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quinta-feira, 16 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25533: Os 50 anos do 25 de Abril (22): Do Precedido Ao Sucedido (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

Desenho da tomada do Quartel do Carmo, em 25 de Abril de 1974, da autoria do Tomás, um menino do Escola Básica do 1º ciclo de Fala (tem na página no Facebook), freguesia de São Martinho do Bispo e Ribeira de Frades, Coimbra.

1.
 Mais um testemunho do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), enviado ao Blog no dia 14 de Maio de 2024:



TESTEMUNHOS

Do Precedido Ao Sucedido

António Inácio Correia Nogueira

Com este artigo darei por já contadas as minhas memórias, estórias e história sobre os 50 anos do 25 de Abril, comemoração que é um privilégio acompanhar, sinal evidente de que ainda ando por cá
.

Vou apresentar-vos os factos o acontecimentos que, na minha modesta opinião, deram safanões, empurrões, encontrões e impulsos para o Estado Novo cair e esboroar-se, quase sem resistência, às mãos dos Capitães de Abril.

1. O primeiro sinal foi dado, tinha eu 15 anos, por Humberto Delgado, o conhecido general sem medo, ao tentar derrubar o regime de Salazar, candidatando-se às eleições presidenciais. Apesar da minha tenra idade, fiquei embasbacado com as muitas centenas de pessoas que correram a aplaudir o homem da oposição, numa cidade interior, periférica, paroquial ao tempo, de muita submissão aos poderosos, – aos senhores doutores, – numa comunidade onde o analfabetismo era reinante nessa data. Apesar da arquitectura social da cidade da Guarda, expiava-se já um descontentamento com o regime. É claro que o General não ganhou, por fraude eleitoral e pelo medo instalado. Mas ficou a primeira semente de contestação, o safanão para que muitos anos mais tarde pudesse haver o 25 de Abril. Depois de 1958, a oposição foi-se arrogando lentamente, havendo diversas acções que estremeceram o regime como, por exemplo, o ataque ao quartel de Beja, o lançamento sobre Lisboa de panfletos contra a ditadura, o assalto à filial do Banco de Portugal da Figueira da Foz e a tomada do paquete Santa Maria, de enormes repercussões internacionais, – para relembrar alguns.

No entanto, só com as eleições legislativas de 1969 se viria a verificar uma radicalização da atitude política, nomeadamente entre as camadas jovens (vejam-se as revoltas estudantis universitárias de 1962 e 1969), que mais se sentiam vitimadas pela continuação da Guerra Colonial. É neste ambiente conturbado que a Acção Revolucionária Armada (ARA) e as Brigadas Revolucionárias (BR) se revelam como uma importante forma de resistência contra o sistema colonial português. Outros agrupamentos políticos começam a irromper plenos de vitalidade, como por exemplo o MRPP, com o lema, “nem mais um soldado para as colónias”. Instalou-se a «guerra à guerra». Também o alinhamento de alguns ramos da finança e negócios, classes médias e movimentos operários começaram a ser um importante ponto de inflexão na contestação à política do regime, principalmente a partir de 1973. Retratado está, de forma sintética, o primeiro safanão no regime.

2. A Guerra Colonial foi o grande motor, que desmoronou a ditadura, deixando-a, ano após ano, em decadência visível e isolamento internacional, apesar da PIDE e da propaganda continuarem a desempenhar o seu papel.

A guerra obrigou dezenas de milhares de jovens a combater em África, anos a fio, exauriu os já poucos quadros profissionais das Forças Armadas, cansados de muitas comissões, e os que ainda não as tinham pouco estavam interessados em vivê-la. Atropelados, sistematicamente, por leis absurdas que lhe retiravam direitos, os capitães do quadro vêem chegar ao seu posto, oficiais oriundos de milicianos, feitos à pressa na Academia Militar (apesar do seu comportamento meritório já provado em combate). Todos estes ditames (e ainda o facto de estarmos em presença de um Exército quase-miliciano, com preparação duvidosa e apressada), capitalizam um movimento corporativo de contestação arrojada, por parte dos futuros Capitães de Abril. Primeiro uma reacção solidária e quase sindical, depois, com o tempo, foi-se forjando, em alguns, uma conscientização política, que incluía o fim da guerra e a descolonização. Segundo solavanco.

3. O terceiro e o mais importante contributo foi a guerra na Guiné. A guerrilha do PAIGC para além do armamento já possuído, foi equipada com mísseis e deitou abaixo aviões da Força Aérea Portuguesa. As nossas tropas deixaram de controlar os céus. O apoio aos aquartelamentos e às operações na mata fracassou. Os ataques persistentes aos quartéis e o abandono de alguns, como o de Guileje, provaram à saciedade que a guerra estava prestes a ser perdida. O PAIGC declarou a independência em pleno território da Guiné. Por todos esses motivos não admira que em 1973 aí nascesse o primeiro núcleo do Movimento dos Capitães. Por lá passaram muitos capitães de Abril, de que me permito salientar Salgueiro Maia e Otelo Saraiva de Carvalho. Todos tinham a convicção plena de que a guerra aí estava perdida. Observaram-na de perto e alguns sentiram-na na pele. Acresce a esse facto a casualidade de terem sido colocados na Guiné muitos milicianos politizados e oriundos das lutas académicas. Esses oficiais, espalhados pelo território, deram oportunidade, através de algumas formas organizativas, a um movimento de milicianos construindo um compromisso ético de acção política permanente cruzando-se com a insurgência exuberante dos jovens oficiais do quadro permanente. Nessa aliança radicaram todos os fundamentos para impor vitoriosamente, sobre obstáculos variados, a recusa da solução neocolonialista (veja-se o livro Guiné: os oficiais milicianos e o 25 de Abril). Terceiro solavanco.

4. De lá se confrontou o regime com veemência. Lá se rascunhou uma espécie de plano alternativo de actuação, caso o 25 de Abril em Lisboa falhasse, com a destituição do Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné e o inicio das conversações com o PAIGC para a obtenção da paz. A Guiné, a sua tropa miliciana e do quadro, foram a rectaguarda segura contributiva para o sucesso do 25 de Abril. Solavanco maior.

OBS. - O desenho que acima se apresenta, foi feito e oferecido pelo menino Tomás, após uma sessão por mim efectuada na escola do 1.º ciclo de Fala, a convite da professora Ana Lúcia.

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Notas do editor:

Post anterior de 11 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25509: Os 50 anos do 25 de Abril (20): A Força das Músicas e Palavras Que Inspiraram O Meu Ser D´Abril (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

Último post da série de 13 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25516: Os 50 anos do 25 de Abril (21): Hoje, na RTP1, às 21:01, o 5º episódio da notável série documental, "A Conspiração", do realizador António-Pedro Vasconcelos (1939-2024). Os episódios anteriores estão disponíveis na RTP Play

sábado, 11 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25509: Os 50 anos do 25 de Abril (20): A Força das Músicas e Palavras Que Inspiraram O Meu Ser D´Abril (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

1. Mensagem do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), com data de 7 de Maio de 2024:

Caro amigo e camarada
Vou fazer o que me diz. É uma honra.
[1]
Envio outro texto. Pode divulgar, caso entenda que tem merecimento para tal.

