Lisboa > Benfica > Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella > 27 de novembro de 2008 > Cristóvão de Aguiar,à esqureda, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".
Foto (e legenda): © José Martins (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer.
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer.
Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, este "Diário de Guerra", que nos chegou às mãos, por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).
A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).
O "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar, abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970.
Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).
Na altura a revisão e fixação do texto foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado) Virgínio Briote. Mais uma vez agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor.
Esta é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar.
1964
Fevereiro, 3 – Afinal, houve fim-de-semana.
Mas, aqui, nunca nada é dado como certo. Deve fazer parte da filosofia da instrução esta constante expectativa em que nos fazem andar as altas patentes. Assim como o boato. Só no sábado de manhã, depois da ginástica de aplicação militar, mais dura do que nos dias precedentes, é que nos deram carta de alforria.
Fui a Coimbra passar parte da tarde e a noite de sábado e o domingo todo o dia, até às dez da noite, hora da camionete. Vi-a a uma janela do lar. Cumprimentei-a, mas não vi jeitos de ela querer alguma coisa comigo. Agora estou arrependido de me ter derramado em duas folhas de carta. Paciência.
Tenho alguns músculos do corpo doloridos, mas já me vou sentindo besta. Não preguei olho durante a noite de domingo noite de domingo - a camionete chegou a Mafra, três horas e pouco antes de principiar a instrução e ao contrário da maioria dos camaradas não consigo dormir em transportes. Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha, onde Ela ficou. Apesar de estar tresnoitado, aguentei bem a dureza militar do dia.
Fevereiro, 4 – Quando um homem aflito se abre a medo com alguém e logo depois se acha falando a mesma linguagem, ilumina-se-lhe o íntimo do prazer que os primeiros cristãos deviam sentir quando um desenhava um peixe no chão e o outro lhe respondia com o mesmo gesto...
O Júlio Freches do meu pelotão, que tem a sua tarimba ao lado da minha, tornou-se meu amigo. Ele iluminou-se e eu acendi-me. O Júlio engraxava as botas ao pé de mim, o tempo e a tinta escorrendo pelos dedos. A caserna era, ao meio-dia e ao fim da tarde, após a instrução, uma enorme caixa e banco de engraxador profissional. As nossas conversas eram ciciadas como na penumbra de um confessionário. E quem poderá revelar o segredo da confissão?
Fevereiro, 24 – Principiei o dia e a semana com um cross de cinco quilómetros.
Já vou tendo resistência de atleta. Nenhum do pelotão arreou, o que satisfez o alferes, que ia à frente marcando o ritmo. Depois, fomos para a tapada, para recebermos instrução sobre granadas e explosivos. Um alferes da 1ª companhia ficou sem um dedo. Rebentou-lhe um detonador nas mãos.
Março, 5 – O meu fato-macaco cheira mal que se farta.
Não admira. Estive quase toda a manhã a rastejar e a dar cambalhotas na lama. Só não consegui saltar a vala. Caí dentro dela e fiquei com as botas e as meias encharcadas. Mas secaram. As meias e as botas e o fato zuarte. No próprio corpo. Faz parte do endurecimento do corpo e da alma.
Março, 19 – Mudámos de comandante de pelotão.
O terceirense foi de novo mobilizado, desta vez para a Guiné. Houve jantar de despedida na Ericeira. Foi o pelotão em peso. Era um alferes maluco, mas no trato não era desumano.
Uma segunda-feira, cheguei mais tarde a Mafra, por se ter avariado a camionete. Pelo regulamento, tinha obrigação de ser castigado. Felizmente que me mandou à caserna vestir a farda de trabalho e disse-me que, por ele, não vira nada nem de nada sabia. Fechou os olhos. Alguns camaradas de outros pelotões não tiveram a mesma sorte. Apanharam um fim-de-semana de castigo. Chama-se a isto solidariedade entre ilhéus!
O novo comandante é um aspirante da Academia, que acabou de fazer o seu tirocínio aqui em Mafra. É um puto reguila, que nos vai fazer a vida ainda mais negra. Traz todo o tesão de mijo da Academia.
Março, 20 – Dos novos aspirantes tirocinados que aqui ficaram nesta unidade, há dois que foram meus colegas no Liceu.
