Mostrar mensagens com a etiqueta José Saúde. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta José Saúde. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 – P26146: (Ex)citações (430): Habitações palacianas de Gabu (José Saúde)

 


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Tenho lido textos no nosso blogue – Luís Graça & Camaradas da Guiné - de camaradas que visam literalmente a antiga Nova Lamego, atual Gabu. Digo-o, sem o mínimo de uma dúvida que porventura me suscitava hesitações, pois eles são tão claros que não retiro uma vírgula aos escritos aqui lançados pelos seus signatários, que Gabu tem, naturalmente, a sua própria história existencial.

Quando lancei o livro – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 2973/1974 – MEMÓRIAS DE GABU” – ocorreu-me em procurar a razão de como tudo terá acontecido. Ou seja, a razão da sua existência e de que como tudo terá evoluído até ao presente.

É óbvio que pelo meio ficou a nossa presença aquando da guerra colonial, mas ficarão também imagens que jamais esqueceremos. Por isso, aqui vos deixo a história de Gabu e dos então peiriquitos que ousaram explorar os recantos da então Nova Lamego.

Habitações palacianas de Gabu

Denominada como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a Leste e a Sul com as regiões de Tombali e a Oeste com Bafatá.

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona, mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam, normalmente, os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado, a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário tribal transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes. 

Uma rua

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós combatentes incessantemente recordaremos.

Vamos, pois, ao encontro de conteúdos passados em pleno palco da guerrilha. 

A população em movimento 

    
Periquitos exploram o centro de Nova Lamego 

Passeio na “5.ª Avenida”

Suavizavam o ar com o odor de uma “penugem” que os então pe9riquitos, nome usado pela tropa mais velha para identificar os recém-chegados a solo guineense, lançavam para o infinito de um horizonte inimaginável e onde surgiam quadros pesarosos pintados pelo negro de uma incerteza. Porém, a incubação nos ovos chegava ao fim. Tínhamos avezinhas. Um esticão de asas, um apalpar no escuro, uma vertigem dos mais fracos, o vociferar dos conteúdos da guerra, o trocar opiniões sobre os estratagemas do inimigo, as emboscadas, as minas, os ataques noturnos aos quartéis, entre tantos outros motes aflorados, davam azo a uma conversa sempre indeterminada entre o grupo acabado de chegar ao Leste da Guiné.

Cenário: a “5.ª Avenida” de Nova Lamego, quais turistas a passearem-se pelas ruas chiques das grandes metrópoles americanas! Ao fundo da dita cuja (“5ª Avenida”), eis o grupo a abancar no bar da Pensão Mar e a refrescar-se com as aprazíveis sagres. Era o princípio de uma jornada por terras de além-mar. Outras fainas se seguiriam!

 A Guiné parecia apenas um sonho. Aliás, jamais me tinha ocorrido à ideia de que o meu futuro militar me reservasse, como virtual conjetura, conhecer um dia a realidade da guerrilha no terreno guineense e as suas famosas bolanhas.

Falava-se da Guiné como o diabo foge da cruz. A guerra naquela província do Ultramar era terrível. Traçavam-se cenários mórbidos. A rapaziada comentava e a mensagem passava de boca em boca. Mas o destino contemplou-me e eu, tal como grande parte dos rapazes desses tempos, não fugi a esse fim. Fui e voltei tal como parti, restando resquícios de histórias que contemporizam o meu calendário de vida.

Camaradas houve, e foram muitos, que já não usufruem, infelizmente, do prazer de partilhar momentos de convívio e narrar as suas histórias de vida. Uns, morreram em combate na densidade de um mato cerrado; outros, faleceram numa emboscada; outros, encontraram a morte em ataques aos quartéis; outros, fecharam definitivamente os olhos em famigerados rebentamentos de minas anticarro e antipessoal e, ainda, há aqueles que morreram em momentos de pura infelicidade. Desastres com viaturas militares ou armas de fogo, carimbaram o seu derradeiro fim.

Convivi com situações que me deixavam apreensivo quando em causa esteve a razão do último adeus. Momentos fatídicos, mórbidos, de camaradas que ousaram abusar do facilitismo e se deixaram cair, inadvertidamente, em fatídicos fins proibidos. Exemplifico o infeliz que encontrou a morte a limpar a arma esquecendo, entretanto, que tinha deixado uma bala na câmara e outros em estúpidos acidentes com viaturas militares, todos, ou quase todos, temos histórias desta estirpe para contar.

Olho, atentamente, para duas fotos do meu álbum – Guiné - e revejo um passeio pela “avenida” principal de Nova Lamego, nos primeiros dias em que ali “ancorámos”. O clique foi justamente dado em frente a uma casa onde residiam duas irmãs cabo-verdianas que eram professoras primárias na escola local.

