Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > O Fur Mil José Carlos Lopes posando ao lado da temível Browning, 12.7, uma metralhadora pesada.
Era uma arma devastadora, com uma cadência de 500 disparos por minuto e com um alcance, à superfície, de 1500 metros. Pesava cerca de 45 kg.
Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados
O Mistério do Extractor Perdido
Luís Cadete
Um patusco qualquer, com veia para o romance de terror, alcunhou-o de ANTECÂMARA DO INFERNO. E sempre que alguém fazia menção ao sítio, o pessoal a ele destinado arrepiava-se; depois de lá estar uns tempos, esquecia-se do facto e até fazia gala em dizer que por ali estanciava. Estar naquele sítio, muito para lá do sol-posto, que nem sequer Judas parecia ter pisado para ali perder as botas, era um posto, um penduricalho que mais ninguém tinha hipótese de alcançar.
De facto, o sítio ficava a meio de uma extensa e infecta picada, que parecia nunca estar reparada por mais que o pessoal, no intervalo das operações, se esforçasse por tal conseguir, a despeito dos 45º à sombra e da chuva diluviana, que convidavam ao ripanço, mas que o Capitão K*****, nado lá para o Alentejo profundo, além-Guadiana, não permitia. Quer se fosse para Leste ou para Oeste, as bolanhas a transpor, qual delas a mais larga, eram seis para um lado e doze para o outro, segundo o jornal-da-caserna. Uma havia, para Oeste, cuja travessia obrigava a manobras complicadas, demoradas e esgotantes, aquando dos reabastecimentos. De facto, para além de implicar a descarga dos abastecimentos dos Unimog 411 e seu transporte, a braço, para a margem oriental, para de novo serem carregados nas viaturas, necessário se fazia passar estas para a citada margem, sem descurar a segurança das operações de transposição da bolanha, o que era um bico-de-obra de todo o tamanho, que requeria engenho e arte. Graças a Deus, era coisa que não faltava ao pessoal daquela Companhia de Caçadores cuja experiência destas e doutras manobras já levava mais de ano e dia. E então, era assim.
À ordem do Comandante da coluna, avançava o Unimog com guincho cujo cabo era puxado para a margem oriental e abraçado a um frondoso e robusto poilão, que ali estava, quiçá, desde o tempo em que Deus ainda andava pelo mundo; logo que confirmado que a manobra estava executada a preceito, o condutor punha o guincho em marcha e a viatura lá avançava com todos os vagares, atasca aqui, desatasca acolá, auto-rebocada e empurrada, quando necessário, pelo pessoal. Seguidamente, fazendo inversão de marcha, fixava-se o Unimog com um cabo sobressalente ao poilão pelo engate da retaguarda e passava-se o cabo do guincho para a margem oposta da bolanha para rebocar as restantes viaturas, descarregadas, que o pessoal se apressava a recarregar para seguir viagem até à dita ANTECÂMARA DO INFERNO.
Claro que na estação do cacimbo, logo que as bolanhas secavam, a operação estava simplificada, salvo algum atascanso inesperado, que o solo da bolanha não era de confiança. Se não fora o «trabalho de estrada», como o Capitão baptizara as operações de reparação dos troços de estrada entre bolanhas e as operações propriamente ditas contra os quadrilheiros do PAIGC, que se intensificavam, a estação do cacimbo seria o descanso do guerreiro.
Malfadadamente, estava longe de o ser. Como era norma, os ditos aquartelamentos não possuíam pontos de água no seu interior, um poço, um furo que debitasse água potável em abundância sem esforço. Assim, com chuva diluviana e calor tórrido ou temperaturas amenas e céu azul, havia que realizar, quotidianamente, a «operação da água», que é como quem diz, era necessário ir com os dois atrelados-tanque de água e respectiva escolta até uma nascente situada a distância imprópria da ANTECÂMARA DO INFERNO para garantir o abastecimento do precioso líquido à Companhia. E o mesmo se passava para a lenha necessária ao funcionamento da cozinha onde pontificava o «chef» 1.º cabo cozinheiro M***** e seus ajudantes.
Todavia, a grande dor de cabeça do Capitão era o abastecimento de água, não só à tropa, mas também à população que com ela vivia numa simbiose perfeita. Segundo ele explicava aos seus oficiais, um poçozinho no interior da tabanca-aquartelamento que debitasse água potável com fartura e pouco trabalho era coisa muito mais importante para a contra-subversão do que uma dúzia ou duas de emboscadas e outros tantos assaltos às posições dos quadrilheiros do PAIGC.
Nesta convicção, quiçá pouco canónica, algum tempo depois de ali chegar e verificar a situação do abastecimento de água, como era homem dado a engenhoquices, imaginou canalizar a água da nascente para o interior da posição por intermédio de tubagem que vira ser utilizada para o efeito lá para os lados da sua terra natal. Segundo ele, abria-se uma trincheira entre a nascente e um dado ponto da tabanca para colocar a tubagem ao abrigo de eventuais acções do IN e estava a coisa feita; era só aterrar a trincheira e pronto, a água jorraria onde era necessária. Então, dirigiu-se aos seus superiores hierárquicos, expondo a questão e a sua importância, solicitando que a Engenharia fornecesse à Companhia os elementos da tubagem julgados necessários à obra. Os meses passaram-se, abateram-se dois quadrilheiros numa emboscada montada na nascente, levantaram-se mais umas quantas minas TM-46, que o pessoal era cuidadoso e eficaz nas picagens, e atacaram-se as organizações do inimigo existentes no sector, mas de Bissau nem novas nem mandadas.
