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domingo, 1 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18799: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 59 e 69: vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio em setembro e outubro de 1973... Faz circular pelo quartel um texto a apelar a uma maior união dos "serrotes", numa crítica implícita ao capitão, por quem não morre de amores... Sabe, por fim, da declaração unilateral da independência do território através da Rádio de Argel...



Guiné > Uma propaganda pérfida e cínica, a do regime de Salazar-Caetano, que criou nas populações africanas a falsa (e trágica) ilusão de que eram portuguesas, tão portuguesas como os minhotos ou os alentejanos; por outro lado, minimizou e desprezou os combatentes do PAIGC, reduzindo-os ao estatuto de pobres mercenários, por conta de interesses estrangeiros, a quem se podia estender facilmente uma nota de 1000 pesos em troca da sua rendição e da entrega da sua arma...

Trata-se de material (muito pobre e tosco, muitas vezes escrito em português e não em crioulo...) de propaganda das NT, documentação essa  recolhido pelo nosso grã-tabanqueiro da 1.ª hora, o ex-1.º cabo enfermeiro José Teixeira (CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70), régulo da Tabanca de Matosinhos...

Fica-se na dúvida sobre o público-alvo: os pobres soldados e quadros milicianos a quem era preciso incutir e reforçar permanentemente a ideia de que, na Guiné, era a Pátria que estava em perigo; ou os os coitados dos guineenses, que nem sequer sabiam onde ficava Lisboa e quem era o homem grande de Lisboa...

Fotos (e legenda): © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.


2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xxv) vê, pela primeira vez. enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; mada um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão por quem não morre de amores...


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 57 e 58

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


59º Capítulo  > AS NOTAS DE IMITAÇÃO E A PSIQUE

É apenas em finais de Agosto [de 1973] que me refiro a um pequeno acontecimento relacionado com a guerra.

Um grupo de milícias (nome dado a combatentes locais voluntários) veio participar connosco numa operação e é nessa altura que me apercebo doutra espécie de guerra. A guerra psicológica. Saibam o que levaram para o mato.

26 de Agosto de 1973:

“Como normalmente faço quando completo mais um mês aqui te envio um postal que acho encantador, espero que gostes também. Essa imitação é de uma nota de mil escudos da Guiné, é para guardar como recordação. Essas notas são feitas para serem espalhadas pelo mato para convencer alguns “turras” a entregarem-se, é uma das psicologias adoptadas pelo nosso governo a ver se convencem que o nosso lado é melhor”.

Esclareço que essa nota pedia aos homens do mato para se entregarem às tropas portuguesas e entregarem a sua arma, em troca de dinheiro e comida.

(Tive o prazer de oferecer a nota de mil escudos, a que me refiro, ao núcleo de ex-combatentes da cidade da Lixa, concelho de Felgueiras, estando exposta na sua sede).

Rapidamente voltei à música e à literatura.

O Silva, o tal de Almada mas que eu dizia ser de Lisboa, foi telegrafista. Era o tipo do Racal. Foi com ele que comecei a gostar de Lisboa, indo ao ponto de mesmo hoje lamentar não viver na capital.

Conversávamos muitas vezes sobre a diferença entre a cidade e a aldeia e não minto se disser que também com o Silva de Lisboa ou de Almada,  como queiram, aprendi a desenvolver-me em alguns aspectos, de forma a evoluir intelectualmente. Foi ele quem me pôs a ouvir Isaac Haies [1942-2008]e a gostar de Soul, Blues e Jazz. Também com ele aprendi o código dos radiotelegrafistas. Um Alfa Bravo para todos.


60.º Capítulo > INACREDITÁVEL

Registado no meu mapa de correspondência, em Setembro de 1973, e só para a Amélia, enviei 33 cartas e aerogramas, além de um postal de aniversário. Ela não recebeu nenhuma correspondência.

Em Outubro do mesmo ano, enviei 34; ela recebeu 5.

Não posso afirmar categoricamente qual foi a razão do desaparecimento do meu correio, mas tudo se vai complicar para mim e creio que, para todos nós, após eu ter enviado para o jornal O Século um artigo de opinião da minha autoria.