Vivendo momentos de uma juventude no seu auge, alguns furriéis e alferes, andavam doidos com as meninas que, por sinal, eram boas como o milho. Recordo que a malta andava mesmo vidrada com aquele duo de airosas donzelas mestiças. Parceiros? Não lhes conheci. Passemos à frente…

O grupo de turistas, todos janotas, embevecidos com a beleza natural que os rodeava e o cheiro a África a inalar as nossas narinas, eis o grupo de periquitos, à civil, sentados a uma mesa do bar da Pensão Mar. Um nome que nada tinha a ver com a realidade deparada. O mais indicado, na nossa conceção, seria substituir Mar por Bolanha. O mar, lá longe, nem vê-lo. A bolanha era, isso sim, o afrodisíaco mosaico constatado em terrenos circundantes, bem como em quase todo o território guineense. Mas aceitava-se a decisão do seu mentor.

África é sumptuosa no consumo de bebidas, principalmente cerveja. O calor afirma-se como um aditivo determinante pelo prazer de consulares gargantas ressarcidas. Num convívio saudável ficou uma tarde de passeio na apelidada “5ª Avenida”, o alforge recheado de cervejas bebidas e um conhecimento mais profícuo de uma urbe onde as bajudas passeavam os seus corpos embrulhados em pedaços de panos garridos que torneavam a preceito os seus joviais e esbeltos físicos. O militar – periquito – apreciava e… imaginava cenários quiçá inexequíveis de alcançar. Coisas de uma juventude irreverente.

Refastelados à volta de uma mesa o grupo de furriéis ressarciam-se com as cervejolas fresquinhas

Periquitos desbravavam o ambiente da “avenida”. Da esquerda para a direita: o Cardoso, Operações Especiais/Ranger, Eu, o Santos, Minas e Armadilhas, Freitas e o Rui, Operações Especiais/Ranger

Abraços camaradas e um até breve.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

20 de abril de 2024 > Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25913: Blogues da nossa blogosfera (195): "Portugal Portal," em neerlandês, de Henk Eggens: publicou em 19/7/2024 um artigo do José Saúde ("Een militair keert naar huis terug"/ "Uma soldado volta para casa")

 



Portugal Portal, de Henk Eggens, em neerlandês. Cópia da página de 19 de julho de 2024, "Um soldado volta para casa, de Henk Eggens e José Saúde.


1. Há uma página na Net que se chama Portugal Portal e que se publica em neerlandês, sendo editada por um amigo de Portugal e da Guiné-Bissau, o médico Henk Eggens, lusófono, por sinal casado com uma portuguesa... Merece ser conhecida...

Mas demos-lhe a palavra:

Henk Eggens conheceu Portugal quando começou a trabalhar na área da saúde nos antigos territórios ultramarinos: primeiro em Cabinda, Angola, poucvos meses depois da independente  (1976-'78;) e depois na Guiné-Bissau (1980-'84). 

Aí obteve uma visão especial de partes da cultura e da política portuguesas. Desde então faz regularmente férias para Portugal com a família, geralmente numa casa alugada perto do Rio Dão, no distrito de Viseu. 

Durante anos, viajou por vários países de África, Ásia e América Latina por curtos períodos de tempo para trabalhar, incluindo os países de língua portuguesa, Moçambique e Brasil. Desde 2013 que ele e a esposa passam muito tempo em Santa Comba Dão, distrito de Viseu; Henk está reformadeo, Maria de Jesús é consultora de controle de hanseníase. Tem, pois muito tempo para conhecer e apreciar melhor Portugal e os portugueses. Henk é editor do Portal Portugal desde meados de 2021.

2. Recentemente, em 28/08/2024, 16:34, o Henk Eggens escreveu ao nosso camarada José Saúde a agradecer-lhe a autorização dada para publicar um dos seus textos que veio no nosso blogue, em 20 de abril de 2023 (*). Na altura explicou melhor o seu interesse e disse quem era:

(....) Trabalhei na Guiné-Bissau como médico de 1980-1984. Os primeiros anos estava baseado na Fulacunda, Quínara. Vivi na casa do comandante no antigo quartel. Era o único médico na região, desde Tite até Empada. Sem hospital, com poucos recursos. Foi uma aventura valiosa.

Desde aquele tempo fiquei ligado mentalmente com Guiné-Bissau e o povo lá. Assim sigo o blogue de Dr. Luís Graça. Aparecem reflexões equilibradas sobre aquele tempo difícil, como o Senhor descreveu bem. (...)
3. O artigo do Zé Saúde, em holandês (ou melhor, neerlandês, como agora se diz),  saiu em 19 de julho passado:
 
De: Portugal Portal <mailportugalportal@gmail.com>
Data: 23 de julho de 2024 08:04
 
Caro Sr. José Saúde,

Queria informa-lhe que o seu artigo em holandês foi publicado no dia 19 de julho 2024. https://www.portugalportal.nl/een-militair-keert-naar-huis-terug/ (**)

Espero que o senhor tenha a possibilidade de ler a tradução.

