Guiné-Bissau >
Bissau, capital do país.
Planta da cidade, pós-independência.
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A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006
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1. Alguns camaradas aceitaram, de imediato, a minha
provocação para contar estórias de Bissau (1), as impressões (necessariamente breves e fragmentadas) de quem, como a maior parte de nós, por lá passou, a correr, a caminho do mato, ou do regressso do mato (leia-se: da guerra)...
Mesmo os que fizeram a
guerra do ar condicionado têm direito à palavra, embora eu não me lembre de ter aparecido até agora, na nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, nenhum felizardo que tenha estado toda a comissão em Bissau, na
guerra dos papéis... Se quiser aparecer, posso assegurar que não será hostilizado... Eu sei que, já naquele tempo, uns eram filhos e outros enteados: era o caso, por exemplo, do Almodôvar, aqui evocado por Marques Lopes. Vieram juntos no mesmo barco: um, o felizardo ficou no QG; o outro, o desgraçado, foi para Barro...
Já tenho aqui duas mensagens, a do Humberto Reis, meu camarada da CCAÇ 12 (
Contuboel e Bambadinca, 1969/71) e do A. Marques Lopes que, para chegar a coronel, teve que comer o pão que o diabo ia amassando, de Geba a Barro: nove meses de Hospital Militar Principal foi quanto demorou o parto (distócico) que o levou à sua... segunda comissão, em
Barro, na região do Cacheu!
2. Mensagem de
Humberto Reis:
Luís:
Comprei a minha 1ª máquina fotográfica, uma Petri, na Foto Serra em Bissau, em 1969. Nessa altura a Foto Serra era numa esquina mesmo em frente ao Forte da Amura, onde se apanhavam os transportes para o QG.
Um abraço
Humberto
Comentário de L.G.: Bendita compra. Apanhaste o gosto da fotografia e hoje, graças a ti, temos excelentes provas, irrefutáveis, da nossa passagem pela Guiné...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Região do Xime > O Humberto Reis, assinalado com um círculo a vermelho, numa das muitas
piscinas de água aquecida que havia no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole... (Aqui, com o seu pelotão, o 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 , deslocando-se numa bolanha em zona controlada pela guerrilha do PAIGC)...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais,
CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
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Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006
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3. Texto do A. Marques Lopes:Caros camaradas,
Vou responder ao desafio do Luís e falar sobre a minha experiência em Bissau. Foi curta, porque de alguns dias apenas, lá passados: (i) antes de embarcar para o
puto (quando cheguei à Guiné passei do Ana Mafalda (2) para uma LDG e fui de imediato rio Geba acima...); (ii) quando esperei para ser colocado em Barro, depois de regeressar do HMP; e (iii) quando lá estive de passagem no final de 1968... Mas foi uma experiência intensa, porque aproveitada como primeira oportunidade de esconder mágoas e frustrações, porque tive necessidade de, também ali, dar largas à loucura que se apossara de mim durante todo o tempo em que estive no mato.
Nesse período, conheci pouco de Bissau, apenas restaurantes, o QG e o Pilão. Muito boas recordações dos restaurantes, onde fiz grandes tainadas e apanhei grandes bebedeiras com outros camaradas, tão necessitados como eu. Mas, quanto a nomes, só me lembro do Bento - a famosa 5.ªRep -, centro de conversas dos velhinhos regressados do mato e de histórias das suas guerras, perante os olhos e, sobretudo, os ouvidos atentos dos miúdos que ali engraxavam as botas dos militares por 1 ou 2 pesos.
Guiné > Região de Cacheu > Barro CCAÇ 3 > Barro > 1968 > O
Alfero Lopes, despois do seu regresso do HMP, com alguns dos elementos do seu novo grupo de combate,
Os Jagudis, de etnia balatanta.
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Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa (um quarto apenas...) dormi algumas noites, numa cama onde dormia também o bébé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, me fez, uma noite a proposta de eu trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes:
- Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.
Boas noites lá passei, uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:
- Está ocupado! - e eu a ajudava dizendo:
- Estou eu, vão pra outra!
Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que tive de sair a meio. É que o bébé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, tive de lhe dizer:
- Fatinha, já não dá. Vou-me embora.
Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha uma filhas mulatas (não me lembro do nome dele). A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Fui lá uma ou outra vez, só para beber, porque, perante aquela situação, senti que o raio da consciência ainda me zurzia.
Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Extremamente desagradado fiquei, como não é difícil calcular, quando, depois de vir do HMP [Hospital Militar Principal] (3), procurei que não me enviassem para o mato, que estava mal dos ouvidos, etc...