O Capitão, que nunca ninguém vira sair do sério, mudou de estratégia: decidiu solicitar que a Engenharia ali abrisse um furo ou poço, explicando, novamente, a importância de tal melhoramento. Na volta do correio, coisa que o surpreendeu pela positiva, recebe a Companhia um avantajado envelope do Batalhão de Engenharia da Guiné dentro do qual um significativo número de folhas de papel explicavam, com bonecos e tudo, como a Companhia devia abrir um poço a pá e picareta! Quanto à deslocação da Engenharia e do equipamento adequado para a obra pretendida, era coisa fora de cogitação por inadequado. De facto, a distância era grande, as viagens de batelão incómodas, as minas um bico-de-obra e os mosquitos e a outra bicharada que inçavam o destino pouco convidativas eram para quem estanciava por Bissau com tudo do bom e do melhor.
O Capitão leu e releu a resposta, enfiou as manápulas cabeludas pela farta cabeleira castanha na qual já brilhavam alguns fios brancos, a despeito da idade, e começou a bufar. Levantou-se daquela coisa que lhe servia de secretária com as negregadas folhas na mão direita e saiu do edifício que lhe servia de gabinete e de secretaria à Companhia onde pontificava o 1.º sargento D*****, homem competente, honesto e ponderado, com vários anos de tarimba a responder por companhias. A bufar como bicho enjaulado, pôs-se a andar para cá e para lá e a falar sozinho. De repente, parou e num ataque de fúria que nunca ninguém lhe vira, com os olhos injectados, rasgou toda aquela papelada e lançou-a num dos tambores de recolha de lixo, que mandara instalar para não haver desculpas quanto à limpeza. Mais calmo, e como quem fala consigo, berrou:
- Como é que estes filhos-da-puta de Bissau se atrevem a sugerir-me que mande abrir um poço a pá e picareta se nem sequer tenho quem o saiba fazer nem material para o entivar e garantir a segurança do pessoal dentro do buraco? Estão a mangar com a tropa ou comem trampa?
A largas passadas entrou no gabinete, sentou-se à secretária e começou a redigir uma nota, daquelas de caixão à cova, que passou ao 1.º sargento D***** para que a mandasse dactilografar.
O 1.º sargento, que assistira à fúria do seu comandante, leu, pausadamente, o texto e, tirando-se dos seus cuidados, foi ao gabinete do Capitão. Este estava recostado na cadeira, calmo, com ar satisfeito com o que escrevera.
- O meu comandante dá-me licença? - disse o 1.º sargento.
- Entre, ó D*****, e já agora diga-me aí à ordenança que me traga uma bazuca fresquinha que me deu uma sede desgraçada!
Vinda a bazuca fresquinha e um copo, o D***** entrou de rascunho em punho e plantou-se em frente da secretária.
- O meu comandante vai-me perdoar o atrevimento, mas a minha consciência e a estima que tenho por Vossa Senhoria não me permitem mandar dactilografar este texto -, começou o 1.º sargento. - Se Vossa Senhoria me permite, passo a explicar.
O Capitão sorriu-se.
- Então explique lá, mas explicadinho, explicadinho para militar perceber -, respondeu o Capitão de boa catadura.
- Como Vossa Senhoria sabe tão bem ou melhor do que eu, a despeito da razão que assiste ao meu comandante, este texto é excessivamente violento, foi escrito com a cabeça quente. Vossa Senhoria, meu comandante, sabe que se isto seguir assim vai dar origem a um processo disciplinar que não vai resolver problema nenhum, mas vai prejudicar a vida de Vossa Senhoria, meu comandante, e, por tabela, a nossa companhia.
O Capitão debruçara-se sobre a secretária a escutar, atentamente, o que o seu 1.º sargento lhe ia dizendo, sem o interromper.
- Vossa Senhoria, meu comandante, sabe melhor do que eu que há aqui expressões ofensivas da hierarquia e que o RDM não admite - continuou o D***** a suar em bica. - Se Vossa Senhoria, meu comandante me permite, eu tomo a liberdade de pedir a Vossa Senhoria que reveja este texto. Vossa Senhoria é oficial do QP, sabe que eu tenho razão e que não lucra nada em insultar, embora eu não duvide da razão que assiste ao meu comandante, quem teve o topete de enviar à nossa companhia aquela papelada toda. Obviamente, se Vossa Senhoria reiterar a ordem, far-se-á como está escrito neste rascunho, mas quero que o meu comandante saiba que ninguém aqui está interessado em que Vossa Senhoria deixe a companhia e ainda por cima com uma porrada às costas.
O Capitão sorriu-se, um sorriso pleno de tristeza e profunda e insanável desilusão.
- Agradeço-lhe a frontalidade. Dê cá essa merda! - disse o Capitão estendendo a mão por sobre a secretária. - Responder-lhes assim ou assado é dar-lhes uma confiança que não merecem. Portanto, vamos fazer de conta que zurrou um burro. Espero contar sempre com essa sua frontalidade.
Como para a hierarquia era indiferente a construção do poço, melhoramento importante para a guarnição e para a população da tabanca, nem lá iria para ver a obra, o Capitão arrumou o assunto no cesto dos papéis.
