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sexta-feira, 30 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26864: Notas de leitura (1803): "Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", por Leonor Pires Martins; Edições 70, 2012 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
É uma bela edição correspondente a uma investigação rigorosa e que permite dados surpreendentes, uma viagem por publicações periódicas ilustradas desde que se fundou a Sociedade de Geografia de Lisboa até esse acontecimento faustoso que foi a Exposição do Mundo Português, em 1940. Temos aqui uma investigação de como se mostrava e satisfazia a curiosidade quanto a este ascendente Terceiro Império, a iconografia das expedições, como se procurou suturar o tratamento vexame do Ultimato, passando a pente fino crueldades existentes ou ficcionadas pela potência britânica. Naturalmente que para esta recensão se procurou mostrar imagens da Guiné, logo em 1879, mostrando Bolama como capital. E pela primeira vez pude ver gente num empreendimento que me intrigava desde agosto de 1968, nesse dia fiz o primeiro patrulhamento na companhia do furriel Zacarias Saiegh, fomos até à Aldeia do Cuor, onde vi, abismado, paredes monumentais de edifícios sobre os quais ninguém me dava esclarecimento. Só mais tarde soube que tinha ali dado consultoria técnica o engenheiro Armando Cortesão, de quem herdei os ferros de uma cama, e agora pude ver gente que ali viveu e até uma criança que ali nasceu. Esta sociedade agrícola aspirava muito, afundou-se rapidamente e certo e seguro com grandes prejuízos, não sabemos se para os empreendedores ou para o banco financiador.

Um abraço do
Mário


A Guiné num Império de Papel

Mário Beja Santos

É uma soberba obra de investigação, Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940), por Leonor Pires Martins, Edições 70, 2012, uma exposição de representações visuais do Império em publicações ilustradas desde que foi fundada a Sociedade de Geografia de Lisboa até a esse ponto alto do nacionalismo imperial português, a Exposição do Mundo Português de 1940.

A revista O Ocidente terá um papel fulcral no elenco das publicações, nela colaboraram nomes de talento do seu tempo, como Rafael Bordalo Pinheiro. Recorda a autora que nos finais do século XIX, altura em que as fronteiras coloniais em África se encontravam já definidas, o território português compreendia, para além do continente e suas ilhas adjacentes, mais de 1 200 000 km2 na costa africana ocidental (Angola), 783 000 km2 na costa oriental (Moçambique), a Guiné com cerca de 36 000 km2, dois arquipélagos no Atlântico (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe) e ainda resquícios do antigo Império do Oriente: Goa, Damão e Diu, no subcontinente indiano, Macau, no Sul da China e Timor na Insulíndia. Num país de elevadíssimo analfabetismo, a classe política conhecia as legislações alusivas aos chamados territórios ultramarinos, foi graças a revistas e a jornais ilustrados que o grande público passou a ver expressões do Império, muitas vezes sobre a retórica propagandística, caso de uma fotografia em que aparece uma guineense que participou na Exposição Colonial do Porto, em 1934, a Rosinha, empenhando a bandeira portuguesa junto do monumento “Ao Esforço Colonizadora”, fotografia manifestamente encenada, onde se pode ler a legenda: “Negra muito embora, portuguesa de lei, ei-la empunhando a bandeira verde-rubra que domina todo o Império”, imagem que aparece na revista Civilização. Este esforço colonizador é mostrado em edifícios, estradas e pontes.

Outros momentos de exaltação são as imagens das expedições, que deram glória e fama a Serpa Pinto, Capelo e Ivens, entre outros. Essas expedições ao interior do continente africano concorriam com outras expedições europeias, a Conferência de Berlim decretara que ter uma colónia era ocupar território, a revista O Ocidente publicará imagens alusivas a estas expedições e depois as homenagens, os jantares, as conferências dos expedicionários, a sua chegada em triunfo, imagens dos africanos que acompanhavam os novos heróis da gesta, o Terceiro Império. Como igualmente apareciam imagens de indígenas com os seus usos e costumes; e quando chegou a hora do ultimato britânico não faltaram imagens que procuraram revelar os aspetos cruéis do colonialismo britânico e, claro está, caricaturistas como Rafael Bordalo Pinheiro revelavam a subserviência portuguesa ao poder britânico, era a resposta à humilhação que nos provocara o maior império colonial do seu tempo; e, com poder catártico, irá mostrar-se um outro herói, Mouzinho de Albuquerque, e a prisão de Gungunhana, e a sua exposição pública, o seu exílio em Angra do Heroísmo.

Também estas publicações exploraram uma outra dimensão, o pitoresco, a fauna, o deslumbramento dos rios, a opulência das florestas, o povoamento, casas, hospitais, centros urbanos, é assim que vemos a ilha de Bolama que apareceu na revista O Ocidente, em 1879, havia que mostrar a capital da Guiné. Surgiu depois a fotografia, terá também um papel fundamental na ilustração das publicações. Havia também que exibir como facto consumado que estávamos a trabalhar no progresso e no desenvolvimento, não eram só os edifícios e as infraestruturas, era a cartografia, o ensino, o estabelecimento de hospitais e farmácias, a missionação, as culturas agrícolas, a abertura dos caminhos de ferro, a briosa ocupação militar como vemos num desenho produzido a partir de uma fotografia, tropa no forte de Cacheu, isto em 1891.

A missionação aparece associada ao ensino, à escola de artes e ofícios, ao aparecimento de igrejas, como se mostra a igreja matriz de Bolama em 1896, que veio publicado na revista Branco e Negro. Os jardins, os edifícios das alfândegas, as estátuas, os cais, até mesmo a projeção em terras de África do mundo rural português tem inteiro cabimento no Império de Papel, havia que suscitar a curiosidade para atrair imigrantes, mostrar famílias, crianças europeias nos territórios da colonização, colonos em piquenique, mas, sempre que necessário, expor as expedições militares. É o caso do grande acervo de imagens do primeiro fotógrafo militar português José Henriques de Mello, que acompanhou as tropas comandadas por Oliveira Muzanty, em abril de 1908, para destituir Infali Soncó, um régulo insurreto que pretendia impedir a navegabilidade do Geba, ao tempo o coração da atividade comercial.