- É pá, há um gajo que tem de ser substituído lá em cima. - E mandaram-me para Barro. Mas o Almodôvar (o nome por que eu o tratava), um gajo que tinha chegado comigo, filho de um latifundiário alentejano, ficou no QG.
Depois, quando por lá passei em finais de 1968, fui encarregado, na passagem de ano, de montar uma emboscada perto do aeroporto de Bissalanca. Pensava-se num ataque do IN. Deram-me um grupo de
maçaricos recém-chegados, com alferes e tudo. Achei por bem esvaziar os carregadores de todos, menos os dos furriéis e o do alferes. Mas o desagradável foi outra coisa: antes de partirmos para a missão, fui até ao bar da messe de oficiais do QG beber umas coisas. Estava calmamente assentado num
maple com as bebidas em cima duma mesita e eis que o gerente da messe, o tenente-coronel Lavrador (assim lhe chamavam por se preocupar muito com a horta da messe), se me dirige:
- Você não pode estar aí.
- Porquê!? - espantei-me eu.
Apontou e criticou-me a camuflado sujo, debotado, com alguns buracos:
- Está a sujar o
maple.
Bem - foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?... - levantei-me e virei-me a ele. Não chegámos a vias de facto porque o Major Fabião, que estava ao balcão, veio prestes separar-nos. Acabei as bebidas e arranquei para levar o grupo para o aeroporto. No caminho, quando passámos junto da Associação Comercial, vi que havia lá grande festa, muita música e, pensei, com certeza bailarico. Ali estão os gajos que me fazem estar aqui. Mandei parar as viaturas. A minha primeira ideia foi ir lá e
foder aquilo tudo (assim pensei,
sic). Mas acabei por estar alguns minutos a falar sobre o que íamos fazer e como actuar. Fraqueza ou bom senso, ainda não sei.
Mas houve algumas coisas giras quando passei pelo QG, antes do regresso à metrópole. Algumas noites, eu e mais alguns farrantes dos restaurantes de Bissau, pegávamos em algumas garrafas das bebidas que de lá ainda tínhamos trazido, gritávamos
Ataque!, e lançávamo-las sobre os telhados de zinco das camaratas ao pé da messe de oficiais. Era um grande gozo ver o pessoal a sair esbaforido e em cuecas!
E, um certo dia, o Almeida Santos (não é esse!...), meu amigo e parceiro de borgas, requisitou um jipe e convidou-me para dar uma volta por fora de Bissau. E lá fomos os dois até
Nhacra. Aí parámos numa baiúca para nos atestarmos. Bem comidos e bem bebidos, decidimos que podíamos ver mais coisas, e decidimos ir estrada fora. E fomos, fomos sempre... até chegar a
Mansoa! Vimos um jogo de futebol entre os elementos da companhia que lá estava. Entrámos na festa no fim do jogo e bebemos mais umas coisas.
Quando se fez tarde, achámos por bem regressar a Bissau. Demos boleia a um fuzileiro que lá estava (a fazer não sei o quê), o Almeida Santos a conduzir, eu no banco ao lado e o fuzileiro no banco de trás. Foi uma viagem agradável, pôs-se escuro rapidamente, era melhor acelerar e eu achei por bem animar o pessoal, levantei-me e, com as mãos no pára-brisas, comecei a cantar algumas canções do festival de San Remo. Estava giro. Só que, antes de chegarmos à base aérea, o Almeida Santos perdeu o controle do jipe e foi contra uma árvore que estava a dez metros da estrada.
Eu fui projectado, voei e aterrei dentro do capim, não desmaiei e tomei consciência de mim, passados alguns segundos. Olhei para trás e vi o jipe a arder. Levantei-me e fui lá para ver. Havia dois corpos ao pé: o fuzileiro gemia, o meu amigo não dizia nada. Peguei-lhe na cabeça e fiquei com as mãos cheias de sangue. Merda! O fuzileiro disse-me que lhe doía o peito. Que vou fazer? A resposta foi-me dada pelas luzes de duas viaturas que vi aproximarem-se vindo da base aérea. Tinham visto o fogo e vinham ver o que se passava. Foram eles que nos levaram para o HMR 241. Como eu não tinha nada fui mandado em paz. O fuzileiro ficou lá com duas costelas partidas, o Almeida Santos com um lanho na cabeça e uma ferida grossa na barriga da perna.