Um abraço reconhecido.
António Inácio Correia Nogueira



TESTEMUNHOS

A Força das Músicas e Palavras Que Inspiraram O Meu Ser D´Abril

Um Disco meu, com 56 anos, que contém a balada Vampiros

A interpretação sobre o 25 de Abril continua a gerar muitas opiniões diferentes. Ainda bem. Por isso, possuo a minha. A propensão que se observa é para descortinar e ter novos olhares sobre esse momento histórico. Os actores do processo serão sempre os militares e os movimentos sociais, culturais e políticos. Na minha juventude pude observar a importância destes três últimos e a forma como tiveram influência na minha formação política antes e depois do 25 de Abril. Os escritores, os poetas e os músicos, desempenharam um papel fundamental de esclarecimento junto da população e, particularmente, na mobilização dos jovens estudantes e seus movimentos associativos para a luta reivindicativa contra as medidas do Estado Novo. E, sem dúvida, no esclarecimento dos Capitães de Abril.

Hoje aqui deixo os livros e canções que mais concorreram para acender, dentro de mim, então jovem-adulto, a convicção indiscutível da luta contra o Estado Novo.

Começarei pelos que foram os meus livros de eleição:
1. O Canto e as Armas de Manuel Alegre (1967), livro que esgotou em poucos dias, como já havia acontecido com A Praça da Canção, do mesmo autor, em 1965. Ambos foram proibidos e os exemplares encontrados apreendidos pela PIDE. Circulavam milhares de cópias manuscritas e dactilografadas, de tal modo que O Canto e as Armas, nunca deixou de existir. Foram livros incentivadores e mobilizadores dos grandes movimentos estudantis como o de 1969 em Coimbra e armas secretas de conscientização política de muitos portugueses.

2. As Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa publicadas em 1972, desafiaram o poder instituído e tornaram-se num símbolo maior da literatura feminista em Portugal. Foi imediatamente proibido pela censura. Teve um papel central na queda da ditadura e levantou o véu sobre a emancipação e direitos da mulher e igualdade de género. Neste campo, recordo o poema Calçada de Carriche (1967) de António Gedeão, um poema que põe a nu a exploração de que eram vítimas as mulheres no Estado Novo. Na minha biblioteca, ainda hoje se pode ver, numa das paredes, um poster com essa poesia de indignação.

3. Portugal e o Futuro de António de Spínola, livro que João Céu e Silva, considera um golpe de estado em 248 páginas, publicado dois meses antes do 25 de Abril, foi uma arma, um rastilho, que pôs em movimento muitos capitães indecisos. Milhares de leitores, diz-se que foram 230 mil portugueses, ocorreram às livrarias para conseguir um exemplar. No seu miolo, seis palavras ficam para a história do 25 de Abril: a vitória exclusivamente militar é inviável. O país percebia que a derrocada estava perto. Talvez tenha sido um dos livros de maior sucesso dos últimos 50 anos, vindo a igualar, segundo dizem, A Selva, de Ferreira de Castro.

Atente-se, agora, nas músicas e baladas que me ajudaram a ser activista político contra o Estado Novo

1. Vampiros, canção de José Afonso, é originariamente gravada em 1963. Foi um dos temas fundadores do canto político em Portugal, em tempo de censura e um símbolo da resistência contra o fascismo. A capa do disco acima reproduzido, é de minha pertença e foi ouvido com intensa exaltação num comício organizado pela Comissão Democrática de Vila Real (em 23 de Outubro de 1969) a quando das eleições para deputados.
Encontrava-me nesta terra a desempenhar funções docentes, enquanto aguardava o chamamento para o serviço militar obrigatório na Escola Prática de Infantaria de Mafra.

2. Trova do Vento que Passa é uma balada da autoria de Manuel Alegre e António Portugal, cantada em 1963 por Adriano Correia de Oliveira. Tornou-se, rapidamente, numa das principais armas de denúncia da situação do país, já mergulhado na Guerra Colonial. Nas paredes do meu quartel em Sanga Planície, Cabinda, estava em placar, a letra desta canção que muitos soldados cantarolavam.

3. Grândola Vila Morena é a canção emblema do 25 de Abril, senha principal para saída das tropas para o golpe de estado.
Foi escrita e gravada em 1971 em França, com arranjos e direcção musical de José Mário Branco. José Afonso estreou a canção em Santiago de Compostela em 10 de Março de 1972.
Em 1973 foi publicada pela editora Orfeu. Continua a ser um marco nacional entoada nas marchas anuais do 25 de Abril e noutras manifestações onde se promove a liberdade e a democracia.

4. Pedra Filosofal é um poema admirável de António Gedeão a que Manuel Freire deu voz, pela primeira vez, em 1970. É uma balada nobre, à espera de dias melhores. Um desabrochar, uma esperança, um mito.

Eles não sabem nem sonham / Que o sonho comanda a vida / E que sempre que o homem sonha / O mundo pula e avança / Como bola colorida / Entre as mãos de uma criança

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Notas do editor:

[1] - O nosso camarada António Inácio Nogueira foi convidado pelos editores a integrar a tertúlia

Último post da série de 8 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25495: Os 50 anos do 25 de Abril (19): Convite para a apresentação do livro "A Caminho do 25 de Abril - Uma Organização Clandestina de Oficiais da Armada", dia 14 de Maio de 2024, pelas 18h00, no ISCTE - Edifício 2, Auditório B1.03 - Lisboa

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25471: Testemunhos - Será Que Pertenço à Geração D? Acho Que Sim (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)


1. Mensagem do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), com data de 30 de Abril de 2024:

Caro camarada Carlos
Boa saúde, meu amigo.
Como pode ter interesse, envio-te um texto designado Geração D que está ligado a um Capitão da Guiné: Carlos de Matos Gomes.
Podes divulgar.

Abraço do amigo agradecido.
António Inácio Correia Nogueira



Testemunhos

Será Que Pertenço à Geração D? Acho Que Sim


Tenho a honra de ser amigo e admirador do autor do livro, publicado recentemente e que se intitula Geração D Da Ditadura à Democracia. Perguntei-me no final da viagem: será que pertenço à geração D, que o autor refere?

Carlos de Matos Gomes, um conhecido Capitão de Abril, foi um distinto oficial do Exército, com comissões em Angola, Moçambique e Guiné, onde protagonizou feitos que o classificam como combatente notável. É um douto investigador de história contemporânea, com inúmeras publicações em nome próprio ou em co-autoria. Com o pseudónimo literário de Carlos Vaz Ferraz, publicou dezenas de romances de entre eles Nó Cego – um fabuloso trabalho – testemunho sobre a Guerra Colonial – porventura, um dos melhores.

Pertenceu ao MFA da Guiné, o movimento charneira do 25 de Abril, de onde emergiram alguns dos seus heróis, feitos na guerra de Guidage e de muitos outros lugares de perigosidade maior, assim tornados pela guerrilha do PAIGC. De entre eles, reconheço, Salgueiro Maia.

Como afirma no seu livro, “Optou por lutar sem esperança de vencer em vez de tentar vencer sem coragem de lutar”.

Escrevi uma obra [Capitães do Fim do Quarto Império] para a qual Carlos de Matos Gomes me privilegiou com uma entrevista e comentou, posteriormente, da seguinte forma: “Um excelente livro para quem queira, com seriedade intelectual, perceber o esgotamento dos quadros na Guerra Colonial que foi uma das causas do seu fim. Contraria as bravatas dos patrioteiros e de mixordeiros da história… tem números, documentos…”.
Nesse livro, comentado pelo autor da Geração D, atrevo-me a escrever:
“Nos anos terminais da Guerra Colonial, a Academia Militar deixou de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Os Capitães do Quadro Permanente soçobraram. Ficou-se em presença de um Exército quase miliciano, num clima de forte contestação à guerra e de fraca motivação para lhe dar continuidade. No entanto, a defesa do Império, a todo o custo, era a política vigente, apesar do visível cansaço da Nação.

