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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24952: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (23): A narrativa da CECA (Comissão para o Estudo das Campanhas de África) - Parte I



Guiné > CTIG >  Dispositivo das NT referente a 12 de junho de 1974. SITREP cCircunstanciado, nº 22/74, de 14 de junho: Fonte: CECA (230125), pág. 477. As chamadas "áreas libertadas" do PAIGC eram bolas circunscritas às "Áreas de Intervenção do Com-Chefe" (a sombreado), como o Morés, a região do Boé, ou o Cantanhez, a mata do Fiofioli ou  a mata do Choquemone, por exemplo.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023) (ampliar para ver detalhes)


Carlos Fabião, ten-cor graduado em brigadeiro, o último com-chefe da Guiné 
(de 25 de maio  a 15 de outubro de 1974. Fonte: CECA (2015), pág. 439.
 (Foto fornecida à CECA pelo filho, o arqueólogo e 
professor da Universidade de Lisboa, Carlos Fabião.)



1. A "narrativa" da CECA sobre os nossos últmos seis meses no TO da Guiné, de 25 de abril  a 15 de outubro de 1974 (*).


CAPÍTULO IV > ANO DE 1974 (pp. 420 e ss.)

Generalidades

O ano de 1974 marca o fim da luta armada na Guiné, em virtude de terem ocorrido em Lisboa importantes transformações políticas, cuja evolução posterior alterou decisivamente o quadro de relações entre a Metrópole e as suas Províncias Ultramarinas.

Os factos políticos e militares caracterizadores dessa evolução, quer em Lisboa quer na Guiné, foram os seguintes, por ordem cronológica:

(i) 25 de Abril, em Lisboa, deposição do Governo, levada a efeito por um auto-intitulado Movimento das Forças Armadas (MFA) que congregou a grande parte dos oficiais, sargentos e praças da. Armada, Exército e Força Aérea, a que aderiu, posteriormente, a maioria da população portuguesa;

(ii) na mesma data foi deposto o general Bethencourt Rodrigues das funções de Governador e Comandante-Chefe da Guiné e substituído, nas funções de Comandante-Chefe, pelo oficial mais antigo presente no teatro de operações; foi também nomeado um oficial do Exército para as funções de Encarregado do Governo, a título transitório;

(iii) 8 de Maio, na Guiné, o tenente-coronel Carlos Soares Fabião tomou posse das funções de Encarregado do Governo;

(iv) 15 de Maio, no Leste da Guiné, iniciaram-se os contactos, no terreno, entre os comandantes das nossas forças e os comandantes das forças do PAIGC, que actuavam na zona, casos de Sare Bacar (15 de Maio), Ufara (25 de Maio) e Pirada (29 e 31 de Maio).

(v) posteriormente, estes contactos generalizaram-se por todo o dispositivo, particularmente após 17 de Maio, data do encontro, em Dacar (Senegal), entre o Secretário-Geral do PAIGC e o novo Ministro dos
Negócios Estrangeiros português;

(vi) 16 de Maio, em Lisboa, tomada de posse do I Governo Provisório português;

(vii) 17 de Maio, em Dacar (Senegal), início dos contactos do novo governo português com o PAIGC, continuados posteriormente em Londres (25 a 31 de Maio) e Argel (13 de Junho);

(viii) 25 de Maio, o ten cor Carlos Fabião, graduado em brigadeiro, assume as funções de Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, mantendo-se no novo posto enquanto durarem as referidas funções;

(ix) 3 de Junho, nas povoações de Canjadude e Sinchã Maunde Bucó, na zona leste, tem lugar a última acção directa de fogo entre as forças beligerantes, tendo as forças do PAIGC atacado os aquartelamentos das nossas tropas sediados nas citadas povoações;

(x) Primeiros dias de Junho, em Bissau, é nomeado Juvêncio Gomes, do PAIGC, como representante permanente junto do governo da Província;

(xi) 4 de Junho, início da retracção do dispositivo das nossas forças no terreno, com o abandono da guarnição de Jemberém, no Sul;  respectiva guarnição recolheu a Cacine, a título excepcional;

(xii) A retracção do dispositivo das NT  continuou, cerca de um mês mais tarde, incidindo sobre as unidades mais afastadas do Sector Leste - Buruntuma e Canquelifá em 5 de Julho, Camajabá e Ponte do Rio Caium em 8 de Julho;

(xiii) 15 de Julho, início da desmobilização e passagem à disponibilidade das unidades africanas e milícias das nossas tropas;

(xiv) A acção foi continuada a partir de 10 de Agosto, devido a alteração das condições criadas para a execução da citada desmobilização;

(xv) No final de Agosto, tinha passado à disponibilidade a totalidade dos combatentes do recrutamento
da província;

(xvi) 15 a 18 de Julho, encontro do Comandante-Chefe com dirigentes do PAIGC, no Cantanhez, visando a coordenação das acções de descolonização;

(xvii) 26 de Julho, publicação em Lisboa da Lei n." 7/74, que reconhece o direito da Guiné-Bissau à independência;

(xviii) 29 de Julho, novo encontro do Comandante-Chefe com dirigentes do PAIGC em Cacine, tendo sido acordadas as datas para a evacuação dos aquartelamentos das NT, assim como as garantias de circulação e  segurança de forças militares isoladas, do PAIGC e das nossas tropas;

(xix) 26 de Agosto, em Argel, assinatura do acordo entre o Governo Português e o PAIGC para a independência da Guiné-Bissau, tendo-se assentado nos seguintes pontos essenciais:

- independência em 10 de Setembro de 1974;

- retirada das Forças Armadas Portuguesas até 31 de Outubro;

- cessar fogo "de jure" desde a mesma data;

(xx) De 4 a 9 de Setembro, chegada a Bissau de vários membros do Governo e responsáveis do PAIGC.

(xxi) No dia 9, chegou também o primeiro contingente militar do novo Estado.

(xxii) 10 de Setembro, em Lisboa, cerimónia formal de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por Portugal.

