Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Guiné 61/74 - P26511: Recortes de imprensa (143): Na Série Especial "A minha Guerra", do Correio da Manhã do passado dia 16, foi publicado um pequeno texto sobre o nosso camarada José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73), que aqui reproduzimos com a devida vénia
Nota do editor
Último post da série de 12 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26381: Recortes de imprensa (142): Lusodescendentes do Sri Lanka e o seu crioulo de base portuguesa (Diário de Notícas e Agência Lusa, 8 mai 2023)
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Guiné 61/74 - P26504: Notas de leitura (1773): "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
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Queridos amigos,
José Maria Monteiro permaneceu 4 anos na Guiné, ligado à telegrafia. A sua ambição é mostrar a exemplaridade da Marinha de Guerra na Guiné, em Angola e Moçambique, referindo que esta geração de todas as gerações foi a mais combatente, a mais sacrificada e a mais revolucionária. Temo que exagere nas laudes que faz ao desempenho dos fuzileiros (cuja bravura jamais alguém contestou), e faz-se uma síntese, de acordo com os elementos que ele apresenta da intervenção dos fuzileiros e da Marinha de Guerra em geral a partir de 1961. Ele recorda que no segundo semestre de 1962 já havia confrontos com a guerrilha, na região Sul, faz uma menção detalhada da operação Tridente e de outras que se seguiram, vamos proximamente continuar com a síntese das atividades que ele apresenta entre 1964 e 1968, as alterações impostas por Spínola à atividade da Marinha, haverá mesmo espaço para se falar da operação Mar Verde.
Um abraço do
Mário
Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné
Mário Beja Santos
A obra intitula-se "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro, Chiado Books, 2019. O autor alistou-se em 1967 na Marinha, ofereceu-se como voluntário para a Guiné, nos dois primeiros anos desempenhou as funções de radiotelegrafista de uma lancha de fiscalização pequena; terminados os dois primeiros anos, passou para o Comando da Defesa Marítima da Guiné, continuando mais dois anos como marinheiro telegrafista. Foi aumentando as suas habilitações, concluiu o curso de Economia e, mais tarde, o de Direito.
Começa por lamentar a indiferença com que o país no seu geral trata os que combateram pela pátria, refere o sentimento de revolta que atinge os ex-combatentes; depois faz um esboço dos inícios da guerra colonial, uma descrição do recrutamento dos mais jovens combatentes, como se processava a partida para os teatros de operações e entramos propriamente na guerra de guerrilhas da Guiné, tudo matéria bem conhecida dos leitores, incluindo o mantra que as coisas na Guiné não correram nada bem durante a governação de Arnaldo Schulz, que em 1968 os relatórios não escondiam avanços e sucessos dos guerrilheiros, esperava-se uma mudança providencial com o brigadeiro António de Spínola, refere as primeiras diretivas do novo comandante-chefe, também matéria conhecida dos nossos leitores.
E lança-se então na gesta da Marinha de Guerra na Guiné, então encomiástico, assim, enaltecendo os fuzileiros:
“Penetraram nas matas africanas até ao fim do mundo, com uma vontade férrea de um povo que insistia em manter viva a herança de séculos e séculos, sem pensar que, um dia, as Forças Armadas portuguesas viriam a pôr fim a uma guerra suicida. No final do ano de 1961 embarca um pelotão de fuzileiros para a Guiné. Em junho do ano seguinte, embarca, por via aérea, o Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE) N.º 2, no final de dezembro de 1962 registaram os primeiros feridos entre os fuzileiros. Com o ataque a Tite em 20 de janeiro de 1963, começam as grandes façanhas dos guerrilheiros em terras da Guiné, uma vez que eram os homens mais bem preparados para este tipo de guerrilha. Existindo no Sul do território algumas áreas sobre o controlo do IN, os DFE, apoiados por diversos meios navais, a fragata Nuno Tristão, a LFP Argos, a LFP Escorpião e a LFP Dragão, entre outras, iniciam no Sul da Guiné, concretamente nas ilhas de Como, Caiar e Catunco, penetrando pelas matas serradas naquelas ilhas. Nas operações Trevo, Seta e Lima, competia ao DFE n.º 2 e DFE n.º 8 bater toda a zona envolvente a Darsalame, ocupando-a, tendo em vista içar de novo a bandeira portuguesa, facto que veio a acontecer em novembro de 1963.”
Não terá sido exatamente assim pois o comandante-chefe Louro de Sousa começou a arquitetar a operação Tridente para expulsar os guerrilheiros destas ilhas. José Maria Monteiro descreve a operação Tridente até à sua finalização, ficou a partir de março de 1964 uma unidade do exército na mata do Cachil, a Norte da ilha do Como, com a missão de patrulhar a ilha, controlar a margens do rio Cobade, de modo a assegurar o abastecimento aos operacionais de Catió. Ainda sob o comando de Louro de Sousa, o DFE n.º 2 participa com forças terrestres na operação Alvor, na península Gampará, em busca do quartel-general de Rui Djassi, esta península nunca tinha sido percorrida por forças militares; o relato não deixa claro o que aconteceu.
