Capa da obra de Mário Braga, O Livro das Sombras. Lisboa: Arcádia, 1960 (Autores Portugueses, 13). O livro tem uma dedicatória do autor ao Beja Santos: "Para o meu jovem admirador Mário Beja com a sincera simpatia do Mário Braga. Lisboa, 8/7/61". Cinco meses antes, a 4 de Fevereiro de 1961, tinha começado oficialmente a Guerra do Ultramar. A 18 de Julho de 1961, começa a operação de cerco a Nambuangongo, ocupada pelos rebeldes nacionalistas desde o início da sublevação em Angola. Sete anos depois, o alfacinha Mário Beja Santos chega à Guiné para comandar um Pelotão de Caçadores Nativos, num obscuro lugar, no regulado do Cuor, na margem direita do Rio Geba, chamado Missirá...
Mário Braga, que se destacou sobretudo como contista e novelista, nasceu em Coimbra, em 1921. Na Universidade de Coimbra formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Foi editor da revista Vértice, editada em Coimbra, a partir de 1942 e que vai ser o porta-voz do movimento (literário e artístico) do neo-realismo. Esta revista de cultura e arte foi um dos casos de maior longevidade no campo das letras e das ideias em Portugal. Um dos seus directores foi o poeta Joaquim Namorado (1914-1986).
Algumas outras obras de Mário Braga, quase todas esgotadas: Nevoeiro (contos) (1944), Caminhos sem Sol (novelas) (1948), Serranos (Contos) (1948), Mariana (novela) (1957), Quatro Réis (contos) (1957), Vale de Crugens (novela) (1958), Histórias de Vila (contos) (1958), O Cerco (Novelas) (1959)... Traduziu, entre outros livros, O Silêncio do Mar (contos), de Vercors, editado em Portugal em 1959. O original foi publicado em 1942 . Vercors era o pseudónimo literário de Jean Bruller.
Capa da edição, mais recente, do livro O Silêncio do Mar. Lisboa, Editorial Presença, 1986, c. 66 pp. Preço: c. 8 euros. Fonte: 2002 © Editorial Presença ( com a devida vénia...).
Mensagem com data de 28 de Setembro de 2006, de Mário Beja Santos (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70:
Caro Luís, acredites ou não, tudo o quanto aqui digo é realidade sem ficção, é água tão pura que resolvi partilhá-la com todos os tertulianos. Recebe um abraço do Mário.
Caro Mário: Eu não preciso de acreditar... Não é um questão de fé nem de confiança. Somos camaradas e, mesmo sem nunca termos sido íntimos, fizemos algumas operações juntos e eu conheci as terras do tigre de Missirá... Entre camaradas não se faz batota. E nestes últimos meses, graças ao nosso blogue, eu tenho a oportunidade de te conhecer melhor. Estou-te profundamente reconhecido pelos teus testemunhos desse teu/nosso tempo... Sei que estás a reviver intensamente esses anos, irrepetíveis, únicos, da tua vida. Transmite, por favor, ao teu velho amigo Mário Braga a minha simpatia e o meu apreço. Os teus amigos do tempo de Guiné nossos amigos são. (LG)
A inesquecível companhia que o Mário Braga me fez na Guiné
por Beja Santos
Há dias, visitei Coimbra, subi à Sé Velha, demorei-me a olhar a prodigiosa entrada lateral renascentista e o casario em frente onde, em 1961, no primeiro andar em que funcionava o Instituto Maternal, conheci o Mário Braga. A minha mãe era funcionária administrativa da Maternidade Dr Alfredo da Costa e uma das suas maiores amigas, a Irene, fizera concurso para o Instituto Maternal em Coimbra, razão da sua visita à cidade do Mondego. Acompanhei-a com satisfação e a Irene disse-me:
- Vou-te apresentar ao meu chefe, que é escritor e jornalista como tu gostarias de ser. Ouve-o com atenção, pois tu precisas de ter bons mestres.
