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segunda-feira, 4 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16265: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte VI: singela homenagem ao etnólogo e antigo diretor do Museu do Dundo, João Vicente Martins (n. 1917)



Dedicatória autografada de João Vicente Martins, no seu livro «Contos, Fábulas e Lendas dos Tutchokwe do Nordeste de Angola», ao seu amigo e antigo colega da Diamang, José Manuel Matos Diniz. 

Foto (e legenda): © José Manuel Matos Dinis (2016)-.Todos os direitos reservados




Foto à direita:  José Manuel Matos Diniz, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, 
nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales;
depois do seu regresso a casa, a Cascais,
em janeiro de 1972, vindo da Guiné,
rumou até Angola, em maio de 1972,
para ir viver e trabalhar na Lunda,
na melhor empresa angolana na época,
a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo;
aqui casou (por procuração),
aqui nasceu o seu primeiro filho:
desafiado por nós justamente
a falar da sua experiência angolana 

em meia dúzia de crónicas memorialísticas,
,aceitou galhardamente o desafio
e está a cumprir o prometido.] (*)




1. Texto enviado em 29 de junho último pelo José Manuel Matos Diniz:

Caros Luís e Carlos,

Anexo nova descrição de memórias sobre o tempo que passei na Diamang. Iniciei a actividade em Maio/72 na região de Cassanguidi, onde permaneci por cerca de 6 meses. Entretanto, em Andrada ocorreria uma situação anómala, e fui deslocado para lá, que era o maior centro técnico da Companhia, pelo que vou despedir-me deste primeiro contacto com a vida de mineiro com as duas memórias seguintes:
Com um abraço, JD.


2. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) n (José Manuel Matos Dinis): Parte VI:   singela homenagem ao antropólogo e antigo diretor do Museu do Dundo, João Vicente Martins (n. 1917)



Um belo dia de trabalho fui surpreendido pela chegada de um estranho ao Munguanhe. Não pertencia ao grupo de pessoas do meu conhecimento, mas deslocava-se num carocha que era o carro tipo utilizado quase em exclusivo (para acautelar alguma excepção), pelos empregados da Companhia, pelo que me suscitou curiosidade. Enquanto ele estacionava, saía eu do escritório de onde o tinha visto em aproximação lenta.

Tratava-se de um cavalheiro de meia idade, de calças e com um panamá a cobrir-lhe a cabeça. Seria de algum serviço central, pois o restante pessoal técnico, com excepção dos directores, usavam calções. Dirigimo-nos um ao outro, cumprimentei-o com um sorriso a que ele correspondeu, e apresentei-me. Com uma voz baixa e pausada respondeu nos mesmos termos, e assim perguntei-lhe a que título devia a honra da sua presença. 

Era o senhor João Martins, do Museu do Dundo, que se revelou de grande afabilidade, e perguntou-me se tinha alguns "coup de points" para lhe entregar. Surpreendido, respondi que não, nem sabia da existência de tais materiais no âmbito do trabalho da mina. Contou-me então, que um colega anterior a mim teria dado conta da existência daquelas peças pré-históricas no cascalho tratado na lavaria. Que por um acaso, o trabalhador que exercia actividade no controle do cascalho que a correia transportadora levava para as "pans", e que antes de crivado podia saltar da correia e afectar o funcionamento dos rolos por onde ela passava, tinha sido instruído para, detectando aquelas pedras de instrumentação das primeiras manifestações civilizacionais, as retirar e guardar num balde até uma próxima visita.

De facto havia o balde e tinha conteúdo. Removeram-se as pedras lascadas de vários tamanhos e materiais para um saco, o senhor Martins agradeceu ao trabalhador o cuidado que tivera, trocaram sorrisos e cumprimentos. No regresso à viatura convidei-o a entrar e a servir-se de água, que ele aceitou alegando que a que tinha no carro já estaria demasiado quente. Ali fiz algumas perguntas sobre a actividade que exercia, e fiquei a saber que era formado em antropologia e o conservador do Museu. Referiu que ali existira uma civilização com cerca de dez mil anos, donde provinham aquelas peças. Depois falou durante um bocadinho sobre a actividade do Museu, e os métodos que seguia na investigação permanente, revelando-se uma pessoa muito interessada sobre essas vertentes histórico-sociais. Convidou-me para o visitar no Dundo, despedi-mo-nos, e cada um foi à sua vida. 