Ao folhear este belíssimo trabalho, deparei-me com uma reportagem sobre a Guiné Portuguesa, publicada na revista Ilustração, procurava-se mostrar os colonos brancos e como viviam. E pude ver pela primeira vez uma resposta a uma dúvida que tinha desde 5 de agosto de 1968. Nesse dia fiz o meu primeiro patrulhamento de reconhecimento no regulado do Cuor, saímos de Missirá para a Aldeia do Cuor; aqui chegados, mesmo à beira do Geba estreito, levantavam-se paredes grossíssimas, pedra volumosa, indício certo e seguro de que ali houvera um qualquer importante estabelecimento. Soube mais tarde, nas minhas leituras no Arquivo Histórico do Banco Nacional Ultramarino, de que se tratava da Sociedade Agrícola do Gambiel, ali foi consultor técnico Armando Zuzarte Cortesão, nome eminente da cartografia portuguesa, encontrei referências à natureza do empreendimento, era um grande sonho agrícola que cedo caiu na água. Pois bem, na revista Ilustração, num número de 1926, encontrei fotografias alusivas a esses colonos “brancos”, numa delas um grupo de empregados onde se vê um deportado e noutra, vê-se o chefe do empreendimento com mulher e criança que nascera na região, pode ver-se na fotografia do grupo de empregados que eram instalações de boa constituição, de grande solidez, os tais vestígios que guardei desse patrulhamento de agosto de 1968.

O Estado Novo trouxe africanos a exposições organizadas em Portugal. Podem ver-se três fotografias publicadas na revista Ilustração, isto em outubro de 1932, aspetos da Grande Exposição Industrial Portuguesa que se realizou no Pavilhão dos Desportos, em 1932, são guineenses, na fotografia superior temos um ministro das Colónias, Armindo Monteiro, com a sua comitiva e sentados algumas figuras ilustres, porventura régulos e em baixo, numa fotografia, três fulas e noutra as mulheres fulas que acompanharam os régulos. A exposição de 1934 trouxe igualmente guineenses, elas revelaram-se um grande motivo de atração, todas de peito ao léu, houve fotografias de Domingos Alvão e Eduardo Malta, nomeado pintor oficial da exposição, fez vários retratos a lápis, produziram-se álbuns desses desenhos que evidenciam o risco talentoso de Malta. E assim chegamos ao acontecimento grandioso da Exposição do Mundo Português, foi o momento culminante em que o Estado Novo procurou mostrar a multidões imagens de um Império que era sobretudo conhecido por quem lia jornais e revistas, agora revelava-se para o orgulho dos portugueses qual era a dimensão daquela comunidade imperial imaginada.

Um Império de Papel dá-nos conta do que foram ficções e realizações, era um império longínquo que parecia ao alcance da mão e destinado à eternidade.


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Nota do editor

Último post da serie de 29 de maio de 2025 >Guiné 61/74 - P26860: Notas de leitura (1802): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte II: A questão da assistência à frota branca, que atinge o seu auge com o Estado Novo, nos anos 40/50: em 1958 a "faina maior" tinha 77 unidades e 5736 homens (Luís Graça)

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26838: Notas de leitura (1799): José Gomes Barbosa 'versus' Jorge Frederico Vellez Caroço no Boletim Oficial de 1 de julho de 1922 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
Permitam-me uma confissão. Há uns bons meses, dirigi-me à bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia, agradecendo-lhe todas as amabilidades de que tenho sido alvo ao longo destes anos, indesmentíveis ajudas em encontrar documentação com realce para as minhas investigações, e confessei-lhe que ia mudar de ramo, fazer outras coisas. Olhando-me com firmeza, disse-me prontamente que não aceitava tal resposta, que eu devia pensar seriamente que havia uma pesquisa à minha espera: primeiro, consultar o Boletim Oficial de Cabo Verde e da Guiné, até à separação das duas colónias; e, segundo, percorrer por inteiro o Boletim Oficial da Província da Guiné, estas publicações, observou, trazem-me por vezes surpresas que não constam nos artigos.
O que de facto aconteceu quando, lateralmente na sequência cronológica me pus num rasto do autor da única História da Guiné, João Barreto, veio de Margão para Lisboa, aqui terá permanecido ano e meio, seguiu depois para Cabo Verde, em plena Primeira Guerra Mundial, andou por Santiago e Ilha do Fogo, irá aparecer na Guiné em 1919, primeiro em Cacheu, depois em Bafatá, mais adiante em Bolama, onde foi alvo de grande reconhecimento pelo seu trabalho como tenente médico de Saúde Pública. Ao folhear o Boletim Oficial de 1 de julho de 1922, encontrei este naco de prosa que muito nos dá que pensar.

Um abraço do
Mário



José Gomes Barbosa versus Jorge Frederico Vellez Caroço

Mário Beja Santos

Depois de ter escrito um livrinho sobre um afamado epidemiologista goês, muito louvado em Bolama na década de 1920, de nome João Barreto, decidi-me consultar por todo este período o Boletim Oficial da Província da Guiné, o que faço com bastante entusiamos na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Estes boletins têm maioritariamente informações sobre chegadas e partidas de funcionários, promoções e exonerações, relatórios de saúde pública, taxas alfandegárias, predomina o formalismo e a rotina. Só raramente uma notícia assombrosa, um soco no estômago, algo que nos ajuda a entender melhor a mentalidade num certo tempo e num certo lugar. No Boletim Official n.º 26, de 1 de julho de 1922, chamou-me a atenção o processo disciplinar instaurado contra o professor oficial José Gomes Barbosa. Não posso resistir de publicá-lo na íntegra, ocupa as páginas 300 e 301 do referido Boletim:

“Tendo o primeiro oficial, interino, da Secretaria do Governo, José Lourenço da Conceição Leitão, instaurado, por ordem superior, um processo disciplinar contra o professor José Gomes Barbosa, foram a este enviados os seguintes requisitos:

1.º Por que sendo funcionário público, proferiu na loja do sr. João Marques de Carvalho, comerciante estabelecido nesta praça, palavras que demonstram bem o seu nenhum respeito pela pátria portuguesa?

2.º Como professor, devia ser o primeiro a reprimir campanhas de descrédito contra a pátria portuguesa. Por que foi que na loja referida perfilhou as palavras escritas por René Maram?

3.º Por que na mesma loja disse que estávamos sendo governados por mer… e quanto o dono da loja lhe disse que fosse ao palácio dizê-lo a Sua Ex.ª o Governador, por que respondeu que não era quem o dizia, mas sim o René Maram no seu livro?

