Queridos amigos,
Em jeito de desabafo, a leitura que fiz deste segundo semestre de 1936 é uma seca, tudo muito arranjadinho, uma administração composta com gente a ir para férias ou delas regressar, nomeações, passagens à aposentação, não tivesse havido, como sabemos, a campanha de pacificação de 1936 em Canhabaque, teríamos que perguntar porque é que dela jamais se faz menção a não ser nos primeiros dias de janeiro, onde se fez referência no texto anterior e agora se volta à carga aquela acalorada sessão do Conselho de Governo que aqui se reproduz, visto à distância destas décadas (mais de nove) há qualquer coisa de estrambótico naquela reunião em que a votação resultou empatada. Foi me dado ler o Decreto que saiu do punho de Salazar para a criação da Legião Portuguesa, pareceu-me útil aqui fazer a sua menção.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné (o segundo semestre de 1936) (47)
Mário Beja Santos
Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, onde regularmente trabalho, pus-me à cata de uma fotografia do Major Carvalho Viegas, foi encontrada numa publicação que tem a ver com a 1.ª Conferência dos Governadores Coloniais, que decorreu em Lisboa, houve discursos de Salazar e do ministro Armindo Monteiro, Carvalho Viegas discursou, disse logo que só tinha cinquenta dias da Guiné, mas que entusiasmo não faltava para que a colónia progredisse. Prometeu à assistência que se ia centrar no essencial: a questão financeira e económica, a administrativa, a assistência ao indígena.
Lendo-o, passadas todas estas décadas, e sabendo alguma coisa do que era a Guiné nesta altura, as suas observações são surpreendentes: a situação financeira da Guiné não inspirava cuidados. Tudo se satisfazia com os recursos da colónia, a Guiné por sis só se bastava, tinha uma receita de 22 mil contos. Certamente que havia alguns empecilhos pelo caminho, logo a questão dos cambiais e lembrou a reclamação da Casa Gouveia no sentido de se anular o diploma em vigor e voltar ao regime dos 25% de entrega de cambiais. O novel governador fará discretamente uma defesa dos cambiais dizendo que eles são benéficos para o Estado, funcionários e particulares, ao comércio importador para pagamento de géneros da primeira classe, até para a Companhia Colonial de Navegação. Recordou que a posição devedora da Guiné era desafogada.
Falando da economia, lembrou aos presentes que tinham diminuído as cotações das oleaginosas, por si só diminuíram o poder de compra do indígena, mas também diminuíram as importações, com prejuízo quer para o país quer para a marinha mercante. A crise mundial chegara à Guiné e caminhava-se para uma diminuição de receitas.
Fez uma dissertação sobre as oleaginosas, mas não afastou um cenário de tremendas dificuldades: “Apesar do encorajamento e promessas que lhe poderão ser feitas, das distribuições de sementes, etc., o indígena que se recuse a renovar o seu esforço, de que nada de positivo obterá. Se não lhe dá a absoluta certeza que poderá vender os seus produtos em condições de suficiente renumeração, ele afastar-se-á de nós, da nossa civilização, voltará para a sua vida primitiva de antanho.” Falando da assistência ao indígena, declara aos presentes de que o Governo da colónia tem um programa para ela: assistência médica, assistência agrícola e zootécnica, assistência escolar rural e de beneficência. Não deixa de nos surpreender dizendo que é fundamental criar na colónia um movimento associativo rural.
E mudando de discurso recorda à assistência que a Guiné está vivendo condições que não são boas, está passando maus dias, as exportações são quase maioritariamente amendoim e coconote, a exportação de arroz não passa ainda de uma experiência, o comércio vive do descoberto das suas contas nas casas financeiras da Europa. E certamente que terá surpreendido quem o ouvia: “Se um esforço de imediato heroico se não produz, a colónia desmoronar-se-á, e, em poucos anos, de tudo quanto o comércio e o Estado fizeram, nada restará, absolutamente nada, que recorde Portugal ter feito alguma coisa para atualizar a colónia.” Está ciente que não se podem proporcionar mais recursos às necessidades existentes à colónia, mas há o espectro da ruína total, o verdadeiro desaparecimento de edifícios e do material dos serviços públicos.
Se fiz este destaque, é para recordar ao leitor no texto anterior, apresentado dois anos mais tarde, a narrativa toma outro tom, quem investiga estas matérias sente o embaraço nas dissonâncias da narrativa, é bem verdade que naquele ano de 1934 a austeridade era fortíssima, imposta para haver o milagre financeiro de Salazar, dois anos depois o discurso é completamente tranquilo e pede-se muitíssimo para haver boas infraestruturas portuárias, rodoviárias, de saúde, de comunicações – quem investiga tem que ter muita prudência em avaliar as exposições, umas em que predomina a escuridão, outras feitas de luz, quase encadeadora.
Estamos agora já no segundo semestre de 1936 e surge a ata da segunda sessão do Conselho de Governo da Colónia que se realizou em 4 de janeiro desse ano. O governador toma a palavra dizendo que segundo informações oficiais, como protesto a medidas promulgadas por este Conselho, em 23 de dezembro do ano findo, um grupo de indivíduos capitaneado pelo cadastrado Jaime Duarte, no dia 2 do corrente, entrou em várias casas estrangeiras para as compelir a encerrar os seus estabelecimentos comerciais. O governador trazia uma proposta onde se aludia ao incitamento à indisciplina pela Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, exatamente no momento em que se proclamava o estado de sítio da ilha de Canhabaque e, conforme já se escreveu no texto anterior, fora decretada a dissolução desta associação.