Com a nomeação de Arnaldo Schulz o Comando da Defesa Marítima da Guiné é alterado e descentralizado, criando-se quatro comandos sediados em quatro zonas distintas: Bacia hidrográfica do rio Cacheu; Bacia hidrográfica dos rios Geba, Mansoa e Corubal; Bacia hidrográfica dos rios Grande de Buba e Tombali; e Bacia hidrográfica dos rios Cumbijã e Cacine. O autor volta a desfazer-se em elogios aos fuzileiros: “Todos os movimentos independentistas só tinham medo e temor aos homens brancos ou negros, com a boina azul-ferrete pertencente aos destacamentos de fuzileiros especiais, em qualquer frente de batalha.”
E vem a seguir novos parágrafos de exaltação:
“Dada a elevada preparação destes jovens combatentes, os DFE eram chamados para participarem nas operações de maior envergadura, tendo no mês de setembro de 1964 participado nas operações Touro, Hitler e Tornado, em que, nesta última, além dos quatro DFE, também participaram três companhias de cavalaria, uma de artilharia, uma de caçadores e um pelotão de paraquedistas, apoiados por duas LFG, duas LFP, oito LDM, três LDP e um ferryboat, sem, no entanto, encontrar qualquer resistência da guerrilha na zona do Cantanhez. A atuação quase permanente das forças especiais da Marinha de Guerra em toda a zona Sul, mormente na região do Corubal e Cacine, conduziu a um notório abrandamento da atividade inimiga, obrigando o PAIGC a deslocar-se para Leste e para Norte, em que os guerrilheiros do PAIGC tiveram de alterar os seus corredores habituais.”
Compreende-se que o autor tenha um elevado espírito corpo, mas os factos históricos desmentem esta gesta laudatória. Mas vale a pena continuar a acompanhar esta escrita:
“Na sequência da operação Tridente, os contactos com o inimigo continuavam a ser frequentes, pelo que havia necessidade de efetuar operações de reconhecimento no extremo sul, a ideia das operações no rio Camexibó e da operação Hitler era estancar e intersetar os corredores intervenientes da Guiné-Conacri, nomeadamente através do corredor de Gadamael. A LDM 305 entrou na foz do rio Camexibó no dia 6 de fevereiro de 1964, em fase de preia-mar com o objetivo de efetuar uma fiscalização àquele rio durante cinco dias. Para o efeito, foi reforçada com uma secção de fuzileiros da CF 3. Dois dias depois, quando se preparava para fundear a montante do rio, um dos elementos da companhia de fuzileiros apercebeu-se de um grupo numeroso de homens armados na margem direita daquele rio. Inicialmente, houve troca de palavras entre os elementos da companhia de fuzileiros e um comandante dos guerrilheiros do PAIGC, conversa que durou pouco tempo uma vez que o oficial que comandava a companhia de fuzileiros deu ordem à guarnição da lancha e aos fuzileiros para dispararem, tendo os guerrilheiros fugido para o interior da mata com baixas muito pesadas. A lancha de desembarque continuou a subir o rio Camexibó, a intenção era patrulhar todo o rio até à confluência com o rio Nhafuane, não só para certificar que comunicaria com o rio Inxanche, mas também verificar se aquelas zonas permitiriam a navegação fluvial a lanchas como a LDM 305 ou mesmo a de porte superior. No dia 29 de fevereiro de 1964, a LDM 305 iniciou a descida do rio Camexibó, sempre na expetativa de ataques dos guerrilheiros, perto das oito da noite foram atacados perto das margens do rio, sem provocar danos humanos, mais adiante foram localizadas cinco canoas, que foram destruídas. A partir do conhecimento obtido no local e das experiências adquiridas naquelas intervenções, foi decidido levar a bom porto uma nova operação, a qual teve o nome de operação Hitler, entregue ao DFE 8, sob o comando de Alpoim Calvão.”
Observa o autor que nenhuma destas intervenções foi bem-sucedida. Vamos ver seguidamente o que o autor tem para nos dizer quanto à síntese das atividades da Marinha de Guerra entre 1964 e 1968.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 14 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Guiné 61/74 - P26099: Roteiro dos museus e outros lugares de memória e cultura, abertos (ou a abrir) ao "antigo combatente" (2): Museu da Marinha, Fragata Dom Fernando,. Submarinbo Barracuda, Planetário e Aquário Vasco da Gama... Vale a pena, mas é tudo "a pagantes"
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Lisboa > Mosteiro dos Jerónimos > Ala oeste, com as duas torres neomanuelinas > Entrada do Museu da Marinha. Foto de Felix Koenig (2014) Fonte: Adapt. de Wikimedia Commons |
1. Continuando a nossa viagem pelo roteiro dos museus e monumentos nacionais... a que têm acesso (gratuito) os antigos combatentes, bem como de outros museu, regionais, municipais e particulares a que queremos ver também reconhecido o nosso direito de visita...
Abrimos aqui, no passado dia 10, uma campanha de informação e sensibilização para que o nosso benefício (social) se alargue também, pelo menos (e para já), aos museus municipais, sociais e privados... (e mais tarde, aos monumentos) (*).