Entretanto, para espanto do pessoal e desgosto da população que se afeiçoara àquela tropa, a hierarquia congeminou a rotação da Companhia para uma posição lá para o norte da Zona de Acção Sul próxima da fronteira com a La Guinée. Segundo constava, era sítio relativamente sossegado, com três ou quatro cantinas de libaneses que vendiam de tudo e mais alguma coisa, e instalações para a tropa de boa qualidade, cedidas por uma empresa com sede em Bissau e que ali exercera a sua actividade até ao início dos confuson, expressão que a população usava para designar a guerra. A preocupação do Capitão passou a ser o planeamento da rotação, que implicava entrega de todo o tipo de materiais da Companhia à que a iria substituir na famigerada ANTECÂMARA DO INFERNO.
Entre o material de guerra a entregar, cuja manutenção estivera a cargo do furriel de Armas Pesadas V*****, homem do Norte, rigoroso, competente, dedicado ao serviço e afeiçoado ao Capitão, estava uma metralhadora pesada Browning 12,7 mm m/951, que sempre cumprira a sua função sem falha alguma. A Browning fora sempre, tal como o restante armamento pesado de defesa do “aquartelamento”, uma máquina a debitar lume. Apenas os quadrilheiros do PAIGC, que teimavam em meter-se-lhe no sector de tiro, tinham razão de queixa.
Trocadas as Secções de Quartéis para a recepção do material e dois grupos de combate, a entrega e recepção dos materiais decorreu sem incidentes e, consequentemente, as Guias de Entrega foram assinadas por ambas as partes em rotação sem qualquer observação. E assim se completou a transferência das companhias, transferência essa que não agradou à nova Companhia da ANTECÂMARA DO INFERNO que, na realidade, passava de cavalo a burro. Coisas…
Ora, o capitão de Artilharia A*****, comandante da Companhia de Artilharia***** recém-transferida mais para o sul, decidiu que se desmontasse completamente a metralhadora para ser devidamente limpa, pois não confiava em quem lha passara, embora a tivesse visto a funcionar como um relógio e não tivesse tido dúvidas em assinar a respectiva Guia de Entrega após assistir à conferência do respectivo completo, prova de que tudo estava em ordem.
E descansou.
Descansou ele e a guarnição da metralhadora, dada ao ripanço, ao que parecia. E pelas três da madrugada do dia seguinte, sem se fazerem anunciar, os quadrilheiros do PAIGC flagelaram à grande e à francesa a nova companhia que, surpreendida com a novidade, tardou em responder com eficácia, permitindo que o inimigo fizesse estragos, nomeadamente na tabanca, o que caiu muito mal à população. Montada a toda a pressa no meio da escuridão, a já mais do que citada Browning não correspondeu ao que dela se esperava; ficou em silêncio, um silêncio inexplicável, porquanto toda a gente a ouvira cantar aquando da entrega.
Mal a aurora despontou lá para Oriente, verificou-se que faltava uma peça naquela máquina de cuspir ferro e fogo: nada mais nada menos que o extractor, segundo informação da ignara guarnição da metralhadora! E no relatório da flagelação, que fez seguir até ao topo da hierarquia, à falta de melhor justificação da ineficácia da resposta, o capitão A***** não hesitou em culpar a Companhia de Caçadores**** que lhe passara uma arma inoperacional, embora não tivesse tido dúvidas em assinar a respectiva Guia de Entrega sem observações que pudessem vir a justificar alguma falha posterior. E sem ter tido a hombridade de colocar a questão ao seu homólogo para que este, eventualmente, a resolvesse. Bem vistas as coisas, a falta de um extractor é questão de lana-caprina, que qualquer capitão sabe como resolver sem estardalhaço.
Ora, no Comando Militar, onde tudo parecia indicar que se percebia tanto de metralhadoras Browning 12,7 mm como de lagares de azeite, ninguém duvidou da narrativa do capitão A*****, manifestamente ressabiado com a rotação que lhe calhara em rifa. E vai daí, remete-se uma nota, confidencial-pessoal, ao capitão K***** para que respondesse à funesta questão do extractor, logo ali transformada em casus belli, à falta de melhor que demonstrasse o empenho do topo da hierarquia na satisfação das necessidades das companhias em sector. Claro que o assunto era um não-assunto, porquanto se havia uma peça em falta, ainda por cima coisa tão corriqueira como um extractor, bastava oficiar o capitão A***** para que o requisitasse ao Serviço de Material em Bissau e elaborasse o competente auto de extravio ou incapacidade do especioso extractor para apreciação superior ou, mais eficaz ainda, ordenar ao dito que enviasse um extractor à companhia que dele carecia. Mas não. A nota confidencial-pessoal pareceu ser a coisa mais eficiente e eficaz para resolver aquele caso bicudo do extractor alegadamente em falta e devolver, num abrir e fechar de olhos, a total operacionalidade à companhia do capitão A***** na defesa do “aquartelamento”.
Enquanto o pau ia e vinha, a companhia do capitão K***** estava entretida a reconstruir um abrigo que herdara derruído e a restaurar o espaldão do morteiro 8 cm que fora invadido pelo baga-baga e se encontrava inoperacional por herança, tudo isto e mais não sei o quê sem espalhafato nem relatórios lamurientos.