(xxiii) Na mesma data, em Bissau, iniciava-se a transferência dos principais serviços públicos para a responsabilidade da administração do novo Estado;

(xxiv) 15 de Outubro, retirada dos últimos contingentes das forças militares portuguesas estacionadas em Bissau.

(xv) No total, regressaram a Lisboa cerca de 23.800 combatentes do efectivo metropolitano.

Em resumo: no ano em apreço, podem considerar-se três períodos distintos, condicionados ou influenciados por importantes factos envolventes que lhes deram particular relevo.

- Do início do ano até ao dia 25 de Abril

Período ascensional do PAIGC que passou a atacar duramente algumas posições fixas das nossas tropas no terreno e a condicionar as movimentações das forças terrestres, marítimas e aéreas. Esta fase vem no
seguimento dos êxitos conseguidos no ano anterior, quando as forças do PAIGC, entretanto dotadas com o míssil terra-ar "Strela", passaram a condicionar as movimentações dos nossos meios aéreos e, por efeito disso, o comando das operações, as operações e a logística.

A posição ocupada pelas Nossas Tropas em Copá, no Leste, foi evacuada neste período (Vd. Operação "Alto Turbante", 11/ l2Fev74 - Actividade Operacional deste Capítulo=..

- De 25 de Abril a 29 de Julho

Os acontecimentos políticos ocorridos no 25 de Abril em Lisboa e no período subsequente, não garantiam explicitamente o propósito da concessão de independência à Guiné, objectivo do PAIGC.

Por isso, o período em apreço constituiu um tempo propício ao desenvolvimento das formas de pressão militar e política necessária para a obtenção do referido objectivo, por parte do PAIGC.

 A forma de pressão militar traduziu-se em ataques fortíssimos às nossas tropas, nas regiões em que a situação lhe era claramente favorável.

O aquartelamento das Nt em Jemberém foi duramente atacado e bombardeado durante o mês de Maio. As instalações ficaram de tal modo danificadas que tiveram de ser desocupadas e os seus efectivos recolhidos, antes mesmo de se ter iniciado a retracção geral do dispositivo das nossas tropas, que teve início cerca de um mês depois.

Neste período foram ainda importantes a publicação da Lei n." 7/74 (reconhecimento do direito à Independência da Guiné Bissau), de 26 de Julho, em Lisboa e o acordo de Cacine em 29 de Julho.

- De 30 de Julho a 15 de Outubro

Garantida a independência pela Lei n.º 7/74, o período foi caracterizado por ausência significativa de pressão política ou militar, destacando-se no entanto, as seguintes acções mais relevantes:

- desmobilização das forças de recrutamento local, que lutaram a nosso lado contra o PAIGC, razão pela qual o seu desarmamento e desmobilização constituíram período crítico na fase final da nossa permanência na Guiné;

- a retirada das nossas forças do teatro de guerra, sua concentração em Bissau e transporte das últimas unidades para Lisboa, em 15 de Outubro;

Neste período, o potencial relativo de combate das nossas forças relativamente às do PAIGC era-nos desfavorável, pelo que se tornou necessário gerir o evoluir da situação com o maior tacto político e militar, garantindo sempre o máximo possível de segurança para as nossas tropas.

(Continua)

Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 420/423-

Ficha técnica:

Elaboraram e redigiram este volume da Resenha:
· Coronel de Cavalaria Henrique António Costa de Sousa
· Coronel de Infantaria Álvaro Bastos Miranda

Coordenou e reviu:
· Major-General Henrique António Nascimento Garcia

Contribuíram com elementos indispensáveis:
· Arquivo Histórico-Militar
· Arquivo do Secretariado-Geral da Defesa Nacional
· Direcção de História e Cultura Militar
· Coronel Tirocinado de Cavalaria Pára-quedista Nuno António Bravo Mira Vaz
· Arquivos pessoais de diversos militares

Trabalhos de computador:
· Ass.Téc. Helena Gulamhussen Vissanji
· Soldado RC Luís Paulo de Jesus Gouveia

Digitalização e tratamento de imagem
· Sargento-Ajudante João Carlos Nunes Cordeiro

Cedência de fotografias:
· Jornal do Exército
·Arquivo Histórico-Militar (Serviço Cartográfico do Exército-Divisão de Fotografia e Cinema)
· Major-General Joaquim dos Reis
· Coronel de Infantaria "Cmd" Manuel Ferreira da Silva
· Professor Doutor Carlos Jorge Gonçalves Soares Fabião
· Dr. Luís Lima Bethencourt Palma
· Sr. Nelson Lopes dos Santos

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23849: Fichas de unidades (29): BCAÇ 4616/73 (Bambadinca, 1974)

1.  O BCAÇ 4616/73 é uma daqueles unidades que podíamos pôr na série "Os nossos últimos seis meses"... ou nas "Memórias dos últimos soldados do império"...

Chegou ao CTIG já no início do ano de 1974 e regressou à metrópole oito meses depois, no início de setembro. Como  se tornou normal, nos últimos anos da guerra, o comandante da CCS era um capitão SGE (oriundo da Escola Central de Sargentos) e os comandantes das subunidades operacionais eram todos milicianos...

Lamentavelmente não tem história da unidade... Mas o livro da CECA, diz que na parte final da comissão, "adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC."

Se repararmos na ficha da unidade, a seguir reproduzida, a 2ª C/BCAÇ 4616/73 (sediada no Xitole) em oito dias "fechou a porta duas vezes", primeiro a do Xitole e depois a de Bambadinca, o mesmo é dizer, desativou e entregou ao PAIGC o  setor L1 (parte importantíssima do "chão fula" (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole):

(...) Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector. Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.(...)

Vale a pena juntar (e reflectir sobre) estes factos (*)...


Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores n.º 4616/73


Identificação: BCaç 4616/73

Unidade Mob: RI 16 - Évora

Cmdt: TCor Inf Luís Ataíde da Silva Banazol | TCor Inf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

2.° Cmdt: Maj lnf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

OInfOp/Adj: Cap lnf Bernardino Luís de Matos Pereira Torres

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Domingos Roque

1ª Comp: Cap Mil lnf Augusto Vicente Penteado

2.ª Comp: Cap Mil lnf Luís Fernando de Andrade Viegas

3.ª Comp: Cap Mil lnf João Lontra Leite Martins


Divisa: "Conduta Brava e Distinta" 
 [de acordo com a imagem do brasão, acima reproduzida, colecção Carlos Coutinho, 2009, com a devida vénia]

Partida: Embarque em 30Dez73; desembarque em 05Jan74 |  Regresso: Embarque em 12Set74 (1*  e 2*: Comp), 15Set74 (3ª Comp) e 16Set74 (Cmd e CCS)


Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 9Jan74 a 6Fev74, no CML, em Cumeré, seguiu depois, com as suas companhias, excepto a 3ª Comp, para o sector de Bambadinca, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com o BArt 3873, de 13Fev73 a 8Mar73.

Em 9Mar74, assumiu a responsabilidade do Sector LI, com a sede em Bambadinca e abrangendo os subsectores de Mansambo, Xime, Xitole e Bambadinca.

Desenvolveu a actividade operacional adequada às características do sector, com realização de várias operações, patrulhamentos, emboscadas dos reordenamentos de Nhabijões, Samba Silate e Bambadinca e de construção, manutenção e controlo dos itinerários da sua zona de acção. 

Na parte final, adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuada nos subsectores de Xitole, em 1Set74, de Mansambo, em 2Set74 e de Bambadinca e Xime, ambos em 9Set74.

Em 2Set74, após desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bambadinca, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 1ª Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3494 na região de Mansambo, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Mansambo, tendo destacado um pelotão para Bambadincazinho, este no subsector de Bambadinca, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 22Ago74, dois pelotões seguiram para Porto Gole e destacamento de Bissá, a fim de substituirem a 1ª Comp/BCaç 4612/72 a partir de 26Ago74, os quais ficaram na dependência do BCaç 4612/74, procedendo depois à desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bissá, em 1Set74 e de Porto Gole, em 2Set74, após o que recolheram a Bissau.

Em 2Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Mansambo, a companhia, então a dois pelotões, deslocou-se transitoriamente para Xime, recolhendo em 8Set4 a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 2ª  Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3492 na região de Xitole, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Xitole, com um pelotão destacado na ponte do rio Pulom, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector.

Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 3ª  Comp cedeu, a partir de 5Jan74, um pelotão para reforço da 2ª Comp/BCaç 4512/72, o qual se instalou em Jumbembém. 

Em 11Fev74, a subunidade seguiu para Farim, a fim de efectuar o treino operacional com a CCaç 4944/73, sob orientação do BCaç 4512/72 e seguidamente reforçar este batalhão, a fim de fazer face ao agravamento da situação na sua zona de acção.

Em 23Mar74, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 4512/72, foi toda colocada em Jumbembém, em reforço da actividade da guarnição local, tendo destacado um pelotão para Canjambari, também em reforço da guarnição local, de 23Mar74 a 2Jun74.

Em 6Jun74, substituindo a 1ª  Comp/BCaç 4516/73, assumiu a responsabilidade do subsector de Farim.

Em 7Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Farim, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações -  Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.195/197. (**)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Julho de 1974 > Visita de Bunca Dabó e do seu bigrupo, fortemente armado... Ao centro, o nosso amigo e camarada Jorge Pinto, então alf mil, em farda nº 2, desarmado, descontraído, fazendo as "honras da casa". O aquartelamento e a povoação foram ocupados pelo PAIGC apenas em 2 de setembro de 1974. (Natural de Turquel, Alcobaça, o Jorge Pinto é professor do ensino secundário, reformado)

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 (169/74) > Meados / finais de maio de  1974 > Imagens do "glorioso dia do primeiro encontro com as tropas do PAIGC em Bissorã e após 25 de Abril,  creio eu que foi em meados ou finais de maio de 1974" (...). Fotos do álbum do Henrique Cerqueira, que esteve, como fur mil at inf, no TO da Guiné, desde finais de novembro de 1972 até inícios de kulho de 1974, primeiro na 3ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72 e depois na CCAÇ 13.

Fotos ( legenda): © Henrique Cerqueira (2012)  Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Gabu < Paunca > CCAÇ 11 (1969/74) > 7 de junho de  1974 >  A paz, depois da guerra, ou guerra & paz, como faces da mesma moeda... >  O fur mil op esp J. Casimiro Carvalho, "herói de Gadamael", no meio dos inimigos de ontem...  Fotos do seu álbum fotográfico, sem legendas... 

Este nosso camarada que vemos aqui a abraçar os inimigos de ontem, foi o mesmo que tinha escrito à mãe,na véspera,  em 6 de junho de 1974,  a seguinte missiva:

 "(...) Ficou, nesse encontro, determinado que amanhã o inimigo vinha a um quartel nosso visitar-nos, conhecer-nos, nós que nos matavámos [uns aos outros] sem nos vermos. Enfim, agora como está previsto, conhecer-nos-emos, se não houver imprevistos, e eu, que tanto os odiei, com o ódio que ganhei com a guerra, devido ao sangue que vi derramar, irei... talvez - quem sabe ? - abraçá-los. Sim, porque eles lutaram para defenderem o que por direito lhes pertencia, um chão deles, bravos soldados como nós." (...).

É o mesmo J. Casimiro Carvalho que na batalha de Gadamael pôs a vida em risco para salvar outros camaradas (e nomeadamente o seu capitão) e que chegou a ser ferido.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Xitole >  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616/73 (Xitole, 1974) > Foto do álbum do José Zeferino, ex-alf mil at inf. "Primeiro encontro no Xitole: de costas um comandante do PAIGC – não me lembro do nome – , o nosso médico, Dr. Morgado, eu, o capitão Luís Viegas, o comissário politico Antero Alfama e o 1.º sargento páraquedista Vaz".  O comandante da 2ª CCAÇ / BCAC 416/73 era cap mil inf Luís Fernando de Andrade Viegas (com este mesmo nome, há um membro da Ordem dos Engenheiros da Região Sul, portado ca cédula profissional nº 12.037).