Teríamos que incluir nesse número (com direito a cartão de antigo combatente) a diáspora lusófona, os nossos camaradas do continente e "ilhas adjacentes" (Açores e Madeira) que deixaram a "Pátria ingrata" e foram para o Brasil, a Venezuela, os EUA, o Canadá, a França, a Alemanha, o Luxemburgo, a Suiça, o Reino Unido, a Austrália, a África do Sul, e por aí fora...
É tudo gerido (o museu e od demais equipamentos culturais) pela Comissão Cultural da Marinha, tutelada pela Direção Cultural da Marinha, a quem compete:
(i) contribuír ativamente para o desenvolvimento da vertente cultural da Marinha;
(ii) constitui um fator de prestígio e de marcante afirmação de identidade da Marinha.
(...) "A par da sua componente operacional, a Marinha detém uma diversificada e rica área Cultural, fruto de uma história secular que se confunde com a própria identidade do país.
(...) "A Direção Cultural da Marinha tem um papel de primeira instância na abertura à sociedade, no sentido da conservação, valorização e divulgação do património Cultural, histórico e artístico da Marinha, e com esse objetivo tem vindo a desenvolver, com êxito, uma série de novas iniciativas e projetos." (...)
O acervo do museu é constituído por modelos de Galés, embarcações fluviais e costeiras e navios desde os Descobrimentos até ao século XIX.
Também possui uma vasta colecção de armas e fardamentos, instrumentos de navegação e cartas marítimas.
O Museu inclui um centro de documentação com 14.500 obras, um arquivo de imagem, que reúne, aproximadamente, 120 mil imagens, e um arquivo de desenhos e planos com mais de 1.500 documentos de navios portugueses antigos.(...) (Fonte: Wikipedia).
- Aquário Vasco da Gama,
- Núcleo Museológico Fragata D. Fernando II e Glória (Fragata e Submarino Barracuda),
- Museu de Marinha
- Planetário de Marinha,
(*) Vd. poste de 14 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25842: (In)citações (269): Quantos somos ainda? (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Guiné 61/74 - P26087: O nosso livro de visitas (224): Gonçalo Silva, bisneto do Comandante Jerónimo, que comandou a Canhoeira Salvador, gostaria de obter ainda mais informações acerca do seu bisavô, que combateu na batalha de Negomano onde Teixeira Pinto perdeu a vida
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Caro Professor,
Sou bisneto do meu Bisavô Jerónimo e sei que foi comandante da canhoneira Salvador, e combateu no Rovumo onde o Capitão Teireira Pinto perdeu a vida.[1] [2]
Infelizmente a pouca documentação e a sua morte prematura, julga-se alzeimer ou efeitos da malaria.
Tenho recolhido com dificuldade alguma documentação, a sua espada e outras e uma fotografia da Canhoneira Salvador que julgo única!
Fica aqui o meu contacto muito gostariamos de juntar ainda mais informação, destes verdadeiros herois pois combateram Paul Emile Lettow, um dos mais astutos militares alemães.[3]
O meu bisavô só teve um filho Manuel Bivar (Eng. António Manuel Vahia Neves Weinholtz de Bivar) primeiro engenheiro electrotécnico do IST, fundador da Rádio e TV em Portugal.
Anedota curiosa: em Março de 1937 esteve em Berlim com a minha Avó para discutir as ondas rádio União Europeia de Radiodifusão, a minha Avó muito alta e dura (ao contrário do avô engenhocas mais baixo), ficou no jantar ao lado do Goring (filho do governador alemão africano) contava que disse que os portugueses e o sogro combateram as tropas alemãs do Lettow até ao final da guerra.
Cumprimentos,
Gonçalo Silva
gcorneliodasilva@hotmail.com
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Notas do editor
[1] - Vd. Wikipédia: João Teixeira Pinto
[2] - Vd. Academia Militar - In Memoriam João Teixeira Pinto
[3] - Vd. Wikipédia: Paul Emil von Lettow-Vorbeck
Último post da série de 1 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P25997: O nosso livro de visitas (223): Nelson Quintino Lage, Soldado Condutor Auto da CPM 2537, através do Formulário de Contactos
terça-feira, 24 de setembro de 2024
Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (220): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2) (Mário Beja Santos)
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Queridos amigos,
Esta carta do tenente Barbieri para o seu irmão, Paulo António, em Lisboa, terá a ver com uma viagem que este oficial da Armada fez a caminho de Luanda com paragem em Bissau. Não deixa de surpreender a riqueza da informação que foi prestada, certamente no Comando de Defesa Marítima da Guiné. Há, evidentemente, dados arbitrários, discutíveis, desde os 10% do domínio territorial do IN, passando pelo gasto de 80 granadas de morteiro numa operação de emboscada, até ao poderio naval do IN, nesta data o PAIGC já deslocava pela calada da noite embarcações no Sul, daí as operações com êxito efetuadas pelo comandante Alpoim Calvão, a previsão do tenente de Barbieri quanto a um poderio naval no Sul nunca se concretizou, bem como o sistema antiaéreo que ele refere na região do Quitafine acabou por ser aniquilado. Este documento, à semelhança da correspondência para Paulo Barbieri, prendendo-se sempre com o tema da guerra colonial, será posteriormente entregue no Arquivo Histórico-Militar.