Agradeço a oportunidade de poder publicar sua mensagem de memórias traumáticas no final de sua estadia na Guiné. Para o leitor holandês, longe das vossas experiências na tropa, dá, acho eu, para perceber melhor aquele episódio da história tão importante dos Portugueses e das Portuguesas.

Tudo de bom para o senhor!

Com os meus melhores cumprimentos,
Henk Eggens
Redactie Portugal Portal
Portugal Portal

 4, Aqui vai a versão portuguesa do artigo, com uma introdução do Henk Eggens (**):

Um soldado volta para casa
por Henk Eggens
Publicado em 19 de julho de 2024
AApós a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974, foi rapidamente prometida a independência aos territórios ultramarinos. A luta entre os movimentos de libertação e o exército colonial cessou pouco depois do 25 de Abril. Os soldados portugueses em Angola, Moçambique e Guiné Portuguesa deixaram o campo de batalha e puderam finalmente regressar a casa.

Durante a minha estadia em Portugal conversei com vários portugueses que viveram a guerra, a maioria deles na Guiné, mas também em Angola e Moçambique. A maioria eram recrutas e, após um rápido treinamento militar básico, foram transferidos para um país africano estrangeiro. Lá era esperado que eles defendessem a pátria contra os turras, os terroristas (eu os chamo de lutadores pela liberdade). Foram criados com a ideia de que o grande império português também tinha de ser defendido contra os comunistas noutras partes do mundo.


Muitos deles ficaram desmotivados durante a sua longa permanência em situações de guerra. A desmotivação levou à resistência contra a política portuguesa prevalecente. O resultado foi a revolta dos 'Capitães de Abril' que desencadearia a Revolução dos Cravos.

O slogan “25 de Abril começou em África” contém um fundo de verdade.


O 25 de abril nasceu na África
Foto Rui Landim no Twitter


Uma história pessoal, 

por José Saúde

José Saúde, que viveu o 25 de Abril de 1974 como militar proveniente de uma unidade de elite (Rangers), tendo feito a sua comissão militar em Nova Lamego (atual Gabu, Guiné-Bissau) e tem registado as suas memórias num blog de veteranos de guerra portugueses (Luís Graça & Camaradas da Guiné).






José Saúde, na Guiné Portuguesa, 1973. Foto José Saúde.


O dia 25 de Abril de 1974, dia em que foi proclamada a liberdade, tornou possível o regresso à pátria de camaradas acampados em Angola, Moçambique e Guiné (territórios onde a guerrilha não dava tréguas). Naquele momento sentiu-se que o sofrimento dos jovens enviados para as frentes de combate havia chegado ao fim.


Foi um Abril que “rejuvenesceu ao som de um cravo vermelho”. Jovens encantados com o sucedido e preparados para voltar rapidamente para casa. Era Abril, e seu cravo vermelho a renascer de um tempo onde proliferava a escuridão. Éramos filhos das longas manhãs de profundas indecisões, mas onde a esperança da liberdade permanecia permanentemente nos nossos corações. Fomos, também, filhos de gente humilde, que passou por um período difícil (HE: No texto original: que comeram o pão que o diabo amassou), mas de pais que nos criaram e que fizeram nós homens para um amanhã melhor.

Porém, os tempos sombrios impediram muitos dos nossos pais darem aos filhos o ensino secundário ou superior, porque os recursos financeiros da família eram demasiado limitados. Somos filhos de um regime totalitário, o Estado Novo, onde civis inocentes foram colocados sob ordens estritas enquanto muitas pessoas simplesmente pediam trabalho, mesmo que fosse apenas sazonal.


No Estado Novo

Os tempos eram diferentes! Tempos em que faltava liberdade para expressar opiniões pessoais e em que os mais destemidos eram enviados para ‘campos de férias’, onde as grades de uma prisão se apresentava como uma realidade inegável. Pessoas sérias e honestas, algumas com apenas a quarta classe do ensino primário, outras analfabetas, mas cuja coragem própria resultou em prisão política. Pessoas que estavam comprometidas de coração e alma com uma crença que consideravam justa e onde tinham em mente o bem-estar do seu povo. Mas, por outro lado, sempre existiram os agentes leais de um regime que não mostrou piedade para com o cidadão honesto.

Éramos crianças alegres, brincávamos na rua, jogávamos futebol em campos inóspitos, às vezes com bola de trapo ou com uma bexiga de porco e tantas outras brincadeiras que ainda hoje lembramos. Crescemos ouvindo falar de atrocidades onipresentes do regime, de agentes da PIDE que dominavam tudo ou quase tudo, conhecemos o sofrimento incalculável de famílias marcadas pelos mandamentos estritos de pessoas vestindo fatos caros, à Príncipe de Gales, e com gravatas de seda pura. 