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Xitole >  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616/73, Xitole, 1974 > s/d    [c. jun/set 1974]>  Chegada ao Xitole de forças do PAIGC, em camiões russos.

Algumas apontamentos do diário de alf mil José Zeferino: 

(i) Xitole, 22 de abril de 1974 - Apresenta-se um guerrilheiro do PAIGC. Má altura, para ele, para desertar das suas fileiras; 

(ii) 25 de abril 1974 - madrugada, cerca das 6 horas: "Zefruíno, alferes Zefruíno"!!!... (...) Era o Jamil, comerciante libanês (...),  que estava a ouvir a BBC em árabe: "Zefruíno, o (...)  Spínola está a fazer uma revolta". (...) Foi assim que tive conhecimento do que se passava em Lisboa. Regressámos de imediato ao quartel. Ficámos na expectativa nos dias seguintes. Patrulhamentos, só o mínimo indispensável, até Endorna. Montagem de segurança nocturna: poucas. Estávamos literalmente presos pela avidez dos comunicados. Acreditámos que o fim da guerra era desejado pelas duas partes. Pelo menos para a população era-o. E muito. (...)

(iii) 15 de maio de 1974 – Violento combate – emboscada. Duas baixas do nosso lado: o alferes Aguiar e o soldado de transmissões Domingos. Cerca de uma dezena de feridos. Sinais de baixas IN;

(iv) 30 de maio de 1974 - São detectadas e levantadas várias minas reforçadas com granadas de RPG;

(vi) 6 de junho de 1974 - Pelas 6 horas, nova rajada. Desta vez de uma sentinela junto ao espaldão do morteiro 81, na zona dos quartos dos oficiais e do abrigo da Breda. Novamente nas valas avistámos, a umas dezenas de metros, uma coluna IN que se aproximava, vinda da tabanca, pela orla da pista de aviação. Sob o nosso fogo fugiram para o mato do outro lado da pista, deixando um deles ferido. Veio a falecer pouco depois na nossa enfermaria. Foi este, realmente, o ultimo acto de guerra na zona e ainda hoje não o entendo totalmente.

(vii) 15 de junho de 1974 - Na picada, para lá da Ponte dos Fulas, suspensa de uma árvore, é encontrada uma carta com um maço de tabaco Nô Pintcha, e um isqueiro. Convidava o capitão a fazer a paz. O que foi feito no mesmo dia, perto do pontão do Jagarajá.

(viii)  de 16 de junho a setembro de 1974 - Começaram então as visitas de comandantes e comissários políticos do PAIGC para combinar a cerimónia da entrega do quartel, com o arriar da nossa bandeira e o hastear da deles. Vinham das matas da margem direita do Corubal – Mina, Fiofioli, etc. (...)

Houve um jogo de futebol entre nós e os guerrilheiros. Gostavam imenso de falar com o nosso pessoal chegando a trocar impressões sobre o material que tínhamos usado na guerra. Creio que numa dessas conversas foi dito que quem preparou a tal emboscada de 15 de maio teria sido castigado. Não aprofundámos a questão (...).

Quase todos os dias apareciam guerrilheiros procurando refeições na nossa cantina geral. A única exigência nossa: tinham que deixar a arma à entrada do quartel, no posto de sentinelaFazendo-se transportar por camionetas civis paravam sempre na casa do Jamil para o cumprimentar. (...) Numa das colunas, e em viatura civil, chegaram também duas prostitutas. Alguns aproveitaram. (...)

O Saltinho já tinha sido entregueBastou um dia para ficarem sem gerador. Os novos ocupantes pedem ajuda ao Xitole para reparar o aparelho. Nesse dia à noite ficámos preocupados por a equipa que foi não ter chegado. Foram encontrados perto de Cambéssé com o Unimog espetado dentro do mato com vários guerrilheiros a tentar repô-lo na picada. O comandante deles, de nome Claude, ficou irritadíssimo quando nos viu. Já estava todo alterado. E foi a única expressão de ódio que registei em todos os contactos com elementos do PAIGC. Mas a nossa equipa foi muito bem tratada por eles.

Entretanto chegam-nos notícias de problemas em Bambadinca: Com as nossas milícias: queriam alimentos e com a CCAÇ 12 que não queria entregar as armas. Depois… o tempo passou-se… lentamente. E entregámos o Xitole  [em ].(...)

 (ix) Bissau, 12 de setembro de 1974 - Embarque no Uíge, para Lisboa. (...)

Foto (elegenda): © José Zeferino (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > 14 de outubro de 1974 > O último arriar da bandeira no CTIG, mas já sem a presença de representantes do PAIGC. Foto do álbum  do José Lino [Padrão de] Oliveira [ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974]

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > Cemitério de viaturas e outros equipamentos militares (GMC, Daimlers,  Panhard, jipes, Obuses 14...) abandonados como sucata, no fim da guerra.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) >  9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC,  e  da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito... É uma fotos histórica, em que se vê o nosso coeditor, camarada e amigo Eduardo Magalhães Ribeiro, fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005...

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 >  14 de outubro de 1974 > O último arriar da bandeira no CTIG, mas já sem a presença de representantes do PAIGC.  O último ato da soberania portuguesa não foi o arruiar da bandeira, em Mansoa, em 9 de setembro de 1974....O BCAÇ 4612/74 seria colocado depois de 9/9/1974, no BENG 447, em Brá, Bissau... a útima bandeira portuguesa a ser arriada, no CTIG, seria no próprio "dia do embarque", ou seja, mais de um mês depois, em 15/10/1974. Essa honra coube, de novo, ao Eduardo Magalhães Ribeiro, fur mil op esp / ranger, da CCS/BCAÇ 4612/73 (12 de julho de 1974 - 15 de outubro de 1974).

Fotos (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné >s/l >  s/d > O último Governador Geral e Comandante-Chefe, Carlos Fabião (1974)... Era um dos militares com mais anos de serviço no TO (3 comissões ou mais). Aqui na foto ainda capitão e depois major, comandante do Comando Geral de Milícias (1971/73), ao tempo de Spínola... Foto de autor desconhecido, reproduzida aqui com a devida vénia. In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d., pp. 332 e 335. .