Mais tarde vim a ter relações mais frequentes e amigáveis com este homem do mato, profundo conhecedor das funções que exercia, não só pela formação académica, mas também, porque anteriormente fora prospector durante vários anos e várias regiões, ao mesmo tempo que constituía família com uma senhora local e estudava todos os dias durante as horas livres.

Se isto permite revelar, que ao menos um português foi profundamente dedicado às populações locais, pois foi ainda professor em horário pós-laboral e sem acrescento salarial de trabalhadores que frequentavam o liceu, deixou uma obra de inegável valor científico, e contribuíu para o prestígio internacional granjeado pelo museu que dirigia abnegadamente. Vim a relacionar-me com o casal de filhos, ambos já licenciados e com extrema simpatia, sem manifestações de amargura em relação aos acontecimentos que os obrigaram a sair de Angola, mas com sentido crítico e construtivo. Em Portugal, o senhor João Vicente Martins prosseguiu nas suas tarefas de ensinar e estudar, pelo que, sucessivamente, concluíu um mestrado e, posteriormente, o doutoramento. [Sobre Vicente Martins, vd. texto de Sílvia Milonga, "Dedicação aos povos Lunda". 28/01/2002]

Era um grande humanista, de trato fácil e sempre interessado, tranquilo, e generoso, que no seu livro «Contos, Fábulas e Lendas dos Tutchokwe do Nordeste de Angola» [recolha e e tradução de João Vicente Martins ; comentário de Herald de Sicard, Lisboa, Universitária, 2002,  307 pp.] fez a seguinte dedicatória: «A todos quantos passam a vida trabalhando e ou lutando em prol da ciência, do progresso, da liberdade, da paz e do bem-estar da humanidade». 

Um grande português que fazia por valorizar os povos de Angola de modo despretensioso, enquanto alguns outros contribuíram para a sua devastação desgraçada, a coberto de clamarem pela liberdade e pelo ostracismo dos colonos, coisas de que não mostraram conhecimentos consolidados. [Sobte o Museu do Dundo, ver foytos antigas, do portal www.diamang.com]

Mudando de assunto: naquelas paragens muitas pessoas nunca viram diamantes. Quando chegavam ao contacto de familiares e amigos, normalmente durante as férias metropolitanas, e eram questionadas de como são as pedras preciosas, não sabiam responder e deixavam uma sensação de suspeita, do género não queriam falar sobre o assunto. Talvez por isso, em Cassanguidi houve duas ocasiões em que fui abordado para satisfazer tal curiosidade. 

A primeira vez foi o médico local, cuja mulher não se cansava de lhe pedir para que ele movesse influências. Compreendi o senhor e alertei-o para o regime de proibição sobre tal intento, ao que ele referiu estar informado, mas a mulher não lhe dava descanso. Avaliei a situação, e disse-lhe para se deslocar à mina um pouco antes do fecho das instalações da lavaria onde eu estaria na lavagem de "jigas" e carregamento do concentrado.

Assim aconteceu. Quando a senhora se aproximou da instalação, logo os "capitas", elementos do tal exército privado e eventuais informadores levantaram-se surpreendidos e vieram para mais próximo do que era costume. Passei então a mão com alguma suavidade sobre o concentrado existente na jiga, para não provocar o deslizamento para a botija de transporte à estação de escolha, e quase acariciei as pedras até descobrir um diamante, com cerca de meio quilate. Coloquei-o na mão, e a senhora logo estendeu a mão dela para o apanhar, mas, propositadamente, deixei-o cair na jiga e logo se infiltrou com o material ainda à vista, tendo em conta o seu maior peso.

Depois tive que explicar à senhora que não há muitos diamantes naqueles volumes de concentrado, e não teria outra oportunidade, mas já os tinha visto em lugar diferente de uma montra de joalharia. 

Outra pessoa que terá revelado idêntica curiosidade, foi um padre das relações de um primo meu colega, ainda menos experiente que eu, que trabalhava por turnos numa lavaria. O Carlos pediu-me para facilitar a satisfação do desejo daquele embaixador de Deus, ao que correspondi pela deslocação à lavaria em que trabalhava. O turno acabava pelas 22H00, e aprontei alguma coisa de comer e cervejas. Não chegou a acontecer o mesmo, porque nos atrasàmos na conversa e o padre esqueceu-se ao que ia. 

Em nenhuma daquelas circunstâncias cujas regras violara, não me chegou ao conhecimento qualquer admoestação. É que a presença de estranhos era rigorosamente proibida, e tanto a mulher do médico, como o padre, não eram pessoas do staff, nem estavam possuidores de autorização especial para aquele efeito.

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