Mas um dia vimos sinais de que o medo que nos oprimia por causa de um governo hostil estava, com o evoluir das eras, a tornar-se cada vez menos necessário. O 25 de Abril de 1974, a grande Revolução dos Cravos, abriu-nos as portas à liberdade e, sobretudo, ao conhecimento de novos mundos e de novas realidades. Pertencemos a uma geração que teve a oportunidade de conhecer reformas ou, em suma, gentes novas. Eram melhorias do destino que mudariam esta imensa esfera, chamada Terra.

Enviados para as frentes de combate

Assistimos à guerra colonial como muitos milhares de camaradas, no nosso caso em território guineense. O conflito começou em Angola em 1961 e estendeu-se a Moçambique e à Guiné, terminando com a queda do regime liderado pelos capitães de Abril. Nós, jovens rapazes, fomos enviados para o cenário de uma guerra onde os soldados, quando confrontados com a realidade guerrilha, ficavam enfurecidos, protestavam violentamente e proferiram, por vezes, maldições. A frustração levou-os a um quadro virtual onde estava escrita a simples frase: Matar para não morrer!

Sim, como sabeis camaradas, muitos perderam a vida no campo de batalha, outros em picadas, ou numa emboscada, outros nos seus quartéis em consequência de ataques noturnos inimigos e quando descansavam sobre um aparente aliviar de tréguas. Muitos ficaram mutilados; muitos outros portadores de doenças mentais crónicas devido às circunstâncias completamente inesperadas em que viveram.

Lar!

Quando rebentou a Revolução de Abril e soou o som do clarinete para nos reunir, este vosso camarada estava a cumprir a sua missão militar na Guiné, mais precisamente em Nova Lamego, hoje Gabu. 

Claro que todos nós aplaudimos esta fantástica aventura. Seguiram-se momentos de contacto com membros do PAIGC (HE: movimento de libertação), conhecemos os rostos daqueles contra quem havíamos lutado anteriormente, trocamos conversas e finalmente tomaram conta das nossas instalações.




O soldado José Saúde se despede dos companheiros em Novo Lamego, na Guiné Portuguesa. Foto José Saúde.


A população civil barafustou às portas do nosso quartel, sendo as suas expectativas quiçá incertas. Vinham em grupos e esperavam receber alguma coisa. Seus rostos irradiavam inseguranças reprimidas. Nós, entendemos isso. Mas, a nossa missão tinha chegado ao fim. Voltaríamos para casa em breve. Ficou o nosso grito de desabafo: Adeus, Nova Lamego!

Saudações deste velho camarada!

José Saúde

(O texto não foi revisto por nós: LG) 

—————-

O Portal Portugal já prestou atenção aos soldados portugueses que lutaram na guerra colonial.

______________

Notas do editor:

(*) Vd. 20 de abril de 2024 > Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)

(**) Último poste da série > 5 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25483: Blogues da nossa blogosfera (194): Recuperando parte dos conteúdos do antigo sítio da AD Bissau - Parte VII: mulheres pescadores do rio Cadique (foto de Ernst Schade)

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25578: Efemérides (439): Inauguração do Monumento aos Antigos Combatentes do Concelho de Beja, levado a efeito no passado dia 9 de Maio de 2024 (José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp)


1. Mensagem do nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu, 1973/74), com data de 28 de Maio de 2024:

Inauguração do Monumento aos Antigos Combatentes do Concelho de Beja

Homenagem os Antigos Combatentes

Realizou-se no pretérito dia 9 de maio, 2024, feriado municipal da cidade de Beja, a inauguração do Monumento aos Antigos Combatentes da Guerra Colonial – Angola, Moçambique e Guiné -, onde perpetuamente nele permanecerão registados os nomes dos mortos naturais do concelho.

O evento mereceu as honras oficiais, civis e militares, tendo-se verificado a presença de muitos antigos camaradas que lutaram nas três frentes do conflito ultramarino, tendo também sido homenageados dois dos antigos camaradas e sócios da Liga dos Combatentes.

Sendo o momento de imagens não irei, por isso, alargar-me com o texto, mas deixar-vos um conjunto de fotografias que enalteceram o tão prestigioso evento. Resta, porém, dizer-vos que houve discursos, nomeadamente do presidente da câmara municipal de Beja, Paulo Arsénio, e também por parte da Liga dos Combatentes.

Abraço, camaradas
José Saúde


_____________

Nota do editor

Último post da série de 29 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25577: Efemérides (438): 10 de Junho, Dia de Portugal - Homenagem Nacional aos Combatentes, Igreja de Santa Maria de Belém, nos Jerónimos e junto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, em Lisboa

sábado, 20 de abril de 2024

Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)


Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > 
Na porta de armas,  o pessoal civil  por lá se aglomerava pós 25 de Abril



Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > O José Súde (à direita) com o furriel Santos, minas e armadilhas, no dia da nossa despedida do quartel

Fotos (e legendas): © José Saúde (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abril em Nova Lamego

por José Saúde


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

O 25 de Abril de 1974, dia em que se proclamou a Liberdade, permitiu o regresso dos camaradas, instalados em territórios africanos – Angola, Moçambique e Guiné - onde a guerrilha predominava, à Pátria mãe. Sentiu-se, então, que o fim do martírio de “miúdos” enviados para os palanques da guerra, havia terminado. Era um Abril a rejuvenescer à “sonância” de um cravo vermelho e a rapaziada, eufórica, a preparar-se para um retorno, a casa, antecipado.

