instrutor e fazia~se um jantar de confraternização, alunos e instrutores.

Depois desta fase, passava-se para o T-6...

No dia 28 de Junho fui largado no T-6 (1656) com 13 horas de voo. Com 170 horas de voo, acabei em São Jacinto e obtimha  o tão desejado Brevet, "as asas no peito". (Das centenas de recrutas, restaram 20 pilotos;  a seleção natural diminuiu para metade este número).

Nas 150 horas de T-6, Maio de 67 a Dezembro de 67, aprendeu-se tudo que o avião "deve "fazer": o rolar, descolar, voltas de pista, formação, navegação, voo por instrumentos, acrobacia, voo noturno, "rapadelas", tiro , ... e crescia~se ou não, no Bar dos especialistas, dos "marinheiros, nas escapadelas a Aveiro, no "Gato Preto" ....

Aqui chegados era a partida para o Ultramar.

Nesse ano a FAP abriu o primeiro curso de Helicópeteros para pilotos que não eram do quadro. Ofereci-me como voluntário e ao mesmo tempo ofereci-me para a Guiné. (a razão de me oferecer para a Guiné, teve a ver com o tempo da comissão).

Consta na minha caderneta: (Dezembro de 67) Encerra-se a presente caderneta em virtude do seu titular marchar para a Base Aérea nº 3, a fim de frequentar o Curso complementar de Helicópeteros nos termos do rádio BP...

Em Janeiro de 68, eu e mais cinco pilotos do P1 de 67, juntamente com quatro pilotos da Academia Militar e um  Sr Duarte de Bragança, iniciamos com o Al II ,o curso de helis.

Tenho registado 60 horas de AL II até junho de 68, quando comecei com o AL III. Fiz 30 horas de AL III antes de embarcar para a Guiné.

Sobre as modalidades de voo que  "referem" no questionário, naquele tempo, estou convencido que fizemos tudo. Salvamento de guincho e voo de montanha, na altura, forma para mim estranha por pensar que não iria usar isso na "Guerra ", o que veio a acontecer. O Guincho foi utilizado por mim só para manutenção ...

O voo noturno, com os instrumentos que à época existiam, seria o modo de voo a que requeria mais atenção.

Estou convencido que no final do curso que me foi ministrado, estava bem preparado para seguir para o "teatro das operações".

Saí de Tancos com 291 horas, na totalidade, e no dia 1 de Outubro de 68, fazia uma evacuação (TEVS) em Cabuca.

O meu nº da FAP era (é ?) o 114/66.

Estou a perder-me a ficar longo e maçador...
Se mais houver em que possa ajudar, ficarei ao dispor.

Abraço, Luís Graça e Fernado Leitão.

Jorge Félix

2.  Troca de mensagens com o ten cor pilav F. Leitão, com data de ontem:

(i) Caro camarada da FAP, ten cor F. pilav Leitão:

Aqui vai, em primeira mão, mais um contribuição, a do nosso querido amigo, Jorge Félix, experimentado alf mil pil, que voou, como poucos,  aos comandos do AL III no TO da Guiné, em 1968/70... Um Alfa Bravo. Luis Graça

(ii) Luís Graça, Jorge Félix:

Muito obrigado por este testemunho valioso! Vou incorporar a informação transmitida.

Um respeitoso abraço,

Fernando Leitão
Tenente-Coronel Piloto Aviador
Área de Ensino Específico da Força Aérea
Instituto de Estudos Superiores Militares
Rua de Pedrouços 1449-027 LISBOA
Tel: 213002143 / Tel mil: 226140

domingo, 16 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11714: FAP (73): A instrução do AL III no meu tempo (J. Pardete Ferreira, ex-alf mil médico, 1969/71)

1. Resposta, com data de 15 do corrente,  do nosso camarada José Pardete Ferreira, às questões levantadas no poste P11703 (*):

(i) Requalificação;

(ii) 35 horas de voo.
(iii) Voo de contacto. Navegação à vista.
(iv) Ab inicio Al III
(v) Ida directa

(vi) A Sud-Aviation tinha um técnico em permanência em Bissau, Pierre Fargeas, que com a mulher vivia aboletado em casa do ten cor pilav Amaral e em seguida ten cor Brito. Sendo amigo e companheiro de liceu do Ricardo Cubas, ao tempo major pilav, sendo comandante da Esquadrilha Heli, era visita quase diária lá de casa e as soirées eram passadas à "sombra" das pás do rotor principal. Curiosamente o então major pilav Pedroso de Almeida, também foi meu colega de liceu e oficial de operações, penso, da Esquadrilha dos Fiats. Este já depois do final da minha Comissão.