Para ajudar a obviar este desiderato, foi decretada a formação acelerada de Capitães milicianos na Escola Prática de Infantaria. Formaram-se à volta de cento e sessenta por ano. Em cerca de catorze meses fazia-se de um estudante universitário, quase sempre em estádio avançado de licenciatura, ou de um licenciado, um Capitão combatente para actuar nos teatros de guerra mais exigentes de Angola, da Guiné e de Moçambique. O modo de selecção destas novas elites pelejadoras, e a formação apressada a que foram sujeitas, deram ensejo a que alguns as apelidassem, desdenhosamente, de “Capitães de proveta” ou “de “aviário”. Eu fui um desses Capitães do Fim. Levei muitos meninos – soldado atrás de mim com a missão de os enquadrar, o melhor possível, em zonas de guerra intensa e evitar a sua morte. Passei o 25 de Abril pertinho de perecer, mas lutei para viver, eu e eles.

O livro do meu amigo, se bem entendi, fala da geração de militares que fizeram o 25 de Abril. Eu não fiz o 25 de Abril, mas contribui para que se desse. Pertenci, pois, à Geração D, “de dilemas, desobediência e também dever”.

Diz o autor da Geração D: “Esta geração protagonizou a grande mudança da história de Portugal, a que acabou com a guerra, a que acabou com a ditadura.” É a geração das lutas estudantis, dos partidos jovens de protesto, da deserção, da descolonização, das discussões políticas de café, da dialéctica, da utopia, da denúncia, da transgressão…

Como diz, mais à frente, Carlos de Matos Gomes: “A Geração D viveu sob um «regime de doidos» do Império e libertou-se dele, calhou-lhe ser a primeira geração que, pela liberdade e universalidade do voto, foi inteiramente responsável pelo seu futuro…
O D dos dilemas é também o do desafio e o do desprezo pelos desprezíveis da Geração D.”


Grande livro, para ler e meditar. Passaram 50 anos, viva o 25 de Abril…

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Nota do editor

Post anterior de 25 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25445: Os 50 anos do 25 de Abril (13): Testemunhos - Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação" (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487/BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25445: Os 50 anos do 25 de Abril (13): Testemunhos - Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação" (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487/BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

1. Em mensagem do dia 24 de Abril de 2024, o nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), enviou-nos este artigo da sua autoria, publicado ontem no Jornal "O Despertar", de Coimbra:


TESTEMUNHOS

Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação"

Regressei da guerra colonial há 50 anos, por isso é tão significativa, para mim, esta celebração do 25 de Abril. É muito tempo para quem continua vivo, é pouco tempo para quem quer esquecer os fragores dessa guerra injusta.

Na que era a casa do meu pai, aos Olivais, tenho um compartimento, que as minhas filhas apelidam, pomposamente, “Fundação”, onde guardo tudo o que constitui resquícios das memórias e das estórias da minha vida. Muitas vezes, inopinadamente, descubro relíquias que pensava já não existirem. Esta condicionante deve-se ao facto de ser muito desorganizado mas, ao invés, muito zelador como guardador de grandes e pequenos nadas.

Recentemente tive um convite da Escola do 1.º Ciclo de Fala onde estuda, no 4.º ano de escolaridade, a minha neta Lúcia, para comunicar algo às crianças sobre o 25 de Abril, principalmente, da minha experiência sobre esse dia memorável.

Para a sua preparação, dei-me ao trabalho de revisitar esse espaço mágico, na tentativa de encontrar material que pudesse entusiasmar a pequenada e incutir-lhe um pouco da importância do 25 de Abril, na construção da deles e da minha democracia e liberdade.

Encontrei uma mala velha, muito velha, que pressenti pesada. Tive receio de a abrir e de tirar tudo cá para fora. Ela podia conter, por ventura, esconder, os meus mitos, os ritos, os medos, os entusiasmos, as raivas, os desassossegos de então, enquanto jovem.

Obriguei-me a tal. Tirei quase tudo a monte cá para fora, espalhei pelo chão e verifiquei como o seu recheio estava envelhecido, amarelado pelo tempo, mas de valor incalculável. Os papéis, as imagens e as coisas agora velhas, que fui agasalhando à medida que lhes tocava, reportavam-me, com um misto de entusiasmo e melancolia, inenarráveis, à época e idade, tão jovem, de há tantos anos!

Fui encontrar o meu camuflado da guerra colonial, coçado pelas andanças de muitos quilómetros nas terríveis matas do Belenguerez na Guiné e do Maiombe em Angola. Primeiro, olhei-o indiferente, qual trapo que na altura detestava usar. Hoje, contemplei-o com benevolência e algum bem-querer.

Achei jornais e revistas diversos: o Diário de Lisboa, a Flama, a Vida Mundial, A Capital, A República, apresentando em grandes parangonas as primeiras notícias da Revolução de Abril; nas primeiras página, sempre o mesmo protagonista, Salgueiro Maia, o meu herói.

Os discos primeiros de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Padre Fanhais e muitos outros cantores de protesto estavam por lá espalhados riscados de tanto terem tocado no meu velho gira-discos. Lá estava a Grândola do Zeca e O Depois do Adeus de Paulo de Carvalho. Estas duas canções foram as senhas para a saída das tropas revolucionárias.

As canções do Ary dos Santos e do Sérgio Godinho marcavam também a sua presença… estou a viver tudo como se tudo fosse hoje. Oiçam, oiçam, como eu, a voz e a música que saem da mala, ecoam cá fora:… só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir… / Grândola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade… / e depois do adeus e depois do amor, e depois de nós, o adeus, o ficarmos só.

A medo e sem olhar, meti mais uma vez a mão, até apalpar o fundo da mala. Agora em silêncio, arvorei o punhado, veio prestes, um livro já velhinho, mil vezes sublinhado, A Praça da Canção, edição de 1969, de Manuel Alegre e um disco datado de 26 de Abril de 1974, Caxias, Portugal Ressuscitado, com a participação de Ary dos Santos, Pedro Osório, e vozes de Grupo In-Clave, Fernando Tordo e Tonicha.

Das duas preciosidades cantei exuberante, qual menino da revolução:
(…)
Mesmo na noite mais triste,
Em tempo de servidão,
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.

(…)
[Manuel Alegre]

Depois da fome e da guerra
Da prisão e da tortura
Vi abrir-se a minha terra
Como um cravo de ternura.

(…)
[J.C. Ary dos Santos]

Não quis tirar mais nada. Os meus 81 anos estavam exaustos de memórias tão vivas, tão presentes. Não vi o que restou por lá, mas abriguei lá dentro tudo o que trouxera para fora. Voltei a fechar a mala. Fui repousá-la no lugar que lhe pertencia, até que outro a abra. O que fará com aquelas memórias? Deita-as fora? Porventura, mas elas perdurarão na vida e para além da vida, sempre, sempre, em mim.

Fui cheio de ânimo, mas preocupado, ao encontro dos meus meninos.
As crianças à volta da sala de aula levantaram os cravos vermelhos, vestiram a farda, olharam os jornais, e prometeram que serão guardiães da liberdade e da democracia para sempre
Cantei com eles, levantei a bengala e senti-me, quase miúdo como eles o são.
Obrigado meninos. Vocês são o alento do meu fim de vida.