Assina o instrutor do processo disciplinar, Conceição Leitão

O arguido respondeu nos seguintes termos:

Resposta ao 1.º quesito: Não houve nas palavras proferidas pelo signatário nenhuma falta de respeito para com a pátria portuguesa, que ama e venera, mais que sua própria mãe, como mãe que é de todos os portugueses. O signatário preza-se de ser tão bom português como os melhores, nascidos em Portugal, na metrópole. Houve unicamente uma troca de palavras entre o signatário e alguns dos presentes, e no decorrer da conversação saíram aquelas desgraçadas palavras, que lastima e se arrepende de ter proferido.

Resposta ao 2.º quesito: Como professor, e como português, nunca fez campanhas de descrédito contra a pátria portuguesa. Mormente agora, que é um acontecimento mundial de travessia de Portugal às terras de Santa Cruz, feita por dois heróis, dois portugueses, enfim, os Exmos. Srs. Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que tão alto elevou o nome português, o nome de todos nós.
Não perfilhou as palavras escritas por René Maram antes talvez as tivesse proferido com azedume, porque branco, conquanto natural de Cabo Verde, e portugueses acima de tudo, também se sentia magoado.

Resposta ao 3.º requisito: De nenhum ato de Sua Ex.ª o Governador tem o signatário conhecimento que o levasse a proferir semelhante frase, referindo-se ao mesmo Exm.º Senhor. Tem o mais profundo respeito por Sua Ex.ª, como homem e Governador. Não se lembra de ter referido semelhante frase com referência a Sua Ex.ª o Governador. A conversação que deu origem às frases que me atribuíram e que confessei ter proferido, teve lugar não na loja de comércio do sr. João Marques de Carvalho, mas sim num anexo do mesmo estabelecimento.

É quanto me cumpre dizer em resposta aos quesitos enviados. Bolama, 24 de junho de 1922, José Gomes Barbosa professor oficial.

Sua Ex.ª o Governador da Província deu por último o seguinte despacho:

“Vistos os presentes autos, mostra-se que o professor oficial da escola primária do sexo masculino, em Bolama, José Gomes Barbosa, esquecendo que deve a si mesmo, ao nome português que usa e muito especialmente à nobre missão do Governador que lhe está confiada, proferiu, em público, num estabelecimento desta cidade, umas frases insultuosas para os europeus, para o Governador da Província e, inclusivamente, chegou a renegar a sua própria nacionalidade, dizendo que não era português mas sim cabo-verdiano; e,

Considerando que este professor, pela sua ilustração, exerce uma certa influência entre os seus conterrâneos e que a sua propaganda contra os europeus aqui residentes pode trazer consequências graves;

Considerando, que a fraseologia empregada pelo professor Barbosa, além de imprópria para um indivíduo da sua categoria social, é deprimente e vexatória para a sua raça, admitindo que a pureza do seu sangue seja de uma incontestável autenticidade – o que queremos acreditar porque o sr. Barbosa o afirma?

Considerando ainda, que dando o professor Barbosa circulação a uma manifestação de ódio do preto contra o branco, com imagens e frases que a par de uma grosseria e baixeza de sentimentos, denotam uma crassa imbecilidade e asinina estupidez, está, não somente acirrando ódios e malquerenças do cabo-verdiano contra os metropolitanos, mas, inclusivamente, incitando o preto contra o branco, o que é inadmissível e perigoso; mas,

Atendendo a que o professor José Gomes Barbosa, por completo se retrata das informações que fez e na sua resposta aos quesitos dá cabais satisfações a todos nós, portugueses:
Determino que este funcionário seja repreendido com repreensão averbada no seu registo disciplinar, publicando-se este despacho no Boletim Oficial da Colónia, com a resposta que ele dá aos quesitos que lhe foram propostos, para que tenha toda a publicidade a reparação, visto que público foi o agrado. Cumpra-se e publique-se, Jorge Frederico Vellez Caroço.”


Governador da Guiné Jorge Frederico Velez Caroço
Bolama no tempo do Governador Velez Caroço e do professor oficial José Gomes Barbosa
Nunca encontrei comunicação publicitária como esta, a Loja Nova de António Machado era realmente irresistível
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Nota do editor

Último post da série de 19 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26817: Notas de leitura (1798): "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Se é verdade que uma imagem pode valer por mil palavras, a fotografia que mostra o governador Carvalho Viegas em Canhabaque, no início de 1937, é dada então como pacificada toda a região dos Bijagós, bem como a Guiné por inteiro, veja-se a encenação da postura, o branco imaculado da indumentária, apagando tudo o resto, de facto o que fica atrás é uma sombra, ele representa a civilização, uma cultura superior, é mesmo um agente político da Cristandade, a tal Babel Negra tem as suas hierarquias entre as etnias superiores e as que estão no último escalão, as animistas. O que Philip Havik trata primorosamente neste seu ensaio é a evolução a partir desses anos da pacificação de como o branco vê o negro, escalpeliza esse imenso manancial que são os relatórios que vão para Bolama e de Bolama para o Terreiro do Paço.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2


Mário Beja Santos

Importa recapitular o que já se escreveu quanto ao conteúdo deste artigo. Em concreto, ao lingo da história da presença portuguesa na região da Senegâmbia a observação do Outro pelo cronista, navegador, viajante, autoridade local, missionário, não podia, por razões óbvias, proceder a inventários de etnias, áreas ocupadas, dados culturais e religiosos, modos de vida, natureza do potencial económico, etc., etc., só a consagração de um espaço que devia ser ocupado levou a que os governadores fossem obrigados a enviar ao ministro da Marinha e do Ultramar relatórios, e que a partir do Bolama fossem implicados os administrados de circunscrição e chefes de posto a emitirem relatórios, com base em questionários que se foram modificando ao longo de décadas.

Não se pode pedir a Zurara, Diogo Gomes, Cadamosto, Pedro de Sintra, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André de Faro, André Donelha, Francisco Lemos Coelho, e mais tarde, entre os séculos XVIII e século XIX, aos autores de memórias e documentos endereçados às autoridades de Lisboa, o que se vai agora pedir à administração colonial local. Como se viu, foi necessária também um quadro de pacificação e ocupação relativa, começam a aparecer monografias dirigidas a Bolama, há peças sugestivas que tive a possibilidade de ler nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Tudo começa com estudos etnográficos incipientes, o governador Carlos Pereira publica em 1914 um documento importante com base na sua participação numa conferência internacional, ganha realce o anuário de 1925, começam a aparecer dados do primeiro recenseamento colonial de 1924, atiram-se números incomportáveis como o de dizer que havia 770 mil habitantes na Guiné, constata-se hoje que a produção do departamento de assuntos indígenas foi menor, o governador Vellez Caroço conduzirá no cargo um sobrinho seu que deu uma certa consistência e qualidade às informações dadas.