Abril, e o seu cravo vermelho!

Somos filhos de longas madrugadas que se imortalizaram no tempo, mas onde a esperança da liberdade residiu permanentemente em nós. Somos também filhos de pessoas humildes, “que comeram o pão que o diabo amassou”, mas que nos educou, o quanto lhes foi possível, uma vez que os tempos da obscuridão ter-lhe-ão coartado a ânsia de mandar os seus descendentes para estudos médios ou superiores, visto que as possibilidades financeiras do clã familiar eram demasiado escassas, ou ainda filhos de um regime totalitário, Estado Novo, onde o poder sobre o mais incauto cidadão impunha ordens absolutas aquando o pessoal reclamava, apenas, um compreensível dia de trabalho que, nesses idos, eram tão-só sazonais.

Os tempos eram outros! Tempos em que a liberdade, melhor, a falta dela em expressar sensibilidades pessoais tinham o condão de enviar os mais destemidos para “campos de férias”, mas onde as grades de uma prisão se apresentavam como inequívocas realidades. Pessoas sérias, honestas, uns “letrados” com então a 4ª classe, já era bom, outros analfabetos, mas cuja altivez dalguns passou pela prisão política. Seres humanos que se entregavam de alma e coração a uma profícua convicção que entendiam como justa e, sobretudo, para o bem do seu povo. Mas, do outro lado, lá estavam sempre atentos os fiéis agentes de um regime que não dava tréguas ao mais honesto plebeu.

Fomos crianças alegres, brincámos na rua, jogámos ao berlinde, à bola, algumas de trapos outras com bexigas de porco cujo enchimento era feito através do ar que vinha dos nossos pulmões, à pata, ao eixo, ao pau da lua, e de tantas outras brincadeiras que ainda hoje recordamos, crescemos a ouvir as barbaridades omnipotentes vindas de um Estado Novo, de agentes de uma PIDE que tudo ou quase tudo dominavam, conhecemos inegáveis sofrimentos de famílias marcados pelos constrangimentos das austeras estratégias de pessoas que envergavam fatos à príncipes de Gales com gravatas de seda pura, mas vimos um dia o desamarrar das âncoras do medo que nos prendiam a uma governação que fora substancialmente impiedosa. 

Porém, o 25 de Abril de 1974, a glorificada Revolução dos Cravos, abriu-nos as portas para a Liberdade e, fundamentalmente, para o conhecer novos mundos e novas realidades.

Perfilho, com toda a legitimidade, que essas lealdades de outrora nos trouxeram novéis conhecimentos, novas vidas, novos universos que harmonizaram em indesmentíveis empatias sociais. Aliás, somos de uma geração que teve a oportunidade em conhecer as remodelações dos lugares, ou, em síntese, reestruturações humanas, créditos estes que paulatinamente se transformariam ao cimo desta imensa esfera chamada Terra.

Assistimos à guerra colonial da qual fomos mais um dos muitos milhares de camaradas que por lá andaram, no nosso caso em solo guineense, sendo que a peleja começou em Angola, 1961, estendendo-se a Moçambique e Guiné, terminando o conflito em terras de além-mar com a queda do poder até então instalado sob o camando dos Capitães de Abril.~

Nós, jovens militares, fomos enviados para o palco de uma guerra na qual os camaradas no momento em que se deparavam com os conteúdos reais da guerrilha, lançavam exclamações de raiva, de revoltas incontidas e de impropérios “berros” que os transportavam para um tabuleiro, que não sendo o de xadrez, mas um outro em que se esculpia a simples frase: “matar para não morrer”!

 Sim, como sabeis camaradas, porque é inevitavelmente verídico, muitos companheiros perderam as vidas nas frentes de combate, outros nas "picadas", ou em emboscadas, outros no interior dos seus quartéis resultantes de ataques noturnos levados a cabo pelo IN, mas quando descansavam num sono, que não sendo profundo, o seu descansar permite-me, agora e sempre, parafrasear uma metáfora que se traduzia, naqueles tempos, num "descansar de armas". E tantos foram os camaradas mutilados e de muitos outros cuja patologia os remete para inesperadas circunstâncias de vidas de todo inesperadas.

Quando a revolução de Abril “rebentou” e se ouviu o som do clarinete a emanar a sonoridade do toque a reunir, este vosso camarada cumpria a missão militar na Guiné, precisamente em Nova Lamego, Gabu. Claro que todos rejubilámos com tamanha aventura. Seguiram-se momentos de intercambio com elementos do PAIGC, o conhecer de rostos com os quais antes havíamos combatido, trocaram-se “galhardetes” e eles, por fim, assenhorearam-se das nossas instalações.