Com beijinhos para todos e também para a vossa professora Lúcia, de que muito gostei.
Até sempre!
Viva o 25 de Abril

António Inácio Correia Nogueira.
Jornal O Despertar

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Nota do editor:

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25439: Os 50 anos do 25 de Abril (12): Hoje, na RTP1, às 21:29, o primeiro de nove episódios: "A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)

sexta-feira, 15 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25275: Os 50 anos do 25 de Abril (1): Nos 50 Anos de Abril... O Meu Herói de Abril: Cap Salgueiro Maia (António Inácio Correia Nogueira)


Salgueiro Maia - A partir de foto do Afredo Cunha (1974). 
Wikipédia (com a devida vénia...) 


1. Mensagem do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), com data de 14 de Março de 2024:

Caros camaradas
Grato vos fico pelo gesto que tiveram p´ra comigo.[1]
Como agradecimento ofereço-vos esta despretensiosa poesia que acabo de produzir.

Abraço amigo
António Inácio Correia Nogueira





TESTEMUNHOS

Nos 50 Anos de Abril… O Meu Herói de Abril

P´la noite dentro, serena e de vagaroso espaço,
Trouxeste as G3, as Chaimites e os velhos tanques d´aço,
E muitos jovens estremunhados, mas de rosto novo; e Santarém deixaste.
Ó Maia tu nunca quebraste!

E ao som do rom-rom da coluna militar,
Numa mão agarraste a G3 e na outra a liberdade, e puseste-te a andar;
Nas sacudidelas da estrada sonhaste com a guerra em Guidage, na mártir picada,
P´ la tormenta do combate esburacada,
Da sua terra vermelha, salpicada de sangue, que trilhaste,
Nos senhores da Guerra, perversos, que encontraste.
Ó Maia tu nunca quebraste!

Chegou a hora, olhas o despontar da imaginada madrugada,
O casario lisboeta, as colinas e o mar dos Descobrimentos de espuma prateada;
Tudo já te parecia novo, libertado,
Enquanto os ditadores dormiam, o sono na tirania, sossegados.
Paraste, sem medo; puseste firme a bota na calçada e, logo a vitória vislumbraste.
Ó Maia tu nunca quebraste!

A Capital do Império, a Praça,
De repente ela é tua; o concebível revés, de repente é graça!
Sobes ao Carmo, o sangue da picada que lembraste, está de cravos vermelhos festejada,
O povo clama, arrebatado, liberdade, liberdade, liberdade!...
Embriagado, lança o mito o “povo unido jamais será vencido”.

As armas, lá longe no calor do capim, calaram,
Os soldados de além-mar regressaram.
O povo é todo teu,
Ai, quem diria, o ditador pereceu.
Porque tu, Maia, nunca quebraste!...
Fizeste tudo para além do que baste.

Tu és o herói, a essência, o corpo maior,
O âmago das coisas boas de Abril,
Da liberdade celebrada,
Há 50 anos.
Tu és um Salgueiro que não desfalece, não desalenta.
Eterno serás,
Porque não voltaste atrás.


Ó Maia, sabes, o meu herói de Abril és tu!... Sempre.
____________

Nota do editor:

[1] - Vd. Post de 7 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25247: O nosso livro de visitas (221): O nosso camarada António Inácio Correia Nogueira pôs à disposição da tertúlia a Tese que apresentou à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia

quinta-feira, 7 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25247: O nosso livro de visitas (221): O nosso camarada António Inácio Correia Nogueira pôs à disposição da tertúlia a Tese que apresentou à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia

1. Mensagem deixada no Formulário de Contacto do Blogger pelo nosso camarada António Inácio Correia Nogueira:

Caros camaradas
No contexto dos 50 anos do 25 de Abril ponho à disposição de todos no Repositório Institucional da Universidade Fernando Pessoa o documento "Capitães do Fim", na sua versão completa.
Para isso vão a http://hdl.handle.net/10284/5079

Um abraço e um obrigado do tamanho do mundo pelo magnifico trabalho que têm vindo a desenvolver.

Cumprimentos,
António Inácio Correia Nogueira


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Tese apresentada à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia

"Capitães do Fim" - Resumo


Nos anos terminais da Guerra do Ultramar, a Academia Militar deixou de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Os Capitães do Quadro Permanente soçobraram. Ficou-se em presença de um Exército quase miliciano, num clima de forte contestação à guerra e de fraca motivação para lhe dar continuidade.

 No entanto, a defesa do Império, a todo o custo, era a política vigente, apesar do visível cansaço da Nação. Para ajudar a obviar este desiderato, e de forma surpreendente, foi determinada por despacho de 20 de Julho de 1970 do Ministro do Exército, Horácio José de Sá Viana Rebelo, a formação acelerada de Capitães milicianos na Escola Prática de Infantaria. Formaram-se à volta de cento e sessenta por ano. 

Em cerca de catorze meses fazia-se de um estudante universitário, quase sempre, em estádio avançado de licenciatura ou já licenciado, um Capitão combatente para actuar nos teatros de guerra mais exigentes de Angola, da Guiné e de Moçambique. O modo de selecção destas novas elites pelejadoras, e a formação apressada a que foram sujeitas, deram ensejo a que alguns as apelidassem, desdenhosamente, de “Capitães de proveta” ou “de “aviário”. Aplica-se, neste contexto, em alternativa, a expressão Capitães do Fim. 

Como foram seleccionados, formados e que desempenhos e protagonismos tiveram estes Capitães, nos teatros de Angola, da Guiné e de Moçambique, no comando de Companhias em quadrícula ou independentes de intervenção? A resposta tem enquadramento na sociologia e na história, ainda que de especificidade militar, em coerente continuum de procedimentos metodológicos qualitativos e quantitativos. Com recurso a autobiografias e a histórias de vida de guerra de muitos dos actores-Capitães ainda vivos, valorando-se dessa forma o tecido da participação-acção, entrecruzando os fios de vida das pessoas com aquilo que foi o seu terreno, o irrepetível e o individual, e contribuindo para a construção de conhecimento, procura trazer-se luz a um assunto que, no tempo, vai certamente, com reinterpretações, ter continuidade de investigação.

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Sobre o autor:

- António Inácio Correia Nogueira é licenciado em Ciências Físico-Químicas e professor do Ensino Secundário
- Em 1971 foi para o CTIG para integrar a CCAÇ 16 como Alferes Miliciano
- Em 1972 seguiu, como Capitão Miliciano, para a Região Militar de Angola como Comandante da CCAV 3487 / BCAV 3871, de onde regressou em 1974.

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Notas do editor:

Vd. poste de 24 DE AGOSTO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25200: O nosso livro de visitas (220): Leitora Marie, filha do nosso camarada Joaquim Pires Lopes da CCAÇ 312, Moçambique, 1962/64, procura documentos e fotos da unidade de seu pai

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
O assunto dos Capitães do Fim não é propriamente uma novidade para ninguém, quem combateu a partir de 1970 sabe perfeitamente que em Mafra se fizeram fornadas de oficiais milicianos, fazia a recruta e a especialidade, eram promovidos alferes, lançados num teatro de guerra durante quatro meses, regressavam como tenentes e iam formar companhia.
A radiografia estatística que António Nogueira publica traz uma maior claridade sobre as origens, a escolaridade, a idade, o agregado familiar e eventuais profissões desenvolvidas, à data da incorporação. Ficamos igualmente com a informação se desenvolveram, ou não, contestação à guerra do Ultramar, o que pensam da instrução e dos instrutores que tiveram em Mafra, os critérios que foram utilizados para a sua seleção, como atuaram num teatro de guerra, quais as formas de protagonismo, como foram, na hierarquia militar, reconhecidos o seu trabalho.