Cumprimentos e um Alfa Bravo

José Pardete Ferreira (**)

________________

Nota do editor:

14 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11703: FAP (71): O AL III faz 50 anos de operação e eu gostaria de saber como se fazia a Instrução da sua pilotagem na época (Fernando Leitão, ten cor pilav, Área de Ensino Específico da Força Aérea, Instituto de Estudos Superiores Militares)

(...) Assim, para a recolha da informação ainda disponível, devo recorrer a quem viveu essas experiências. É nesse âmbito que solicito o seu contributo, de documentos ou experiências vividas, relativamente a:

(i) seleção dos alunos pilotos (recrutamento de civis ou requalificação de pilotos de outras aeronaves?);

(ii) duração do curso (tempo e horas de voo);

(iii) modalidades de voo com maior relevo? (voo de contacto, voo de montanha, navegação, etc.);

(iv) ab initio no Alouette ou antes voavam Chipmunk?;

(v) após o curso de pilotagem de helicópteros, havia lugar a qualificação operacional (curso avançado) ou seguiam diretamente para os teatros de operações?;

(vi) outras informações pertinentes.

(**) Último poste da série > 16 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11711: FAP (72): Eu, periquito, me confesso... (António Martins de Matos, ex- ten pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11703: FAP (71): O AL III faz 50 anos de operação e eu gostaria de saber como se fazia a Instrução da sua pilotagem na época (Fernando Leitão, ten cor pilav, Área de Ensino Específico da Força Aérea, Instituto de Estudos Superiores Militares)



Algures sob os céus da Guiné, aos comandos de um AL III, o nosso camarada Jorge Félix (ex-alf mil pil, AL III, Esq 122, BA 12, Bissalanca, 1968/70).

Foto: © Jorge Félix (2013). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do ten cor pilav Fernando Leitão, da FAP:


Data: 12 de Junho de 2013 às 09:22

Assunto: Instrução de Pilotagem em ALIII


Muito bom dia.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do ALIII na FAP, cabe-me levar a cabo uma comunicação acerca da instrução de pilotagem naquela aeronave.

Estou bastante familiarizado com o modo como decorriam os cursos desde a década de 90, altura em que eu próprio frequentei o meu curso de pilotagem de helicópteros, mas dos primórdios pouco conheço, naturalmente.

Assim, para a recolha da informação ainda disponível, devo recorrer a quem viveu essas experiências. É nesse âmbito que solicito o seu contributo, de documentos ou experiências vividas, relativamente a:

(i) seleção dos alunos pilotos (recrutamento de civis ou requalificação de pilotos de outras aeronaves?);

(ii) duração do curso (tempo e horas de voo);

(iii) modalidades de voo com maior  relevo? (voo de contacto, voo de montanha, navegação, etc.);

(iv) ab initio no Alouette ou antes voavam Chipmunk?;

(v) após o curso de pilotagem de helicópteros, havia lugar a qualificação operacional (curso avançado) ou seguiam diretamente para os teatros de operações?;

(vi) outras informações pertinentes.

Antecipadamente agradecido pela sua colaboração, apresento os meus melhores cumprimentos.

Fernando Leitão
Tenente-Coronel Piloto Aviador
Área de Ensino Específico da Força Aérea
Instituto de Estudos Superiores Militares
Rua de Pedrouços 1449-027 LISBOA
Tel: 213002143 / Tel mil: 226140

2. Comentário de L.G.:

Mensagem que já seguiu ontem pelo correio interno da Tabanca:

Camaradas da FAP. Jorge Félix, A, Martins Matos, Jorge Narciso, Miguel Pessoa, Vitor Barata, Maria Arminda, Giselda ...

Lembrei-me, de imediato,  de vocês, O nosso blogue é uma fonte de informação e conhecimento importante sobre o passado, o presente e, também, por que não, sobre o futuro das nossas Forças Armadas (bem como da sociedade portuguesa)...

O ten cor pilav Fernando Leitão faz-nos aqui um pedido que, julgo, não podemos recusar. A FAP está a comemorar os 50 anos do AL III, que foi um dos nossos "heróis" no TO da Guiné. Alguns de nós devem-lhe a vida, ao AL III, aos seus seus pilotos, aos seus mecânicos, às enfermeiras paraquedistas, aos apontadores do helicanhão... 

Há histórias ainda por contar sobre o AL III, no nosso blogue. Algumas, fabulosas (e ilustradas com belas fotos), já aqui foram contadas nestes nove anos de vida do blogue (e que já vai com cerca de 11700 postes)... 

