sábado, 28 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais Alves de Jesus (Pedro Lauret)

1. Mensagem de Pedro Lauret:

Caro Luís,

Envio-te o email do Alves de Jesus, hoje capitão-de-mar-e-guerra, na altura 1º tenente comandante do DFE4 [Destacamento de Fuzileiros Especiais, nº 4]. Trata o texto conforme entenderes, com a sabedoria que te é conhecida.

Envio-te tal qual o recebi pois é preferível não ser mexido por mais que uma pessoa, se for caso disso. Falei com ele por tm que me autorizou a publicar o que quiséssemos. Penso que ainda não estará disponível para pertencer à tertúlia, o tempo poderá fazê-lo mudar de ideias.

Um abraço
Pedro Lauret


2. Mensagem de Alves de Jesus:

Caro Pedro Lauret:

De facto já lá vão uns largos anos que o nosso contacto se perdeu, mas a vida é mesmo assim e cada um tem de percorrer a sua.

Relativamente à minha passagem pela Guiné (73/74), comandando o DFE 4, ela foi uma etapa da minha carreira militar bem marcante e indelével. As diversas situações de perigo porque passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que as mesmas tenham sido enfrentadas, por quem as protagonizou, de modo muito diferente.

Tudo aquilo ficou dependente da sensibilidade de cada um… pela minha parte sofri bastante e os pesadelos ainda surgem durante a noite e já vão escasseando à medida que o tempo passa.

Portugal enfrentou a guerra colonial em várias frentes e, sem menosprezo por aqueles que combateram em Angola e Moçambique, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas características, foi, na minha opinião, a mais difícil e perigosa de enfrentar.

Nós, os que escolhemos, por vocação, a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que partiram compulsivamente para combater nas ex-colónias.

Reflectindo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou. Senti, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar e a noção das consequências que as mesmas poderiam ter sobre a vida dos comandados.

Senti uma aproximação que, presumo única entre o Comandante e o militar mais moderno da Unidade, ambos seres humanos, sofrendo as mesmas carências, executando o mesmo esforço físico e sujeitos de modo igual ao mesmo perigo.

Nestas condições a acção de comando é mais vulnerável, mas quando bem desempenhada, tem uma apreciação mais justa e respeitada por parte dos subordinados.

Sobre o que me solicitas, vou limitar-me a transcrever a parte do livro Guiné 1968 e 1973 (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me identifico e por nela ter tido intervenção directa na tentativa do rompimento do cerco a Guidaje:


" (...) Na manhã de 22 de Maio partiu de Binta para Guidaje nova coluna logística, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali tinham vindo a acumular-se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ametista Real, a qual, de acordo com prognósticos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo.

"Conforme planeado, a CCP 121 (1) encarregava-se da protecção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de itinerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3.

"O deslocamento iniciou-se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, justificada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do itinerário. Além disso, foi também necessário utilizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tentativas de reabastecimento a Guidaje.

"Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o itinerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina anti pessoal, reforçada com uma mina anti carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do itinerário, e que tem de se compreender face à sucessão de acontecimentos dramáticos ocorridos nas últimas semanas, tornou-se mais viva, forçando o 1º tenente Alves de Jesus e o alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre.

"Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e radiotelegrafista da coluna.

"Informado, em Guidaje, da ocorrência, o tenente coronel Correia de Campos deu instruções para que se retomasse a progressão logo que estivesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência utilizando um desvio, uma vez que o itinerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do itinerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do itinerário, a qual não foi levantada por não existir na coluna pessoal habilitado para o efeito.

"Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-la com um grupo de combate que saiu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 3 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de partida, que atingiu cerca das 17H45" (...).

O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido devidamente assistido em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Recordo tê-lo encontrado há alguns anos em pleno Rossio (Lisboa). Referiu-me que já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava actividade profissional num armazém.

Para selar o nosso reencontro fomos beber alegremente uma ginginha.


Caro amigo e camarada


Para finalizar: aprendi que a amizade nascida das vivências resultantes do perigo e das vicissitudes da vida são eternas!


Forte abraço do

Alves de Jesus

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

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