Guiné > Bissau > Cais da Marinha > Outubro de 1974 > Quatro Lanchas de Fiscalização Grandes (LFG), uma pequena, e uma LDM na Ponte Cais em Bissau, poucos dias antes da “retirada final” do dia 14 de outubro do mesmo ano. É visível o navio Uíge ao fundo, preparado para transportar os últimos militares portugueses da Guiné. Foto do álbum do ex-Marinheiro Radiotelegrafista, Manuel Beleza Ferraz.

Segundo o nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande e filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG, 1973/74),e basedado no depoimento do Manuel Beleza Frerraz,  "no dia 14 de outubro, decorreu a última cerimónia de 'Arriar da Bandeira Portuguesa', ao qual se seguiu o 'Hastear de Bandeira da República da Guiné-Bissau' (a última bandeira nacional em Bissau só foi retirada 4 ou 5 semanas depois de 14 de outubro de 1974, sem cerimónia oficial),  como tal, nesse mesmo momento, todo o que restava do contingente militar português (à excepção de dois pequenos destacamentos de tropa portuguesa, da Marinha e da Força Aérea, esta na já ex-BA 12,  em Bissalanca, mas ainda com helicópteros AL-III, e o destacamento da Marinha nas suas antigas instalações, para colaborarem na transição e transmissão de técnicas/procedimentos, conhecimentos e experiências de navegação aérea e marítima, com elementos do PAIGC), encontrava-se agora em território estrangeiro.

(...) "A comitiva constituída pelo Governador (brigadeiro Carlos Fabião), o Comandante Militar (brigadeiro Figueiredo), o Chefe do Estado-Maior do CTIG (coronel Henrique Gonçalves Vaz), bem como alguns outros oficiais do Estado-Maior, sargentos e praças, depois de assistirem ao embarque de todos os militares nos navios, que se encontravam ao largo do estuário do Rio Geba, e assegurando-se que tudo tinha corrido sem problemas e de acordo com o previsto nos 'Planos de Retirada', elaborados pelo CTIG / CCFAG que nesta altura se afirmava como o único Comando das Forças Armadas Portuguesas neste TO da Guiné, seguiram directamente para o Aeroporto de Bissalanca, onde mantínhamos ainda um dispositivo de segurança.

(...) "Mal acabou a cerimónia referida anteriormente, e segundo testemunho do ex-marinheiro radiotelegrafista, Manuel Aurélio A. Beleza Ferraz, que se encontrava nesta altura na LFG Lira, todas as guarnições dos nossos navios que se encontravam na zona, estavam por ordens superiores, em posição de combate (para qualquer eventualidade), estando todos os operacionais equipados com coletes salva-vidas, capacetes metálicos e as Bofors (peças de artilharia antiaéreas de 40 mm) sem capa e municiadas, prontas a realizar fogo de protecção à retirada das nossas tropas, que ainda se encontravam em terra. Segundo o ex-marinheiro radiotelegrafista, Manuel Beleza Ferraz, os navios que se encontravam a realizar a 'segurança de rectaguarda'  mais próxima às tropas que iriam retirar-se para os navios ao largo no Rio Geba, eram a LFG Órion e a LFG Lira.

(...) "Às 2h30m do dia 14 de outubro de 1974, estes militares serão os últimos a retirar da Guiné. Nesse momento estiveram presentes alguns Comandantes do PAIGC, que quiseram despedir-se dos 'seus antigos inimigos', e assim foi o fim da colonização da Guiné com cerca de 500 anos." (...)

Foto (e legenda): ©  Manuel Beleza Ferraz / Luís Gonçalves Vaz (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No livro de João Céu e Silva,  "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), são atribuídas a Vasco Pulido Valente (VPV)  (1943-2021) as seguintes afirmações, a propósito da descolonização (*):

(...) Quando o Dr. Mário Soares chegou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros , já o coronel Fabião estava aos abraços ao PAIGC e o Otelo aos abraços à FRELIMO. Não havia negociação possível.

Quem fez a descolonização não foi o Dr. Mário Soares, mas o MFA. Ele não queria fazer aquela descolonização, e foi assim porque o Exército português se desfez em quarenta e oito horas em Angola, Moçambique e Guiné. Neste último caso, fomos mesmo ao encontro das tropas inimigas e confraternizámos poucos dias após o 25 de Abril. Como aconteceu no Norte de Moçambique e quase imediatamente me Angola (pp. 282/283).

(…) Lembro-me do abraço de Soares a Samora Machel, horrível! E Como aconteceu ? A comitiva entrou na sala de reuniões, Otelo olhou para o Machel e disse: “Ah grande Machel, deixe-me dar-lhe um abraço”, e Soares, que estava a chefiar a delegação, ficou sem saber o que iria fazer. Depois de Machel ter dado um abraço a Otelo, veio ter com Soares de braços abertos, “Meu caro Mário”, e deu-lhe um abraço. Isto só deveria ter acontecido com Moçambique independente” (p. 191).


2. Pergunta-se, aos camaradas da Tabanca Grande que estavam no TO  da Guiné no 25 de Abril de 1974: tem algum fundamento a declaração de VPV, segundo a qual as NT foram logo, "pouco dias após o 25 de Abril" (...)  "ao encontro das tropas inimigas " (leia-se, do PAIGC) e "confraternizaram" ?

Eu não estava lá, mas pelo que sei, e pelos depoimentos já aqui foram publicados ao longo de 18 anos de existência do blogue,  acho estranho que, ao fim destes anos todos (já lá vão 48, quase meio século!), já ninguém se indigne com estas, senão "bojardas", pelo menos "bocas foleiras", vindas para mais de um homem com formação académica, historiador encartado e, de resto,  um dos "cronistas-mor" do regime democrático,  o qual, todavia,  sempre esteve longe (fisicamemte falando) do teatro de operações da Guiné. 