Naturalmente que pelo meio de tanto alvoroço, a população, sempre expectante, não dava tréguas aos camaradas que assumiam o serviço da porta de armas. Reuniam-se em grupo e vá de reclamar quiçá benesses. Os seus semblantes indicavam acumuladas incertezas.

 Compreendia-se. A nossa missão chegara ao fim. Brevemente voltaríamos a casa. Ficava o nosso repto: “até sempre,  Nova Lamego”!

E eis-me, finalmente, no dia 4 de setembro de 1974 com o camarada Santos à porta das nossas instalações de malas feitas e prontos para o embarque num avião Noratlas que nos conduziria ao aeroporto de Bissalanca, seguindo-se uma viagem para o quartel do Cumeré, local onde permanecemos até ao regresso a Lisboa, Figo Maduro.

Momentos inesquecíveis que levarei comigo para a eternidade, tendo em linha de conta aquele Abril, e o seu cravo vermelho!

Abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

__________ 


Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio

segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 – P25283: Efemérides (431): 51º Aniversário de instruendos que passaram pelo CIOE, em Penude, Lamego (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


13º Convívio de camaradas do 1º Curso/Turno de 1973, de Penudo/Lamego

Um tempo, sem tempo, que ainda ousa reunir camaradas de armas e seus familiares

Não obstante os agrestes e eventuais contratempos que porventura nos surgem pelo caminho, existe, porém, a certeza que quando o “comandante” Alberto Grácio toca o reunir as tropas, 1º Curso/Turno de 1973 de Operações Especiais/Ranger em Penude/Lamego, nós antigos militares e combatentes da antiga guerra colonial que se espalhou por Angola, Moçambique e Guiné, respondemos, com prontidão e, num tom fortemente unissonante, respondemos: SIM, presente!

Desta feita, o evento, o 13º, teve lugar em Palmela e por lá apareceram muitos camaradas, sendo que alguns deles se fizeram acompanhar por familiares. Foi, no fundo, trazer às nossas reminiscências o que fora a dureza de uma especialidade que nos acompanhou ao longo das nossas vivências militares, assim como o palco de guerra por onde andámos.

Ali falou-se de tudo um pouco. Dos bons e dos maus momentos pelos quais passámos. Éramos jovens e essa postura militar, sendo então obrigatória, foi-nos mais enriquecida pela passagem pelos Rangers, que nos deu novas “armas” para enfrentarmos as mais díspares situações que nos surgiram pela frente nos campos onde as batalhas naturalmente proliferavam.

Mas o mundo no qual hoje vivemos, a guerra, aquela em que os vossos avós e pais foram obrigados em participar, são agora guardados em baús onde essas memórias foram paulatinamente corroídas com o evoluir das épocas passadas, ainda que elas não sejam assim tão distantes no tempo. Todavia, existe uma nuvem negra que tenta escamotear a realidade pela qual infalivelmente passámos.

Atualmente o pouco que resta a este povo português, que parece esquecido do recente conflito armado em terras de além-mar, sejam relatos escritos em livros que avivam as memórias dos ainda interessados numa valorização dos seus conhecimentos pessoais.

Catarina Gomes, jornalista/escritora, trouxe a público um livro chamado “Pai, tiveste medo? Uma obra que cita, precisamente o camarada Gomes, já falecido, pertencente ao nosso Curso, 1º de 1973, que prestou serviço militar em Angola, como alferes. Paz à tua alma, camarada. Ah, houve um momento em que se fez silêncio pela tua inesperada partida. Ficou o simplório gesto dos companheiros com os quais partilhaste as dificuldades, físicas e mentais, no sopé da Serra das Meadas. Nós, os teus camaradas, já septuagenários, que, por ora, continuam a fazer peso à terra, prosseguirão essa divina missão em rever os presentes e, singelamente, recordar os ausentes, isto é, aqueles que um dia partiram para o infalível caminho rumo a outros nimbos, mas com outras dimensões, sendo estas deveras cruéis.

Amigos de sempre e para sempre, lembremo-nos que as vidas, sendo demasiado curtas, serão, contudo, elevadas com celebridade enquanto as nossas vozes solfejem o condão de estarmos vivos. Para trás ficaram memórias, de todo inesquecíveis, numa guerra que nos foram demasiado cruéis, quer em Angola, Moçambique ou Guiné, onde muitos destes camaradas presentes no evento por lá militaram.

Que venha o próximo Convívio, este a Norte!



Eu, Zé Saúde, com o meu companheiro por terras de Gabu, Guiné, Rui Álvares, onde comandamos, em simultâneo, o mesmo grupo de intervenção



Alberto Grácio, o “Comandante” em pleno campo de “batalha” e a preparar as “armas” para um “assalto à mão” a uma mesa recheada de “rações de combate”. Grácio, um antigo combatente na Guiné







Catarina Gomes, jornalista/escritora, esteve presente e deu a conhecer um dos seus livros:

Pai, tiveste medo?

