Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26768: Notas de leitura (1794): Memórias Minhas, por Manuel Alegre; Publicações Dom Quixote, Março de 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
As memórias de Manuel Alegre incluem referências a encontros com Amílcar Cabral em Argel, terá sido numa emissão da Voz da Liberdade que Amílcar Cabral concedeu uma entrevista a uma emissora portuguesa. O detentor do Prémio Camões recorda o modo como o dirigente revolucionário dava apreço aos Descobrimentos portugueses, como, quando Marcello Caetano sucedeu a Salazar, numa conferência de imprensa em Argel, Cabral gerou perplexidade ao dizer que estava disposto a ajudar Marcello Caetano a ser um De Gaulle português; e, por fim, uma conversa havida com Cabral a propósito de alguém querer atentar contra a sua vida, ele terá dito algo que repetirá no ciclo de conferências havidas para quadros do PAIGC em Conacri, em novembro de 1971, algo como se um dia eu for morto será por alguém do meu próprio partido, provavelmente um militante da primeira hora, o que não era o caso de Inocêncio Cani, com um histórico de combatente, antigo responsável pela Marinha do PAIGC, é ele quem dá o primeiro tiro em Amílcar Cabral, foi outro sublevado quem lhe deu o tiro de misericórdia.

Um abraço do
Mário



Amílcar Cabral nas memórias de Manuel Alegre

Mário Beja Santos

A obra intitula-se Memórias Minhas, por Manuel Alegre, Publicações Dom Quixote, março de 2024, uma longa viagem de lembranças dos ancestrais, da vida em Águeda, a aprendizagem escolar, a passagem por Lisboa e pelo Porto, os estudos em Coimbra e os primeiros passos na intervenção política, na vida teatral no TEUC; as eleições presidenciais de 1958, que mudaram a sua vida; e depois Mafra, a ilha de S. Miguel e até alguns sonhos de rebelião; a ida para Angola e a vida militar, segue-se a prisão em Luanda, regressa a Coimbra, não para de intervir, mesmo fazendo exames, é membro do PCP; impõe-se partir para o exílio, assim chega a Argel, compete-lhe preparar as emissões da Voz da Liberdade, que ele assim apresenta:

“A Voz da Liberdade foi sempre uma voz portuguesa livre. Dei-lhe dez anos da minha vida, dez anos de oiro da minha juventude, dias e noites a escrever e a preparar a emissão. Em certas noites eu tinha a sensação de que estava a falar para mim mesmo e a combater o meu próprio desalento. Mas depois lá vinha de novo a esperança, a luta renascia, as vozes chegavam de Portugal e ecoavam na nossa própria voz.”

É neste ponto que ele insere a entrevista que fez a Amílcar Cabral, a primeira que o líder do PAIGC concedeu a uma emissora portuguesa. 

“O que mais surpreendeu e tocou quem a ouviu foi o facto de ele ter dito o que a esquerda portuguesa, por complexo, não tinha então coragem de dizer. Cabral exaltou os Descobrimentos portugueses e afirmou: ‘Não é mentira, não, os portugueses deram de facto novos mundos ao mundo e aproximaram povos e continentes’. E sublinhou que o fascismo e o colonialismo estavam a desunir o que a História tinha aproximado. Citou versos de Camões e contou que celebravam algumas datas históricas portuguesas, entre elas o 5 de outubro de 1910. Foi uma entrevista muito inteligente, que procurou quebrar tabus e sublinha que, para ele, o principal aliado no combate pela independência era o Povo Português e a sua luta pela liberdade.”

É neste contexto memorial que Amílcar Cabral aparece nas recordatórias seguintes.

O primeiro texto intitula-se “Uma conferência de imprensa”. Segue-se a transcrição:

“Quando Marcello Caetano sucedeu a Salazar, Amílcar Cabral deu uma conferência de imprensa em Argel. E a certa altura, surpreendeu e confundiu os jornalistas:
- Estou disposto a ajudar Marcello Caetano a ser um De Gaulle português.

Também nós, representantes da Frente Patriótica, ficámos perplexos. Retirei-me da conferência e escrevi um bilhete a Amílcar Cabral dizendo que não compreendia aquela afirmação, era uma grande ajuda ao pseudo-reformismo do sucessor de Salazar, que mudava os nomes às coisas para que tudo ficasse na mesma.

Umas horas depois, Amílcar Cabral veio a minha casa e disse-me que a nossa amizade não era uma amizade circunstancial, mas algo que tinha importância para além de nós. E acrescentou:
- Tens de compreender que eu estou a lutar pela independência do meu país. Essa é a nossa prioridade, não a queda do regime em Portugal. Se o Governo de Caetano quiser negociar, eu estou pronto a fazê-lo. Não é contra vocês. É pelo meu país e pelo futuro das relações entre os nossos povos.”


E segue-se o texto intitulado “Premonição”, como segue literalmente:

“Por vezes chegavam desertores portugueses da Guiné. As autoridades argelinas entregavam-nos à Frente Patriótica e depois seguiam para a Europa. A maior parte não desertava por razões políticas, mas para fugir de eventuais punições de delitos cometidos. Eram acolhidos pelo PAIGC em Conacri e depois encaminhados para Argel. Certa vez chegou-nos a informação de que um desses desertores contava ter pensado cortar a cabeça a Amílcar Cabral para regressar com ela a Bissau.
Piteira Santos e eu contámos o caso a Amílcar Cabral. Ele puxou os óculos para a testa, num gesto que lhe era peculiar, olhou-nos muito direito e disse:
- Se um dia for morto será por alguém do meu próprio partido, provavelmente um fundador.

Quando soube que ele tinha sido assassinado por Inocêncio Cani, fundador do PAIGC, senti um arrepio. Lembrei-me daquela frase e fiquei com a sensação de que Amílcar Cabral estava a pressentir a sua própria morte. Sabia que podia ser morto e até, talvez, por quem [Inocêncio Cani não era fundador do PAIGC, era um veterano da guerrilha, chegou a ser comandante da Marinha do PAIGC, fora castigado e afastado do Conselho Superior de Luta, deu o primeiro tiro a Amílcar Cabral, segundo a versão de Oscar Aramas-Oliva, o embaixador cubano em Conacri, foi outro sublevado, de nome Bacar, quem matou Amílcar Cabral".


Foram estas as referências que encontrei a Amílcar Cabral, a segunda parte deste livro das memórias fundamenta-se essencialmente a sua atividade política e poética depois do 25 de Abril.

Amílcar Cabral, pintura em acrílico por Noronha da Costa
_____________

Nota do editor

Último post da série de 29 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26741: Notas de leitura (1793): Um Trajeto de Vida, por Rui Sérgio; 5 Livros, 2021 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Eduardo Estrela disse...

" se um dia for morto será por alguém do meu próprio partido "
Este é o reconhecimento da hipocrisia da vida. Lutar pelos que sofrem morrer pelos próximos.
Eduardo Estrela

Antº Rosinha disse...

? Será que alguma vez passou pela cabeça de Manuel Alegre que estava em frente a um democrata?

Aquela gente sempre compreendeu porque Salazar não dava as independências às colónias, e Cabral explicava isso muito bem, e compreendia, o que os anti-salazaristas lusos não entendiam.

Ou não queriam entender.