As autoridades locais nunca deixam de revelar nos seus relatórios a penúria constante de fundos e a inexistência de um estudo etnográfico com fundamentos científicos. Philip Havik chama à atenção para uma missão de um etnógrafo austríaco, Hugo Bernatzik, que no fundo vem fazer o que os portugueses não faziam, não se escondia a clamorosa existência de dados que dessem expressão a um estudo para o conhecimento das etnias (naqueles tempos falava-se em raças). O major Carvalho Viegas, será governador durante alguns anos, fez da segregação entre africanos e europeus a pedra angular da sua política, importa não esquecer que havia legislação que consagrava a compartimentação de espaços entre brancos e negros, seria o caso de uma viagem de comboio de 3ª classe, o europeu podia transferir-se para a 2.ª classe, caso a viagem fosse demorada. Havia a ideia de “degenerescência” racial nas comunidades etnicamente puras, não esquecer que em toda a documentação oficial ou não se refere de forma trivial o civilizado e o indígena.

Mas a realidade era mais forte. A mobilidade populacional incitava a que se procurasse ter uma compreensão para os hábitos, costumes e tradições, e mesmo o estudo das instituições sociais e políticas destes diferentes povos, pensava-se que era a única maneira de os ganhar para a nossa civilização cristã. Daí o modo como foi recebida a publicação Babel Negra, em 1935, de autoria de Landerset Simões (um funcionário que virá a ser expulso dos quadros da administração), apareceu como um acontecimento importante na etnografia colonial da época.

O autor vai agora abordar a produção de dados etnográficos no decurso de três fases distintas: durante todos os últimos anos que precedem a ocupação militar, nos anos de 1920, quando a administração portuguesa se estabeleceu sobre o território, e nos anos 1930 quando o Estado Novo se impregnou do discurso colonial. Os primeiros relatórios vindos das residências utilizam a norma de referência masculina, dá-se pouca atenção às mulheres, o nível de submissão feminina é sempre revelado, as mulheres são dadas em casamento numa idade muito precoce, é obediente ao marido e quando este morre é transferida para a posse do herdeiro. A tradição da poligamia reserva à mulher a maioria dos trabalhos, inibe-a da mobilidade social. Ela está desprovida de direitos de propriedade, de herança ou de sucessão, são pessoas secundárias; os homens, ao contrário, aparecem imbuídos de autoridade, são eles que tomam decisões. O espaço social é segregado em função dos sexos.

A monografia de Ernesto Vasconcelos, datada de 1917, segue exatamente este itinerário, fala em raças semitas ou hamitas e na raça negra repartidas em numerosas tribos e subtribos. A inferioridade que se dava aos africanos, aparece escrita como uma verdade definitiva: o africano não tem a noção da palavra honra, ele não se sente constrangido por qualquer compromisso a não ser sob juramento ou profundas razões de religiosidade. E daí, os autores destes relatórios puderem livremente hierarquizar as “civilizações”, no topo estão os grupos islamizados e na base os animistas, caso dos Nalus e dos Bijagós. Há ainda também uns tipos sociais indeterminados, caso dos Grumetes, dos mulatos e “Brancos”.

Estamos num tempo em que se consolida a autoridade colonial, e adverte-se os interessados que para tirar partido destas raças guerreiras, destes agricultores e gente preguiçosa impõe-se um fino espírito político, é preciso guiá-los como um jogador de xadrez que dispõe as suas peças para a vitória final. Tomando como referência as observações dos administradores que responderam ao inquérito de 1927, constata-se que eles fornecem um panorama um pouco mais detalhado das tradições indígenas, mas continua-se a falar nas diferentes raças, sub-raças e tribos. Os autores destes relatórios não escondem a sua falta de conhecimento em etnologia, mas procuram uma abordagem, mesmo que superficial das tradições e práticas africanas. Se no inquérito anterior se punha uma grande insistência nas características físicas, agora relevam as tradições apresentadas face a exemplos concretos e que se fazem acompanhar de medições corporais de classificações segundo uma tipologia racial e começam a fazer-se descrições detalhadas da circuncisão praticada em homens e mulheres nos diferentes grupos; e quase com uma precisão médica aborda-se a gravidez e o parto e até a escarificação. O adultério feminino considerado habitual merece destaque pelas formas de punição, a transmissão matrilinear também passa a ser descrita com frequência, insinuando sempre a suspeita de infidelidade das mulheres do pai. Continuando neste itinerário, os relatórios falam sobre a divisão de trabalho entre os sexos, as hierarquias internas no grupo familiar, etc.

Estamos chegados aos anos 1930, aparece a primeira monografia etnográfica com o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”.

Carnaval na Guiné-Bissau: toda a diversidade étnica à mostra
Os Balantas
Os Fulas
Os Manjacos
Os Mandingas
Os Bijagós
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 10 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26571: Notas de leitura (1779): Habitação para indígenas em Bissau, 1968 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26571: Notas de leitura (1779): Habitação para indígenas em Bissau, 1968 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
A cidade de Bissau que conheci em 1968 ganhou outra fisionomia quando lá estive a última vez, em 2010. Sou capaz de identificar as imagens deste artigo de 1968 e custa-me dizer o que senti quando percorri os bairros de Missirá, Santa Luzia e Militar, instalou-se o caos urbano, via-se à vista desarmada que o crescimento demográfico não era acompanhado de infraestruturas minimamente capazes. Não sei a que título o arquiteto Fernando Varanda estudou os bairros do tempo de Sarmento Rodrigues e Arnaldo Schulz, mas há que reconhecer que faz observações pertinentes e a sua crítica assentava num tipo de habitação aberto à convivência e ao diálogo interétnicos, já que, do que vira em Safim e no Biombo, as etnias revelavam-se fechadas e seccionadas. Fernando Varanda, como poderão ver no Google, teve uma lustrosa carreira internacional em vários continentes trabalhando em planeamento urbano. Pode dar-se o caso de quem trabalha no planeamento urbano na Guiné-Bissau ache interessante as suas propostas.

Um abraço do
Mário



Habitação para indígenas em Bissau, 1968

Mário Beja Santos

A revista Geographica, da Sociedade de Geografia de Lisboa, publicou no número relativo a julho de 1968 um trabalho do arquiteto Fernando Varanda (1941-2023), doutor em Geografia Urbana, com assinalável carreira internacional, um artigo intitulado “Um estudo de habitação para indígenas em Bissau”. 

