
Queridos amigos,
Este importante ensaio de Philip Havik abre luz quanto à história do conhecimento do colonizador face ao colono, um percurso que se inicia fundamentalmente no fim do século XIX que ganhará dimensões com caráter científico a partir da governação de Sarmento Rodrigues, data deste tempo um inquérito etnográfico preparado por Teixeira da Mota. A grande motivação inicial sobre os dados estatísticos do imposto de palhota, a pressão do ministro das colónias não abrandou, era preciso conhecer quem habitava os lugares, e nascem então os inquéritos etnográficos, de que aqui temos feito referência, isto a par dos relatórios anuais enviados por algumas residências. É todo este histórico que Philip Havik analisa com o seu habitual espero, e que aqui se procurará fazer a súmula.
Um abraço do
Mário
Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1
Mário Beja Santos
Philip Havik publicou na revista Lusotopie XII, em 2005, o artigo com o título Les Noirs et les ‘Blancs’ de l’Ethnographie Coloniale: Discours sur le genre en Guinée Portugaise, (1915-1935), uma esclarecedora incursão sobre o relacionamento entre colonizadores e colonos no período posterior à chamada pacificação, obra do capitão Teixeira Pinto, e 1935, o ano que precede a denominada pacificação de toda a Guiné.
No preâmbulo, o investigador recorda que este enclave foi muito pouco depois da “pacificação” de 1915. Os administradores coloniais, obrigados ao protocolo de fornecer com regularidade postas em inquéritos ou o envio ao governador de relatórios anuais, muitas vezes pondo-se no papel do etnógrafo, deixaram pouca informação até meados dos anos 1930. A questão para eles dominante era o imposto palhota, centravam-se no registo das palhotas, os homens eram importantes enquanto chefes de tabanca, as mulheres eram totalmente ignoradas enquanto sujeitos autónomos.
No entanto, com o aparecimento dos primeiros dados etnográficos, os relatórios oficiais entrelaçaram considerações de género com os conceitos de cor, revelando a hierarquização interna ao género em que eles operavam. Acresce que a ausência de mulheres europeias ocasionou uma viragem das medidas de política colonial, projetando a imagem na mulher africana como guardiã da pureza racial. A ajuda médica era apresentada como símbolo de modernidade e acabou por reconhecer às mulheres indígenas um lugar de mães. Este artigo abrange a produção etnográfica num período de duas décadas e procura preencher as lacunas desta literatura, explorando ao mesmo tempo novas pistas para análise do discurso colonial sobre as relações de género.
A Guiné Portuguesa foi sempre objeto de um interesse marginal. Numa perspetiva “luso-africana” os antropólogos portugueses começaram a partir dos meados dos anos 1980 a examinar mais de perto os dados etnográficos elaborados na época colonial. Há ainda fontes documentais relativamente intactas que carecem de estudo, aguardam na poeira dos arquivos os investigadores. É igualmente urgente questionar os paradigmas coloniais relativos às políticas e às populações destes territórios. Este texto aborda um corpo de conhecimentos, que se considera apaixonante, proveniente de fontes escritas e orais e das atitudes dos funcionários coloniais face aos africanos, do ponto de vista das relações de género e parentesco. Espera-se assim contribuir para o debate quanto às tensões que se produziram entre colonizadores e colonizados, bem como quais os modelos de papel que o colonizador aplicou ao colonizado.
Alguns antropólogos defenderam o ponto de vista que era necessário “pluralizar o conceito de situação colonial”, tendo em conta “o leque de interações entre indivíduos e grupos extremamente diferentes”. No caso português, para além da grande diversidade étnica das populações e dos atores coloniais, é preciso ter em conta a falta de diretivas claras sobre a política indígena a implementar no terreno, sobretudo durante as primeiras décadas da administração colonial. Na maioria dos casos, as medidas eram tomadas uma a uma, de forma aleatória, ou após negociação, uma noção que não parece coincidir com a ideia que se faz numa colónia dirigida pela metrópole. A ausência de políticas coerentes face à família alargada indígena e aos seus membros, bem como o conhecimento limitado das sociedades africanas por parte dos funcionários e dos responsáveis políticos, certamente contribuíram para este estado de coisas.