O vogal Granger Pinto pediu a palavra dizendo que era infundada esta acusação, contestou que ela tenha provocado incitamento à indisciplina, houvera, é certo, um grupo de indivíduos que entrara na sé da Associação, a protestar legislação referida, a Associação não tivera forças para o fazer retirar. O que efetivamente acontecer é que o comércio da cidade de Bissau, em sinal de protesto contra tal medida legislativa encerrara as suas portas durante os dias que seguiram à publicação do diploma, mas tudo correu em normalidade.
O governador veio à estacada dizendo que houvera entendimentos prévios para se proclamar a greve, ato punível, que a associação se mancomunou com os tais indivíduos, de novo Granger Pinto diz que tudo tinha corrido normalmente, que Mário Campos e Alfredo Vieira das Neves tinham embarcado para Bolama para falar com o governador, à procura de uma plataforma conciliatória, só que a embarcação fora recebido a tiros, o governador interrompe e diz que não é verdade, “o governador da colónia não recebe, nem trata com desordeiros, nem lhe fora pedida antecipadamente para receber qualquer indivíduo ou comissão.” O que em verdade acontecera é que uma vedeta da delegação marítima de Bolama tinha feito sinal à embarcação que transportava o senhor Mário Campos para que parasse, que a embarcação não obedeceu e por esse motivo fora disparado um tiro para o ar, que ouvido o tiro a embarcação do senhor Mário Campos parou.
Interveio agora um outro vogal, de nome José Júlio de Sousa, dizendo que não está convencido que a Associação tivesse provocado o incitamento à indisciplina social. Entende que antes da promulgação do diploma cujo projeto se discute neste Conselho, se deveria proceder a um rigoroso inquérito aos atos de que é acusada. Deve frisar que não pode e nem deve aceitar o projeto do diploma por entender que o seu objetivo só prejudica os interesses do comércio e muito especialmente os da colónia. O governador retoma o seu discurso dizendo que a direção da Associação se manifestara sediciosamente. Agora intervém o senhor Capitão Lima Júnior dizendo que a manifestação havida em Bissau não apresentava senão um protesto contra a legislação, e que não a votava até haver um processo de inquérito. Voltando ao uso da palavra, o governador retorquiu dizendo que já tinha mandado proceder a um rigoroso inquérito, que se concluiu ter havido um pacto com os desordeiros e que o programa enviado ao ministro, redigidos em termos incorretos, era assinado pelo presidente da Associação. O Capitão Lima Júnior responde que seria bom saber se o telegrama fora forjado sem que os interessados dele tivessem conhecimento, interrompe o governador dizendo que o telegrama do presidente da direção agira contra os atos emanados do Conselho da colónia. É a vez de tomar a palavra o delegado do Procurador da República dizendo que estavam proibidas as greves e que como representante do Ministério Público no Conselho votava o projeto do diploma proposto.
Submetida a proposta à votação houve empate, o governador pediu a discussão para outra sessão. Estamos agora em outubro, no Boletim Oficial da Guiné n.º 44 vem o texto do Decreto-Lei n.º 27:058, estava constituída a Legião Portuguesa. O texto é inequivocamente escrito por Salazar, veja-se um extrato:
“Dura há dez anos nova ordem política criada pelo Exército e mais uma vez confirmada pela vontade expressa da grande maioria dos portugueses. À sombra dela tem sido possível reparar as ruínas do passado e lançar as bases do nosso ressurgimento material e moral. Mas, acima de tudo, tem-nos permitido gozar o benefício inestimável da paz. Sempre que se tem querido perturbá-la, a força armada a tem defendido e sustentado. Ela continua, na verdade, a ser a grande reserva moral da Nação.
Mas as forças do mal não desatam. Um inimigo de especial virulência tenta instalar-se no corpo social das nações, infiltrando-se nas escolas, nas oficinas e nos campos, nas profissões liberais e nas próprias fileiras. Nega a Pátria, a família, os sentimentos mais elevados da alma humana e as aquisições seculares da civilização ocidental (…) As formas de atuação do inimigo convencem da utilidade de uma força composta de ardentes e esclarecidos patriotas que, sendo por si mesma uma fonte de saúde moral na sociedade, ajude, caso venha a ser necessário e na esfera de ação que lhe venha a ser atribuída, as forças regulares contra os inimigos da Pátria e da ordem social.
E para que não se corrompa nem desvie dos seus fins, antes viva a exaltação das virtudes cívicas e militares, dá-se-lhe a forma de corpo organizado, sujeito a rigorosa disciplina e diretamente subordinado ao Governo.”
Um dos aspetos mais assombrosos deste Boletim Oficial, é que ao longo de 1936 jamais se ouvirá o resultado da campanha de pacificação de Canhabaque, estamos muito longe do tempo do governado Vellez Caroço que punha em letra de forma este Boletim o que fazia e com que resultados.
Revista Ilustração. Lisboa n.º 205, 1.07.1934. Aspetos da aldeia indígena guineense e imagens dos africanos expostos aos olhares do público. Fonte Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Aspeto da aldeia bijagós e um dos muitos retratos de 'Rosinha' a jovem balanta. (Fonte Maria do Carmo Serén. A Porta do meio, a Exposição Colonial de 1934. Fotografias da Casa Alvão. Porto: Centro Português de Fotografia, 2001)
Espaço onde esteve o Antigo Quartel do Centro de Instrução Militar, em Bolama
Reconhecimento do rio Geba, desde a foz do Corubal até ao rio Geba, 1897, Comissão de Cartografia
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 30 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27071: Historiografia da presença portuguesa em África (492): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o primeiro semestre de 1936) (46) (Mário Beja Santos)