Face ao conteúdo da confidencial-pessoal, o capitão K***** rascunhou uma resposta cordata, que se resumia a explicar que, segundo o Manual de Funcionamento da Metralhadora Pesada Browning 12,7 mm m/951, esta arma não possuía extractor amovível que pudesse, consequentemente, extraviar-se ou danificar-se; de resto, a Companhia de Caçadores ***** possuía o duplicado da Guia de Entrega devidamente assinado sem observações, mas mais do que isso, a citada arma sempre funcionara durante a permanência da Companhia na anterior posição e voltara a fazê-lo durante a entrega do material na presença do capitão A*****. E ponto final.
Ao chegar ao Quartel-general do Comando Militar, a resposta à confidêncial-pessoal desencadeou uma verdadeira tempestade de comentários, qual deles o mais inadequado. O conteúdo daquele pedaço de papel, mais ou menos rectangular, era um escândalo! E por tal razão foi levado, com urgência, ao gabinete do Chefe da Repartição de Logística onde se encontrava o capitão G*****, recém-chegado à Guiné no comando da *****.ª Companhia de Comandos, a tratar de assuntos relacionados com a sua companhia aquartelada em Brá, uma pequena cidade militar entre Bissau e o aeroporto de Bissalanca. Para aumentar a confusão e dar opiniões do estilo «Eu acho que…», o chefe da Secção que recebera a resposta do capitão K***** fazia-se acompanhar de três ou quatro majores do CEM.
Posto o tenente-coronel do CEM chefe da repartição ao corrente da resposta e dos antecedentes, houve logo quem adiantasse que o subscritor além de «intratável» era fulano que «tinha a mania de que sabia mais do que o capitão A*****». Para aquela oficialidade altamente qualificada, era inconcebível que o capitão A ***** não soubesse o que dizia e, portanto, a malfadada Browning tinha mesmo extractor amovível que o capitão K***** sonegara na transferência do material! A resposta deste capitão não passava de um disparate, de uma heresia, de uma espécie de desculpa de cabo quarteleiro apanhado em falta, a necessitar de acção adequada ao despautério!
O capitão G*****, aluno brilhante da Academia Militar e não menos brilhante oficial da Arma de Cavalaria e dos Comandos, que fora apanhado no meio daquela tempestade sem nada ter a ver com a questão, era velho conhecido e amigo do capitão K***** e não deixou de se irritar com aquela vozearia que nada adiantava, porquanto não passava de um conjunto de opiniões pessoais não fundamentadas, logo subjectivas, arbitrárias e gratuitas, de achismos, que nada valiam perante o que constava do Manual, ou seja, sem qualquer suporte na chamada Doutrina. E resolveu entrar na dança.
- Vossa Excelência, meu tenente-coronel, vai perdoar-me, mas não pude deixar de ouvir a conversa. E conhecendo eu o capitão K***** como conheço, não tenho a mais pequena dúvida de que se ele diz que a metralhadora pesada Browning 12,7 mm m/951 não tem extractor amovível é porque não tem. De resto, o capitão K***** foi durante três anos instrutor de armas pesadas dos Cursos de Sargentos Milicianos. De qualquer forma, se me é permitido o atrevimento, esta questão não carece de discussão, não é uma questão de opinião, porquanto basta consultar o Manual a que ele se refere. E o que lá está é lei, salvo melhor, mais douta e abalizada opinião.
Um silêncio incómodo inundou o amplo gabinete do Chefe da Repartição e ficou a pairar, por alguns instantes, deixando ouvir o zunir do ar condicionado.
- Bem… - disse, finalmente, o Chefe da Repartição um tanto ou quanto contrafeito - Ó M*****, faça-me o favor de dizer à ordenança para ir à biblioteca e trazer o manual da Browning.
E toda aquela oficialidade aguardou em silêncio expectante a chegada do tira-teimas.
E foi a desilusão. Preto no branco, sem qualquer margem para dúvida, não se falava naquele caderninho de capa parda de qualquer extractor, amovível ou outro que fosse; a maldita metralhadora do descontentamento daquela oficialidade, ainda há pouco pronta a lapidar, se necessário fosse, o atrevido capitão K***** e a sua heresia, não tinha extractor amovível!
E de fininho, sem mesmo pedirem a licença regulamentar ao Chefe da Repartição, foram saindo de orelha murcha e rabo entre as pernas, deixando o capitão G***** tratar do que ali o levara.
Afinal, o execrado e execrável capitão K***** sabia mesmo o que dizia.
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quinta-feira, 11 de maio de 2023
segunda-feira, 9 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Aqui se põe termo a estas histórias e memórias com que Luís Cadete nos mimoseou, tudo decorreu naqueles vastos pontos da região Sul por onde ele terá andarilhado, diz ter passado 8 meses e meio em Mejo, todo o aliciante desta narrativa passa pelo rigor com que ele apresenta os diferentes locais, o modo como entremeia risos e lágrimas, dores e alegrias, felizes acasos e momentos funestos. Excelente contador, lamentarei se este livro não vier a conhecer uma reedição e divulgação que permita, a quem gosta de boa leitura que a literatura de guerra permite, esta oferenda de memórias que vêm enriquecer o que há de melhor na literatura memorial da Guiné.