Um abraço do
Mário
Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2)
Mário Beja Santos
Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra conto sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. Já aqui se publicou a primeira carta de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora a segunda, com data de 12 de maio de 1967:
“Meu caro Paulo:
Deixei Bissau ontem à tarde sob a ameaça de um tornado, que não tardou a desabar sobre nós no canal de Geba e que veio anunciar a época das chuvas por estas paragens. No momento presente o céu está aberto e o Sol começa a escaldar e isto a umas escassas milhas da costa, pois há cerca de 1 horas passámos pelo través do Cabo Verde. Não só este regime é instável, como também estamos em presença de um microclima, o da Guiné.
Devo dizer-te que um dia antes de chegarmos à Guiné a cor do mar sofreu uma alteração sensível de azul para verde-sujo e isto seria uma amostra da cor das águas marinhas daquela costa. Quando nos levantamos verificamos com desagrado que o mar passara a cor de água de charco. Costa não se via ainda, embora pouco mais tarde nos aparecesse misteriosa, encoberta por um véu de neblina que nós atribuímos ao facto de ainda ser manhã cedo.
A nossa chegada a Bissau foi um acontecimento para as forças navais, que nos vieram esperar sob formatura, com todas as pequenas e ‘grandes’ unidades disponíveis no momento. Era uma da tarde e Bissau continuava encoberta por uma neblina agora parda e apenas nos deixava ver a orla costeira de edifícios e árvores. Sob os nossos pés a chapa de aço fazia arder os sapatos e começava a tornar-se incomodativo para quem como nós tínhamos de estar parados em formatura. Devo dizer-te também que no dia anterior à nossa chegada já a noite se apresentou húmida embora estivesse longe da costa e isso não se parecesse nada com o que nos esperava: 93% de humidade na atmosfera!
Tirando os habitantes e os arredores, Bissau parece uma cidade portuguesa de província onde a desmentir tal facto existe talvez um excesso de geometria no traçado das ruas e um elevado número de cores no tipo de moradias. No entanto, existe qualquer coisa que nos lembra imediatamente que estamos numa terra sob a nossa influência. A presença islâmica é aqui verdadeiramente notável, tendo dado ao negro não só uma aparência de dignidade como também uma mobilização humana orientada que nos pode ser útil ou difícil de suportar, conforme a soubermos manejar.
Etnicamente a Guiné compõe-se de Fulas, Futa-Fulas no Leste, Balantas na faixa central, Mandigas na zona de Como e Cantanhez, Papéis e Balantas ao pé de Bissau e Manjacos no Noroeste. Os Fulas não podem com os Balantas e vice-versa, no entanto as nossas autoridades esforçam-se para a pacificação e é nesse sentido que se procura encarar a fraternização dessas duas etnias.
Chega-se agora à conclusão da necessidade de organizar a nossa administração sob o tipo de hierarquias paralelas, como único meio de fazer frente à forte organização IN. Este realiza um esforço triplo: de informação, de abastecimento em pessoal e material, e finalmente o de guerra.
Existe também um contra às nossas ações que é dado pela uniformidade de relevo da Guiné. A falta de pontos conspícuos torna difícil a navegação marítima e terrestre. Sempre que uma força é obrigada a desvia-se de estradas ou picadas por razões de surpresa ou de segurança, tem de se fazer navegação por bússola aproveitando o tipo de vegetação como elemento auxiliar na identificação da posição.
Logo que os informadores de Bissau assinalam a partida de uma força anfíbia ao Sul, para o Norte, pelo Geba acima, imediatamente as posições prováveis de desembarque e de ação se tornam identificadas. Para fugir a este inconveniente, o desembarque realiza-se muitas vezes acima de um arbusto, quase arbóreo, que pela sua densidade forma uma massa impenetrável. É o tarrafo, que separa a linha de água da terra firme, numa margem de cerca de 300 m e que é necessário percorrer de ramo em ramo com o material às costas e de regresso, com feridos, prisioneiros e material apreendido. Assim consegue-se desembarcar em qualquer lugar do rio ou da costa e ganha-se segurança. Porém, o desgaste físico é violentíssimo e a operação de desembarque demora por vezes 45 minutos.
Como sabes, o terrorista esforça-se para dominar as zonas ricas de gado e agricultura, não só para debilitar a economia da província como para resolver os seus problemas. Assim, pelo domínio substitui a nossa hierarquia administrativa pela sua, que compreende técnicas especializadas em assuntos agrícolas. Aonde o seu domínio não pode ser efetivo, o terrorista em ações isoladas vai subtrair às populações pela força o arroz de que tem necessidade. Porém, isso autoriza a nossa propaganda a classificá-lo como IN.
Para terminar, basta dizer que o nosso espírito é o do saudosismo pela causa abandonada na metrópole. Felizmente ainda existem casos de reação e de vontade e que com a escassez de meios ao seu dispor conseguem equilibrar e, ultimamente, obter lenta vantagem militar.
Encontrei o Pedro (adquiri na Feira da Ladra duas cartas do alferes Pedro Barros e Silva também dirigidas a Paulo António Barbieri, delas se fará referência adiante) no Quartel-General onde trabalha numa repartição de nome estranho e pouca importância.