E ficamos a saber um pouco mais das consequências da guerra para os capitães do fim, o que deles pensam os seus subordinados.

É uma radiografia que não deixa indiferentes. O que a Academia Militar não fornecia foi colmatado por eles. Centenas de mancebos têm toda a legitimidade em clamar, com orgulho, que não faltaram ao dever.

Um abraço do
Mário


Uma radiografia dos capitães do fim

Beja Santos

António Inácio
Correia Nogueira
“Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira, Chiador Editora, 2017, apresenta-se como uma obra complementar a que o autor dera à estampa no ano anterior sobre a história de capitães milicianos submetidos a uma formação acelerada. 

Como observa o autor, nos anos terminais da guerra colonial, a Academia Militar deixara de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Como a política do Estado Novo era intransigente na defesa do Império, custasse o que custasse, um dos expedientes encontrados foi a dos capitães do fim: em cerca de 14 meses fazia-se de um mancebo, muitas vezes em estádio avançado de licenciatura ou já licenciado, um capitão combatente para atuar num dos três teatros de guerra. 

Com ironia cáustica, alguns apelidavam estas novas elites 
de “capitães de proveta” ou de “aviário”. Reconheça-se que António Nogueira é mais justo ao recorrer à expressão “capitães do fim”.

De um modo geral, esta geração respirou outros ares bem diferentes dos oficiais milicianos que combateram ao longo da década de 1960. Vêm mais experimentados pelas lutas estudantis, coabitam, com maior ou menor intensidade, com agentes contestatários à guerra, da esquerda à extrema-esquerda. Enquanto uns desdenhavam a formação destes jovens capitães, a instituição militar apostava seriamente neles: o comandante de companhia tinha um papel fulcral na guerra, a guerrilha mostrava-se cada vez melhor apetrechada e com material de combate mais evoluído, enquanto as forças armadas permaneciam mal equipadas e pouco adaptadas ao crescimento da nova realidade miliciana. O autor preambula com eixos teóricos da guerra, mostra os períodos e fases do fenómeno subversivo, tal como eles eram apresentados aos cadetes em Mafra.

A base da obra de António Nogueira tem a ver com a construção de questionários, inquéritos que foram enviados e que obtiveram um considerável acolhimento, permitindo uma base aceitável de trabalho para a obtenção de uma radiografia de quem eram e em que se transformaram estes capitães do fim.

Vieram de todo o país, com preponderância para Coimbra, Lisboa, Porto e concelhos limítrofes, eram jovens com origens sociais, culturais e económicas muito diversas, jovens predominantemente nas idades entre 24 e 27 anos, nada de anómalo, os oficiais oriundos da Academia Militar eram promovidos a capitães com idades próximas. 

As habilitações académicas destes capitães eram díspares, essencialmente todos com frequência de cursos universitários, mais de 50% estavam entre o terceiro e o último ano de um curso superior. 70% eram solteiros e 30% casados. Exerciam a profissão de engenharia 13% dos incorporados, profissão prestigiada devido à industrialização iniciada na década anterior.

Fala-se detalhadamente da incorporação na EPI – Escola Prática de Infantaria (instrução, instrutores, ambiente, contestação à guerra). Não deixa de ser uma curiosidade o que se fica a saber sobre a seleção e formação de capitão: 

(i)  44,3% respondem desconhecer o motivo por que foram selecionados;

(ii) 18,3% declaram ter sido por já possuírem uma licenciatura;

(iii)  14,8% indicam ter sido escolha do instrutor;

(iv) 11% estão convictos de que foi por ocuparem os primeiros lugares da seriação psicotécnica;

(v) 5,2% por terem mais idade;

(vi) 4% pelas competências já adquiridas na vida civil. 

O autor comenta: 

“É estranho este conhecimento fracionado e superficial dos modos de seleção. É lacuna grave a forma como se comunicava na instituição militar. Mas surpreendente é a indiferença com que os questionados permaneciam desinformados sobre factos que condicionariam a sua vida militar futura”.

Após o círculo formativo de seis meses na EPI, a continuidade do processo era um estágio num dos teatros de guerra, com a duração de quatro meses, com o posto de alferes, e na qualidade de adjuntos dos comandantes de companhia do local onde eram colocados: 66% estagiaram em Angola, 28% na Guiné e 6% em Moçambique. 

De acordo com o inquérito, cerca de um quarto dos estagiários enfrentaram situações de guerra muito difíceis. Depois de regressarem do estágio, os futuros capitães do fim, agora promovidos a tenentes, frequentavam um curso de comandantes de companhia, também na EPI.

A radiografia estatística incide também sobre a formação e instrução da companhia, como decorreu esse comando em teatro de guerra, se houve protagonismos na guerra, se os capitães de algum modo participaram na conquista da democracia ou nos atos finais da descolonização. Um número elevadíssimo de capitães (mais de 90% foram louvados, cerca de 9% tiveram a atribuição de uma medalha ou de uma condecoração).

E temos agora as consequências da guerra para os capitães do fim: 

(i) 65% considera ter sido a participação na guerra gravosa para a continuidade dos seus estudos;

(ii)  para cerca de 13% o reatamento foi impossível;

(iii)  36% consideram que a guerra lhes acarretou problemas de saúde e instabilidade emocional que prejudicaram os seus relacionamentos familiares, na profissão e com os amigos. 

Mas há respostas afirmativas, quanto ao enriquecimento humano e profissional, reconhece-se valor à experiência das relações humanas, enriqueceu-se com a chefia de homens em situações adversas, houve enriquecimento cultural e sociológico. Quanto à passagem à disponibilidade, o grosso das respostas é eloquente: “Um imenso alívio”.

Nesta radiografia estatística também se procurou obter o contraditório dos comandados. 83% manifestam-se agradados com os desempenhos do seu capitão do fim.

Ao findar, o autor dá como comprovado que os capitães do fim tiveram desempenhos e protagonismos meritórios na guerra, na obtenção da paz e da democracia, e conclui com uma parte do poema de Ary dos Santos intitulado Retrato do Herói: Homem é quem tombando apavorado / dá o sangue ao futuro e fica ileso / pois lutando apagado morre aceso.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21262: Notas de leitura (1298): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16329: Notas de leitura (862): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Porventura são estes testemunhos na primeira pessoa a matéria mais aliciante para o leitor que foi combatente, pela diversidade, pela sinceridade, pelo feliz entrosamento entre a memória e um distanciamento que não deixou rancores.
O livro de António Inácio Nogueira merecia andar pelas mãos de todos. Estes jovens capitães, salvo melhor opinião, são um inequívoco termómetro da atmosfera que se vivia em muitos pontos da Guiné, são testemunhos que não iludem a desmotivação, a descrença, o salve-se quem puder. A despeito deste estado de espírito, é impressionante como a generalidade destes jovens capitães sentiu a responsabilidade do mando e a vontade de trazerem todos os seus homens nas melhores condições físicas e psíquicas. E muitos não escondem o orgulho de isso ter acontecido, ou quase.