O texto não foi publicado no jornal e nem sei se lá chegou. Mesmo assim, decidi divulgá-lo pelo quartel. Foi este texto.

CONVERSAS EM FAMÍLIA.

Fulacunda Guiné

Nós precisamos de apoio moral, não queremos ser uma “série” que dominada, apenas trabalha com as pernas, precisamos de nos sentir apoiados e livremente dirigidos.

Nós temos receio de expor problemas, porque nos sentimos coibidos na presença dos nossos superiores e então, exteriorizamos em massa; apoiando-nos uns nos outros aquilo que sentimos.

Os nossos superiores em minha opinião, deviam dizer “os meus homens” mais vezes, mas como um pai diz “os meus filhos”.

A nossa família é de facto uma família? Se é, porque não temos mais conversas?

A hierarquia militar não nos permite um lugar-comum. No entanto haveria a meu ver, uma melhor ligação entre superiores e subordinados se os primeiros vivessem mais de perto com os seus homens.

Não haverá possibilidades de uma Maior união entre todos os “Serrotes”?

Será muito pedir que sejamos tratados como homens que somos?

União na terra entre homens de boa vontade.

José Claudino da Silva 

1.º Cabo N.º 158532/71

PENSEM E ACREDITEM SE QUISEREM! O CASTIGO POR CAUSA DISTO FOI MUITO GRAVE.

Em Outubro de 1973 eu soube, através duma rádio, que diziam emitir de Argel, que a Guiné tinha declarado a independência no dia 24 de Setembro de 1973 em Medina do Boé. Se assim fosse, eu estava a lutar num país estrangeiro.

Sem precisar de transcrever nada, tal a irrelevância do que escrevi nesses dias, somente um caso que na altura me pareceu um tanto ou quanto invulgar. Quero partilhar:

“Antes de te falar romanticamente quero informar-te que hoje veio aqui um helicóptero e nele vinham duas moças pára-quedistas brancas foram para uma operação no mato e por causa do nevoeiro tiveram de aterrar aqui. Com estas duas, são três as mulheres brancas que vi em Fulacunda. Quando puderam partir levaram correio, espero que desta vez recebas”.

Pela primeira vez fiquei a saber que na Guiné havia mulheres pára-quedistas a intervir em combate.
_________________

Nota do editor:

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18558: Efemérides (275): O 25 de Abril de 1974... visto de Bissau, através de aerogramas enviados por Jorge Gameiro ( REP / ACAP / QG / CC) à sua esposa Ana Paula Gameiro e ao seu filhinho Nuno Gameiro... Documentação comprada no OLX, há 5 ou 6 anos (Carlos Mota Ribeiro, Maia) - Parte II

Carlos Mota Ribeiro... Foto da
sua página no Facebook.
1. Continuação da publicação dos aerogramas de Jorge Gameiro [ REP / ACP / QG /CC, Bissau, 1974],  relativos aos acontecimentos pós-25 de abril... Cópias desses aerogramas foram-nos enviadas pelo leitor (e futuro membro da Tabanca Grande, Carlos Mota Ribeiro, engenheiro, residente na Maia, filho do nosso querido amigo, camarada e coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; estes documentos foram comprados por ele há 5 ou 6 anos no OLX.

Os aerogramas (o primeiro datado de Bissau, 30/4/1974) (*) eram dirigidos à esposa do Jorge Gameiro, Ana Paula Gameiro. O casal tinha um filho de tenra idade, Nuno Gameiro, cujo paradeiro o Carlos Mota Ribeiro gostaria de poder descobrir para lhe poder oferecer esta correspondência que ele provavelmenmte nunca terá lido. Como nos ex0licou o Carlos Mota Ribeiro:

(...) Em relação aos aerogramas comprei-os a alguém no OLX, já foi há uns 5 ou 6 anos e não me recordo do nome da pessoa que mos vendeu, lembro-me que os comprei por terem o sentido histórico do 25 de Abril de 74 e os achei muito interessantes.

Como tenho um colega britânico que se interessa pela Revolução dos Cravos, enviei-lhe as fotos dos aerogramas com a tradução em inglês para ele dar uma leitura e compreender o sentimento que alguns jovens tinham naquela época e naqueles dias conturbados.