Os convivas



Uma outra parte da sala



Catarina Gomes a partir o bolo do nosso 13º Convívio 

Abraços camaradas e um até breve.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25214: Efemérides (430): O "making of" do livro de Spínola, "Portugal e o Futuro", publicado há 50 anos (revelações do biógrafo, Luís Nuno Rodrigues)

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 – P25159: (Ex)citações (427): Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974" (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974"

Os tempos de vida, os nossos, lá vão caminhando por uma estrada cada vez mais apertada. Ambicionamos, e sempre, um presente ajustado às nossas capacidades físicas e intelectuais, assim como um amanhã onde suplicamos um bem-estar para a nossa presença neste planeta chamado Terra.

A idade não perdoa. Sim, é verdade que tempo voa. Ainda assim, lá vamos remexendo em histórias que nos enviam, em particular, para a nossa estadia forçada na guerra colonial da Guiné, ou aquando um dia partimos de Lisboa rumo ao conflito guineense, mas com a curiosidade a suscitar dúvidas em relação à futurologia que nos esperaria. Neste contexto, deixo-vos camaradas imagens por todos certamente relembradas. 

      Angola, Moçambique e Guiné, hoje países independentes, foram outrora palcos de guerrilha que marcaram uma juventude que vivia em plenos anos de autêntica exaltação. Nesses tempos, os clamores evocados pelos jovens desembocavam numa encruzilhada de cavaqueiras cujo destino se fixava amiudadamente com a guerra do Ultramar.

      A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.

      Aportei em solo guineense cerca das 14 horas locais no dia 2 de agosto de 1973.  Ao descer do avião deparei-me, de imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou, todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante, assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível realidade”.

      Os primeiros contactos com os nativos transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que dantes havia idealizado.

Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal. Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava fronteiras aéreas a caminho da guerra.

      Todas as histórias têm um vínculo que nos transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos diametralmente oposto: a guerra e a paz.

      A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos. As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN (inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram evidentes nos campos de batalhas.

      Do conflito da Guiné há retratos que ao longo dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha, nos tempos finais, perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às forças lusitanas.

      Teoricamente seria essa a intenção dos homens de Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito, mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a guerra operacional dos galões amarelos.

      Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta. As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.

      Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer, faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela dureza.

      Sabe-se que foram muitos os que morreram no palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram, felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.

      O stress de guerra é há muito uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas. Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes de autêntico desespero.        

Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25134: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte II: A carestia do arroz em fins de 1973, e a intervenção do Governo, regulando o mercado e fixando o preço que passa de 5$50 para 7$00/kg

Gen de três estrelas, Bethencourt Rodrigues 

(Funchal, 1918 - Lisboa, 2011) (*)




Excerto de uma relação de artigos de víveres existentes à data de 17/6/1974 na CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1972/74), destaque para o caso do arroz, que tem dois preços: um, seguramente importado, a 14$50/Kg, e outro de produção local, a 87$00/Kg. (**)

Fonte: cortesia de José Saúde (2016). [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Uma "batata quente" que estalou nas mãos do novo Governador-geral e Com-chefe da Guiné, o Gen Bettencourt Rodrigues, foi a carestia de vida, provocada pelo aumento da generalidade dos bens essenciais para o abastecimento tanto da tropa como da população civil, na sequência do choque petrolífero e da crise económica de finais de 1973. Teve  consequências na economia, no aumento dos preços, na inflação que disparou, no aumemto das despesas  militares e da administração civil, nas acrescidas dificuldades de  transporte de tropas e material, no fornecimento de combustíveis, enfim, na logística, na alimentação e no moral da tropa, na ação psicossocial, etc. 1974 foi o "anus horribilis" de Marcello Caetano mas também o do governador-geral e com-chefe da Guiné.


Sobre a crise petrolífera de 1973, recorde-se que foi desencadeada por um protesto dos países árabes, com destaque para a Arábia Saudita, pelo apoio prestado pelos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur (de 6 a 23 de outubro de 1973), um conflito particularmente sangrento com milhares de baixas de um lado e do outro.

Como represália, os países árabes organizados na OPEP (criada em 1960 pela Arábia Saudita, Kuwait, Irão, Iraque e Venezuela) o preço do petróleo aumemntou em mais de 400%. Em março de 1974, os preços nominais tinham subido de 3 para 12 dólares por barril (a preços atuais, de 14 para 58).