Tudo isto é razão de sobra para a nossa atitude de boca aberta. Enquanto os comandos militares sofrerem de admirações e indecisões deste tipo, julgo que a supremacia será deles.
De todos os seus problemas talvez o das vias de comunicações seja o maior. Este traz problemas de atraso de abastecimentos e das informações e ordens, ao mesmo tempo que só são verdadeiramente possíveis deslocações no sentido Oeste-Leste. Norte-Sul implica o atravessar de numerosas vias de água, esta é a menor dimensão da Guiné logo para azar dos turras. Imposição por virtude de necessidades, de atravessar vias de água obriga os turras a lançarem mão de construção naval: pirogas, porém, uma vez obrigados a aceitar água, o turra serve-se dela para acelerar o abastecimento e a informação no sentido longitudinal, reduzindo assim uma combinação de deslocamentos terra-água o comprimento da Guiné para efeitos de tempo.
Parece-me nunca ser possível ao IN a utilização de outro tipo de embarcação, a não ser que a consolidação das suas posições no Como e no Cantanhez permita a instalação de artilharia de costa e assim estabelecer águas territoriais independentes ao Sul.
Essas águas independentes serão a porta de entrada de embarcações de guerra bem equipadas que a República da Guiné lhes queira fornecer. Primeiro como base naval, depois como irradiação do poderio naval para o interior, o Sul apresenta-se hoje como uma pedra-chave ao poderio do IN.
Julgo ter-te dito tudo quanto consegui concluir no prazo de 2 dias em que aqui permaneci. Dá à família os carinhos devidos e insiste no estado perfeito da minha saúde, Nuno".
(continua)
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Nota do editor
Post anterior da série de 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)
sábado, 14 de setembro de 2024
Guiné 61/74 - P25941: Timor: passado e presente (21): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XII: O regresso à Pátria e o fim do anátema de 'deportado' (pp. 102-107)
Portal Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares e Maria Barroso | Pasta: 05778.042.10619 | Título: Diário de Lisboa | Número: 8341 | Ano: 25 | Data: Sexta, 15 de Fevereiro de 1946 | Directores: Director: Joaquim Manso | Edição: 2ª edição | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: IMPRENSA
Citação:
(1946), "Diário de Lisboa", nº 8341, Ano 25, Sexta, 15 de Fevereiro de 1946, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_23303 (2024-9-13)
Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX. |
António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália Editora, s/d, 242 pp.) e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.
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Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp. |
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Infografia : Wikipédia > Timor-Leste | Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
O brigadeiro Roque de Sequeira Varejão, comandante-em-chefe das forças expedicionárias, desembarcou cerca das 11: 30 sendo recebido na improvisada ponte-cais e acompanhado por todos os presentes até às ruínas da Câmara Municipal onde se realizaria a cerimónia da receção.
Neste percurso estavam alinhados quase todos os chefes timorenses, com as suas bandeiras, mais de um cento, os seus tambores e as suas comitivas, totalizando alguns milhares de pessoas, formadas em massas compactas de um e outro lado da rua.
«Alguns dos chefes transportavam apenas a haste da bandeira com um papel dependurado e bem visível. Eram os que tinham emprestado as suas bandeiras durante a guerra e para a reocupação e queriam assim mostrar que não as tinham perdido. Os papeis eram os recibos passados pelas autoridades portuguesas, que comprovavam os empréstimos e garantiam direito de receberem bandeiras novas, quando as houvesse disponíveis» (1).
«Tendo o governador, que entretanto se dirigira a bordo, pedido ao comandante-em-chefe das forças expedicionárias que não fizesse desembarcar qualquer força armada para a guarda de honra, foram encarregados dessa missão os bravos moradores de Manatuto e Baucau, que bem mereciam essa distinção.» (1).
À frente do cortejo seguiu o brigadeiro Varejão acompanhado do Governador e dos oficiais do seu séquito, recebendo calorosas aclamações e manifestações de alegria de todos os presentes, naturais ou não de Timor.
Nas ruínas da Câmara, de que apenas restava de pé, ao cimo da escadaria, o frontão do pórtico de entrada apoiado em colunas, improvisou-se uma sala de receção, de que formavam as restantes três paredes as bandeiras nacionais dos chefes timorenses que, ordenadamente, se foram colocar nos seus lugares.
Para dentro do recinto entraram todos os não-timorenses, com as senhoras e crianças colocadas à frente.
«E foi neste cenário, simples e ao mesmo tempo impressionante, que se realizou a cerimónia de receção, reduzida a meia dúzia de palavras pronunciadas pelo governador, de boas-vindas aos que chegavam, de reconhecimento ao Governo da Nação por tudo o que fizera e estava fazendo, de agradecimento a todos os portugueses que tanto se tinham sacrificado no cumprimento do seu dever e aos chefes timorenses pelas provas inequívocas de lealdade e dedicação que tinham dado durante o longo período de provações a que se tinham sujeitado, resistindo a todas as pressões e promessas feitas pelo inimigo. E, tal como acontecera no dia 3 de setembro, no campo de concentração de Lebomeu, quando o governador foi anunciar a todos que o seu martírio terminara, todos os presentes entoaram o Hino Nacional, vendo-se em todos os olhos lágrimas de alegria e emoção patriótica» (1).