Um abraço do
Mário
Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (3)
Mário Beja Santos
Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje
Mudemos de localidade, vamos agora às colunas de reabastecimento a Madina de Boé, do Gabu até à transposição do Corubal eram 60 quilómetros de mais estrada, a transposição do rio era um quebra-cabeças. “A cerca de 5 quilómetros do Ché-Ché a estrada bifurca-se: para a esquerda segue a picada para Béli, cerca de 40 quilómetros de poeira e buracos; para a direita, segue a estrada para Madina a mais de 25 quilómetros de distância. Madina de Boé era nessa altura uma tabanca reduzida à sua expressão mais simples, dominada a norte, Leste e Oeste – a não mais de 300/400 metros da tabanca – por duas linhas de alturas com cerca de 112 metros de altitude e cerca de 1500 de comprimento no sentido dos meridianos. A Sul, afastada mais ou menos 1000 metros, fica uma outra linha de alturas com cerca de 171 metros de altitude e cerca de 2600 metros de extensão, correndo no sentido Leste-Oeste e 1300 no sentido Norte-Sul que, qual triângulo isósceles, dá pelo pomposo nome de Dongol Dandum, de topo plano, careca, amplo e juncado de gravilha. Com a fronteira a pouco mais de 8 quilómetros, em linha reta, Madina passou a ser flagelada e atacada quase diariamente – quando não sucedia sê-lo várias vezes por dia – e, do alto das colinas que a enquadravam, o inimigo fazia tiro ao alvo, segundo se dizia".
Também não esquece de contar aqueles achados ditados pela boa sorte, caso daquela operação lá para os lados de Empada, um soldado ao aliviar a bexiga, reparou em algo que brilhava por baixo da cobertura. Meteu a mão àquilo que brilhava, apareceu-lhe uma espingarda AK, chamou os camaradas, tinha sido descoberto um depósito de armamento, dali saíram espingardas, metralhadoras, pistolas, minas e granadas de mão. Não esconde que terá sido um erro não se ter ocupado Salancaur, decisão tomada por Arnaldo Schulz, depois da ocupação de Mejo, aquele ponto era uma pedra no sapato das nossas tropas, e ele explica o porquê:
“Com cerca 400 metros no sentido Este-Oeste e o topo careca em forma de tampo de mesa, ligeiramente inclinado para Leste, Salancaur dominava uma vasta área em redor, nomeadamente o corredor de Guileje. É óbvio que a ocupação de Salancaur não impediria, em definitivo, as infiltrações do PAIGC, mas permitiria um melhor controlo da zona e forçaria o Inimigo a diligenciar itinerário alternativo. De encostas íngremes, exceto na ponta Leste, inçadas de matagal e de enormes poilões de tronco pregueado que davam proteção a ambos os contendores, Salancaur obrigava a nossas tropas a atacar a subir, coisa pouco agradável e que conferia vantagem manifesta às gentes do PAIGC.”
Tenho vindo a desenvolver estas pequenas histórias de Luís Cadete por as considerar muitíssimo bem elaboradas, por iluminarem a atividade militar desenvolvida nesta região Sul entre 1966 e 1968, tempos de Mejo, de Sangonhá e de Cameconde, posições que Spínola deliberou abandonar. Histórias de afetos, de dramas de guerra onde não falta a mina bailarina, o fornecimento de peixe e carne por expeditos nativos na pesca e na caça, as penosidades do abastecimento, havia que comer sem remissão o pãozinho com gorgulho; é manifestamente crítico com o abandono de certas posições, descreve a importância de Contabane, que depois de um ataque devastador, foi abandonada. As histórias multiplicam-se, andaremos entre Fulacunda-Buba-Catió, Aldeia Formosa, de Guileje a Gadamael, tudo enroupado com apreciações nem sempre positivas à burocracia militar, há notas soltas sobre obsessões de gente que só bebia água engarrafada, infidelidades conjugais, porventura com caráter autobiográfico será mencionada a aventura do cultivo de abacaxis que não surtiu efeito porque as cabras encontraram ali alimento. Sempre dentro desta linha que houve abandono de posições que se tornaram verdadeiras vitórias militares do PAIGC, volta-se a falar em Madina do Boé, e conta-se a história que havia para lá um corneteiro destemido que se punha em campo aberto a executar o toque de silêncio.
A última história que nos presenteia Luís Cadete é seguramente fidedigna, passou-se em Mejo e em 1966. Ouviu-se roncar motor de helicóptero, voava a Sul da estrada Guileje-Bedanda, notificou-se superiormente, e meses depois apareceu um outro helicóptero e ali aterrou, o piloto desfez-se em desculpas, confundira aquela pista com a de Boke. “Comunicado o facto superiormente, com o grau de prioridade máxima que a situação aconselhava, foi a Companhia informada de que a FAP iria tomar conta da situação. E cerca de quinze minutos depois havia dois T-6 sobre a pista e pouco depois um helicóptero.” Era um Antonov An-2, soviético. O aparelho levantou voo escoltado pelos T-6 e terá seguido para Bissalanca. Lá na Companhia não se soube mais nada, abateu-se um manto de silêncio. “Uma aeronave estrangeira, oriunda de um país apoiantes ostensivo do PAIGC, sobrevoara parte considerável do território português em guerra e dera-se ao desplante de nele aterrar sem que ninguém o referenciasse nem a FAP o intercetasse. E isto em pleno dia, com excelentes condições atmosféricas e não menos excelentes e extensa visibilidade!”
Insista-se que se trata de leitura imperdível.