Um abraço do
Mário


Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3)

Beja Santos

O livro “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016, é o mais minucioso olhar até hoje lançado àqueles a quem depreciativamente se chamavam os capitães proveta, naquele dado momento em que nos batalhões os oficiais do quadro permanente se cingiam ao comando e por vezes à CCS, aquelas centenas de jovens de oficiais que tinha sido aprovados nos cursos de comandantes de companhia, dados em Mafra passaram a ser os executantes operacionais por excelência.

Na análise que temos estado a efetuar, abordou-se a síntese que o autor nos dá sobre o enquadramento histórico e político da guerra, os modos de seleção e formação dos jovens capitães, passou-se em revista textos autobiográficos de cinco desses jovens capitães e entrou-se num importante capítulo abarcando cerca de três dezenas de testemunhos na primeira pessoa. Obviamente que nos cingimos ao que se escreve sobre a Guiné, sem prejuízo, é dito insistentemente, que o documento é suficientemente importante para ser lido do princípio ao fim por qualquer combatente de qualquer dos três teatros de guerra.

Vejamos o que nos diz José Fernando Real Magalhães Mendes que embarcou para a Guiné em Setembro de 1971 e deixou Bissau em Dezembro de 1973. Depois do 25 de Abril, ligou-se à LUAR e até se envolveu no assalto à Embaixada de Espanha. Teve pressão e recompôs-se, acabou os estudos e foi para advocacia. Ofereceu-se como voluntário, fez estágio em Angola na zona dos Dembos. Coube-lhe Bajocunda na Guiné. Investiu na população, andou nos trabalhos de reordenamento. Não esconde que de vez em quando investia pelo Senegal adentro para trazer vacas, pagava sempre, a contrapartida era o médico e o enfermeiro tratarem a população. “Um dia veio um sujeito muito atrapalhado dizer que tinha a mulher grávida e estava muito mal. Eu fui com o pelotão do alferes Sequeira ao Senegal. Fomos até lá, levámos o furriel enfermeiro e depois pedimos uma evacuação para junto da fronteira, o furriel enfermeiro disse que a mulher ia morrer se não fosse tratada. Veio um helicóptero e levou-a para Bissau, soube depois que ela se safou e o filho também, isso caiu muito bem na população”. Permaneceu em Bajocunda os 27 meses. Guarda na memória alguns aspetos chistosos:
“Quando saiu legislação que nos permitia entrar no quadro permanente, o comandante do batalhão chamou-me: 
- Ó Mendes, saiu agora uma lei… Você frequente lá aquilo não sei quanto tempo, é promovido ao quadro. Você tem capacidade, aproveite. 
Apresentou-me um papelinho e eu respondi: 
- Meu comandante, vou pensar. Nesse dia reuni os meus alferes todos, mandei vir uma garrafa de uísque, rasguei o papel e peguei-lhe fogo. 
Mais tarde disse: 
- O meu comandante desculpe, mas quero acabar o meu curso de Direito. 
- É uma pena para si, é uma boa carreira – retorquiu ele”.

Confessa que cometeu muitos erros, por ser muito novo.

José Manuel Nunes Marques fez estágio na Guiné, em Aldeia Formosa, era já licenciado em Engenharia Civil. Esteve em Cumbijã, depois Nhacobá. “Não me aconteceu rigorosamente nada, mas vi muita gente morrer”. Viveu uma situação disciplinar tumultuosa em Bolama, acabou por ir parar a Jemberém. Um dia, pelas três da manhã, chegou uma comunicação encriptada para abandonar Jemberém, foram para Cacine. A desmotivação era enorme, ninguém estava para arriscar a vida. Seguiu-se um alto de averiguações pelo modo como se tinha feito a desocupação de Jemberém, ficou tudo abafado, o castigo foi tirarem-lhe o comando da companhia. Nas novas funções, andou a fazer entrega de vários aquartelamentos ao PAIGC.

Há um capitão que foi depois coronel, Luís de Jesus Ferreira Marcelino, esteve na Guiné entre Junho de 1972 e Agosto de 1974. Ingressou na GNR mais tarde, terminou a sua carreira como coronel, Chefe do Estado-Maior da Brigada de Trânsito. No comando de uma companhia independente percorreu diversos sítios da Guiné: Aldeia Formosa, Mampatá, Colibuia. Não esquece a vida em tabanca, as missões humanitárias, o reordenamento das populações. Manuel da Silva Ferreira da Cruz teve uma vida difícil em Cobumba, antes da incorporação fez estágio como engenheiro técnico de química e depois de 1974 reiniciou a sua vida profissional numa empresa da indústria de plástico. Fez estágio no Leste de Angola, o IAO realizou-se em Bolama, seguiu-se Mansambo no Leste, participou numa operação gigantesca e depois seguiu para Cobumba, que o PAIGC classificava como zona libertada, houve inúmeros ataques. Dá relevo a um episódio passado durante uma visita do Comandante do COP 4 à sua Companhia. O oficial disse-lhe que “a companhia não apresentava ações e contactos significativos com o IN, que deveria ativar mais a companhia, já que os soldados deveriam estar preparados psicologicamente para morrer, se necessário fosse – tudo dito assim a frio”. Ao que Ferreira da Cruz retorquiu que iria chamar o pessoal e que ele, enquanto comandante, lhe transmitiria esta mensagem. Ao que o comandante do COP 4 respondeu: “Não, não é assunto urgente”.

Ainda há mais histórias, conto abreviadamente. Marcos António Blanch da Fonseca Dinis foi colocado em Piche, a seguir ao 25 de Abril a sua guerra foi de papel e polícia, a impedir roubos nas lojas. Nuno Álvares da Graça Matias Ferreira considera-se um privilegiado, não teve nenhuma experiência de guerra, era licenciado em Direito, foi delegado do procurador da República da Guiné, Fidélis Cabral Almada pediu-lhe para ficar até ao último dia. Óscar António Soeiro Soares andou por Caboxanque, Cadique e outras paragens. “No aquartelamento de Caboxanque, em 6 meses, sofri 14 ataques com artilharia. Tentava responder, mas os nossos morteiros tinham menor alcance que os canhões sem recuo deles. Era só para fazer barulho”. Em Bissau, participou na detenção do General Bettencourt Rodrigues. “Ouvi o Bettencourt nas telecomunicações, na noite de 24 para 25 perguntar ao chefe da PIDE: que unidades é que temos do nosso lado? E o da PIDE respondeu: que eu saiba nenhuma”. Raul Manuel Bivar de Azevedo andou pelo Chão Felupe. Rui Jorge Martins Pedro e Silva foi um dos capitães da operação “Grande Empresa”.

Há notas avulsas, o nosso confrade Vasco da Gama é um dos contadores. Aqui chegamos ao fim de um trabalho de doutoramento, alguém que andou à procura dos Capitães do Fim passados mais de 40 anos do seu regresso da guerra.

Uma história muito bem contada que deve ser por todos conhecida.
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores de:

18 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16314: Notas de leitura (859): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (1) (Mário Beja Santos)
e
22 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16325: Notas de leitura (860): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16325: Notas de leitura (861): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Este camarada da Guiné apresentou uma tese de doutoramento na Universidade Fernando Pessoa, em 2015, sobre os capitães do fim do Império, os jovens comandantes de companhia com que se procurava suprir a carência básica de oficiais formados na Academia Militar, foram formados às centenas e lançados nos três teatros de guerra.
Há um meritoso trabalho de síntese a descrever um enquadramento histórico-político da guerra, um levantamento sério do que era a seleção e a formação destes jovens capitães, e chegamos a dois capítulos essenciais que decorrem do levantamento de autobiografias de cinco capitães seguindo-se um bem coligido elenco de 30 histórias de vida. Obviamente que nos cingimos àquelas que têm a ver com a sua presença na Guiné.
Direi sem qualquer hesitação que é uma obra que justificadamente devemos conhecer e sobre ela refletir, não ilude a carga polémica que a acompanha do princípio ao fim: a Pátria estava exausta, estava-se no limite dos recursos humanos, aqueles jovens saíam da universidade claramente politizados, sabiam melhor que os seus camaradas dos primeiros anos da guerra que havia ventos da História e que sem debate político se caminhava para o precipício.