No citado livro (que é um meritório trabalho do João Céu e Silva, como já aqui foi dito), há outras" leviandades" (não quero chamar-lhe outros nomes) que são ditas sobre a guerra da Guiné (como, por exemplo, sobre o acidente de helicóptero, caído no rio Mansoa, em que morreu o seu amigo, o deputado da Ala Liberal José Pedro Pinto Leite, e mais outros 3 deputados da Assembelia Nacional, além da tripulação, e que VPV atribui à pontaria dos artilheiros do  PAIGC) (**)...Para já não falar da infeliz expressão "capitães milicianos mercenários" (também não provocou, ao que parece, a indignação dos nossos leitores, na ausência de comentários ao poste) (***)...

No essencial, as declarações do VPV parecem-me injustas ou menos felizes, em relação aos "últimos soldados do Império" que arriaram a última bandeira verde-rubra na Guiné... No mínimo, não responderão à verdade dos factos... Em zonas como o Xitole, a guerra prolongou-se até quase a meados de junho e ainda houve mortos de parte a parte... Na generalidade dos casos,  a retração do nosso dispositivo militar (aquartelamentos, destacamentos, etc.)  fez-se com ordem e dignidade, de acordo com um plano de retirada superiormente aprovado... E, depois, se uma jogatana de futebol, entre inimigos de ontem, num processo de negocição de paz, ao fim de onde, doze, treze anos de guerra, é uma prova inequícova de "confraternização", então temos que tratar com pinças as palavras que usamos quando falamos da gestão dos conflitos entre os seres humanos...

Na primeira parte deste poste, selecionámos, ao "vol d'oiseau",  algumas fotos e legendas que fomos publicando, a este respeito, ao longo dos anos... Esperemos que estas possam suscitar mais depoimentos e reflexões sobre o tema, sem que a discussão acabe na "fulanização" e na "caça às  bruxas", na patológica tentação, tão portuguesa (e se calhar universal), de querer arranjar logo "bodes expiatórios" quando as coisas não nos correm com ventos de feição como foi o caso, por exemplo, da descolonização... 

Enfim, façamos votos, neste já final do ano de 2022,  para  que os nossos historiadores (militares ou outros, portugueses ou estrangeiros) possam, com mais investigação,  fazer mais luz, em 2023,  sobre este período e estes factos em que as narrativas ainda estão longe de serem consensuais, devido também ao enviesamento político-ideológico (****). LG
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23840: Notas de leitura (1527): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte VI: 25 de Abril ? 25 de Novembro ? E descolonização ? Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é. A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade" (VPV)

(**) Vd. poste de 18 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...


(****) Último poste da série > 25 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

quinta-feira, 10 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23065: (In)citações (196): Bissau, Safim e Nhacra: havia ir e voltar... (Victor Costa / Virgílio Teixeira /Carlos Pinheiro / José Colaço)


Guiné 61/74 > Região de Bissau > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 11 de março de 1968 > Safim > O alf mil SAM Virgílio Teixeira, na esplanada... da "Marisqueira de Safim". Em Safim, havia um cruzamento: para norte,   seguia-se para João Landim e Bula; para leste e nordeste, seguia-se para Nhacra e Mansoa. De Bissau a Nacra, eram pouco mais de 20 km, e daqui até Mansoa mais uns trinta... De Bissau a Safim, por Bissalanca, também seriam uns 20 km...


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissalanca > BA 12 >  c. 1973/74 > O Eduardo Jorge Ferreira, alf mil da Polícia Aérea, à porta dos seus aposentos, pronto para partir para Nhacra, para comer umas ostras, à civil, de sandálias, e com capacete de segurança, conduzindo a sua motorizada, de 50 cm3 (?), Yahama, matrícula G5907, e levando à boleia o seu amigo Jorge Pinto, alf mil, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)...

Pormenor digno de registo: o Jorge Pinto, também à civil, de sapatinho de vela, meiinha branca, leva um capacete de segurança pouco ortodoxo: um capacete, branco, da polícia aérea... A ideia só podia ser do nosso saudoso Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), um homem prático e desenrascado...

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do Victor Costa ao poste P23058 (*)

(i) (...) Nunca deixei nenhuma missão a meio e não é agora que irei começar, isto para vos dizer que irei responder a todas as questões colocadas em todos os comentários e em particular ao Luís Graça ou a outros comentários que possam chegar. Eu só preciso de tempo para o fazer. Posso desde já responder ao camarada Valdemar Silva por ser aquele que coloca menos questões.

No tempo em que estive com a CCaç 4541/72 e até Agosto 74,  os autocarros da A. Brites Palma e os táxis que faziam serviço de Bissau para Safim e vice-versa nunca tiveram segurânça por não ser necessário. 

De vez em quando um táxi até trazia meninas de Bissau para satisfazer necessidades fisiológicas do pessoal. Isto quer dizer que nas operações que fazíamos não brincávamos. Serviço é serviço e conhaque é conhaque e isto foi uma das coisas que me orgulho ter aprendido com os "velhos", levávmos as coisas muito a sério.

Irei também enviar mais fotografias sobre Safim, João Landim Porto e outros locais acompanhadas de mensagens.


(ii) (...) Os camaradas Virgílio Teixeira e Carlos Pinheiro em conjunto não podiam ser mais precisos para caracterizar aquilo a que chamo a "marisqueira de Safim", o que demonstra que eram clientes assíduos, mas o primeiro não foi preciso na placa de informação rodoviária localizada 200 m mais a Norte. 

Trata-se das 3 placas,  cujas fotas foram publicadas em 6/3/2022 (**):  a do lado esquerdo João Landim 8 Km, com seta à esquerda e por baixo Porto e na parte central a placa Bula e uma seta à esquerda. Do lado direito da placa Ensalma 5 km com seta à direita. Se consultarem o Mapa no Google ainda existe no local a citada "marisqueira" mas não deve restar nada do edifício antigo.

No mês de Julho de 1974 iniciámos uma operação contínua de controlo e revista de todas as viaturas e civis que entravam e saiam de Bissau, em que todas as viaturas eram obrigadas a parar. Instalamos uma tenda de campanha junto à Base Aérea nº 12, em Bissalanca, precisamente ao lado dos caças Fiat G 91. 

