Foto e texto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.
Luís: Saúde, paz e felicidade para ti, para os teus e para todos os camaradas que partilham a aventura de serem bloguistas no teu/nosso blogue.
Poucos camaradas conheço pessoalmente, mas conheço-os de facto. O engraçado é os sinto tão perto de mim. Como que os toco. Como que sinto o seu respirar, tal como quando caía debaixo de fogo e ouvia o grito do camarada ao lado. Grito de raiva, de medo ou de ódio, expresso num palavrão sonante ou então o grito da morte, “estou fodido”, “já não vejo”, “adeus, minha filhinha”, "Oh minha mãe querida” ...
Felizmente pude cantar, sempre, o grito da vitória. A minha vitória. A vitória da minha vida, até ao próximo encontro (reencontro). Quantas vezes foi canto de raiva e lágrimas não contidas pelos camaradas que agoniavam a meu lado ou tinham partido para a caserna eterna, ali mesmo. Sem saberem como, nem porquê e sobretudo para quê ?
Por isso procurei escrever, a quente, para melhor libertar a raiva que me consumia.
A imagem de guerra que me ficou na retina e na mente foi a da “minha guerra”, com todas as marcas do sofrimento, das angústias, das dores e das mágoas. Dos companheiros que se foram, das corridas das populações para os abrigos. O seu espreitar expectante à porta dos abrigos, o choro das crianças assustadas, os gritos angustiados dos feridos, o desespero da mãe que fugiu para o abrigo e deixou a bebé na morança e ao regressar para a recuperar, uma bomba assassina barrou-lhe o caminho, ferindo-a gravemente. E sua bebé morreu carbonizada ali, á sua frente, a dois passos, sem lhe poder valer... Quantas vezes me pediu para a deixar morrer. Tinha se esquecido da sua menina, não merecia viver.
Mas a guerra real foi muito mais que a “minha guerra”. Senti muito de perto o drama dos camaradas de Gandembel. Fizeram parte da minha guerra, quando tive de participar nas colunas de reabastecimento e depois fomos durante algum tempo companheiros de fortuna em Buba. Ouvia de longe o soar quase diária das bombas a cair sobre Guilege, Gadamael, Mejo, Cacine, Tite e tantos outros locais, mas não fazia ideia dos extremos a que tinha chegado a nossa luta na Guiné, sobretudo nos últimos anos.
Ainda hoje ressoa por esse nosso País que os combatentes continentais que estavam na frente de guerra foram uns cobardes e abandonaram vergonhosamente as frentes de combate. Para quem viveu o drama da guerra a sério, isto é um insulto. Está mais que provado que a guerra na Guiné estava numa situação insustentável. Está mais que provado que os nossos camaradas estavam na ponta final da sua resistência física, psíquica, anímica.
Eu, ao fim de algum tempo de Guiné, senti bem profundamente, quanto fui enganado pelos políticos da época. Se a guerra, por princípios educacionais e de ideal, para mim, não tinha razão de ser, daí o facto de ter jurado a mim mesmo não dar um tiro, pouco tempo depois de chegar à Guiné, no contacto com as populações de Mampatá Forreá, descobri que a força da razão estava do outro lado. Então a guerra perdeu definitivamente todo o sentido para mim. O importante passou a ser, regressar, regressar a qualquer preço e não deixar marcas negativas.
Os testemunhos que continuam a cair no blogue, são como bombas que explodem e abanam de novo as nossas consciências, são como que um grito de libertação, um grito de afirmação da realidade que tantos de nós vivemos e que os políticos continuam a tentar fazer esquecer e abafar.Gandembel, Guileje, Gadamael, Mejo, Guidage e tantos outros Guidajes existiram mesmo.
Pena é que este grito, que o blogue, que em boa hora decidiste lançar e tornar num espaço de acolhimento para todos nós e para os que ainda hão-de vir, onde nos revemos e partilhamos a amizade e a fraternidade forjada numa luta inglória para a qual fomos conduzidos e se outro mérito não teve, pelo menos, está a unir-nos num desejo comum; libertar fantasmas, revisitar o nosso passado, redescobrir cada um, contar a verdadeira história da guerra da descolonização, em que para azar nosso, estávamos do lado oposto. Pena é que esses gritos, não sejam ouvidos, lidos, pelo Zé povinho da nossa terra e sobretudo pelos politiqueiros da praça.
É preciso, é urgente que a verdadeira face da guerra seja posta a nu, para que se faça justiça, nem que seja só a justiça moral.
Nunca pensei verter mais lágrimas de guerra, para além das que não segurei durante a minha estadia no T.O. da Guiné.
Em 2005 as alegrias foram imensas, quando passados trinta e cinco anos descubro de novo os amigos e amigas que lá deixei e que não se esqueceram de mim, nem eu deles. Momentos fantásticos!
Pensei que tinha “enterrado” definitivamente a Guiné, mas deu-se o contrário. Fiquei apaixonado de vez por aquelas gentes simples e hospitaleiras do interior, por onde palmilhei durante dois longos anos, os mais longos da minha vida.
Cada testemunho novo que aparece no blogue, leva-me de novo até àquela terra vermelha. Por vezes a comoção, senão a raiva, apossam-se de mim.
Afinal houve quem viveu e sofreu muito mais que eu... O testemunho do A. Mendes sobre Guidaje é impressionante. Como foi possível chegar àquele extremo ? Como foi possível que os militares e políticos quer na Guiné, quer em Lisboa não se tenham apercebido da realidade que até um ceguinho (e tantos de nós éramos ceguinhos ou estávamos envenenados pelos Goebels da nossa terra) se apercebia ?
Bem vindo, A.Mendes. Nunca te arrependas de contar toda a tua história, que afinal é a estória de todos nós.
Subscrevo com profunda emoção o texto do Torcato. Estamos unidos num passado comum. Temos obrigação de o passar aos vindouros para que os erros, dos quais fomos vitimas, não se repitam.
O Pedro Lauret que viveu tão profundamente o drama de Guileje tem razão. Não podemos parar. É preciso gritar bem alto o que nos vai na alma.
Luís, como tu muito bem afirmas, “somos uma espécie em extinção”. Os homens passam, mas a sua história fica. Que a nossa fique para a eternidade.
Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi.Convencido que ninguém passara o que eu passei, mas rapidamente verifiquei que a guerra estava endurecer ao ler nas entrelinhas os célebres e lacónicos comunicados. Mas nunca imaginei os extremos a que chegou a guerra na nossaGuiné. Nossa, porque eu hoje sinto-me filho da Guiné. A frase que em 2005 ouvi de um Guineense, marcou-me “sou Português da Guiné” e levou-me a descobrir que eu sou Guineense de Portugal.
Sinto-me irmanado com todos os que partilham no blogue as suas emoções, as suas estórias, tão verdadeiras, mas tão esquecidas ou abafadas, como fosse possível abafar a história. Daí o sentir-me tão perto de cada um, mesmo sem o conhecer pessoalmente.
Um fraternal abraço para todos.
Zé Teixeira
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi
Vd. também post de 18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXI: Do Porto a Bissau (18): Sadiu Camará, um sobrevivente (A. Marques Lopes)
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