Guileje, 1973
Numa vala no quartel de Guileje, CCAV 8350 ‘Os Piratas de Guileje’, imagem retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia____________
Notas do editor:
Postes anteriores de:
26 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)
2 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)
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segunda-feira, 2 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
É inequívoco que o coronel Luís Cadete não incorre na prosápia de escrever memórias para as candeias da História, o que ele nos lega é uma diversidade de situações que ajudam a iluminar uma importante região da Guiné em guerra, num período que vai de 1966 a 1968. Creio que é a primeira vez que temos uma água-forte de Mejo e a sua importância no chamado corredor de Guileje onde, igualmente, se irá implantar, no final da governação de Schulz, o octógono de Gandembel; dá-nos o conhecimento das etnias ali conviventes, nesta vasta região onde ele fala de Aldeia Formosa, de Fulacunda, de Buba, das operações de reabastecimento e das singularidades do dia-a-dia. Confessa abertamente que nutria um certo desdém por certas chefias, faz brilhar gente valorosa, heróis anónimos, e sabe prender a nossa atenção em descrições manifestamente dolorosas, como veremos mais adiante, com o incêndio de Contabane, não poupa críticas ao então comandante-chefe, Spínola, pelo abandono daquela posição. Ainda há muito mais para dizer. Teimo que este livro merece muito mais do que a curtíssima edição que lhe destinaram.
Um abraço do
Mário
Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (2)
Mário Beja Santos
Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje
A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses.
São histórias soltas, como diz o autor, “fruto das minhas recordações e de conversas tidas com camaradas em volta da mesa”, e não será por acaso que se cita Eça de Queiroz: “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia”, isto para recordar que nem sempre estamos em Mejo, saltitamos por vários lugares, aliás a estadia em Mejo não chegou aos 9 meses, e vale a pena recordar que muito mais tarde (1988-1991) Luís Cadete desempenhou funções como Adido de Defesa junto das embaixadas de Portugal em Bissau, Dacar e Conacri.
Privilegio algumas das suas descrições, pelo rigor e luminosidade. Um exemplo:
“É Buba uma quase península nas cabeceiras do Rio Grande de Buba, vasta massa de água salgada que ali chega, em sucessivas e intricadas ramificações, vinda do mar.
Sede do comando do Batalhão, tinha anexa uma tabanca com numerosa população que vivia da pesca e de serviços prestados à tropa ali aquartelada.
Militarmente, estava exposta à observação e ao tiro direto do inimigo, facto assombroso que constituía um violentíssimo pontapé nas normais mais elementares da Tática.”
Não esconde juízos implacáveis a comportamentos de seus superiores, como escreve a propósito da visita do General Schulz a Aldeia Formosa, sai do helicóptero e conversa com a figura grada da população civil, o Cherno Rachide Djaló, este apresenta-se imponente na sua elevada estatura, de balandrau e solidéu imaculadamente brancos, o governador pergunta a esta entidade espiritual o que é que o povo da Aldeia Formosa precisa, Rachide Djaló responde em Fula: “Havia aqui, antes da guerra, um posto sanitário e uma maternidade que foram fechados sem o povo perceber qual a causa. Precisamos muito do posto e da maternidade a funcionarem e precisamos também de escola para os meninos. Queremos que nos mandem professores, mas não padres, porque já temos religião. A tropa desta companhia fez um posto médico na tabanca, com camas da tropa, mas não chega; precisamos de médico. É isto que nós precisamos.”
É igualmente preciso a falar da topografia de Mejo e vizinhança:
“Sobe-se para o planalto a partir da bolanha do lado de Mejo, por uma rampa curta, mas íngreme, que dá acesso a uma reta que desemboca diretamente na pista da tabanca e aquartelamento de Guileje.
Daqui desce-se, suavemente para o entroncamento desta estrada com a que vem de Gadamael Porto e segue para a chamada Ponte do Balana, nome do curso superior do rio Cumbijã, a Norte; do topo da pista oposto a Guileje, que se desenvolve num esporão do planalto, desce-se para as numerosas e labirínticas ramificações do rio Cacine de densa vegetação, a Sul; para Norte, coberto de mato denso, estende-se o planalto cortado pelo Cumbijã do qual se sobe, de novo, para outra zona planáltica onde se situam Contabane, Aldeia Formosa (Quebo) e Mampatá.
À esquerda de quem desce para o cruzamento, a cerca de 300 metros, encontra-se uma nascente onde a Companhia de Guileje se abastecia de água e que também dessedentava grupos de terroristas que por ali passavam.”
As suas memórias, inevitavelmente, também se orientam para aqueles episódios burlescos que mais ou menos quem esteve no mato provou, caso do aparecimento repentino da cobra, a bravura anónima de um bazuqueiro, o desespero de se chegar ao quartel e se descobrir que falta uma secção, o caricato de certas reuniões com o corpo do Estado-Maior, com as suas ninharias e inequívoca falta de conhecimento do terreno, a chegada de um oficial do quadro permanente que vinha confortado com gira-discos e canções da moda, os desastres do fornecimento, em que se pedia x de uma quantidade de carne de vaca e apareceram 50 quilos de queijo flamengo, as teimosias do régulo Sambel Baldé, de Mampatá Bacirgo que não tinha problemas de passar a fronteira e punir quem lhe vinha beliscar a vida no regulado. Histórias muito bem contadas que deliciarão não só os antigos combatentes.