O Luciano e o Rocha, de Ponta Delgada e de Água de Pau, respectivamente. A primeira vez que os vi, fiz-lhes a continência, não fosse o diabo tecê-las. Havia muitos militares por perto. Riram-se. Conversaram comigo sem qualquer problema, mas disseram-me que, sempre que estivessem outros graduados à vista, devia bater-lhes a pala. Por causa das coisas.
Não admira. Estive quase toda a manhã a rastejar e a dar cambalhotas na lama. Só não consegui saltar a vala. Caí dentro dela e fiquei com as botas e as meias encharcadas. Mas secaram. As meias e as botas e o fato zuarte. No próprio corpo. Faz parte do endurecimento do corpo e da alma.
Março, 19 – Mudámos de comandante de pelotão.
O terceirense foi de novo mobilizado, desta vez para a Guiné. Houve jantar de despedida na Ericeira. Foi o pelotão em peso. Era um alferes maluco, mas no trato não era desumano.
Uma segunda-feira, cheguei mais tarde a Mafra, por se ter avariado a camionete. Pelo regulamento, tinha obrigação de ser castigado. Felizmente que me mandou à caserna vestir a farda de trabalho e disse-me que, por ele, não vira nada nem de nada sabia. Fechou os olhos. Alguns camaradas de outros pelotões não tiveram a mesma sorte. Apanharam um fim-de-semana de castigo. Chama-se a isto solidariedade entre ilhéus!
O novo comandante é um aspirante da Academia, que acabou de fazer o seu tirocínio aqui em Mafra. É um puto reguila, que nos vai fazer a vida ainda mais negra. Traz todo o tesão de mijo da Academia.
Março, 20 – Dos novos aspirantes tirocinados que aqui ficaram nesta unidade, há dois que foram meus colegas no Liceu.
O Luciano e o Rocha, de Ponta Delgada e de Água de Pau, respectivamente. A primeira vez que os vi, fiz-lhes a continência, não fosse o diabo tecê-las. Havia muitos militares por perto. Riram-se. Conversaram comigo sem qualquer problema, mas disseram-me que, sempre que estivessem outros graduados à vista, devia bater-lhes a pala. Por causa das coisas.
Hoje de manhã, no render da guarda e do oficial de dia, a Banda do Regimento tocava a marcha Angola é Nossa. Toda a gente estava em sentido. Eu, que estava ao pé de um dos muros da parada, fui-me encostando vagarosamente a ele. Ainda não tinha aquecido nem as costas nem o rabo ao encosto, e o Rocha de longe fazendo-me um gesto muito delicado e sub-reptício para que me pusesse direito.
Mais tarde, quando teve oportunidade de falar comigo, disse-me que tinha sido o comandante da companhia que lhe tinha chamado a atenção a meu respeito. E como na tropa as ordens são dadas em cadeia, ele teve de a transmitir. Pena não ter chamado um sargento. Tenho de tomar cuidado, que os estudantes de Coimbra são, aqui, considerados subversivos...
Março, 25 – Corre por aí que temos bufos por todo o lado.
Até no próprio pelotão os há. Disseram-me que ontem foi visto um cadete sentado a uma mesa, sozinho, num café da Vila, com um microfone disfarçado no quépi, estrategicamente abandonado sobre o tampo. Hoje fiz versos...
Março, 27 – Há dois meses com uma farda e uma espingarda, que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo.
Quando a não tenho, e raro é, fico com a impressão de que me falta qualquer coisa. É a besta, salvo seja, crescendo cada vez mais dentro de mim. Durmo como uma pedra e até engordei.
Hoje, à tarde, na Vila, com a dispensa de recolher e da terceira refeição no bolso, eu e o Camargo fomos jantar num restaurante barato, para variar. A dada altura, disse-me que queria falar comigo. Mas ali, não, que havia muitos ouvidos. Fomos então passear para um descampado.
E disse-me longamente da sua justiça. No fim da parlenga, perguntou-me:
– Queres pertencer à organização? – respondi-lhe que sim senhor, que não me importava nada. – Depois serás contactado por alguém; temos muito trabalho a fazer no quartel.
(Continua)
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
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