Um abraço do
Mário


Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2)

Beja Santos

Dando seguimento aos aspetos essenciais da obra “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016, depois de se sintetizar o enquadramento histórico e político da guerra e como se selecionavam e formavam estes comandantes de companhia, abre-se espaço a cinco autobiografias militares a que se seguem testemunhos na primeira pessoa. Por razões compreensíveis, acolhem-se aqueles que se relacionam expressamente com a Guiné, mas é imperioso chamar à atenção do leitor para o considerável interesse que têm os testemunhos dos comandantes de companhia que combateram em Angola e Moçambique.

As cinco autobiografias de comandantes de companhia combateram em Angola e Moçambique. Escreve o autor: “Estas cinco narrativas são o rosto da guerra traiçoeira e permanente em Mueda e Candulo e da fuga dos aquartelamentos das nossas tropas, das emboscadas e dos ataques a aquartelamentos em Sanga Planície e Miconge, do isolamento em N’Riquinha que magoa por dentro, nas terras do fim do mundo, da paz que se negoceia em segredo os matagais de Cangumbe com a UNITA, dos últimos tiros e dos últimos combates em N’Dalatando, Cabinda, Malange, Massabi e Pangamongo. Dos saques perpetrados e das debandadas, quando se aproxima o fim, na reta final do império” e segue-se a série de depoimentos: de Afonso Maria de Eça de Queiroz Cabral, relatando do saque de Vila Salazar (N’Dalatando), ao golpe de Cabinda; de António Inácio Correia Nogueira, cavaleiro do Maiombe, de António Pereira de Almeida, que andou em Mueda e em Candulo; de Benjamim Fernando Almeida, o negociador nos matagais de Cagumbe; e Lionel Pedro Cabrita, a quem se deve o texto de N’Riquinha a Rivungo, nas terras do fim do mundo.

Temos os testemunhos na primeira pessoa e os da Guiné tocam-nos pelo vigor, pela sinceridade e em tantos casos pelo desassombro.

Logo Abílio Delgado, o capitão puto de Guileje, incorporado em Abril de 1970, tinha 20 anos, fez a guerra e seguiu-se uma carreira profissional na banca. Ofereceu-se como voluntário para o curso de comandantes de companhia. O estágio, no posto de alferes, foi realizado no Leste de Angola, na região do Luso. Quem ministrou o curso em Mafra para comandante de companhia nunca tinha estado no Ultramar. Foi mobilizado para a Guiné, no comando de uma companhia independente. Foi colocado em Guileje, cujo aquartelamento descreve: “Eram cerca de 700 pessoas dentro do aquartelamento, contando com a população. A atividade operacional resumia-se a patrulhas diurnas, dia sim, dia não, com um efetivo de dois grupos de combate, e a coluna de reabastecimento, de Gadamael até Guileje. Durante a época das chuvas estávamos isolados por via terrestre, não havia reabastecimento. As condições de defesa satisfaziam, tínhamos boa artilharia e bom apoio aéreo, quando necessário”. Considera ter havido bom relacionamento com os subordinados, embora fosse o mais novo dos oficiais. Era o capitão puto, tinha 22 anos, chegou à Guiné em 1971.

Albertino Santos Pereira foi aterrar em Geba, fora mobilizado em 1972. Tinha sido nomeado para ir substituir o capitão de Guileje, acabou por ir parar a Geba, foi substituir um capitão que morreu de cancro. O seu grande orgulho foi trazer de regresso todos os seus homens, herdou uma companhia sem primeiro-sargento, teve uma comissão liquidatária trabalhosa, confrontou-se com problemas administrativo-logísticos de monta.

Carlos Alberto Gaspar Martinho embarcou para a Guiné em Março de 1972. Na universidade participou no movimento associativo “contra a Guerra Colonial” e esteve para fugir com dois colegas. O pai pediu-lhe para não ir. Fez o estágio em Angola, experiência inolvidável, saiu-lhe um capitão apanhado pelo clima, que fizera uma operação em que se perdeu metade dos efetivos, tiveram um trabalhão para regressar. Foi para o Olossato e Spínola assegurou-lhe: “É tão má esta zona que as companhias que vão para lá só ficam um ano, se tiverem bons resultados. Se o nosso capitão tiver resultados ótimos, dou-lhe a minha palavra de honra como vem aqui para Bissau, ao fim de um ano… Mantenha-me os itinerários todos limpos". Foi ferido na primeira flagelação, coseram-lhe os dedos. No Olossato, imprimiu uma disciplina rígida, foram levantadas muitas minas e houve poucos mortos em combate. Rodaram para Quinhamel, estava lá há um mês quando recebeu uma mensagem do Comando-Chefe para se apresentar no quartel-general. Apresentou-se e Spínola explicou-lhe que lhe tinha dado a palavra de honra que agora ia quebrar, dava-lhe a missão de se apresentar em Binta e a fazer a picagem e a desminagem da picada de Binta para Guidage. “Em Guidage ficam dois grupos de combate seus, e os outros dois grupos vão para Bigene. O senhor fica em Guidage, com os dois grupos, e comanda a outra companhia, de africanos, que lá está. O capitão Salgueiro Maia vai-se embora. Tem três dias. Tudo o que precisar peça. Estamos entendidos?”
Encontrou Salgueiro Maia e este barafustava: “Isto não se resolve com a guerra, chego à Metrópole e rebento com esta merda toda”. Deplora que todo o seu trabalho e dos seus soldados não mereceu uma réstia de conhecimento.

João Londral Ivens Ferraz de Freitas Leito Martins. Passou treze meses na Guiné. “Fui colocado em Canjadude, onde aquartelava a CCAÇ 5, com soldados africanos enquadrados por oficiais e sargentos europeus. Canjadude tinha um quartel com uma casa para os serviços administrativos, um pequeno barracão para as refeições da tropa branca, valas em ziguezague, bunkers semi subterrâneos para alojamentos, e a aldeia indígena ao lado, cheia de enormes mangueiras que abrigavam o povoado”. Foi aqui que fez o estágio. Voltou a Mafra e formou batalhão sobre o comando do Tenente-Coronel Luís Atayde Banazol. Mobilizados para a Guiné, feito o IAO, marcharam para Farim, a atividade militar englobava Jumbembém, Nema, Lamel, Canjambari, Farim. O pior momento terá sido o ataque ao quartel, em Jumbembém, Fevereiro de 1974. E adiante: “Devo mencionar que os nossos soldados estavam emocionados com o fim da guerra e abraçavam os soldados do PAIGC. A capacidade de confraternização dos portugueses estava ali bem patente! Também fui de Berliet a Guidage. Percorri em silêncio a célebre zona de emboscadas, entre Binta e Guidage. Parecia-me ainda cheirar o fumo do rescaldo, buracos, troncos queimados, uma paisagem tenebrosa. Dias depois, fui com o Major Morna de helicóptero a Binta para entrega da unidade ao PAIGC. Depois, foi a retirada de Cuntima, de Jumbembém e de Farim”.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 18 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16314: Notas de leitura (859): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16314: Notas de leitura (860): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
A tese de doutoramento de António Inácio Correia Nogueira incidiu sobre quem eram e como se formaram os Capitães do Fim, e daí um registo de indiscutível importância de testemunhos dos protagonistas.
Escreve Maria Inácia Rezola que "um dos aspetos mais inovadores da tese de António Nogueira reside no facto de o autor ter concebido e preparado um minucioso questionário, combinando perguntas abertas e fechadas, que aplicou a cerca de uma centena e meia de capitães milicianos".
E, mais diante refere que o autor analisa "como um exército, cansado e esgotado pelo esforço de guerra, ao recorrer a incorporação de grande número de milicianos se torna bastante mais permeável à pressão social e contestação estudantil e política que se fazia sentir".
Um obra polémica, irá pôr em confronto aqueles que pugnam pela insustentabilidade contra os que ainda advogam que a guerra podia continuar, e ainda por muito tempo.