Mas vê-se que o autor tende prescrever águas-fortes de locais por onde passou, e dá-nos informações cuidadas, extremamente úteis para quem vier a fazer a historiografia de todos estes locais por onde a guerra grassou e como cada um se posicionou:
“[Quebo] Região eminentemente Fula há vários séculos, nela pontificava o velho régulo Baró Baldé cujo irmão, Leonel, era professor primário, lecionando na residência a expensas suas. Era também sede do chefe espiritual da nação Fula, o famoso e muito respeitado Cherno Rachide Djaló, homem entendido nas coisas do Corão. Quanto mais não fosse, só por isto, Quebo era terra importante, até do ponto de vista estratégico, na guerra que se travava na Guiné.
Naquela vasta e importante região que se estendia, a Sul do rio Corubal, entre os limites ocidentais do regulado de Mampatá e a fronteira com a República da Guiné, vivia-se, nessa altura, em paz. Dizia-se, lá pelos QG de Bissau, e não só, que essa se situação se devia à presença de tão prestigiada figura, mesmo além-fronteiras, como era o Cherno Rachide Djaló. Dizia-se que atuar na citada região seria prejudicial à estratégia do PAIGC. Ou seja, o Cherno era um dos elementos da estratégia do comandante-chefe para a região. Daí, quiçá, os fracos meios atribuídos. De resto, os quadrilheiros do PAIGC só atuavam, ocasionalmente, no regulado de Cumbijã, mais próximo do rio do mesmo nome, a Sul.
Mas nem todos acreditavam naquela interpretação, e com razão como se viu em finais de 1968, durante o consulado do general Spínola. E os primeiros a não acreditarem naquela interpretação eram os régulos, nomeadamente o de Contabane.
E tinham razão para tal.
Como muito bem sabiam as altas-chefias, porquanto as informações fluíam dos régulos e do Cherno para o comando de Companhia e deste para os escalões superiores, há muito que os terroristas, ao mais alto nível político-militar, rondavam a zona para lá da fronteira, reconhecendo o terreno em busca do melhor sítio para se instalarem.”
O autor, quando necessário, não deixa de referir o horror e os padecimento da guerra, caso daquele furriel B, dotado de espírito de missão que fora apanhado em cheio pela deflagração das granadas e projetado de costas alguns metros de distância: “A calote craniana saltara-lhe da cabeça, deixando entrever a massa encefálica; no trono eviscerado, apenas o coração teimava em pulsar pendurado da aorta; dos braços, apenas os úmeros, descarnados, recordavam terem existido ali os membros superiores, enquanto as artérias femorais, meio desbridadas, esguichavam qual repuxo num filme de terror.”
O capitão Nuno Rubim, nosso confrade, comandante de Companhia em Guileje, 1966
Aldeia Formosa em tempos de guerra, com a pista de aviação ao fundo. Com a devida vénia a José da Mota Vieira
Cherno Rachide, Aldeia Formosa, 1973, festa Fula da matança do carneiro, fotografia do nosso estimado confrade Vasco da Gama, ele está perto dessa grande figura espiritual(continua)
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Nota do editor
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Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23930: Notas de leitura (1538): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (10) (Mário Beja Santos)
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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Ficarei imensamente grato a quem me puder ajudar com informações sobre a CCAÇ 1591 e Mejo. Quando li "Vindimas no Capim", escrito pelo nosso confrade José Brás, encontrei algumas referências a Mejo, mas fiquei-me por aqui. É uma grande surpresas, esta literatura memorial do Coronel Luís Cadete, chegou à Guiné ainda tenente, aqui foi promovida a capitão, vê-se à vista desarmada que aquela terra vermelha se tornou inesquecível, como aliás ele escreve na introdução:
"Mejo foi, no fim de contas, o nosso primeiro amor na Guiné e ainda hoje temos saudades dele, pois puxou por tudo quanto tínhamos de melhor para ultrapassarmos as dificuldades inerentes a uma situação de campanha."
É um livro que não merece ficar confinado a uma pequena edição, não é justo. Há por vezes ressaibos, ajusta contas com a sua própria instituição militar, maldiz a incompetência, mas até apetece recordar a frase icónica de Álvaro Guerra de que aquela terra foi um permanente avolumar de dores e inquietações, mas foi ali que se selou a nossa têmpera pelos anos vindouros.
Um abraço do
Mário
Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (1)
Mário Beja Santos
Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje
A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Nunca li uma introdução a um ambiente tão poderosa e tão viva como Luís Cadete faz de Mejo, a ninguém pode deixar indiferente prosa tão precisa, uma demonstração de um olhar tão fecundo, lembra um geógrafo, um antropólogo, um etnólogo:
“A tabanca que dava pelo nome de Mejo situava-se, sensivelmente, a 9 quilómetros de Guileje, na estrada para Bedanda, na bifurcação para Salancaur Fula, colina com cerca de 110 metros de altitude com o cume em forma de tampo de mesa ligeiramente inclinado para Nascente, com o ponto mais elevado a Poente.
Esta colina, restos de formação rochosa de maior vulto dissolvida pelas chuvas diluvianas e ácidas do Pluvial, há vários milhões de anos, domina vasta extensão do rio Cumbijã que lhe corre a Norte. Com as encostas cobertas de grandes poilões e mato rasteiro, é um ponto de referência importante num território predominantemente plano. A vastíssima bolanha do Cumbijã dava arroz em quantidade que, antes da guerra, quer a Casa Gouveia, representante da CUF no território, quer a Sociedade Comercial Ultramarina, vinham comprar, na época própria, ao cais existente na margem direita, isto é, fronteiro a Salancaur e do outro lado do rio.”