(...) Na tarde desse mesmo dia 27 acompanhei o Governador e o brigadeiro Varejão numa visita ao acampamento que os aponeses haviam instalado sob as árvores, no sítio de Túru-Liu, perto da baía de Tíbar, na estrada de Díli a Liquiçá, a cerca de dez quilómetros da capital.
A minha presença, ordenada pelo Governador, justificava-se pela necessidade de obterem o meu parecer acerca das condições sanitárias do acampamento, com vista à possível instalação das tropas a desembarcar.
Porém, além da casa do comandante, construída de pedra e cal, nada mais se poderia aproveitar pois havia somente as arracas de madeira e zinco, sem paredes, onde os japoneses se instalaram, protegidos dos mosquitos por enormes mosquiteiros coletivos feitos de pano e tule.
Faz-se também o pesado balanço da guerra e da ocupação nipónica,
com os seus milhares de mortos e danos patrimoniais
(...) Na manhã do dia 29 chegaram a Díli o aviso "Afonso de Albuquerque" e o navio armado em transporte "Angola", conduzindo, o primeiro contingente do destacamento expedicionário a Timor.
Foi-me dada então a grande alegria de poder abraçar dois dos oficiais recém-chegados, meus conhecidos e amigos: o capitão-capelão, padre Aníbal Rebelo Bastos e o capitão-farmacêutico Artur de Oliveira, o qual havia conseguido alcançar Moçambique, ido da Austrália e agora voltava à terra onde estabelecera residência e profundamente amava (2) .
No navio «Angola» chegou o destacamento sanitário comandado pelo capitão médico Dr. Costa Félix tendo como subalternos os tenentes milicianos médicos, Drs. Meira e Cruz, Tamaguini [mais priovável, Tamagnini], Leitão Marques e Teixeira Dinis, os quais instalei no pavilhão principal do Hospital Dr. Carvalho que, felizmente, estava pronto a recebê-los embora, não restasse um único vidro nas suas janelas por todos haverem desaparecido, estilhaçados pelo efeito dos bombardeamentos aéreos.
Deles soube da recente descoberta de um maravilhoso medicamento — a penicilina.
Desembarcados do «Angola» as tropas e material seguiu o navio para a Austrália com o fim de se reabastecer de carvão e mantimentos e transportar os portugueses que aí se encontravam foragidos.
A 9 de outubro fundeou em Díli o vapor «Sofala» com militares e funcionários administrativos e trazendo os mais diversos artigos necessários à população, para serem postos à venda.
Por estes dias, o aviso «Afonso de Albuquerque» deslocou-se ao território do Oecússi, transportando o novo administrador. A sua chegada foi completa surpresa para o chefe de posto Fernando Tinoco que esteve encarregado da circunscrição durante todo o período da guerra. Milagrosamente, tudo aí corria em ordem, graças ao encarregado administrativo e à lealdade e dedicação do liurai D. Hugo da Costa, tendo-se mantido a população sempre coesa e disciplinada.
(…) Pouco a pouco, passámos a saber de factos passados durante a guerra, os quais, até aí, completamente desconhecíamos e pudemos recapitular algumas estatísticas. Contámos, então, os portugueses mortos por causa violenta durante a guerra:
- timorenses, às centenas;
- e, dos não naturais de Timor, trinta e sete assassinados, dez mortos em combate e seis mortos por suicídio;
- também vinte faleceram ao abandono no interior da ilha onde andavam foragidos;
- e oito acabaram miseravelmente os seus dias no cárcere nipónico.
Durante todo o período da guerra Díli, incluindo Lahane e arredores, sofrera noventa e quatro ataques aéreos com bombardeamento. Desses bombardeamentos, atingiram Lahane trinta, sendo vinte concentrados nos meses de outubro e novembro de 1944.
Muitas centenas de timorenses haviam perecido assassinados e muitos milhares morreram, principalmente por estarem completamente abandonados os serviços públicos de assistência médica e de enfermagem e não disporem de qualquer possibilidade de obter medicamentos.
Entre os primeiros, tinham sido passados pelas armas velhos e leais amigos timorenses dentre os quais se destacava a figura gloriosa do liurai do Suro, D. Aleixo Corte Real
Alguns refugiados portugueses na Austrália foram aí voluntariamente treinados na técnica dos comandos (3) para depois desembarcarem ou serem lançados em paraquedas sobre Timor para se dedicarem à observação dos movimentos das tropas nipónicas e à respectiva comunicação pela via radiolegráfica (4).
Seguira para Timor, em Fevereiro de 1944, um primeiro grupo constituído por dois autralianos, o chefe Paulo de Ussuroa, seu primo Cosme Soares e o criado Sancho. Mais tarde, em agosto, seguira um novo grupo chefiado por um capitão australiano que levava consigo um telegrafista da mesma nacionalidade e os portugueses José Rebelo, Armindo Fernandes e José Carvalho, que apenas desejavam serem sempre considerados portugueses voluntários para coadjuvar nas operações que tivessem por fim repelir o dominador e espoliador da sua terra (4) .