Iremos comparar os dados etnográficos recolhidos até ao fim dos anos 1930, partindo da I República em 1910 até ao período do Estado Novo. Aborda-se, em primeiro lugar, o estado de conhecimentos demográficos e etnográficos no enclave, isto no contexto da implantação da administração colonial a partir de 1915. Procura-se ilustrar seguidamente, através da análise sucinta de um certo número de fontes publicadas de artigos, como o discurso oficial ou a sua ausência que estruturaram representações dos indígenas. Para concluir, extrapola-se a pertinência destes dados, abordando de modo mais amplo as metáforas coloniais e a sua semântica, tais como elas se desenvolveram na Guiné neste período.
Antes da ocupação militar na maior parte do território da Guiné, as relações dos governantes e dos seus representantes não forneceram informações sobre a população a não ser sobre o perímetro das zonas costeiras. Mas os responsáveis não escondiam que era vergonhoso após seculos de presença portuguesa a sua influência não ultrapassava os muros que envolviam Bissau. As estimativas da população eram feitas ao acaso, o que justificava a impossibilidade de implementar uma política social. Os dados disponíveis sobre as populações do interior limitavam-se aos relatórios dos missionários e dos oficiais de saúde. No início do século XX, a situação no terreno tinha-se deteriorado a tal ponto que um observador estrangeiro observara que “o governo colonial português exercia pouco ou nenhum controlo sobre os indígenas, isto devido aos falhanços da administração”. Os governadores tinham que admitir que eram incapazes de fazer o recenseamento da população pedido por Lisboa. Com a introdução do imposto de palhota em 1903, a administração começara a juntar a informação sobre as “tribos indígenas” com fins fiscais. Esta abordagem iria ser determinante em todo o período colonial (1915-1974). A partir de 1909, o gabinete do governador em Bolama emitiu circulares confidenciais a fim de obrigar as residências (postos administrativos coloniais) a fornecer regularmente informações detalhadas sobre os aspetos demográficos e políticos da sua zona de jurisdição.
A reforma administrativa de 1912, que introduziu o sistema de régulos, na base da hierarquia, comportava a organização de processos burocráticos entre os quais o estabelecimento de relações sobre os futuros sujeitos do regime. Entre eles, o "intérprete oficial de diligências” encarregado de contactos com a população exterior ao posto, sobre autoridade direta do administrador, devia informá-lo sobre todas as relações relativas à vida política e social dos indígenas que podiam ter interesse à administração. Foi uma prática do período da administração militar (1892-1918), quando a comunicação entre os escalões central e local do governo se focavam essencialmente à volta das questões de segurança e o lançamento de impostos. O estabelecimento simultâneo de uma força de polícia indígena, conhecida por cipaios, fora pensada como um estrato intermédio entre a administração colonial e os indígenas, não só com a finalidade de coerção, mas igualmente para filtrar as informações pertinentes provenientes da base.
Os primeiros relatórios provenientes das residências, apresentados em 1911, na sequência da divulgação de um questionário, constituem alguns dos primeiros dados provenientes do interior do país coligidos pelos funcionários e seus intérpretes. A partir deste momento, a divisão da população num certo número de “raças”, termo que vai aparecer pela primeira vez na correspondência oficial da Guiné em meados dos anos de 1800 – e de subgrupos, bem assim como a descrição do seu habitat, costumes, línguas e modos de subsistência, seguirá um esquema reproduzido na documentação oficial ao longo do período colonial.
Imagens de campanhas de pacificação, Nhacra, 1915
_____________Nota do editor
Vd. post de 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26538: Notas de leitura (1776): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Quando escreveu em parceria com António Estácio sobre os chineses na Guiné (3) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 3 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26547: Notas de leitura (1777): Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné em "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (3) (Mário Beja Santos)