Entretanto, há aqui 5 perguntinhas do ten cor pilav Fernando Leitão (sobre a instrução de pilotagem do AL III) que alguns de vocês estão em condições de responder no todo ou em parte... Gostaria que pudessem colaborar com este oficial superior da nossa FAP, do Instituto de Estudos Superiores Militares, e que essas respostas pudessem ser depois divulgadas no nosso blogue.

Viva a nossa FAP. Viva o AL III. Vivam os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras...

Um Alfa Bravo para todos. Luís Graça

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 27 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11488: FAP (70): 50 anos de operação do AL-III na Força Aérea (Miguel Pessoa)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8601: Era uma vez ... (Ernestino Caniço) (1): De burro a cavalão, ontem, em Mafra; hoje, médico de família, em Tomar...


Monte Real > Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca > Grande > Da esquerda para a direita, Jorge Picado (Ílhavo), Ernestino Caniço (hoje médico, em Tomar), Semião Ferreira (médico das Termas de Monte Real, e que não há meio de entrar para o blogue, apesar das nossas insistências, que são sempre amáveis,  mas pouco convincentes.  convites; esteve na Guiné como operacional) e António Estácio (Mem Martins / Sintra)... Os três primeiros conheceram-se na região do Oio (Mansoa, Cutia, Mansabá...) e estiveram em animadíssima conversa...  O Ernestino Caniço é membro da nossa Tabanca Grande desde Maio passado (*).

Foto: © Manuel Resende (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do nosso camarada Ernestino Caniço [, foto à esquerda; comandante do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa, 1970/71), 


Data: 24 de Julho de 2011 22:26
Assunto: História 1


Caros camaradas

Foi com enorme satisfação que,  num encontro [, o VI Encontro Nacional do nosso blogue,]  em que a maioria dos participantes terá vivido há décadas emoções semelhantes, revi com alegria alguns camaradas como o Simeão, o Zé Luis V. Carvalho, o [Carlos] Vinhal e o [Jorge] Picado, bem como outros que conheci, nomeadamente o Luís Graça.

Apesar da minha disponibilidade estar limitada, vou tentar contar alguns episódios da minha vida militar. Desta vez referirei um,  em Mafra,  durante a recruta, que intitulo de "o burro cavalão". Desde já quero dizer, que não existe qualquer aspeto presuntivo na narrativa, mas apenas o querer mostrar a subjetividade da análise de ex-camaradas.

Um grande abraço
Ernestino Caniço


2. Era uma vez... (1) > De burro a cavalão... 
por Ernestino Caniço [, foto à direita]

Os mancebos do meu pelotão, em Mafra,  eram quase todos licenciados com exceção de dois, sendo eu um deles. Durante quatro anos, na Faculdade de Medicina de Coimbra, fiz apenas uma cadeira, na perspetiva de ir à guerra e, obviamente, não ter garantido o regresso. 

Havia,  portanto, que aproveitar bem o tempo noutras atividades. De volta, não tendo argumentos para não estudar, lá fiz as restantes 37 [ cadeiras] em 4 anos e meio.

Pelo putativo insucesso inicial, entendiam os camaradas do pelotão que eu era um grande burro. E como nos treinos chegava quase sempre em primeiro lugar, com duas ou três armas dos mais fracos, recebi o título de... cavalão.

Pois bem, na esperança que algum deles leia estas breves palavras, o tal burro é hoje: (i) médico, (ii) chefe de serviço da carreira de medicina familiar, (iii) gestor de serviços de saúde, (iv) pós graduado em direito da medicina e, por fim, (v)  formador inscrito no IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional).

Como alguém dizia: E o burro sou eu?
E esta, hein?

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de Maio de 2011 >
Guiné 63/74 - P8308: Tabanca Grande (285): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá, Mansoa e Bissau, 1970/71)

(i) Ribatejano, nasceu em Almeirim, em 1/12/1944;
(ii) Tirou a a especialidade de Carros de Combate M47, na Escola Prática de Cavalaria de  Santarém;
(iii) Alferes Miliciano, foi Comandante do Pel Rec Daimler 2208;
(iv) Chegou  a Bissau em Fevereiro de 1970:
(v) Esteve em Mansabá cerca de quatro meses com metade do pelotão e adido à CCaç 2403, comandada pelo Capitão Carreto Maia;  e posteriormente à Cart 2732  (onde conheceu o Carlos Vinhal, entre outros camaradas);
(vi) Mais tarde foi para Mansoa onde ficou  cerca de seis meses com a outra metade do Pelotão, dependente do BCAÇ 2885;
(vii) Findo esse período, foi desativado o Pelotão;
(viii) Foi então colocado na Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica em Bissau, até ao seu regresso à Lisboa, em Dezembro de 1971.