O primeiro grupo foi aprisionado pouco depois de ter desembarcado tendo os timorenses que dele faziam parte estado na cadeia de Díli e depois sido transferidos para Lautem, onde morreram, com exceção do criado Sancho (4) .
Os portugueses do segundo grupo desembarcaram num ponto ermo da costa sul de Lautem e «foram recolhidos nas povoações indígenas, onde os japoneses os foram prender, logo aos primeiros rumores do armistício, em agosto, para os fuzilar» (4).
(....) No dia 25 de outubro, por despacho do Governador dando execução um telegrama do Ministro das Colónias, foi levantada a nota de «deportado» a todos os indivíduos que se encontravam em Timor nessa situação, restituindo-lhes o uso de todos os direitos civis e políticos que a lei confere aos cidadãos portugueses.
A 18 de novembro realizou-se um ato eleitoral em toda a colónia, que decorreu na mais absoluta ordem e legalidade, elegendo-se, quase por 100% dos votos o candidato a deputado por Timor e antigo governador da colónia, capitão Teófilo Duarte.
Por este tempo, foi dado conhecimento aos interessados de o Governador ter promulgado uma portaria, pela qual eram louvados os que mais se haviam distinguido durante a ocupação.
Na tarde de 7 de dzembro, tendo chegado o vapor "Angola" em regresso da Austrália, o capitão Ferreira de Carvalho fez entrega do governo da colónia ao inspector administrativo, capitão Óscar Freire de Vasconcelos Ruas, numa sessão pública em que ambos discursaram.
Às 15 horas do dia 8 de dezembro, embarcaram no referido navio cerca de 160 portugueses — homens, mulheres e crianças — que tinham permanecido em Timor durante a guerra. Alguns, poucos, não seguiram, por então preferirem ficar na ilha onde tinham a sua família e interesses.
Chegados a bordo, tivemos a alegria de poder abraçar, de novo, conhecidos e amigos, entre os quais, D. Jaime Garcia, o engenheiro José de Azevedo Noura, o administrador António Policarpo de Sousa Santos, o capitão Silva, o administrador Lourenço Aguilar, o Dr. Cal Brandão, etc.
(...) Pôde ser classificada de triunfal a viagem até Lisboa. Em todos os portos que tocámos, fomos acolhidos com festas e honrarias e, sobretudo, com manifestações de tão sincera alegria que nos demos por bem pagos das provações que havíamos passado.
Na Beira, Lourenço Marques, Moçâmedes, Luanda e Funchal recebemos inúmeras e inequívocas provas de consideração e estima que nunca poderíamos esquecer.
Chegámos e Lisboa em 15 de Fevereiro de 1946, sendo esperados ansiosamente por muitos milhares de pessoas (5).
«Em Alcântara viveu-se uma hora simultaneamente apoteótica e emotiva, dentro de um dos mais belos espetáculos que alguma vez se têm verificado em Lisboa, Milhares de pessoas de todas as classes acorreram à Estação Marítima para receber triunfalmente os repatriados de Timor, vítima de uma guerra que não provocaram. Bem singular foi essa manifestaçao, em que às palmas e aos vivas se juntaram palmas e soluços. Quase todos os que vieram sofreram crueldades e torturas sem nome, correram aventuras de jogar-se a vida, viram cair para sempre parentes e amigos — só por teimarem em defender a soberania portuguesa. E a história de cada um foi o que se viveu ontem, em vibrante comunhão patriótica, forte o amplexo em que se confundiam o orgulho dos que chegaram e a comoção dos que os recebiam." (5)
(...) Aos repatriados necessitados foram distribuídos, ainda no navio, roupas e agasalhos por uma comissão do Fundo de Socorro Social que tinha ao seu serviço uma brigada de 40 empregados dos Armazéns do Chiado, sendo contemplados 100 homens, 68 mulheres, 78 rapazes, 71 meninas e 10 bebés (5) . (...)
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terça-feira, 9 de julho de 2024
Guiné 61/74 - P25729: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte I: De Bissau ao Olossato, comandando um pelotão de infantaria
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José Álvaro Carvalho, Angola, ponte do rio Cuanza (em contrução), c. 1971 |
1. O alf mil José Álvaro Carvalho, embora sendo de artilharia, cumpriu os primeiros meses (basicamente o ano de 1963), comandando um pelotão de infantaria de uma campanhia de intervenção, de caçadores, sediada em Bissau.
Recorde-se que ele entrou recentemente para a Tabanca Grande, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*)
(...) "Entretanto foi requisitado um alferes artilheiro para comando dum pelotão de soldados africanos com dois obuses de 88mm e, quando menos esperava, foi parar ao Sul com ele, operando como independente, junto dum batalhão de cavalaria [BCAV 490] .
"Os soldados, indisciplinados, deram-lhe algumas dores de cabeça logo na 1ª operação e as coisas só começaram a funcionar normalmente com a ameaça de prisão ou mesmo fuzilamento dos mais rebeldes.