Quando estava a transcrever o mencionado no aerograma, fiquei a pensar no Nuninho (Nuno Gameiro) do aerograma e do carinho daquele pai pelo filho. Por isso entrei em contacto contigo para tentar encontrar o tal Nuninho e lhe fazer chegar a meia dúzia de aerogramas que tenho, enviados pelo seu pai, da Guiné Portuguesa para a Metrópole.

É claro que apenas lhos vou oferecer, se o Nuno Gameiro quiser esta recordação dos pais, pode nem querer saber deste assunto ou não dar qualquer valor sentimental aos aerogramas, mas como para mim este tipo de itens tem muito valor e são documentos que considero históricos, guardo-os religiosamente na minha coleção particular sobre o Ultramar Português. [...]




Primeira parte do aerograma datado de Bissau, 6 de maio de 1974

2. O segundo aerograma, datada de Bissau, 6 de maio de 1974, é a seguir reproduzido:

Bissau 06.05.74

Minha Paula, meu amor:

Ontem também não tive cartinha tua, estou morto por receber notícias tuas depois do dia 25 [de Abril], agora com este atraso até tenho medo que te tivesse acontecido alguma coisa,  ao seres por exemplo apanhada de imprevisto nalguma manifestação.

Não me sai da cabeça o que os Pides fizeram para culminarem a sua tão nojenta e porca atuação,  disparando uma rajada de metralhadora de uma janela da sua antiga sede [na] Rua António Maria Cardoso, rajada essa que foi ferir mortalmente 4 jovens e um trabalhador que ali se encontravam. Além disso ainda deixaram feridas 40 e tal pessoas.

Mas não,  também penso que,  se não tenho recebido cartinha tua,  é com certeza devido ao atraso dos correios normal que inicialmente [...] assim como os aviões chegaram a estar paralisados, mas amanhã talvez tenha mais sorte. 

Hoje pela primeira vez me chegaram às mãos jornais e um Século Ilustrado com imagens coloridas do que foi o primeiro 1.º de Maio Português e, palavra, ultrapassou toda a ideia que eu tinha. Já ouvi também ontem pela primeira vez o hino à libertação portuguesa do 25 de Abril,  “Agora o Povo unido jamais será vencido”. 

Acabei também agora de ouvir algumas declarações de Manuel Alegre para a Voz da Liberdade,  aliás BBC. Pois a Voz da Liberdade,  agora com o retorno de Manuel Alegre,  terminará os seus trabalhos já que agora os meios de informação e comunicação são totalmente livres,  deixa de ser necessária a presença de uma rádio clandestina. 

Li também uma notícia onde se adivinhava um congelamento das rendas de casa até se definir e resolver finalmente o problema da habitação, e é bom que essa exploração termine bem depressa pois assim, e assim será mais um grande beneficio, um enorme bem para o nosso inicio de vida. Não é,  amor querido? 

Quanto ao problema do ultramar continua a não ser bem definido,  ouvi a conferência de imprensa dada pelo General Gomes da Costa,  esperemos pois pela Assembleia Constituinte que será eleita até meados deste mês, vamos lá a ver, as opiniões divergem e deixam uma pessoa,  que está aqui,  totalmente confusa. Esperemos mais algum tempo.  pelo menos o cessar-fogo imediato já era um grande passo em frente, assim terminaria a morte estúpida e sem justa causa dos homens que...

(Continua)

Fotos (e legendas): © Carlos Mota Ribeiro (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

[Revisão e fixação de texto: Carlos Mota Ribeiro / Luís Graça]

Translation to English:

