Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26835: Humor de caserna (199): O meu grande "bubu" azul!... Que pena não mo terem deixado levar, vestido, no avião da TAP, de regresso a casa !... (Jorge Cabral, 1943-2021)






Foto nº 1


Foto nº 2



Foto nº 3


Legendas:

Fotos nºs 1 e 2 > Lisboa > Belém > 10 de junho de 2016 > O ex-alf mil art  Jorge Almeida Cabral, antigo cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) com uma jovem militar da Marinha (foto nº 1);  e com Maldu Jaló, natural de Catió, e que era do tempo do Mário Fitas, tendo feito  parte da milícia do João Bacar Jaló (foto nº 2, aqui mais a esposa) (Fotos do Mário Fitas, ex-fur mil inf OR / Ranger, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67).

Fotos (e legendas): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 3 Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Jovem fula ou mandinga vestido o seu grand boubou, e protegendo-se da canícula por intermédio do seu inseparável chapéu automático (dois luxos que chegavam à tabancas do interior, graças ao comércio dos djilas do tchon francês e ao patacon da guerra).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-fur mil OE/ Ranger,  CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
 
Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. 
Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.  Tinha um II volume, praticamente pronto para ser publicado. A morte surpreendeu-o. A "estória" que reproduzimos não vem no livro... Foi publicada no blogue há 19 anos atrás. Merece ser conhecida dos nossos "periquitos".


1. Um dia o "alfero Cabral", o Jorge Cabral (Lisboa, 1943 - Cascais, 2021), sonhou que podia ser Cabral entre os Cabrais,  fula entre os fulas, mandinga entre os mandingas, guinéu entre os guinéus, homem entre os homens... e até louco entre os loucos!

Foi de tudo um pouco, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné. Filho de militar e aluno  do Colégio Militar, disse-me em vida que "todos nós tinhamos direito a um pouco de loucura e de humanidade", o que implicava pôrmo-nos na pele do outro; e ele fazia isso como ninguém... 

Morreu cedo demais, aos 78 anos. Lembrá-lo aqui, no blogue que ele tanto amava, é um dever dos seus amigos e camaradas da Guiné.




Má chegada, pior partida... com o meu grande "bubu" azul e sempre com ameaça de porrada...

por  Jorge Cabral (1943-2021)



Com destino à Guerra, viajei no 
Alfredo da Silva, quase um cacilheiro, durante doze dias. Em primeira classe, sete oficiais e uma dona puta em pré-reforma habitavam um ambiente de opereta, jantando de gravata, com a estafada dama na mesa do comando. Depois havia a valsa… Cheirava a mofo, a decadência, ao fim do Império…

Cheguei à noite, sentindo logo a África, no calor, na cor, na humidade. A bordo subiram militares, e o putativo marido da senhora, cuja profissão nunca descobri. 

Um sargento gago carimbou-me a guia de marcha e assinalou:

− Pel Caç Nat 63. 

Bem lhe perguntei o significado da sigla e para onde ia, mas não sabia ou não quis dizer.

Desembarcado, apanhei uma boleia num camião militar carregado de batatas, que me deixou no "Biafra", depósito de alferes em trânsito por Bissau.

Talvez para impressionarem o periquito, todos se mostraram totalmente apanhados. Quanto ao meu destino foram animadores

 É,  pá, vais para um pelotão de nharros. É só embrulhar. Estás lixado.

Apresentado no Quartel-General, ordenaram-me a partida para o Xime. Tinha que tomar um barco no dia seguinte, às tantas horas.

 Regressado ao "Biafra", aconselharam-me a não ir:

 − Recusa-te. Os barcos são sempre atacados.
 
Confiante na experiência dos velhinhos, falhei o embarque tendo voltado ao QG. Aí um capitão barrigudo passou-me a um major nervoso, que me remeteu para um tenente-coronel que, quase apoplético, me descompôs:

 
− Começa mal! Está a pedir uma porrada. As ordens são para cumprir. Desapareça da minha vista!

