Selfie. © Luís Graça (2011)
Ficarão as moscas quando eu morrer
Aumento o som do aparelho dos ouvidos
só para captar as vocalizações dos golfinhos.
A vinte mil léguas submarinas dos meus tímpanos doridos.
Pobre de mim se fosse um golfinho bebé
com uma prótese auditiva,
e andasse perdido pelo mar largo e profundo.
Ou fosse apanhado pelos corsários de Salé.
Não creio que a minha mãe, em situação tão aflitiva,
me pudesse valer, encontrar e resgatar neste mundo.
Muito menos a santa casa da misericórdia
a quem cabe remir os cativos.
Imprevidente, devia ter trazido o sonar,
o chapéu de sol, e o gel,
e o livro do código fonético internacional.
Ah!, e o sextante, e o útero materno,
que quem vai para o mar
avia-se em terra.
Mas não faz mal,
na Mauritânia Deus é grande
e o oceano ainda é maior.
Terei muito que esperar pelos golfinhos,
que andam atrás das traineiras de sardinhas.
Fazem pela vida os golfinhos
e os pescadores de sardinhas,
ah!, e os comedores de sardinhas.
Eu arrisco a pele, ou melhor, o cancro de pele.
Mas já não tenho pernas
para bater a costa de lés a lés.
Estão sentados à mesa da esplanada,
os comedores de sardinhas,
à espera que chegue o peixeiro.
São, de resto, muito mais peixeiros do que carneiros.
Não sei se os golfinhos comem sardinhas, grelhadas,
dizem que eles preferem o choco frito
com sumo de limão.
Como os corsários, afiam as facas
e os dentes de marfim, já muito gastos,
os comedores de sardinhas.
Aguardam pela iguaria que lhes sabe pela vida.
Há quem troque a vida por um bom prato de sardinhas,
ou por um saque,
que ainda é bem melhor.
Há naus que levam escravos
da Guiné para o Novo Mundo.
E regressam, ao Velho,
com quinquilharia de ouro e prata.
E um pó branco a que chamam açúcar
(ou, em árabe, as-sukkar)
Contam os cêntimos os pescadores, na lota.
E já ninguém grita, de punho erguido,
que a luta continua.
Chui!, ninguém dá mais.
Fecha-se a porta à morte
ao dobrar o cabo Branco atrás do goraz.
O preço justo, camarada da companha ?
É o da lei da sobrevivência,
dizem os caçadores de escravos.
Pagam-lhes, aos "dealers",
com cavalos brancos, puros sangues árabes,
imunizados contra a peste equina africana,
diz a propaganda.
Afinal, a vida tem muito mais de arte & manha
do que de ciência.
Não há epistemologias que nos salvem,
muito menos a exata epidemiologia do nascer e do morrer
em África, com o Atlântico pelo meio,
a estrada da globalização à minha frente,
e os corsários ingleses e holandeses atrás de mim.
Em Mogador fui senhor,
em Essouira fui cativo.
Do nascer ao morrer vai um tiro de obus.
Infeliz, já nasceu, catrapus, já morreu.
Ninguém escolhe pai e mãe.
Nem os saarauís o deserto do Sara,
nunca mais ouvi falar deles, pobres coitados,
foram extintos com a partilha do planeta.
Confesso que simpatizava com eles,
cheguei a dar-lhes batatas da minha terra
em troca dos gorazes do mar deles.
Bolas, também não trouxe comigo a tabela
das equivalências. Nem a máscara.
Dizem que aqui o uso de máscara é obrigatório.
Mas, afinal, quanto pesa uma alma ?
Nem sei se a balança de pesar almas
estará devidamente calibrada.
Até no "hall" de entrada do purgatório
devia haver um aferidor (oficioso) de pesos e medidas.
Quantas toneladas de corpos
serão precisas para salvar uma alma ?,
perguntava o padre jesuita António Vieira,
nos engenhos de açúcar do Maranhão.
E quanto vale um império, em corpos e almas ?
Ou um herói ?
Que penosa essa cena
do Santo António a pregar aos golfinhos,
como se fossem predadores do topo da cadeia alimentar.
Da peste, da fome e da guerra… e do santo da nossa terra,
Libera nos, Domine!
Foi pregar para outros mares,
disputado entre Lisboa e Pádua.
Santos da casa nunca foram milagreiros.
Dos comedores de sardinhas, agora desconfinados,
sigo o rasto olfativo:
estão sentados à mesa da esplanada
num dos bairros populares, ribeirinhos,
salvos do camartelo camarário,
e por fim reordenados.
Mas será que as sardinhas já estão gordinhas ?
Há sempre uma dúvida existencial,
para o "chef", agora em "lay-off":
serão portuguesas ou espanholas,
frescas ou congeladas ?
Vão-se os anéis, opulentos, do real erário,
ficam os magros dedos da saúde pública
e as luvas descartáveis.
Cega, surda e muda,
segue em procissão a santa senhora da saúde,
colina acima, rua abaixo.
Não vai segura, nas vielas da Mouraria,
por prevenção vai mascarada.
E queixa-se de que não ganha para o desinfetante.
Também não vale a pena gritar "Aqui-d'el-rei!",
que a corte já seguiu, lesta, para Santarém,
a toque de caixa.
Em caso de peste (de que Deus nos livre!),
aplique-se sempre o regimento:
"Meninos e meninas, chichi e cama!".
Em fila, os comedores de sardinhas,
em mesas intercaladas,
uma sim, outra não,
por causa do PPC, o processo da pandemia em curso.
Há um guarda-mor da saúde em cada porta da cidade,
a pôr carimbos: "Clean & Safe".
Por causa dos turistas do Mar do Norte que são fóbicos,
e temem que se acabe o desinfetante.
Não há moral na história, escrita ou por escrever,
de Salé à Guiné,
só os golfinhos há muito que não conhecem fronteiras
nem respeitam a zona económica exclusiva
nem as quarentenas
nem sequer os cercos sanitários.
Gosto do internacionalismo proletário dos golfinhos,
velozes, roazes, vorazes.
Tenho pena que não sejam mais solidários.
Golfinhos e cachalotes de todos os mares, (re)uni-vos.
Não sei se eles entenderão a velha palavra de ordem,
outrora verdadeira declaração de guerra contra Neptuno:
uniform november india
victor oscar sierra.
São livres mas indefesos,
temem as redes dos pescadores
como os chimpanzés do Bóe
temem os caçadores furtivos
e os negros os navios negreiros
e as baleias os arpões dos baleeiros
e os tubarões os cortadores de barbatanas.
No fim, perco o rasto aos golfinhos
já ao largo das Berlengas,
no regresso a casa,
e eu próprio me perco no mar da meia via,
a meio da minha história de vida.
Afundo-me com a minha nau de quimeras,
entre os restos de vírus e bactérias, em saldo,
da última pandemia.
Seria reconfortante saber
se os heróis vão para o olimpo,
e os sociopatas para o inferno.
Mas que sei eu do além ?!
E sobretudo da justiça escatológica ?!
Regressam os pescadores a Peniche, à luta, à lota.
Há um golfinho que dá à costa, exausto, já cadáver.
Na mesa da esplanada ficam as cabeças e as espinhas
das sardinhas.
E as moscas.