Bissau 06.05.74
My Paula, my love:
Yesterday also I did not have your letter, I am dead to receive news of you after the 25th, now with this delay until I am afraid that something happened to you, for example, caught unexpectedly in some manifestation, I do not go out of my head what the PIDEs did to culminate his disgusting and sordid performance by firing a blast of machine-gun from a window of his former headquarters Rua António Maria Cardoso, a blast that was mortally wounded 4 young people and a worker who were there besides left 40 injuries and such people , but I also do not think that if I have not received your letter is certainly due to the delay of the normal post office that initially as the planes came to be paralyzed, but tomorrow may have more luck. Today, for the first time, newspapers have come to my hands and a century illustrated with colorful images of what was the first of May. Portuguese and word surpassed the whole idea that I had, I also heard yesterday for the first time the anthem to the Portuguese liberation of the April 25 "The united People will never be defeated." I also just now heard some statements from Manuel Alegre for the voice of freedom alias BBC. For the voice of freedom now with the return of Manuel Alegre will finish his work since now the means of information and communication are totally free is no longer necessary the presence of a clandestine radio. I also read a story where one could guess a freeze on household incomes until finally defining and finally solving the problem of housing, and it is good that this exploration ends very soon, as it will be a great benefit, a great good for our beginning of life. Is not that sweetheart? As for the problem of overseas continues to be not well defined I heard the press conference given by General Gomes da Costa hopefully then by the Constituent Assembly that will be elected until the middle of this month, let's see, opinions diverge and leave a person who is here totally confused, let's wait some more time at least the immediate cease-fire was already a big step forward, so would end the stupid death and without just cause of the men who...

[To be continued]

[Translation by Carlos Mota Ribeiro]
_____________

Nota do editor:

(*) Últiimo poste da série > 24 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18557: Efemérides (274): O 25 de Abril de 1974... visto de Bissau, através de aerogramas enviados por Jorge Gameiro ( REP / ACAP / QG / CC) à sua esposa Ana Paula Gameiro e ao seu filhinho Nuno Gameiro... Documentação comprada no OLX, há 5 ou 6 anos (Carlos Mota Ribeiro, Maia) - Parte I

segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18380: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 30 e 31: Se forem para a guerra, acabem com os namoros!


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) >  Beldades de Fulacunda: bajudas biafadas

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita]

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. É vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa,, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura.  Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade. José Claudino da Silva,

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook: é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia



2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 30 e 31

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]]


30º Capítulo  > ENTRE FULACUNDA BULA OU BINAR

Dia 16 de Novembro de 1972 foi o dia do meu despertar. Confesso-lhes sinceramente que, neste instante, as lágrimas invadem os meus olhos. Precisei de muitos anos, 45, para reler o que vos vou relatar. O aerograma começa assim.

“Minha doce e amada Melly. Nem sempre me é possível calar que te amo loucamente, pois o amor é um sentimento estranho que subjuga e domina aqueles que dele dependem, por isso eu em dias como o de hoje sinto um frémito de emoções a percorrer-me o corpo.

Como te tinha dito veio uma avioneta para evacuar um soldado, mas de repente chegaram aqui seis helicópteros da força aérea. Dois pelotões nossos estavam no mato e soube que mais uma vez colaboravam connosco pára-quedistas e comandos, também estiveram envolvidos quatro caças Fiat e dois bombardeiros. Durante toda a manhã não se ouvia outra coisa que não fossem bombas a rebentar. o combate desenrolou-se a cerca de 10 quilómetros daqui. Não sei se houve mortos ou feridos pois não nos informam, talvez logo saiba na rádio Argel porque o locutor dessa rádio, sabe tudo que se passa na Guiné e o da nossa emissora não sabe. Por exemplo: Na estrada que liga Bula a Binar um grupo de “turras” que eles dizem são o P.A.I.G.C. (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) atacaram uma camioneta, mataram 10, feriram 14 e raptaram mulheres e uma criança. Os nossos dizem que eram civis os que morreram e na rádio Argel dizem que eram militares. Não sei em quem acreditar! Também os nossos dizem que matamos 18 “turras” e ferimos muitos e nem sei se é verdade. De concreto só o barulho dos aviões e das bombas a rebentar, já passaram umas horas e ainda tenho esse som nos ouvidos.”


De repente, o amor estava misturado com a guerra. Prezo-me porém de ter escrito muito mais vezes a palavra amor que a palavra guerra. Sem qualquer dúvida, o amor venceu.

No dia seguinte, na tabanca, houve “Manga de ronco” (em crioulo significa “muita festa”). Voltámos a rir ao som do batuque, em vez de chorar ao som das bombas.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Capa do jornal de caserna, mensal, "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


31º Capítulo  > SE FOREM PARA A GUERRA, ACABEM COM OS NAMOROS

O melhor mesmo é ir estudar.