Esta operação contava,  além da secção que eu comandava, também com a participação de dois elementos da Polícia de Segurança Pública de Bissau. Num desses dias um condutor civil cabo-verdiano que circulava na direcção Bissau-Safim,  não parou à nossa ordem e abalroou um elemento nativo da PSP. 

Imediatamente corremos para o condutor da viatura e dei-lhe ordem para sair com as mãos bem levantadas. Começou a gesticular, eu puxei a culatra atrás e dei-lhe ordem de prisão, entretanto o outro elemento da PSP  aproximou-se e meteu-lhe as algemas. 

Chamámos a ambulância e a ramona e lá seguiram os dois para Bissau. No dia seguinte comuniquei para à PSP  para saber do estado de saúde do agente, entretanto falecido de noite. Nunca mais soube o que aconteceu ao preso, nem se houve posterior investigação, eu limitei-me a fazer o relatório.

Entretanto a CCaç 4541/73 com o fim da comissão regressa à Metrópole e eu em Setembro sou colocado na CCS do QG em Bissau até ao meu regresso em Outubro de 1974. Bissau foi uma cidade segura durante o tempo que lá estive. Constava no entanto que haviam alguns problemas entre a nossa tropa pelo controle do Pilão, o Bairro das meninas, mas não era nada comigo.

Havia muito trânsito de viaturas militares em Safim, quer de Bissau para Nhacra ou Cumeré, quer de Bissau para Bula e vice-versa, era a artéria principal de ligação ao interior da Guiné e nunca senti insegurança até Safim e mesmo até João Landim Porto. 

Mas todos os dias em particular à noite eram realizadas patrulhas no mato e nas bolanhas circundantes desta estrada com objectivos definidos pelo Comando. Um Unimog 404 deixava a secção perto da estrada ou se a picada fosse minimamente segura deixava-nos mais no interior, a operação da noite durava em média 6 horas, a pé até ao objectivo e depois regressavámos ao ponto de partida e aqui não havia facilidades, porque era isto que nos dava segurança. 

Contactos com o PAIGC, zero!, apenas o grito das hienas. Do rio Mansoa para Norte as operações eram executadas pelo nosso Destacamento de João Landim Norte que se estendia até às imediações de Bula, onde também estive. Aqui a segurança das Jangadas na travessia do Rio era feita nós e uma LDM da Marinha. Ao fim de um mês com os "velhos", já me sentia seguro e as coisas tornavam-se mais fáceis.

Desloquei-me várias vezes a Bissau á livraria do Sr. Manuel Moreira em Benfica, penso que era perto do Palácio do Governador, para comprar livros e jornais, ia ao Café Ronda, onde gostava de apreciar o bater dos tacões das botas na marcha do render da Guarda para o palácio do Governador feita pela PM ao longo da avenida, tive conhecimento do rebentamento da granada que neste café provocou um morto e 63 feridos, mas não era coisa que nos tirasse o sono e fui ao café Pelicano perto do quartel da PM na Amura. 

Em Bissau, só senti alguma apreensão em meados de Março quando visitei com meu amigo fur mil  José Bilhau,  penso que dos Piratas do Guileje (CCAC 8350), amigos seus no hospital e vi pela primeira vez os seus camaradas a esfregar os dedos das mãos nos braços, pernas e tronco e ver o ferro a sair do corpo,mas isto era no Hospital e este à data estava bastante preenchido. 

Numa das minhas últimas deslocações a Bissau e de regresso a Safim apanhei um táxi um Peugeot 404, estabeleci conversa com o condutor um cabo-verdiano que me garantiu que os efectivos do PAIGC rondava os 7.500 homens, ouvi, calei, mas não acreditei. Em Safim os transportes A. Brites Palma funcionaram antes e depois do 25 de Abril. (...)


Guiné > Carta geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Bissau e povoaçõs a norte: Safim, Landinm, Bula; Nhacra, Mansoa, Mansabá...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)



 2. Outros comentários  ao poste P23058 (*)
 
(i) Virgílio Teixeira:

(...) Victor Costa, uma saudação especial pelo tema deste poste, pois sou um amante quer de Safim, Nhacra, João Landim, etc.

Nos anos de 67-68-69, fui lá muitas vezes, tantas quanto as minhas idas a Bissau, com a minha motorizada, não parava, por vezes acompanhado, a maioria sozinho. Ia à procura de mariscos em Safim, e à piscina do quartel de Nhacra. Depois era a aventura e conhecer novos sítios.

"Marisqueira de Safim", assim com este nome, não havia, era uma esplanada, café, cervejaria e servia uns petiscos para quem passava. Ficava perto do cruzamento e das marcas das estradas para João Landim e Mansoa / Nhacra. Tenho imensas saudades desses momentos, o pior era o regresso, na maioria das vezes já noite, e com uns copitos a mais.

Quanto ao assunto do Poste, e quanto à mensagem do amigo Lobo, não se preocupe pois não é só a idade e a memória. Na minha modesta opinião, e tanto quando me lembro, e somos dos mesmos anos, 68 e 69, nunca vi semelhantes viaturas tipo "ambulância", parecem-me da 2ª guerra mundial.

Por isso posso quase afirmar que não existiam no meu tempo estes autocarros. Podem ser posteriores, mas parece-me mais pós-independência.

Não reconheço nem as viaturas nem os lugares aqui ilustrados, lamento mas não é por falta de memória, se existiam passaram-me ao largo.

Quanto a segurança, nunca pensei no assunto, apesar de tantos quilómetros através do mato, em especial entre Bissalanca e Safim. Depois disso não sei nada.

Podem consultar as minhas fotos aqui publicadas nos meus postes. E quem puder acrescentar mais alguma coisa, que o faça, pois eram locais lendários. (...)

(ii) (...) Relembro aqui para quem já não se lembra ou não viu os postes, a minha narrativa do dia em que sonhei que tinha de ir de motorizada de Bissau até Mansabá, nem sabia onde ficava, era a seguir a Mansoa.