Refere o autor que no propósito do seu estudo se visa um princípio de organização de habitação para as populações indígenas alojadas em Bissau em condições muito precárias. A guerra provocara um autêntico êxodo para os centros urbanos, a população negra de Bissau aumentara nos últimos 5 anos de 22 mil para 30 mil habitantes (números aproximados). Em Bissorã, a população era de mil habitantes antes do início da guerrilha, ascendia agora a 12 mil. Impunha-se, pois, encontrar soluções para integrar as populações que poderiam não mais voltar aos seus ambientes anteriores.

A população negra envolvia a cidade branca, eram cerca de 30 mil habitantes alojados em construções feitas de materiais de ocasião, a falta de alojamento era enorme, os preços incomportáveis. A população distribuía-se por zonas de afinidade étnica. Tomavam-se medidas administrativas para distribuir os alojamentos por colunas ao longo das vias principais de acesso, tinha-se em linha de conta a segurança das populações e a segurança militar.

O arquiteto começou por observar alguns aspetos da habitação urbana indígena em Bissau e nos arredores – povoações das etnias Papel, do Biombo, Mancanha e Balanta, em Safim. Verificou-se que as zonas habitacionais estavam sombreadas por árvores de grande porte; quanto às zonas suburbanas, fez-se a observação da zona dos Papeis do Biombo, a 60 km de Bissau e a zona dos Mancanhas e Balantas de Safim, a 15 km da cidade. 

O esquema de agrupamento é sensivelmente o mesmo: famílias que se agrupam numa morança, e conjunto de moranças, relativamente próximas, formando uma espécie de povoação. Cada morança tem, em média, de uma a seis famílias. A casa é de planta redonda, na sua forma mais tradicional. Mas por influência de costumes europeus caminha-se cada vez mais pela opção para a planta retangular ou quadrada.

Do inquérito efetuado abrangendo os regulados de Antula, Bandim, Intim, apurou-se haver sensivelmente 28,250 habitantes. O inquérito, na parte referente ao alojamento, foi dirigido a cerca de 200 chefes de família, amostragem pequena, verificou-se a composição do agrupamento familiar, os salários, o valor das rendas, quem tinha casa própria ou arrendada. 

As habitações são quase totalmente de planta retangular em Bissau, a área de cada casa era de cerca de 60 m2, excluindo quintais e zonas sanitárias. Cada casa tem entre quatro a seis divisões, servem de quartos. Os materiais de construção eram dos mais variados, veem-se casas de paredes de adobe e cobertura de folha de palmeira, veem-se outras com paredes em blocos de betão e cobertura de zinco e até de telha; o chão é de terra batida ou de cimento (este em caso de blocos de betão e cobertura de zinco). As instalações sanitárias e de banho existem foram de casa, nos chamados “cercados”. Não há esgotos, não há balneários ou retretes públicas. A cozinha existe no alpendrado ou no quintal. A água é fornecida por poços ou fontes abertas pela administração de Bissau. O mobiliário é escasso, camas ou esteiras, uma arca, bancos e cadeiras. 

Apenas os Fulas e Mandigas se mantêm fiéis às casas de planta circular, a planta retangular deve-se à influência europeia. Os espaços de convivência são praticamente inexistentes: cada família vive para si, dentro de casa ou ao alpendrado sempre existente, as crianças brincam na rua. Os arruamentos são os que a administração europeia criou.

Fernando Varanda analisa a solução apresentada pelas entidades administrativas e procede à sua crítica. O primeiro esquema de organização vinha do tempo do governador Sarmento Rodrigues, pretendeu-se, nessa altura, criar um bairro na estrada de Santa Luzia, uma casa por família, com dois quartos, sala, cozinha e instalações sanitárias, o projeto ficou na construção de umas 38 casas. 

Ao longo do tempo foi-se verificando uma infiltração progressiva de “palhotas” no meio das casas existentes. Estava em construção já muito avançada o bairro da Ajuda, a 6 km do limite da cidade, iniciativa de Arnaldo Schulz depois do bairro original ter sido destruído por um incêndio, em 1965; este bairro da Ajuda situa-se em frente ao Hospital Militar. 

O plano geral deste bairro era o seguinte: numa primeira fase, estavam já construídas 140 casas, numa área de 700 por 300 metros, isto num plano que incluía mercado, estabelecimentos comerciais, escola primária, posto médico, igreja católica, mesquita, centro social, cinema, lavadores públicos, oficina de carpintaria mecânica. São casas de planta quase quadrangular, com um alpendrado em toda a volta. A divisão interior da casa é uma sala grande, dois quartos, um quarto independente (para hóspedes), cozinha e instalações sanitárias, no alpendre.

Na admissão ao bairro privilegiava as vítimas do incêndio. A crítica de Fernando Varanda era de que no caso de Santa Luzia como no caso da Ajuda se escolher um planeamento urbano de régua e esquadro, dividindo regularmente uma área em retângulos e situando-a ao longo de uma grande via de comunicação. 

A solução não tem nada a ver com o sistema de vida em comunidade que faz parte da tradição guineense. Por tal razão, o arquiteto apresenta uma solução. Ele parte de um agrupamento de várias famílias, normalmente da mesma etnia, em disposição mais ou menos concêntrica, núcleo que está em relações de vizinhança próxima com outros. O conjunto de vários núcleos constituirá uma unidade dotada de equipamento próprio. A sua intenção era agrupar núcleos de 10 famílias em unidades de 6 núcleos, constituiria uma zona com serviços públicos bem definidos. As zonas separar-se-ão por amplos espaços verdes, tanto quanto possível naturais, com acessos próprios utilizáveis por viaturas. A intenção é proteger a intimidade dos habitantes permitindo-lhes a criação ou a continuação das suas estruturas tradicionais, mas também para abrir caminho a uma aculturação progressiva e compreendida.

Os núcleos eram concebidos em torno de uma origem de água, o espaço central serviria para recinto de convívio diário entre as famílias. E justifica a essência da sua solução que era a de visar a possibilidade de poderem habitar próximo três tipos de famílias: pequena, média e grande, em que a pequena terá 3 ou 4 elementos e a maior poderá ir dos 12 aos 15. 