O jornal da companhia ["O Serrote", dirgido pelo alf mil Jorge Loureiro Pinto, nosso grã-tabanqueiro] começou a sair e, embora eu escrevesse vários textos e versos a que chamava poesia, sabia que na companhia havia gente muito mais letrada que eu, especialmente alferes e furriéis. Destaco o alferes Pinto. (Como isso mudou! Hoje, qualquer sem-abrigo tem mais conhecimentos do que eles). Surpreendi-me por alguns dos meus textos serem publicados e, mais uma vez, tive a sorte de encontrar as pessoas certas. Professores.

Podia, se o quisesse fazer, adquirir o 1º e 2º ciclo liceal. Pois é! se pensam que em Fulacunda não se podia estudar, estão enganados. Os nossos oficiais estavam dispostos a ensinar-nos, depois iríamos a Tite fazer os exames.

Capa da revista "Plateia", nº 196, possivelmente
de janeiro de 1965. Cópia pessoal do nosso
grã-tabanqueiro  Manuel Joaquim
.
Era muito popuiar entre os militares
no ultramar, por causa do correio sentimental.-
Em  1965 custava 3$00 no continente,
4$00 no ultramar (A preços de hoje, 1,16 e 1,55 €,
respetivamente)
Em Tite, estava colocada a CCS. Era nesse local que permanecia o comando do batalhão [de artilharia] 6520.

Não sei se a ideia vingou, mas honro, neste pequeno capítulo, os meus superiores hierárquicos que o tentaram fazer. Lançaram em mim a semente que muitos anos mais tarde iria frutificar e,  se hoje tenho o 12º ano, o primeiro incentivo que recebi como adulto, para estudar, deu-se dentro do arame farpado que protegia Fulacunda.

Que desgraça! Zanguei-me com a namorada. Da maneira em que a troca de correspondência anda… Nessa altura, entre enviar e receber mediavam cerca de três semanas. Iria demorar muito tempo até fazermos as pazes.

A razão? Recebi uma carta a dizer-me que ela foi vista com outro. Nesses cinco meses eu já era, talvez, o 25º a ser trocado. Mas atenção! Também podia ser algum espertinho a querer engatá-la! A carta que recebi era anónima. De qualquer modo, fiquei muito fodido. É só ler o aerograma do dia 5 de Dezembro [de 1972]. Algumas frases soltas

“Maldita Guiné que me está a fazer perder tudo que mais amava  Lenta e persistentemente o tempo vai passando.  Para que eu possa viver em perfeito equilíbrio de ideias preciso de fazer coisas diferentes do habitual que actue sobre mim como um antídoto ou como uma espécie de válvula de escape. Porque hei-de estar com escrúpulos se ela não me quer? Vou pôr um anúncio na Plateia e escreverei a todas que me escreverem até pode ser que me esqueça que existe uma Maria Amélia”.

Foleiro. Foi muito foleiro eu concluir que 90% das mulheres que deixávamos, quando íamos para a guerra, procuravam noutros aquilo que de repente perderam.

Em todo caso digo:

“Se ela traiu o que de mais puro havia em mim. Também digo que o amor é mais forte que o ódio”.

Por favor, não me peçam para colocar aqui na íntegra o aerograma do dia 7. Deve ter sido a resposta mais disparatada da história da humanidade aquela que eu dei, a respeito de conter o desejo sexual, naqueles já cinco longos meses, sem ter uma mulher.

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Nota do editor:

ÚLtimo poste da série > 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18338: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 28 (O Ramadão) e 29 (A PPSH de tambor)... Ou um "estúpido" na guerra...

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18280: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 23 e 24: A partir de outubro de 1972, aumentei a requisição (quinzenal) de cervejas: de 5 ml para 6 mil... Por outro lado, fiquei chocado quando pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) > " Foi com espanto que pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas e que o nosso governo era um governo fascista. Fiquei escandalizado com o que ouvia e jurei continuar a defender Portugal e as províncias ultramarinas."

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade.

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande .


Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina,  que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 23 e 24


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]



23º Capítulo  > OS PASSATEMPOS E OS PRIMEIROS "TURRAS"

Também comecei a construir o barco de fósforos e afazer pulseiras de missangas.

