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sexta-feira, 23 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26838: Notas de leitura (1799): José Gomes Barbosa 'versus' Jorge Frederico Vellez Caroço no Boletim Oficial de 1 de julho de 1922 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
Permitam-me uma confissão. Há uns bons meses, dirigi-me à bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia, agradecendo-lhe todas as amabilidades de que tenho sido alvo ao longo destes anos, indesmentíveis ajudas em encontrar documentação com realce para as minhas investigações, e confessei-lhe que ia mudar de ramo, fazer outras coisas. Olhando-me com firmeza, disse-me prontamente que não aceitava tal resposta, que eu devia pensar seriamente que havia uma pesquisa à minha espera: primeiro, consultar o Boletim Oficial de Cabo Verde e da Guiné, até à separação das duas colónias; e, segundo, percorrer por inteiro o Boletim Oficial da Província da Guiné, estas publicações, observou, trazem-me por vezes surpresas que não constam nos artigos.
O que de facto aconteceu quando, lateralmente na sequência cronológica me pus num rasto do autor da única História da Guiné, João Barreto, veio de Margão para Lisboa, aqui terá permanecido ano e meio, seguiu depois para Cabo Verde, em plena Primeira Guerra Mundial, andou por Santiago e Ilha do Fogo, irá aparecer na Guiné em 1919, primeiro em Cacheu, depois em Bafatá, mais adiante em Bolama, onde foi alvo de grande reconhecimento pelo seu trabalho como tenente médico de Saúde Pública. Ao folhear o Boletim Oficial de 1 de julho de 1922, encontrei este naco de prosa que muito nos dá que pensar.

Um abraço do
Mário



José Gomes Barbosa versus Jorge Frederico Vellez Caroço

Mário Beja Santos

Depois de ter escrito um livrinho sobre um afamado epidemiologista goês, muito louvado em Bolama na década de 1920, de nome João Barreto, decidi-me consultar por todo este período o Boletim Oficial da Província da Guiné, o que faço com bastante entusiamos na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Estes boletins têm maioritariamente informações sobre chegadas e partidas de funcionários, promoções e exonerações, relatórios de saúde pública, taxas alfandegárias, predomina o formalismo e a rotina. Só raramente uma notícia assombrosa, um soco no estômago, algo que nos ajuda a entender melhor a mentalidade num certo tempo e num certo lugar. No Boletim Official n.º 26, de 1 de julho de 1922, chamou-me a atenção o processo disciplinar instaurado contra o professor oficial José Gomes Barbosa. Não posso resistir de publicá-lo na íntegra, ocupa as páginas 300 e 301 do referido Boletim:

“Tendo o primeiro oficial, interino, da Secretaria do Governo, José Lourenço da Conceição Leitão, instaurado, por ordem superior, um processo disciplinar contra o professor José Gomes Barbosa, foram a este enviados os seguintes requisitos:

1.º Por que sendo funcionário público, proferiu na loja do sr. João Marques de Carvalho, comerciante estabelecido nesta praça, palavras que demonstram bem o seu nenhum respeito pela pátria portuguesa?

2.º Como professor, devia ser o primeiro a reprimir campanhas de descrédito contra a pátria portuguesa. Por que foi que na loja referida perfilhou as palavras escritas por René Maram?

3.º Por que na mesma loja disse que estávamos sendo governados por mer… e quanto o dono da loja lhe disse que fosse ao palácio dizê-lo a Sua Ex.ª o Governador, por que respondeu que não era quem o dizia, mas sim o René Maram no seu livro?

Assina o instrutor do processo disciplinar, Conceição Leitão

O arguido respondeu nos seguintes termos:

Resposta ao 1.º quesito: Não houve nas palavras proferidas pelo signatário nenhuma falta de respeito para com a pátria portuguesa, que ama e venera, mais que sua própria mãe, como mãe que é de todos os portugueses. O signatário preza-se de ser tão bom português como os melhores, nascidos em Portugal, na metrópole. Houve unicamente uma troca de palavras entre o signatário e alguns dos presentes, e no decorrer da conversação saíram aquelas desgraçadas palavras, que lastima e se arrepende de ter proferido.