Desapareci, e o certo é que fui de avião para Bafatá.

Muitos dias, muitos meses, mais de dois anos passaram e eu continuei no mato. (As cunhas funcionavam na perfeição. Chegados a Bissau, em rendição individual, podiam ser encaixados, sem grande escândalo, em qualquer Repartição.) 

Tinha porém de ser rendido, e a solução foi encontrada a nível de Batalhão, substituindo-me por um alferes da Companhia de Mansambo.

Entretanto o meu Pelotão foi para a ponte do rio Undunduma e a Missirá voltou o Pel Caç Nat 52, tendo eu permanecido mais três semanas e entrado ainda numa operação, na qual morreram dois soldados africanos que, indo a fumar o mesmo cigarro, accionaram uma mina antipessoal reforçada.

Finalmente, e após uns dias em Bambadinca, embarquei no Xime com destino a Bissau. Recusara à chegada, mas afinal regressava de barco… e ao "Biafra". Agora eu era o velhinho e o apanhado.

No dia da partida, eu que cismara aparecer em Lisboa vestido com o bubu azul, bordado a ouro, que comprara a um djila senegalês em Missirá, resolvera mandar encurtar a vestimenta a um costureiro de rua. Enquanto esperava, passou por mim um furriel conhecido, que me alertou: o voo havia sido antecipado. 

À pressa, pego no fato, meto-me num táxi e vou para Bissalanca (toda a minha bagagem, fotografias, o meu diário, os versos que escrevi, ficaram no "Biafra").

Chegado ao aeroporto enverguei o meu traje, causando o espanto e o riso dos passageiros, militares. Eis que sou cercado por um coronel e dois majores, os quais em coro me determinam:

– Não pode ir assim, é uma vergonha, lembre-se que é um oficial....E blá, blá, blá…

Tento contestar:

− Se um fula pode embarcar com um fato europeu, porque não posso eu ir vestido à fula?

Nada feito, se persistir não vou e levarei uma porrada. Obrigado a obedecer, lá entro no avião, no qual segue também o coronel, o que impediu de me fardar a bordo.

Teimoso,  porém, mal chego a Lisboa, envergo o grand boubou e é com ele vestido que abraço a família. 

Franze o sobrolho o meu pai que me diz que o Carnaval ainda não chegara, que tivesse juízo e não o fizesse passar vergonhas… Quanto à minha mãe, chorava, talvez de alegria, mas muito mais de tristeza. Coitado do filho…enlouquecera!

Num destes dias vou de novo vestir o meu grand boubou. Pode ser que tenha conquistado o direito a um pouco de loucura. Talvez


(Revisão / fixação de tecto, título: LG)
____________________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26677: Humor de caserna (198): Carlos Fabião, um oficial duplamente superior, grandalhão e brincalhão (António Novais, ex-fur mil trms, Cmd Agr 2951, Cmd Agr 2952 e Combis, Mansoa e Bissau, 1968/70)

3 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Só tive o privilégio de o conhecer pela palavra.
Um Homem acima de tudo.
Um Homem acima dos homens que presumem mandar.
Para o Alfredo Cabral e para os companheiros das memórias um grande abraço.
Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sempre "desconcertante" e "desalinhado", o "nosso alfero Cabral", um dos grandes "cromos" da "nossa" Guiné:

"Se um fula pode embarcar no avião da TAP com um fato europeu, porque não posso eu ir vestido à fula, meu coronel?"...

A pergunta tinha todo o sentido... Se é verdade que o "bubu" não fazia parte da farda de um militar português, também era verdade que o nosso comandante-chefe e governador da província era o senhor general António de Spínola e não... o "Caco Baldé", como o povo o tratava...aliás, com respeito, consideração e até carinho.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Estou a imaginar a "cena": o pai Cabral, oficial do exército, a dar uma "rabecada" ao "alfero Cabral", miliciano, vestido com o seu grande "bubu" azul comprado a um gila do Senegal em Missirá..."Anda um pai a criar um filho para isto!"... O (e)terno conflito de gerações...