(**) Vd. poste de 15 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8421: Monte Real, 4 de Junho de 2011: O nosso VI Encontro, manga de ronco (9): Os apanhados pela objectiva do Manuel Resende (Parte II)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7256: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J.L. Mendes Gomes) (5): A masmorra do BII 19 e a boémia do Funchal











Região Autónoma da Madeira > 2008 > Clichés turísticos da Madeira... Fotos de Luís Graça (Alfragide) e Augusto Pinto Soares (Porto)

 
1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66.


Oficial e cavalheiro (5):  Batalhão de Infantaria Independente nº 19 (continuação)

Era ali que ia iniciar-se, verdadeiramente, a primeira fase preparatória da missão que nos esperaria em África. Pelo menos à maioria anónima dos aspirantes. Sim, porque havia por ali nomes sonantes de filhos-família, como Spínola, Vale Guimarães, Sommer de Andrade e outros mais. Apenas estavam a marcar a presença. Eram o contributo das ocultas famílias poderosas…A sua missão no ultramar não passaria das águas azuis da Madeira ou Açores…

O capitão Câmara de Freitas, estou a vê-lo, um austero militar de carreira, com um bigode retorcido de republicano, bem estendido, entre a boca tapada e um nariz aguçado, em rosto moreno, de olhar fundo, mas doce, já maduro, a recompor-se, na sua terra, da primeira missão de guerra no ultramar. Era o comandante da minha companhia de recrutas madeirenses.

Havia outra companhia, chefiada por um capitão madeirense, este, miliciano. O capitão Pestana. Aqueles vinham preparar-se, ali, para o esforço de guerra que estava a ser pedido ao país. Depois da recruta, receberiam a especialidade e iam juntar-se aos que se encontravam nas frentes da guerra.

O meu pelotão era, mais uma vez, o segundo da companhia. Na primeira semana, ficaram assentes todas as regras de conduta. A maior responsbilidade e uma total confiança na nossa capacidade de chefia. Esta forma de nos considerar vinha ao encontro da maioria de todos nós e isso fazia-nos assumir as nossas responsabilidades de forma inteira.

O plano de instrução da companhia era discutido e acompanhado com o comandante, semana a semana. O dia começava com uma hora de instrução física. Havia que puxar por aqueles corpos em estado bruto, cheios de força descontrolada, oriunda da enxada, nas vertentes alcantiladas, sabiamente aproveitadas para a recolha do sustento da família.

Ordem unida, intensa, com as velhas espingardas Mauser sobradas da última grande guerra de 14/18. Ética militar e cívica e noções de primeiros socorros. Estas eram as que mais se assemelhavam à minha maneira de ser, de tal modo que o matreiro e raiano Gonçalves, avesso às teorias, me pedia para juntar o seu pelotão ao meu.

Durante uma hora extravasava, sem esforço, a minha tendência natural e desenvolvida no seminário, para as prédicas de sabor moralista. Não era por acaso que, de cima da amurada da sala de oficiais, os mais antigos, se entretinham a assistir, como quem não quer a coisa… e eu, também, disfarçadamente, não resistia a picar-lhes as consciências distraídas…

Um mundo novo e surpreendente se abriu, mais cedo do que pensava, para quem pensava que, com o serviço militar obrigatório, iria interromper a sua carreira. Cumpria-se o ditado popular de que Deus escreve direito por linhas tortas

As marchas pelas ruas da cidade, nas deslocações do pelotão para a carreira militar, lá no alto de São Martinho, ou para a indispensável instrução nocturna, na verdejante serra do Monte, eram a gostosa evasão e o complemento necessário para o esforço físico despendido.

Mente sã em corpo são, era agora a realidade da minha vida. No seminário, apenas se cuidava (pensava-se...) da sanidade da mente… muito pouco da do corpo. Os resultados não demoravam a aparecer no desenvolvimento harmonioso e visível dos recrutas sequiosos e dedicados.

Oficial e cavalheiro (6): A boémia do Funchal

Não se sabia que tempo iríamos ficar no Funchal. Com o passar dos dias, às vezes,( tão bem me sentia) dava comigo a sonhar que, com um golpe de sorte, como o que tivéramos em estar ali, até poderíamos nem ir ao ultramar. Para a arraia miúda, eram meros devaneios que, depressa se esfumavam…

A realidade, porém, era que, gratuitamente, ali tínhamos ido parar e estávamos na Madeira. Sabíamos bem que aquele recanto, escondido pelas ondas do mar, apenas, estava ao alcance dos mais endinheirados. Bastava olhar em redor.