Entre ler, escrever, ouvir música e tratar das tarefas que me tinham sido atribuídas, ainda me sobejava tempo. Usei algum para construir a caravela portuguesa com cartão e fósforos. Com o rádio a tocar na Emissora Regional da Guiné, até então a única que eu sabia captar, vários de nós íamos dando forma à célebre caravela. Normalmente, fazíamos isso à noite. Foi precisamente num desses serões que o soldado de transmissões me disse para escutar determinado comprimento de onda. Dizia ele que era rádio Voz da Liberdade [que emitia em português a partir da rádio Argel].

Foi com espanto que pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas e que o nosso governo era um governo fascista. Fiquei escandalizado com o que ouvia e jurei continuar a defender Portugal e as províncias ultramarinas. Nessa altura, até tínhamos connosco um grupo de comandos africanos que durante três dias lutaram ao nosso lado.
 –  Então se escravizávamos os negros, porque lutavam eles ao nosso lado? – perguntei. 

A resposta que me deu o soldado que pela primeira vez me tentou abrir os olhos para o que nós estávamos a fazer em África, foi escrita por mim no dia 8/10/1972. São tão ignorantes e burros como nós!

Fico estupefacto e ligeiramente envergonhado ao ler o que escrevi naquele tempo. Tanta ingenuidade só podia mesmo ser burrice. Eu sabia ler. Que raio! Pior, eu lia muito. Pois bem, posso considerar-me um autêntico atraso de vida, ignorante, como convinha e convém a todos os poderes que dominam o mundo, sejam eles económico, religioso ou político. A ignorância faz-nos parecer e, pior que isso, somos (!) uns completos idiotas.

Já dois dias depois, escrevi:

“Os comandos africanos terminaram a operação capturaram dois  "turras".  Estiveram aqui no quartel. Posso dizer que já vi "turras”. Confesso que tive muita pena deles. O nosso 2º comandante mandou dar-lhes de comer e eles pareciam dois lobos, tão esfomeados estavam. É assim, hoje eles, amanhã nós, e a guerra vai continuando, felizmente que connosco ainda não quiseram nada. O problema é que não foram só os comandos africanos para o mato. Também 50 camaradas meus e isso nem me deixou dormir. Esta noite já dormirei pois vieram todos sãos e salvos.”


24º Capítulo  > ADAPTADOS


De 5000 cervejas que requisitava, a partir de Outubro, aumentei a requisição para 6000. Quinzenalmente. Os “Serrotes de Fulacunda” podiam afogar as mágoas na bebida e eu comentava que era normal beber bastante. O problema é que alguns passavam a ostentar uma barriga que dava voz ao slogan “ Branco tem barriga grande” e éramos aconselhados a ter cuidado com o aspecto físico. 

Invariavelmente dizíamos que, se calhar, nem sairíamos dali vivos. Acho que mesmo eu tinha essa sensação, embora não o dissesse. O meu maior amigo tinha morrido em Mansoa; sabia de outros que também tinham morrido um pouco por toda a Guiné. Era uma questão de sorte ou azar, pois mais tarde ou mais cedo seríamos os atingidos portanto, se a responsabilidade das bebidas era minha, ao menos que não houvesse falta delas. 

Havia sempre o problema de os frigoríficos, que eram a petróleo, não terem capacidade para tanta cerveja, mas só o saber que havia cerveja no armazém era um bom lenitivo para a nossa sobrevivência. Que não se sequem as gargantas. Que a festa dure até às tantas. Logo a seguir, comecei a requisitar vinho [verde] Casal Garcia. Ou não fosse eu de Penafiel. 

Escusado será dizer que não demorou a começarmos a ter acidentes. Era naturalíssimo. Com a velocidade que os meus colegas conduziam as Berliets, Unimogs ou Jeeps pela picada, quando íamos ao rio buscar os reabastecimentos, algum acidente teria de acontecer. Felizmente, eu era bate-chapas e o primeiro a bater foi com uma Berliet. 

Gostei de, durante um período de tempo, trabalhar na minha profissão e pude perceber que, mesmo estando nós, reduzidos num pequeno espaço, cada um estava a trabalhar no seu ofício. Pintores, trolhas, pedreiros, carpinteiros, electricistas, mecânicos, padeiros, cozinheiros, agricultores, etc. etc. Estávamos a criar condições para o desenvolvimento das potencialidades que nos permitissem prosseguir, com sucesso, a vida civil se conseguíssemos regressar. “Estamos a ficar adaptados”.