Mário Braga era indiscutivelmente um nome cimeiro do neo-realismo literário. Eu conhecia alguns dos seus contos, que achava assombrosos. Enquanto as duas amigas conversavam, o escritor, chefe de secretaria do Instituto Maternal, convidou-me para o seu escritório, falou-me do seu trabalho como editor da revista Vértice e amavelmente entregou-me três livros com dedicatória e uma braçada de revistas.
Devorei Serranos (guardo a edição com ilustrações de Cipriano Dourado) e li vezes sem conta O Livro das Sombras, mais tarde premiado, galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências. Nas dedicatórias, o Mário Braga desejava felicidades ao seu jovem admirador. Ao longo dos anos, fui acompanhando à distância o seu trabalho literário, levei mesmo para a Guiné o Corpo Ausente e o terceiro livro que me oferecera, O Silêncio do Mar, de Vercors que ele traduzira, penso eu nos anos 50, para a Atlântida Editora.
Vercors, de quem hoje não oiço referências, foi um resistente que usou a escrita durante a ocupação nazi. Nas antologias ainda hoje é tido como um valor permanente da literatura francesa. Mas, fenómeno dos tempos, as suas temáticas e as suas inquietações estão fora de moda. Não sabia o Mário Braga a alegria que tive quando um dia, aí para Novembro de 68, fui ao fundo de um dos baús dos meus livros e conheci O Silêncio do Mar.
É uma pequena e maravilhosa história de tolerância, de cultura e diálogo europeus, de premonição da união entre os povos da Europa, mas também de profundíssima tristeza quando se descobre a ampla dimensão da barbárie nazi. É uma história com três personagens, um ocupante e dois ocupados. O oficial alemão chama-se Werner von Ebrennac. O narrador está permanentemente acompanhado pela sua sobrinha na casa onde vive o ocupante. O oficial discursa, os ocupados ouvem-no em silêncio. São tiradas monocórdicas de um homem que se vai revelando como amante da cultura francesa, compositor musical, confia que grandes coisas acontecerão na Europa, sobretudo à França e à Alemanha, finda a guerra. A literatura para ele era a França e a música era a Alemanha. Uma viagem de von Ebrennac a Paris vai mudar radicalmente a sua confiança no diálogo que ele destinava ao futuro da Europa. O oficial idealista descobre que há desprezo pela França, que a Alemanha veio para dominar e impor uma nova ordem. Von Ebrennac no seu último monólogo anuncia que vai partir para Leste. E, primeira vez, os dois ocupados despedem-se do oficial alemão.
É um conto triste mas assente numa esperança que se veio a realizar: coube à França e à Alemanha pôr de pé o projecto europeu como o estamos a viver. Mas em Missirá o que me empolgou em von Ebrennac foi a humildade na confissão sobre os valores culturais. Assim como eu ia descobrindo a escultura, o mobiliário, os costumes, as atitudes religiosas dos guineenses, considerando-as de génio, assim me deixei seduzir por aquele alemão que queria partilhar os valores inconfundíveis da mesma civilização. Daí o entusiasmo com que li e reli O Silêncio do Mar naquelas noites de Missirá.
Com os anos, cimentei amizade com o Mário Braga. Ele veio para Lisboa a seguir ao 25 de Abril, foi Director Geral da Divulgação Cultural onde lançou projectos do maior interesse. Lembro, por exemplo os pequenos breviários de cultura onde apareceram o ensaio de Carlos Alberto Medeiros sobre Portugal e a sua geografia humana e os livros de Portugal e as suas artes e ofícios. Ele está hoje com 85 anos e muito diminuído pela mácula, mas mantém a sua memória praticamente intocável.
Falei-lhe do blogue, referi-lhe como O Silêncio do Mar desaparecera nas cinzas de uma flagelação e ele logo prontamente me cedeu o único exemplar que tem para eu reler e o trazer à vossa presença. Não há nada como ter amigos como o Mário Braga e juntá-los aos camaradas da Guiné.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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