O Canadá, o Japão, a Holanda, o Reino Unido e os Estados Unidos foram os principais alvos do embargo inicial que se estendeu depois a Portugal, a Rodésia e a África do Sul.  Os efeitos económicos e financeiros, a nível internacional, fizeram-se sentir de imediato. Por exemplo, em Portugal, o litro de gasolina super passa de 7,5 escudos para 11 escudos (o equivalente, a preços atuais, a 2,32 €). Esta crise, de 1973, ficou conhecida como o "primeiro choque petrolífero". Outro se seguiu em 1979. (Fonte: Wikipédia > Crise petrolífera de 1973).

No caso de Portugal, tiveram tremendas consequências económicas, financeiras e político-militares, que já não cabe aqui analisar, mas que vão desembocar, indiretamente, no golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 e no fim da guerra colonial, numa altura em que a situação militar, no terreno (incluindo na Guiné) estava longe de ser desfavorável para o exército português.(**)

Anos depois, em 1977, o gen Bettencourt Rodrigues reduz esta crise apenas ao aumento do preço de arroz (que o Governo teve de contingentar e tabelar, passando de 5$50 para 7$00/Kg)... Limita-se a re4conhecer que a medida foi "impopular"... Claro que o general nunca foi ao mato ver os preços que se praticavam nas lojas dos Fernando Rendeiro e dos Jamil Heneni,,, nem nunca deve ter falado  com os vagomestres das subunidades. Seis meses depois, em junho de 1974 havia arroz, na CCS do batalhão de Nova Lamego a 14$50 / Kg...

Vejamos então como Bettencourt Rodrigues via o "problema do arroz" no tempo em que era o "homem grande de Bissau":

(...) "Problema que afetava toda a população da Guiné, era o do abastecimento de arroz base, primeira da sua alimentação.

"Reduzida a produção local a cerca de 50% das necessidades, por aumento do consumo e diminuição da produção, como consequência da guerra e dum certo afastamento do trabalho na terra por parte da população, em especial da mais jovem, desde fins de 71,  princípios de 72, a importação passou a encontrar dificuldades crescentes,  por forças da escassez de cereais dos mercados mundiais e da elevação de preços  quer do produto,  quer dos transportes.

"Assim, em fins de 1973 houve  necessidade de contingentar a distribuição e de elevar o preço tabeladom  de 5$50 para 7$00 escudos,  suportando, embora o Governo um encargo não inferior a 2$50 / kg.

"Estas medidas não foram naturalmente recebidas com grande pela população, apesar do arroz ser vendido nos territórios vizinhos a preços muito superiores ao praticado na Guiné (Senegal, 14$00, e República da Guiné. 22 a 26$00) e de ter havido um aumento do preço de aquisição ao produtor local de cerca de 25%.

"Para atenuar uma situação de abastecimento com tendência para se agravar, dada a progressiva retração do mercado mundial, independentemente de custos, várias ações foram empreendidas, como a diversificação da dieta alimentar tradicional, para o que se recorreu à importação de milho e feijão, a recuperação de bolanhas e uma intensificação do esforço para aumento da produção, pelo apoio à cooperativização dos agricultores, distribuição de sementes de arroz seleccionadas e de adubso e apoio técnico dos Serviços Provinciais de Agricultura, além do aumento dos preços de aquisição ao produtor." (...)

Fonte: excertos de Gen. Bethencourt Rodrigues, "Guiné", in Joaquim da Luz Cunha et al. "África: a vitória traída" (Lisboa, Editorial Intervenção, 1977), pp. 111/112.

 

2. Comentário de Cherno Baldé ao poste P25130 (*):

(...) Ainda antes do 25A74, o tal arroz de abastecimento do mercado local chegou, mas por algum motivo ligado a sua qualidade, a população dos centros urbanos que já estavam dependentes do arroz importado, deram-lhe o nome de "arroz Bettencourt",  talvez em forma de protesto pela qualidade inferior relativamente ao que estavam habituados durante o consulado do gen Spínola.

Este deve ser o primeiro sinal das mudanças ocasionadas pela partida do gen Spínola e o fim não anunciado da sua política "por uma Guiné melhor".

De salientar que, na altura, a dieta das populações do interior, especialmente do Leste, Norte e Nordeste, era a base do milho e folhas de vegetais (milheto, milho Brasil, cavalo, sorgo, entre outros) e um pouco do arroz de sequeiro e o produzido nas bolanhas. 

Hoje em dia o milho quase que desapareceu da dieta alimentar dos guineenses devido as más influências dos centros urbanos iniciadas na época do gen Spínola, pela facilidade de aquisição do arroz importado com a expansão da produção e venda do caju, transformado no principal produto de exportação e, também, pela diminuição global da produção do milho, devido a influência das mudanças climáticas que afectam, sobremaneira, as regiões dos trópicos. (...).

 
3 de fevereiro de 2024 às 10:24

_____________

Notas do editor:


(***) Vd. poste de 16 de março de  2022 > Guiné 61/74 - P23083: Recortes de imprensa (121): Debate sobre a Guiné-Bissau na Assembleia Geral da ONU em plena crise petrolífera (Diário de Lisboa, 23 de outubro de 1973)