Diz ter optado por uma forma poligonal de planta, faz-se assim convergir a vida de cada casa para um pátio interior alpendrado. Justifica dois tipos de casas, conforme a dimensão familiar; as paredes seriam em betão de adobe, assentes sobre uma fundação em betão ciclópico sobre-elevada, para evitar a entrada de água das chuvas no interior da habitação; a cobertura seria em folha de palmeira. Era propósito do arquiteto dar toda a facilidade aos habitantes para serem eles próprios a construir as suas casas, fornecia-se a planta base, o tipo geral de construção, permitindo aos habitantes que adequassem as suas casas à sua maneira de viver.

A evolução dos acontecimentos alterou tudo, os planeadores urbanos que me ditem as soluções propostas por Fernando Varanda como forma de criar condições confortáveis nos bairros caóticos que hoje existem em Bissau. É um estudo que vale como propósito de um tempo, mas a visão do arquiteto, conceituado geógrafo urbano, é merecedora da observação de todos aqueles que pretendem dar mais dignidade à vida dos habitantes em Bissau e em todos os outros aglomerados.

Estrada de Safim, as novas edificações, construídas pela administração. Quilómetros de casas em duas filas largamente separadas por uma faixa de trânsito para veículos
Morança Mancanha (estrada de Safim – embora de um tipo já decadente, aqui ainda é possível a vida com um certo intimismo e conforto). Foram aldeamentos deste tipo que a administração substituiu
Biombo, casa Papel. Trata-se de um agrupamento cuja unidade é a função da unidade familiar. Constrói-se um núcleo; aumentando a família, outro se ergue ligado por um alpendre
Bairro de Santa Luzia, a estrada passa junto à margem esquerda
Bissau, zona indígena, Chão Papel
Cupelom de Baixo
Cupelom de Cima
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Nota do editor

Último post da série de 7 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26104: Notas de leitura (1739): João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Nunca imaginei que me iria dar a esta investigação sobre a vida e obra de João Barreto. O Dr. Google, sempre tão prazenteiro, fechou-me todas as portas, mas foi ali, depois de muita divagação, que cheguei ao Arquivo Histórico da Presidência da República onde, pasme-se, estava o nome de João Vicente Sant'Ana Barreto, que tivera uma proposta de condecoração para Cavaleiro da Ordem de Avis. Felizmente que havia um dossiê e nele fiz a primeira descoberta de que João Barreto fora promovido a tenente-médico em 1916 e enviado para Cabo Verde. Depois houve que folhear o Boletim Oficial da Colónia e descobrir a sua chegada, o seu estágio na cidade da Praia e os anos que passou na ilha do Fogo.Há ainda que vasculhar na imprensa cabo-verdiana da época se escreveu textos sobre a sua arte, a epidemiologia. No início de 1919 chega à Guiné, percorrerá vários lugares e localidades até assentar em Bolama e dirigir o laboratório central de análises do Hospital Civil e Militar, foi aí que começou a sua vida de autor, um cientista muito comunicativo, capaz de escrever artigos de divulgação, de comprovado rigor. Reformou-se por razões de saúde em outubro de 1931, vou agora começar à procura do que é que ele fez de 1932 a 1940, ano em que faleceu, com 52 anos.

Um abraço do
Mário



João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica

Mário Beja Santos

Quando apresentei na Sociedade de Geografia de Lisboa, no passado dia 10 de outubro, o meu estudo sobre João Barreto adverti quem me escutava que já sabia um pouco mais sobre a sua vida e obra, mas persistiam lacunas e um ambiente de nevoeiro à volta dos seus últimos anos de vida.

Permitam-me que vos conte os primórdios desta investigação. O editor e nosso confrade Daniel Gouveia telefonou-me um dia a perguntar se eu ia ao lançamento de um estudo sobre a História da Guiné de João Barreto, respondi que nada sabia, senti a curiosidade acicatada, perguntei-lhe a quem me devia dirigir, que eu contatasse a Casa de Goa, local do lançamento do trabalho. Dado o consentimento, lá fui para os lados de Alcântara, nem pressentia que iria conhecer um edifício em vias de demolição devido às obras do metro. Tocou-me a explanação do neto de João Barreto que só soubera da existência da História da Guiné há muito pouco tempo, adquirira um dos exemplares num alfarrabista que mandara fazer uma edição fac-similada para distribuir por familiares e amigos. Vi-me de repente instigado a perorar sobre o conteúdo da História da Guiné, aliás a única História até hoje existente, edição de 1938, obviamente a sofrer as rugas do tempo, poucos anos depois da edição de autor começavam os trabalhos de Vitorino Magalhães Godinho, Duarte Leite, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota e Damião Peres, entre outros, que alteraram profundamente os conhecimentos sobre a nossa presença, o acervo literário, mexeram-se nos arquivos, sabe-se hoje muito mais, embora quem quer que se venha a acometer ao estudo da História da Guiné deverá futuramente que fazê-lo em equipa multidisciplinar envolvendo a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Portugal, Senegal, Guiné Conacri, todos estes países deixaram rasto na chamada Senegâmbia.

Foi então que o neto de João Barreto, Aires Barreto me perguntou se eu tinha disponibilidade para investigar o que este médico epidemiologista, licenciado em 1913 na Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, com altíssima classificação, fizera na Guiné e, se possível, qual a sua atividade em Portugal, depois de reformado. Aceitei o desafio e estou agora em condições de dizer que este médico nascido em Margão foi professor universitário em Nova Goa, aí apresentou, com recurso a moderníssimas técnicas de investigação, um estudo sobre a peste na Índia Portuguesa, fez estudos complementares em Lisboa, onde obteve boa classificação (área em que ainda há lacunas), foi nomeado tenente-médico para o Quadro de Saúde de Cabo Verde em Guiné, em junho de 1916, trabalhou em Cabo Verde de 1916 a início de 1919, na cidade da Praia e na ilha do Fogo, não se lhe conhece obra científica, a não ser os relatos mensais exigidos por lei sobre o estado da saúde pública na ilha onde passou tanto tempo. Na Guiné exerceu vários mistérios, em Bafatá, Cacheu, Farim, Bissau e Bolama. Enquanto delegado de saúde em Cacheu, foi louvado por ter coordenado com êxito uma campanha contra a peste. Dirigiu o laboratório central de análises de Bolama, encontram-se as suas apreciações em vários Boletins Oficiais da província da Guiné. Por volta de 1926 começa a publicar relatórios e artigos, é submetido a uma Junta de Saúde em 1931, e reformado.