Um abraço do
Mário


Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (1)

Beja Santos

“Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016, é o que se chama uma obra de leitura obrigatória para quem combateu na guerra colonial e pretenda conhecer ao pormenor o pensar daqueles a quem depreciativamente chamavam os capitães de proveta.

Na base deste livro está a tese de doutoramento de António Inácio Nogueira, licenciado em Ciências Físico-Químicas, mestre em Ciências da Educação e doutor em Sociologia. Foi comandante da Companhia de Cavalaria n.º 3487. O conteúdo é aliciante, não há razões para despegar a leitura: um vasto olhar sobre o enquadramento histórico e político da guerra, a seleção e formação destes oficiais milicianos destinados ao curso de comandantes de companhia, seguem-se testemunhos, notas de ocorrência, várias polémicas, provas documentais de indiscutível valia para conhecer mentalidades, formas de liderança e visões da guerra. Obra necessariamente polémica, divide radicalmente aqueles que continuam a teimar de que aquela guerra era sustentável e os outros que mostram pelo que passaram e puderam testemunhar que o conflito deixara de ter militarmente qualquer saída, a liderança fundamental daqueles capitães estava comprometida por uma incontornável descrença.

Primeiro, o enquadramento histórico e político, vamos ser precisos, grande parte desta narrativa aparece abordada em inúmeras obras. O autor releva a politização estudantil, o papel desempenhado pelo PCP e por organizações da extrema-esquerda, sublinhando as atividades do MRPP, o PCP (m-l) e alguns setores católicos progressistas. Não terá sido por acaso que Otelo Saraiva de Carvalho e Diniz de Almeida falam da participação destes Capitães do Fim nos preparativos do 25 de Abril. A partir de 1970, aproximadamente, estes capitães vão sendo integrados num exército predominantemente milicianizado. Quanto à importância da companhia, o autor acolhe o depoimento do Coronel Carlos Matos Gomes:  
“A função atribuída pelo Exército à companhia em quadrícula era de tal forma ampla que abrangia todos os aspetos inerentes à guerra e à missão do Exército. A companhia era um Exército em miniatura. O capitão da companhia era um general em miniatura: devia comandar, administrar e fazer política. Para além de tudo isto, as companhias tinham as suas missões, embora de caráter generalista, como, por exemplo defender a sua zona de ação, o que dava aos capitães a responsabilidade, solitária, de decidir o que fazer, onde fazer, como fazer”.
O autor lembra a ação dos milicianos na Guiné em torno do 25 de Abril, aí aparece uma mão cheia de dirigentes do movimento estudantil de Coimbra de 1969. “A decisão de criar o MAPOS (Movimento Alargado de Praças, Oficiais e Sargentos), em 4 de Maio de 1974 – o designado Movimento para a Paz, fio da sua quase exclusiva pertença e contribuiu, significativamente, para a resolução rápida do processo de paz na Guiné”.

Segundo, o recrutamento, e como eram selecionados e preparados estes comandantes de companhia. Anota o autor que em percentagem da população, Portugal tinha mais homens em armas que qualquer outro país Ocidental. Dera-se impulso à africanização dos contingentes, foram chamados os antigos oficiais subalternos que não tinham sido mobilizados e com a Academia Militar com escassos candidatos, o recurso encontrado foi o de estes capitães oriundos do curso de oficiais milicianos. A Escola Prática de Infantaria vai tornar-se num epicentro desta formação de oficiais milicianos. Ponderavam-se várias caraterísticas: medicação, sociabilidade, apresentação/aprumo, espírito de sacrifício, decisão e capacidade física, capacidade de comando, grau de conhecimentos militares. E havia as provas físicas: peso de 5 kg, salto em comprimento, 100 metros de obstáculos, lona ou galho, abdominais, paliçada, muro, vala, entre outras. Assim se formava um alferes miliciano ao fim de 900 horas, dividas por 22 semanas. Em dado passo da guerra a instrução de aperfeiçoamento operacional passou a ser ministrada já em África.

Até aos capitães proveta, ia-se buscar, com atrás se referiu, oficiais milicianos que não tinham ido a África. É em 1970 que o Estado-Maior do Exército define os critérios para seleção, formação e graduação de comandantes de companhia do quadro de complemento. Seriam feitos testes a todos, seguir-se-iam sessões de formação, abria-se a porta a voluntários e a propostos pelos formadores, era por aqui que se começava. Pezarat Correia esteve ligado a todo este processo de formação. É major em Mafra, em 1972, manifesta críticas aos seus superiores, logo à partida a carga horária de 8 horas. A convite o autor, testemunha:
“O ser um bom capitão, na altura, era fundamentalmente ser um comandante de tropas consciente da situação objetiva que estava a viver-se. A maior parte do tempo o capitão estava isolado com a sua companhia e tinha, muitas vezes, que tomar decisões que tornavam o seu poder quase discricionário. Não podia estar à espera de orientações. Vinha de um curso de oficiais milicianos onde era preparado para comandar um pelotão e, de repente, fazia-se uma extensão da sua preparação para comandar uma companhia e obviamente que à partida era um homem que estava mal preparado”.
Há uma certa polémica quanto ao facto destes Capitães do Fim, por falta de formação, terem contribuído para o agravamento do estado da guerra. Há inquiridos que se abstêm de responder e há mesmo quem recuse veementemente tal possibilidade. Segue-se um rol de depoimentos, destaco o de Manuel Monge, Major-General na reforma e que foi capitão na Guiné. Diz ter tido sob o seu comando vários Capitães do Fim e justifica:
“De Junho de 1973 a Fevereiro de 1974 comandei o COP 5, no Sul da Guiné, em Gadamael-Porto. Tive sobre as minhas ordens vários destes capitães. Eu, capitão de cavalaria do quadro permanente fui graduado em major para exercer esse comando. Era uma situação operacional muito difícil. Os meus capitães tiveram um desempenho notável. Depois do desaire de Guileje, segurámos a situação em Gadamael, Cameconde e Cacine e, aí, o PAIGC não avançou significativamente mais".

O autor agora vai recolher depoimentos dos Capitães do Fim.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de julho de 2016 Guiné 63/74 - P16308: Notas de leitura (858): “Costa Gomes Sobre Portugal, Diálogos com Alexandre Manuel”, editado por A Regra do Jogo, 1979 (Mário Beja Santos)