A amenidade do clima estava à vista. Saídos de Tomar, coberta pelo gelo de Janeiro, mal chegámos ao Funchal, podíamos deliciar-nos com saborosos banhos de mar, na piscina, no Lido, ali ao pé, ou então nas águas do Porto Moniz, como se estivéssemos a sorver o iodo de São Pedro de Muel ou as cálidas águas do Algarve, em Agosto.

As roupas de inverno voltaram, de novo, para a mala. Só a camisa e uns calções, se quiséssemos. A farda, porém, dava jeito… para vaguear pelas ruelas asseadas do Funchal. Os três aspirantes da companhia do capitão Câmara tornaram-se uma parelha inseparável. O Vale Guimarães e afins, esses, tinham um bruto WolksWagen às ordens e voavam noutras núvens…

Às 5 e meia da tarde, acabava o dia de instrução e clausura na masmorra do BII 19. Um duche rápido na casa da Mariquinhas da Ribeira e,  em dois passos, estávamos, estrategicamente, na esplanada do Apolo, a beber um sumo de maracujá, à espera do remansoso desfile, sempre variado.

Com os tempos, a farda permitia-nos entrar nos gordos paquetes que encostavam bem recheados ao porto. É preciso um grande esforço para reviver tudo aquilo, sem pensar que tudo não passa de um sonho de maravilha…

Mas assim aconteceu. Cada recanto, por mais recôndito, escondia uma surpresa florida. Os ronceiros mas frequentes horários (assim se chamava aos autocarros da cidade) com a bonita modalidade de preços, nunca pensada no continente, a descida custava metade da subida (da metade quando se descia), tornou-nos acessível palmilhar todos os arredores.

Do coração do Funchal à Senhora do Monte, ao Pico dos Barcelos, lá em cima, quase sempre envoltos em núvens leves ou à praia buliçosa da Câmara de Lobos…

Para ir ao campo distante, não demorou muito e tínhamos feito amizade com rapaziada autóctone. Uma carrinha Morris-mini, então na berra, do Fernando do Campanário, foi a nave dos nossos passeios: As alturas do Cabo Girão, os alvores do Paúl da Serra, os furados (túneis) escuros de São Vicente para o Porto Moniz, o Curral das Freiras, a frescura da Serra d`Água, Santana florida, e sei lá, tudo foi batido em exploração estonteante. Acompanhada de saborosas espetadas regadas a vinho, do puro, da Madeira…

Saciada a curiosidade de conhecer aqueles 800 km2 de terra, feita, verdadeiro jardim e bosque paradisíaco, erguido no meio do mar azul e omnipresente, como o sol, dedicámos a maior parte do nossos tempo aos regalos da cidade. Sem dar conta, estávamos assimilados pelas gentes afáveis e saudavelmente resignadas com a sua sorte. O continente éra-lhes um mito de que muito gostavam de ouvir falar. O barbeiro, madurão e todo careca, ali ao pé da Gonçalves Zarco contava-me deleitado as excursões ao Bom Jesus do Monte em Braga, ao majestoso Gerês e ao Buçaco, a Fátima, ganhas, naqueles 6 m2, à custa da tesoura e da navalha …

A maioria, porém, contentava-se em sonhar com uma certa inveja de nós… A pressão do cerco do mar era uma realidade geral. O tripeiro Gomes e o raiano Gonçalves eram já uns vividos boémios, aquele das ruelas da ribeira do Porto, este do Bairro Alto e da Madragoa, em Lisboa… Tinham sido interrompidos nos seus empregos pelo serviço militar. O Gomes estudava matemáticas na universidade do Porto, nas horas vagas do trabalho adequado; o Gonçalves era funcionário efectivo na Previdência. Estava cansado de estudar.

Eu estava a dar os primeiros passos, de liberdade condicional. Não, não estive no presídio penal. Acabava, sim, de me evadir do cárcere, nas masmorras do seminário de Vilar e da Sé, no Porto, diabolicamente, farisaicos… Uma vontade telúrica de enterrar aquele pesadelo e tapá-lo, bem fundo, com um curso superior, se possível, em Direito. Não sei porquê. Ânsia de libertação, talvez…Para isso, sentia uma necessidade natural de conhecer as intrincadas regras da sociedade política e administrativa. Por esse motivo, fui sempre capaz de dizer não aos repetidos aliciamentos que aquela leal parelha me disparava, volta e meia.

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Nota de L.G.:


(*) 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...