Aos que pretendiam, por exemplo, emigrar, enveredar pelas forças de segurança, ou até outras profissões, também notava que se preparavam para isso. Gostei sobremaneira dum colega que queria ir para a CP. Sabia tudo sobre comboios.

Espero que todos eles tenham concretizado o sonho com o mesmo, ou mais sucesso, que eu tive na minha profissão, e que agora estejam a gozar uma merecida reforma.

(Continua)
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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12467: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte VII): Como é que a malta pssava os 'tempos livres'...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  Capa do jornal de caserna, mensal,  "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. 









Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Jornal de caserna "O Serrote", mensal, edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. Páginas do meio: 12/13. Total de páginas: 24.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª C/BART 6520/72 (1972/74) > Um jogo de bridge entre oficiais. Em 2º plano, do lado esquerdo, o alf mil Jorge Pinto.


Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição; L.G.]



1. Mensagem do Jorge Pinto [ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) , com data de 14 do corrente,  em resposta a um comentário anterior do nosso editor [ " Toda a Guiné era concentracionária e claustrofóbica... Mas quem estava em Bambadinca, como eu, tinha - nas horas vagas, fora da intensa atividade operacional - a doce ilusão da liberdade de pôr viajar 30 km em estrada alcatroada, e ter em Bafatá um 'cheirinho' da civilização... O mesmo se pode dizer da malta que estava em Bafatá e em Lamego...E talvez em Mansoa e Teixeira Pinto... Ou não ? Bissau não conta, para nós não era mato"]...


Vejo que voltaste a caprichar, obrigado.  Enviei estas fotos (*) com o objectivo de revelar um aspecto do modo como se passava algum do tempo, naquele "ambiente concentracionário", como tu bem dizes. Contudo, por incrível que pareça, grande parte do nosso tempo era passado fora do arame farpado: patrulhamentos, emboscadas, operações, reabastecimentos, idas à lenha... Devo salientar que fora do arame farpado as deslocações eram sempre feitas, no mínimo, ao nível de bigrupo, mais uma ou duas secções de milícias.

Dentro do aquartelamento havia sempre assuntos que nos envolviam.  Muita leitura, lembro-me, por exemplo, da chegada do primeiro exemplar do jornal Expresso. Sebentas de Direito e de História também eram companheiras inseparáveis de alguns oficiais.

Ouvíamos a BBC,  de Jorge Letria. Da Argélia vinha a voz do Manuel Alegre e o pensamento de Piteira Santos [Rádio Voz da Liberdade]. O próprio PIFAS, e o amigo [Armando] Carvalheda nas rubricas radiofónicas também muito ajudaram tal como a "Maria Turra" [Rádio Libertação, emitindo de Conacri].. 

Muita conversa, sobretudo após ouvirmos a BBC. Claro que também havia conversas filosóficas, sobretudo com o régulo Malã, que após ter estado em Meca, S. Francisco da Califórnia, Macau, Lisboa, Londres e outras urbes europeias,  afirmava com grande veemência que Fulacunda é que era BOM. 

Muitos jogos, não só de futebol e voleibol mas também jogos de sala: longas noites de bridge (foto acima)), King, sueca, ramin, poker de dados, ping-pong...


Atividades culturais, como por exemplo a feitura de um jornal mensal, O Serrote (capa reproduzida acima ) aberto à colaboração de todos. Ali se escreveram:  (i)  piadas de caserna relacionadas com episódios rocambolescos da comunidade residente; (ii)  resumos de livros lidos por alguns; (iii)  poemas que fazem lembrar as medievais cantigas de amigo e amor; (iv) assuntos de atualidade interna (anexo) e externa; além de (v) anedotas, concursos de cultura geral, contos.

Como vês,  Luís, o tempo lá se ia passando. Cada dia era religiosamente riscado um a um nos calendários pendurados nas grossas paredes dos abrigos.

Bom fim de semana para toda família. Forte abraço.

Jorge Pinto [, foto da época, à esquerda]

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