Manifesta o autor a preocupação de que o leitor se insira naquele espaço e até naquele tempo, é um observador cuidado, quer manifestamente que o leitor ponhas os pés naquela terra de combate e em voo picado estamos em Mejo:
“Do ponto de vista militar, Mejo era um retângulo de 100 por 110 metros de lado que dependia da companhia de Guileje que aqui tinha um pelotão para garantir um mínimo de proteção à população regressada. A CCAÇ 1591 foi a primeira a estanciar por lá por 8 meses e meio. Sem instalações para alojar o efetivo da companhia mais os do pelotão destacado de Guileje, os primeiros meses foram vividos em tendas cónicas carcomidas pelo sol e pelas chuvas da Guiné. Os buracos eram tapados por rolhões de capim enquanto se trabalhava no fabrico artesanal de tijolos para a construção de casernas. Quando a CCAÇ 1591 arribou a Mejo, cuja má fama corria infrene por todos os cantos da Guiné, só se via capim verde e alto como um homem de pé, não só no exterior, mas também no interior da posição. Embora pareça inconcebível, aqui andava-se por trilhos ladeados de capim!”.
Segue-se a descrição da população civil e do armamento rudimentar da unidade dependente do comando de batalhão de Buba, ficamos a saber que a população de Mejo era da subetnia Futa-fula, mas não faltavam Fulas-forros.
Não se compadece, tem comprovadamente a memória bem acerada, com as jigajogas do decisor militar e muito menos com as manhosices burocráticas. Qual a importância de Mejo? Fazia parte de um plano de operações que tinha como objetivo principal a ocupação da colina de Salancaur, plano que se iniciara alguns meses antes da chegada de Schultz, concebido pelo comandante militar, pois a primeira medida de Schultz foi cancelar toda a atividade operacional determinada por este comandante. “A ordem alcançou a tropa quando esta já marchava rumo a Salancaur com o Pelotão de Reconhecimento Fox de Guileje a abrir a progressão, nunca mais se pensando em acabar algo que fora bem pensado.”
Mesmo a descrição da chegada da CCAÇ 1591 tem toques de originalidade, houve para ali umas trocas a baldrocas no quartel-general, estavam à espera de outra unidade, o Tenente Luís Cadete é mal recebido por aquela burocracia que tinha a inteligência de uma porta ondulada, lá vão para Brá, metidos numa caverna devoluta sem camas, andaram a fazer carreira de tiro em Prábis e depois metidos na LDG Montante, rumo a Fulacunda. Vão agora começar histórias galhardas, pícaras, de entremeio com lembranças afetuosas, algumas delas, garanto a pés juntos, merecia ser reproduzidas aqui por inteiro. Convém que o leitor não se esqueça que estamos em 1966, o corredor de Guileje ainda não assumira a dimensão infernal com que hoje é por muitos lembrado.
No pórtico das lembranças temos a paixão de Mariama, a bajuda mais bela da tabanca, Luís Cadete burila a quintessência da beleza:
“O corpo era escultural, de fazer inveja à estatuária da Antiguidade Clássica. Tinha um par de pernas deslumbrante, bem torneadas e esguias e a mama alta, firme, delicadamente cheia, como eu nunca vira nem voltei a ver outra e que, conforme à tradição, trazia em liberdade franca; a pele escura de tom avermelhado era acetinada, quente e glabra sem imperfeições. Quando ela passava no seu passo elástico e elegante a caminho da Fonte das Mocinhas – nome pelo qual era conhecida a nascente permanente situada a Sul da estrada para Buba e à entrada da tabanca –, sorrindo de olhos baixos aos piropos do pessoal, ninguém havia na Companhia que se não virasse para a ver passar.”
Mariama apaixonou-se pelo soldado D, rapaz sossegado, disciplinado e respeitador, nado e criado lá para as bandas da Lousã. E era correspondida. E não falta uma pitada forte de romantismo para adubar o romance:
“A Mariama e o D namoravam ao arame farpado e era um regalo vê-los conversando horas a fio sem que se descortinasse o que tanto tinham para segredar um ao outro. Dos olhos da Mariama, a ternura daqueles momentos via-se escorrer ao acariciar o rosto do D. E eu, romântico contumaz, nunca fui capaz de proibir aquelas manifestações de um amor impossível, dadas as circunstâncias.
E, durante cerca de quatro meses, aquele amor entre os dois encheu de ternura quantos viam o D e a Mariama no seu enlevo casto e puro ao arame farpado.”
Vieram os comentários libidinosos, nosso capitão não estava ali para os ajustes, lembrou a Mariama aquela evidência de que qualquer dia o D se ia embora sem consequências, era melhor que ela se protegesse para o futuro, e o final deste episódio é mesmo inesquecível:
“Olhou-me com um certo ar de desafio como quem sabe muito bem o que fazer e enquanto uma lágrima teimosa lhe corria pela cara abaixo respondeu-me, fitando-me nos olhos com o seu quê de desafio:
- Hora di D bai, nó na dita i n’bai faziu sabi toc i D cá esquíci Mariama (quando o D se for embora, vamo-nos deitar e fá-lo-emos e o D nunca esquecerá a Mariama).
Foi assim?
Só eles o saberão.”
Prepare-se o leitor para muito mais.
Aquartelamento de Mejo, imagem de Alberto Pires, com a devida vénia
Outra imagem de Mejo, também de Alberto Pires
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)
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