No dia seguinte, fui contactado para ir ao local com um major que fora encarregado de instruir o processo de acidente. Eu era testemunha. O Almeida Santos, que requisitara o jipe, que ia a conduzir e que era mais antigo do que eu, era o arguido. Quando lhe disse que o jipe saíra da estrada porque tinham falhado as luzes, o major riu-se muito. Fiquei a saber, mais tarde, que o arguido tinha levado 10 dias de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe (cerca de 300 contos na altura) e, o pior, não embarcou quando devia embarcar. Antes de apanhar o barco de regresso, fui ao hospital visitá-lo: estava de cabeça ligada, uma perna pendurada ao alto e (estava sempre na maior!) a beber uma cerveja pelo gargalo.
E uma que me deu muito gozo. Tinham-me dado o processo de um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG. Escandaloso, claro, inadmissível. Na véspera do meu embarque de regresso, ao preparar as minhas coisas, olhei para o processo e achei que não devia ter futuro. Rasguei-o aos bocadinhos e meti-o num caixote de lixo. Ninguém me perguntou por ele, sequer.
Muitas considerações e reflexões há a fazer sobre o que vos conto. Eu já as fiz, mas prefiro, agora, contar-vos os factos friamente. Até porque sei que todos pensarão nos quês e nos porquês de tudo isto.
Um abraço
A. Marques Lopes
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 10 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1264: Postais Ilustrados (10): Bissau, melhor do que diz o fotógrafo (Beja Santos / Mário Dias)(2) Vd. post de 28 de Junho de 2005 >
Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967) (A. Marques Lopes)
(...) " Às 16h00 do dia 15 de Abril de 1967 o Ana Mafalda chegou ao porto de Bissau. A 16 de Abril a companhia passou directamente do navio para LDGs e seguiu pelo Geba acima até Bambadinca.
"Foi engraçado e giro, como devem calcular, para o pessoal que ia enfiado, ouvir os fuzileiros que nos levaram ir dizendo, em cada curva ou ponto mais apertado do rio:
- Olhem que aqui costuma haver ataques!...
"A 17 de Abril seguimos de Bambadinca para Geba em coluna auto. E fomos render a CCAÇ 1426, do Belmiro Vaqueiro" (...)
(3) Vd. posts de:
30 de Maio de 2005 >
Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara (A. Marques Lopes)
(...) "E já agora, aqui vai um exemplo das dificuldades para chegar a Banjara. Digo-vos também que foi no caminho para lá que eu fui ferido e fui, por isso, para uma estadia de nove meses no Hospital Militar Principal da Estrela [,em Lisboa] "(...)
5 de Junho de 2005 >
Guiné 69/71 - XLVI: Em memória dos bravos de Geba... (A. Marques Lopes)
(...) Sempre que possível, fiz-me acompanhar de um atirador-fotógrafo, que atirou algumas fotografias sempre que pôde. E pôde poucas vezes, é claro, como podem calcular. Algumas das fotografias não corresponderão, provavelmente, às operações relatadas, porque já não as consigo situar, mas servem de ilustração do que era normal em todas elas [vd. também
Banjara e Cantacunda].
"Era uma zona muito propícia a
azares, como têm visto. Também me calhou a mim (não era mais que os outros, claro, apesar de ter estado 24 horas no campo do inimigo... "teve de ser assim", como disse o
Comandante Gazela). Um dia, quando ia no caminho
de Geba para Banjara, fui ferido (e sortudo, mais uma vez), assim como o soldado Lamine Turé, do meu grupo de combate ; na mesma altura morreu o comandante da CART 1690, que quis ir comigo nessa viagem, o
capitão Manuel C.C. Guimarães (tinha 29 anos, era filho de um sargento-ajudante e sobrinho da Beatriz Costa), e morreu o soldado Domingos Gomes, também do meu grupo de combate.
"Levei o corpo do capitão, porque me pareceu que estava ainda vivo, e o Lamine, directamente para
Bafatá... porque em Geba não havia médico, vejam lá! Não levei o do Domingos Gomes, porque ficou aos bocados, não deu tempo nem tive condições para os recuperar. De Bafatá fui evacuado para o HM241 [em Bissau], primeiro, e para o Hospital Militar Principal,[em Lisboa], passada uma semana.
"Lá se foi, pois, o régulo de Geba... (gostei desta, amigo Luís Graça!). Não há relatório desta situação, obviamente, uma vez que não ficou quem o pudesse fazer.
"Falar-vos-ei, depois, da
CCAÇ 3 [Barro, 1968], onde fui colocado depois da minha estadia no HMP, embora dela não tenha senão a minha lembrança e as fotografias que um outro atirador-fotógrafo teve oportunidade de atirar" (...).