Há passos da sua vida que me parecem inexplicáveis. O antigo governador da Guiné, Leite Magalhães, a quem prefacia a sua história e refere somente 12 anos de Guiné; em vários currículos também só se fala da sua presença na Guiné, parece que o autor pretendeu um manto de silencia sobre a sua estadia em Cabo Verde. Só conhecia uma fotografia dele, já na maturidade, era então para os seus familiares a única fotografia conhecida, veio publicada num conceituado jornal goês, Diário da Noite, no início de 1941, o seu falecimento (faleceu em Lisboa em 1 de dezembro de 1940, com 52 anos).

Há tempos, a bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia trouxe uma história da Escola Médico-Cirúrgica de Goa sobre os seus vultos mais relevantes. Foi com enorme satisfação que encontrei um jovem médico, indumentado com bata profissional, já a enviei ao neto, que rejubilou. Prometo dar mais informações sobre o que se vier a descobrir quer quanto ao que se escreveu e não vier mencionado, e sobretudo, saber se este médico e investigador amador, difundiu nos anos que viveu em Lisboa entre 1932 a 1940, mais informações sobre a Guiné que seguramente muito amou – 12 anos ali não é amor impune.

A cidade de Bolama dos tempos de João Barreto
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Nota do editor

Último post da série de 28 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26088: Notas de leitura (1738): Quando se ensinava a literatura da Guiné-Bissau nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26071: Historiografia da presença portuguesa em África (448): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1885 (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Tinha a expetativa de que ao longo do ano de 1885 se desse alguma ressonância aos acontecimentos do Casamansa, mas nada aconteceu. Chama a atenção o detalhe dos boletins sanitários de Cacheu, Bissau e Bolama; a relação dos artigos para o Hospital Militar e Civil de Bolama leva-nos a refletir sobre a natureza da alimentação dos doentes; de uma forma cuidada, o novo Governador lembra que são escassos os efetivos militares para manterem em respeito as tribos irrequietas; o delegado de saúde de Cacheu deixa-nos um relato impressionante do estado da vila; mas ficamos a saber que na feira diária se vendem alimentos como hoje seguramente não aparecem nos mercados guineenses; continuam as manifestações de régulos pedindo que se hasteie a bandeira portuguesa, é talvez também produto do desenvolvimento agrícola que leva as autoridades gentílicas a atrelarem-se à potência colonial.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1885 (7)


Mário Beja Santos

Durante os primeiros meses de 1885, ainda aparecem diplomas assinados por Pedro Ignácio de Gouveia, e depois entra em funções o novo governador, Francisco de Paula Gomes Barbosa. Nos Boletins n.º 6, 7 e 8, todos de fevereiro, vêm publicados os estatutos do Colégio das Missões Ultramarinas. Diga-se em abono da verdade que esses primeiros meses estão enxameados de disposições burocráticas, o costume, nomeações, transferências, taxas alfandegárias, muitos boletins sanitários, onde avultam as doenças próprias da época das chuvas. No Boletim n.º 17, de 25 de abril, temos um edital da Junta da Fazenda Pública onde se anuncia que se abriu a praça para o fornecimento pelo prazo de um ano de um conjunto de artigos para o hospital militar e civil de Bolama, é mais do que uma curiosidade saber por onde anda a base alimentar de um hospital da época, na Guiné: arroz da Índia, açúcar pilé, azeite doce, alhos, batata inglesa (termo que ainda hoje se usa), bacalhau, carne de vaca, chá, cebolas, cevadinha, calda de tomate, doce em latas, farinha de trigo, feijão branco e feijão vermelho, galinhas, leite, folhas de louro, massas, manteiga de vaca, banha de porco, ovos, pão, pimenta, sal, tapioca, vinho do Porto e vinho da Madeira, hortaliças, mandioca, batata doce, lenha, petróleo, fósforos, sabão, torcidas e velas de estearina.

Com pompa e circunstância, vamos encontrar desenvolvido em vários boletins a Nova Reforma Fiscal, tudo a partir do Boletim n.º 19, de 19 de maio. No Boletim n.º 27, de 4 julho consta o alto de perdão concedido pelo Governo aos gentios de Cacanda, mas anteriormente temos um impressionante alto de vassalagem e protesto de amizade que ao Governo português fez o rei das Ilhetas, tudo se vai passar a bordo da escuna Forreá, estavam presentes delegados do Governador, o régulo das Ilhetas, Jepomon, António Gomes, filho do dito régulo, e José da Silva, neto do mesmo. A delegação portuguesa afirmou que o Governador era sabedor da influência do régulo nos demais régulos das Ilhetas, de quem é suserano. “Que nas mãos dele régulo, depositavam a farda e capacete, presente de Sua Excelência o Governador, um ligeiro testemunho das suas boas intenções para com os Ilhetas. O que tudo foi bem explicado e traduzido ao régulo pelos próprios filho e neto que bem conhecem o crioulo, língua em que os legados do Governo fizeram a sua exposição. O régulo respondeu que ele e os seus eram portugueses, de que muito se ufanava. Que fora seu constante propósito acabar com a pirataria a que se dedicavam os insulares sobre a sua jurisdição. Que deste acerto dava testemunho com o seu procedimento e havendo várias embarcações que os seus povos e vizinhos, por vezes, noutro tempo, tinham pilhado e saqueado, fazendo-as restituir a seus donos, pela maioria negociantes de Bissau e de Bolama, citando os nomes de vários negociantes a quem mandar entregar embarcações, tais eram: Carlos Abreu, José de Sena, Victor Martins, Gustavo Theraizol e Blanchard & Companhia (…) Concluindo disse: que terminava por jurar obediência e vassalagem à Coroa Portuguesa, de quem sempre fora fiel e leal vassalo, ratificando qualquer outro juramento.”

Não deixa de ser curioso logo a seguir a este documento aparecer publicado o pedido do régulo de Bubaque para que se hasteasse a bandeira portuguesa e se fundasse uma colónia agrícola no seu território: “George, régulo de Bubaque, rendendo preito e homenagem ao Governo português, deseja que na sua ilha hasteie a bandeira portuguesa e se estabeleça uma colónia agrícola, assegurando que os colonos serão sempre tratados com todo o desvelo e amizade. Grato para com o Governo de Sua Majestade fidelíssima os favores dispensados a seu filho Ambrósio Gomes Jasmim, vem, por esta forma, manifestar ao Excelentíssimo Governador da província a sua viva e eterna gratidão e congratular-se com Sua Excelência pela sua elevação no Governo.” Assina Onhabaque de Bubaque.