Depois de ir a uns banhos à piscina, encho o depósito da Peugeot, por vinte e cinco tostões, e vou para a estrada a caminho de Mansoa, mas a viagem foi curta, pois uma patrulha militar, teve de me identificar, pois eu ia à civil, eu não tinha documentos mas disse-lhes que era Alferes Mil do BCaç 1933, que estava nessa época em S. Domingos, e depois de pormenores que não me lembro, não me deixaram passar, e lá voltei desolado...

Com certeza se continuava a viagem nem chegava a Mansoa,  muito menos a Mansabá (**).  Era uma miragem, uma loucura, maluca da idade, e já tinha uns 25 ou 26 anos, que ficavam mais curtos com os copitos que nunca faltavam.

Um dia se melhorar da minha saúde, ainda me meto no jipe que tenho lá à minha disposição, com motorista privativo, e faço a vontade ao meu amigo do HOtel Coimbra, que teima em me ver lá... e vou até Mansab!... Até posso morrer por lá, é uma terra que ficou na alma, para sempre.

Perdoem estes comentários de quem já não bate bem... da mona!... São quase 80 anos!  (...)

Carlos Pinheiro:

(...) Estive 25 meses em Bissau e só me lembro das camionetas do Costa mas não sei para onde iam. Eram camionetas já com certa idade e algumas deviam ter o chassis empenado. A malta até dizia que camionetas do Costa "suma a cachorro de rabo de lado"...

Só fui uma vez a Safim. Tinha três dias de Guiné, tina ido em rendição individual para o BCAÇ 1911, mas nunca o cheguei a conhecer, era dia de Todos os Santos de 1968 e foi um camarada da Companhia de Transportes, que me arranjou cama lá na sua Companhia porque nos Adidos não havia nada, para além da confusão geral, e que me levou a Safim onde eu paguei o petisco, ainda com patacão da Metrópole, em agradecimento ao facto de ele me ter arranjado uma cama. 

Gostei do petisco, uns camarões, umas ostras, que eu nunca tinha comido e fiquei freguês sempre que podia e até um bocado de leitão aparaceu. A cerveja já não me lembro a marca mas estava fresca e escorregava bem. 

Foi nesse dia que houve um acidente grave com uma companhia que tinha ido comigo no Uíge, perto de Bula, por ter rebentado uma granada de bazuca em cima duma GMC da CT que já estava carregada de pessoal. Vi passar perto de uma dezena de helicópteros e com três dias de Guiné comecei logo a aperceber-me da situação. Nunca cheguei a saber se houve mortos, mas feridos foram imensos. 

Gostei do petisco mas nunca mais voltei a Safim. Para mim a fronteira era BA 12, em Bissalanca.  (...)


José Botelho Colaço:


(i) (...) Obrigado, Victor Costa, pelas fotos dos autocarros da empresa A. Brites Palma, é precisamente este modelo de autocarro que está gravado na minha mente de 1964/65. 

Quanto aos camaradas dizerem que a memória pifou,  talvez não... O que aconteceu foi que á medida que as malhas da guerra foram apertando,  os colonos deixaram de ter o seu papel activo e quase de certeza estes autocarros deixaram de circular,  por isso os camaradas não se lembram de os ver. 

Eu recordo de ver em Bafatá, ao lado do café do tio Bento, a carcaça de um autocarro abandonado, deste modelo. 

Resumindo, antes da Guerra, estes autocarros ciculavam em grande parte do território da Guiné, que se foram confinando com o rebentar e evoluir da guerra. 

A memória que eu tenho do dono da A. Brites Palma era um homem de baixa estatura,  já com os anos a pesarem sobre si mas um poligolota em vários dialetos na lingua nativa.

(ii) (...) Que a memória vai pifando não há dúvidas mas é devido á idade, é mais a doença da anosognosia do que a Alzheimer. Obrigado, 

Victor Costa,  por me avivares e confirmares tudo aquilo que guardo em memória e escritos pessoais.

O que me parece é que o sector de Bissau se manteve quase igual ou com pequeníssimas alterações pelo que nos contas durante o tempo que durou a guerra. Exemplo,  em 1964/65 até á jangada do João Landin ou via Nhacra era praticamente zona livre,  viajava-se sem qualquer problema, mas para Mansoaa também se ia mas já era uma pequena aventura e só durante o dia. No Pilão á noite só os mais aventureiros e alguma segurança. Quanto aos transportes em Bissau,  total acordo confirmas tudo o que guardo em memória.  (...) (***)

__________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18287: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XIV: o dia em que eu queria ir de motorizada, de Bissau a Mansoa... e a Mansabá!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...É uma foto  histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, então fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005 (*)...

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos da "troca de bandeiras" , em 1 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço"


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II (*)


(iii) A chegada dos guerrilheiros


Passaram-se dias e semanas e, quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. 

Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse).

Controvérsia à parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar à procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

  Quem são estes, os cubanos?  − perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

  São estes que nos metiam tanto medo!?  − comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero Cabral” não ter passado por aqui).

  Não se iluda,  mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez   explicou o Queta “chauffeur”, antigo companheiro do tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador.

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Sékou Touré. Quando as pessoas eram convocadas, diziam às suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Sékou Touré”. 

No decorrer das longas reuniões do Partido, aqueles que pediam para ir satisfazer algum necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los.

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole


Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era "Inglês sem mestre”,  sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas.

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte, o Jorge disse-me naquele dia:

  Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

  Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz  − respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido à sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passámos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (Cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos. (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana. ).

Mesmo supondo que eu quisesse ir,  de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné Melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge,  pois os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estava a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra.

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros.

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos.

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:

- Deus nos livre, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?!

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A (mu)dança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam 
presentes (um pelotão da 2ª CCaç / BCAÇ 4514/72,, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos, outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. 

Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?).

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática.

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. 

Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi) Os meus amigos guerrilheiros, balantas


Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa Pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido, passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

 Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos.

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois.

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento polítíco que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa.

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, à procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”.

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes, o Lenine. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso à fronteira com o Senegal.

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado à população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, eu cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá,  que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos.

Penso que teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião,  aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores.  Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?!

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé (**)

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Continua)

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