Resposta ao 2.º quesito: Como professor, e como português, nunca fez campanhas de descrédito contra a pátria portuguesa. Mormente agora, que é um acontecimento mundial de travessia de Portugal às terras de Santa Cruz, feita por dois heróis, dois portugueses, enfim, os Exmos. Srs. Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que tão alto elevou o nome português, o nome de todos nós.
Não perfilhou as palavras escritas por René Maram antes talvez as tivesse proferido com azedume, porque branco, conquanto natural de Cabo Verde, e portugueses acima de tudo, também se sentia magoado.

Resposta ao 3.º requisito: De nenhum ato de Sua Ex.ª o Governador tem o signatário conhecimento que o levasse a proferir semelhante frase, referindo-se ao mesmo Exm.º Senhor. Tem o mais profundo respeito por Sua Ex.ª, como homem e Governador. Não se lembra de ter referido semelhante frase com referência a Sua Ex.ª o Governador. A conversação que deu origem às frases que me atribuíram e que confessei ter proferido, teve lugar não na loja de comércio do sr. João Marques de Carvalho, mas sim num anexo do mesmo estabelecimento.

É quanto me cumpre dizer em resposta aos quesitos enviados. Bolama, 24 de junho de 1922, José Gomes Barbosa professor oficial.

Sua Ex.ª o Governador da Província deu por último o seguinte despacho:

“Vistos os presentes autos, mostra-se que o professor oficial da escola primária do sexo masculino, em Bolama, José Gomes Barbosa, esquecendo que deve a si mesmo, ao nome português que usa e muito especialmente à nobre missão do Governador que lhe está confiada, proferiu, em público, num estabelecimento desta cidade, umas frases insultuosas para os europeus, para o Governador da Província e, inclusivamente, chegou a renegar a sua própria nacionalidade, dizendo que não era português mas sim cabo-verdiano; e,

Considerando que este professor, pela sua ilustração, exerce uma certa influência entre os seus conterrâneos e que a sua propaganda contra os europeus aqui residentes pode trazer consequências graves;

Considerando, que a fraseologia empregada pelo professor Barbosa, além de imprópria para um indivíduo da sua categoria social, é deprimente e vexatória para a sua raça, admitindo que a pureza do seu sangue seja de uma incontestável autenticidade – o que queremos acreditar porque o sr. Barbosa o afirma?

Considerando ainda, que dando o professor Barbosa circulação a uma manifestação de ódio do preto contra o branco, com imagens e frases que a par de uma grosseria e baixeza de sentimentos, denotam uma crassa imbecilidade e asinina estupidez, está, não somente acirrando ódios e malquerenças do cabo-verdiano contra os metropolitanos, mas, inclusivamente, incitando o preto contra o branco, o que é inadmissível e perigoso; mas,

Atendendo a que o professor José Gomes Barbosa, por completo se retrata das informações que fez e na sua resposta aos quesitos dá cabais satisfações a todos nós, portugueses:
Determino que este funcionário seja repreendido com repreensão averbada no seu registo disciplinar, publicando-se este despacho no Boletim Oficial da Colónia, com a resposta que ele dá aos quesitos que lhe foram propostos, para que tenha toda a publicidade a reparação, visto que público foi o agrado. Cumpra-se e publique-se, Jorge Frederico Vellez Caroço.”


Governador da Guiné Jorge Frederico Velez Caroço
Bolama no tempo do Governador Velez Caroço e do professor oficial José Gomes Barbosa
Nunca encontrei comunicação publicitária como esta, a Loja Nova de António Machado era realmente irresistível
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Nota do editor

Último post da série de 19 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26817: Notas de leitura (1798): "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

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