No Boletim Official n.º 32, de 8 de agosto, chama a atenção o início despacho n.º 163 do Governador: “Sendo a força de 1ª linha da guarnição nesta província por vezes insuficiente para manter em respeito as tribos irrequietas que a povoam, e assegurar o sossego e tranquilidade pública, indispensáveis ao bem-estar dos seus habitantes e ao desenvolvimento do comércio e da agricultura…”

Cumpre registar que os boletins sanitários de Bolama, Bissau e Cacheu são cada vez mais detalhados. No Boletim n.º 34, de 22 de agosto, por exemplo, veja-se o relatório da vila de Bissau referente ao mês de julho de 1885:
“O predomínio dos padecimentos das vias respiratórias sobre as diversas doenças observadas na clínica urbana, definem a constituição médica durante o mês; tais afeções, porém, sempre complicadas de febres palustre jamais revestiram caráter de gravidade.” Segue-se a lista dos novos doentes, os curados e os transferidos, faz-se igualmente referência à higiene pública, tinha-se procedido à limpeza da parte do poço que corresponde ao interior da praça de Bissau”

No mesmo boletim, o presidente da Sociedade de Geografia dirige-se ao Governador da Guiné, tudo tem a ver com a Exposição Universal de Antuérpia e à cooperação dada pelo Governo da Guiné, a Sociedade de Geografia congratula-se e agradece aos expositores da província de que o Governador dirige.

No Boletim n.º 36, de 5 de setembro, chama prontamente à atenção o impressionante e singular relatório do serviço de Cacheu referente a 1884, assinado pelo delegado de saúde Alpino da Conceição Ribeiro. Depois de uma descrição minuciosa da localização da vila, deixa-se ao leitor o que há de impressivo em parágrafos elucidativos:
“As ruas que existem, não merecem tal nome. Tão desigual é o seu terreno que charcos e lameiros que na época pluviosa se formaram, as tornam intransitáveis.
Nas proximidades do baluarte do novo centro tem lugar a feira diária de géneros de usos ordinário e comum na povoação. Gentios de vários pontos interiores concorrem ao mercado da batata-doce, feijão, arroz, mandioca, inhame, banana, laranjas, abóboras, melancias, milho, amêndoas de palma, cola, semente de purgueira, muitos outros géneros e frutas; azeite de palma, azeite amargo, vinho de palmeira; ovos, galinhas, patos e outros animais domésticos; cera, borrachas e couros de boi. Aparece o marfim, mas raríssimas vezes.
Realizaram-se 17 batismos. Não houve nenhum casamento. Conquanto a religião oficial seja a dominante, aparentemente professada esta, mas verdadeiramente pratica-se o feiticismo.
Unicamente, mas antes como atos de luxo do que como preceitos da Igreja, ninguém se esquiva ao batismo, encomendação de cadáveres e missa de requiem. O matrimónio, segundo o rito da Igreja Católica, se não inspira repugnância também quase que jamais é aceite. É preferido o enlace matrimonial por um enlace privativo do país que não tem ligação alguma com as leis canónicas nem as civis.”


A Guiné na África Ocidental
Moeda de 50 centavos do 5º centenário da descoberta da Guiné
Moeda da Guiné-Bissau, 2 pesos e meio, 1977, FAO
Djolas da Gâmbia e do Casamansa, fotografia de Joannès Barbier, 1892
Fotografia de um albino senegalês, apresentada na Exposição Colonial de Lyon, 1894
Vista de Carabane, 1889, gravura
Arquipélago dos Bijagós, 1885, xilogravura
Bijagós numa bagabaga, 1885, xilogravura.

Todas estas gravuras podem ser adquiridas na Galerie Napoléon, Paris, o preço é de 60€ (moldura não incluída)

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 16 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26049: Historiografia da presença portuguesa em África (447): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, os últimos meses de 1884 (6) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26055: Agenda cultural (863): Rescaldo da sessão de apresentação do livro "O (Ainda) Enigma da Vida Intelectual e Científica de João Barreto", de Mário Beja Santos, levada a efeito no passado dia 10 de Outubro de 2024, na Sociedade de Geografia de Lisboa

Apresentação do novo livro de Mário Beja Santos
na Sociedade de Geografia de Lisboa

O colunista do Mais Ribatejo, Mário Beja Santos, apresentou no dia 10 de outubro, a sua mais recente obra na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa sessão que contou com a presença de diversos convidados e estudiosos da história da Guiné.

O livro foca-se na figura de João Vicente Sant’Ana Barreto, distinto aluno da Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa e autor da única História da Guiné, publicada dois anos antes de falecer.

A apresentação do livro contou com a participação do Embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, Artur Silva, do neto de João Barreto, Aires barreto, e de Valentim Viegas, professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da universidade de Lisboa.

A sessão, precedida por uma visita à Sala da Índia e à Sala de Portugal da Sociedade de Geografia, onde se encontram valiosos tesouros artísticos da Índia portuguesa, teve início pelas 16h00. Valentino Viegas, professor universitário aposentado, e o bisneto do biografado, Aires Barreto, acompanharam o autor na apresentação e nos comentários finais sobre o legado científico e histórico de João Barreto.

A obra explora a carreira notável deste epidemiologista, desde o seu trabalho pioneiro sobre a peste na Índia portuguesa até ao seu envolvimento em projetos científicos e de saúde pública na Guiné. João Barreto foi louvado pelo seu papel no combate à peste em Cacheu e tornou-se uma figura de grande relevância na saúde pública de Bissau. A sua trajetória, no entanto, ainda apresenta lacunas que o livro de Mário Beja Santos procura esclarecer, oferecendo uma nova perspetiva sobre o contexto histórico em que viveu e trabalhou.

No final da sessão, foi oferecido um Porto de Honra e, por decisão do autor da edição, todos os participantes receberam um exemplar gratuito da obra.

Texto e fotos: jornal Mais Ribatejo, com a devida vénia
Fixação do texto, selecção e edição das fotos: Carlos Vinhal

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Notas do editor:

Vd. post de 19 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25958: Agenda cultural (859): Convite para a sessão de apresentação do livro "O (Ainda) Enigma da Vida Intelectual e Científica de João Barreto", de Mário Beja Santos, dia 10 de Outubro de 2024, pelas 16h00, na Sociedade de Geografia de Lisboa

Último post da série de 12 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26039: Agenda cultural (861): Convite para o lançamento do livro "CRÓNICAS DE PAZ E DE GUERRA, de Joaquim Costa, a ter lugar no próximo dia 9 de Novembro, pelas 16h00, na Bibliotaca Municipal de Gondomar, Av. 25 de Abril. Apresentação do livro a cargo do Dr. Manuel Maria