"Bebiam quase todos demais e na 1ª operação só levou cerca de metade porque os outros bêbados não se tinham de pé" (...)
Os efetivos da marinha eram ainda muito poucos, pelo que o ambiente nesta Messe era simpático e agradável.
A certa altura alguém o informou de que o Oficial de Dia ao Quartel General o mandara procurar. Tinha havido nessa noite a primeira emboscada no Norte. Até esse dia a guerrilha só atuara no Sul.
Resolveu aguardar pelo final da festa para se apresentar. Pareceu-lhe desculpável não ter pressa de enfrentar uma realidade preocupante. Por outro lado, era miliciano, indisciplinado, e pouco vocacionado para militar.
Talvez o Oficial de Dia o viesse a contatar antes do fim da festa. Se assim fosse, paciência. Continuou a divertir-se mas agora sempre a pensar no que o esperava. Era o alferes mais novo da Companhia de Intervenção e o seu pelotão seria o primeiro a avançar em qualquer caso de emergência.
Penso que esta regra tinha como justificação enviar primeiro os menos aptos, os mais novos, os mais inexperientes, a carne para canhão e só depois os mais aptos, os mais sabedores, caso os primeiros falhassem. Mas em situações de guerra como esta os mais aptos, os mais experientes e sabedores, deviam avançar primeiro, não os mais novos. Era uma guerra ainda mal conhecida que caminhava à margem dos conhecimentos militares tradicionais.
Havia uma semana que a guerrilha iniciara operações no Norte (**). No Sul já há muitos meses que se estabelecera, sendo para lá que todo o esforço militar se dirigira até essa altura.
Aí já se tinha algum conhecimento da sua forma de actuar.
No dia em que tinha ocorrido a primeira emboscada no Norte, a cerca de 120 kms da capital (dia da festa na messe da marinha) tinha avançado para o local um outro pelotão da companhia, em lugar do seu, e cujo comandante, por essa razão, durante algum tempo deixou de lhe falar.
Passada uma semana recebeu ordens, para preparar uma coluna a fim de avançar com o seu pelotão como primeiro elemento da transferência de toda a companhia para o Norte do território. Deveria em seguida apresentar-se na Repartição de Operações do Q.G. para receber mais ordens, o que aconteceu alguns dias depois.
Tendo-lhe sido entregue um envelope lacrado com a indicação "Confdencial" ( a abrir após o incio da marcha na direcção Norte que deverá ter inicio 24 horas após a entrega deste documento).
Iniciou a marcha a partir do QG, nessa direcção, às seis horas. Levava um jipe, um todo o terreno Unimog e 3 camiões GMC a abarrotarem de equipamento de primeira necessidade e armamento médio, munições, combustível e géneros. O pessoal tinha sido distribuído pelas viaturas e arrumado com dificuldade.
A primeira coisa que fez já em andamento, foi abrir o envelope lacrado da Repartição de Operações do QG conforme instruções que recebera. Confirmou assim o conhecimento que já tinha, baseado na troca de impressões que tivera com o comandante da companhia.
No dia anterior tinha jantado com um oficial da marinha seu amigo, que comandava a lancha patrulha do rio C[acheu], o mais importante do Norte, e tinha-lhe dito que em breve avançaria com o seu pelotão para essa zona, possivelmente para uma povoação de valor estratégico a defender nas margens desse rio.
- Amanhã também devo regressar à lancha (a lancha era um pequeno navio de guerra bem armado e preparado para patrulhar os rios, em todos os principais havia uma) e, se souber que estás em B[igene, frente a Ganturé, na margem direita do Rio Cacheu], quando lá passar, convido-te para jantar. Tenho agora um cozinheiro de primeira.
Depois da partida, ainda na cidade, cruzou-se com o Wolkswagen negro que levava este seu amigo para o cais, e, mesmo com os carros em andamento, conseguiu confirmar-lhe a conversa que tinham tido.
Os camiões roncavam no único troço de estrada alcatroada da região (60 kms), no fim do qual se encontrava uma pequena cidade [Mansoa] , onde chegaram cerca das nove horas. Nesta cidade, junto ao aquartelamento da companhia aí estacionada, o capitão que a comandava esperava a coluna. Mandou-o parar e disse-lhe que a missão fora alterada e tinha de se dirigir para a povoação de O[lossato] .
O pelotão para aí destacado, não conseguia não só defender o povoado, como até impedir que o inimigo, encurralando-o de metralhadoras apontadas a cada porta do edifício do quartel, um antigo celeiro de amendoim rodeado de arame farpado a distância conveniente, se passeasse impunemente na aldeia, entrando nos dois estabelecimentos comerciais existentes, abastecendo-se do que bem entendia, em troca de requisições supostamente válidas, após ganha a guerra e exercendo junto da população civil branca ou africana as mais variadas formas de propaganda e intimidação.
Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente (***) e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si.
Chegaram já de noite ao seu destino. O destacamento que ia substituir, já tinha partido, deixando uma secção para reforçar o seu pelotão desfalcado pela doença e combates.
A companhia já andava naquele território havia mais dum ano. Por esta razão quando viera para África substituir um alferes, a companhia já tinha um ano de comissão.
(*) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (890): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BCAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão