quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)



Lista nº 1 > CCS/BART 6523 [, Nova Lamego, 1973/74] > Relação dos víveres existentes no dia 17/6/1974

é

Lista nº 2 > CCS/BART 6523 [, Nova Lamego, 1973/74] > Relação dos artigos de  víveres existentes no dia 18/6/1974

Fonte: cortesia de José Saúde (2016). [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excerto do poste P16177:

(...) Mantenho ainda comigo uma cópia de um relatório literalmente especificado de uma passagem de bens alimentícios em armazém entre dois furriéis da minha companhia - CCS / BART 6523 [, Nova Lamego, 1973/74[ - que entretanto assumiram a presunçosa função de vagomestre.

Curioso, por que é justo que o citamos, é que ambos foram “atirados” para uma incumbência completamente à parte daquela a que tinham sido submetidos durante o período em que foram mancebos de uma outra especialidade mas que ditou, ao arrepio da verdade, o seu subsequente futuro por terras da Guiné. Um que assumia o cargo desde a nossa chegada a Gabu; o outro a quem foi proposta a possibilidade de substituir o primeiro durante o seu período de férias, 30 dias.

Ainda assim, fica a textura de um documento que descrimina todo o conteúdo do material armazenado e os custos que cada um deles tinham à época. No balanço geral feito à narrativa exposta, oferece-me viajar nas fileiras da ventosidade do tempo e relembrar o “montão de patacão” que os homens que lidavam com os valores sob a sua “divina” proteção mantinham no interior de um quartel onde existiam inevitáveis privações.

Revejo as quantidades, os preços por unidade e o seu subsequente total, assim como os bens nutritivos que por ora eram então averiguados no momento da transição dos artigos de viveres que ambos os furriéis assumiam. Um entregava e outro recebia.

Da listagem observada, existe a certeza que,  se de um lado estavam os bens depositados,  do outro os ditos frescos. Ou seja, tudo o que fosse arroz, açúcar, azeite, batata, banha, feijão, grão, massas, vinho, óleo, vinagre, etc, etc, etc, pertencia a um lote, sendo que os frescos eram constituídos pelo frango congelado, peixes e fruta da época, entre outros, mas devidamente faturados.

O distinto documento era completado com as rações de combate, farinha, sal, café e outros bens necessários. Não há registos das compras espontâneas que se articulavam com o quotidiano, isto é, das vacas, dos leitões, dos porcos, dos cabritos, das galinhas, e outros, que concluíam a ementa.

Reportando-me aos números, refiro que a relação dos artigos em escudos era o seguinte: viveres existentes e frescos transportavam 319 986$20; outros viveres 88 587$10.


Creio que poucos, ou quase nenhuns, dos soldados depositados num quartel onde as “fissuras” de

uma peleja teimavam em ceifar vidas de jovens em plena idade de puro crescimento, desconheciam o conteúdo real de bens alimentícios que a companhia detinha.

Relembro ainda as famosas patuscadas organizadas pela malta que entretanto comprara um leitão, ou um cabrito, e que depois da sua trivial passagem pelo forno, servia de repasto fino para uma rapaziada que se orgulhava com o distinto acolhimento de um prato bem composto. A acompanhar lá estavam as cervejolas bem fresquinhas.

Relíquias de um tempo sem tempo numa Guiné que despejou em nós um cosmos de emoções. (...)



2. Comentário do editor Luís Graça:

O Zé Saúde, em boa hora, reproduziu este poste (**) e os respetivos documentos no seu livro "Um ranger na guerra colonial: Guiné.Bissau (1973-74). Lisboa: Colibri, 2019", pp. 163-166.

São preciosas informações sobre a "economia de guerra": por exemplo, em 17 de junho de 19974, a escassos 3 três meses, da retirada dos "últimos soldados do Império", o "stock" de mantimentos (víveres)  da CCS/ BART 6523, sediada em Nova Lamego (hoje, Gabu) importava em cerca de 320 contos, o que hoje, em euros, representaria qualquer coisa como 53.563,53 €.

O item com maior peso, na relação, era o vinho: 3.320 litos de vinho, a 11$60 o litro, importavam em 38.512$00 (, valor que, a preços de hoje, equivaleria a 6.446,65 €).

Um escudo em 1974 era equivalente hoje a 0,17 €. Mas é preciso ter em conta que o "escudo guineense" (o "peso") só valia, no mercado cambial, 0,90 escudos metropolitanos..

Seguia-se o arroz (, de produção local, da "bolanha") de que havia um "stock" de cerca de 5 toneladas e meia. A  7$00 escudos o quilo,  somava 38.416$00, o que daria hoje qualquer coisa como 6.430,58 €... Havia ainda 2 toneladas de arroz, importado, da metrópole, a 14$50 o quilo,o dobro do preço do arroz guineense.

O item mais caro, desta relação, era o bacalhau liofilizado: havia pouco mais de 40 kg, a 167$20 o quilo (o equivalente hoje a 27,99 €).

Ficamos a saber que o frango (congelado) custava, em 1974, para a manutenção militar, 7 € o quilo...

Da relação do dia 18/6/1974 (Lista nº 2), vai o nosso destaque para a ração de combate nº 20 de que havia em "stock" 680 unidades, a 43$00 cada (7,20 €, hoje).

Outro item essencial para a alimentação da tropa era a farinha (e o fermento): da lista nº 2 constavam quase 5 toneladas de farinha (4.350 de farinha de 1ª, mais 450 kg de farinha americana)... O preço por quilo da farinha de 1ª (portuguesa ?) era então de 6$00 (, o equivalente hoje a 1 euro)... Em "stock" havia 285 (quilos ou embalagens ?) de fermento leverina, a 35$50 por quilo (ou unidade), equivalente hoje a  5,94 €.

Um item que era um luxo era o ovo, fazendo parte tal como os "congelados" dos víveres "frescos", que eram  transportados de Bissau por via aérea: o "stock" era de 60 dúzias de ovos, a 24$30 a dúzia. Como não havia produção local, os ovos eram importados da metrópole...

Recorde-se que cada militar tinha direito a um "per diem" de  24$50  (=4,10 €), o equivalente a uma dúzia de ovos...

Por outro lado, a proporção de "frescos" (hortaliças, legumes, peixe, carne, leite, ovos...) era pequena em relação ao resto...Na lista nº 1, os frescos não ultrapassam os 400 kg, cabendo um 1/3 ao "frango congelado"... Não sabemos como é que o frango (congelado) chegava a Nova Lamego e em que condições, de higiene e salubridade ... O mesmo se pode dizer da pescada (congelada), que não ia além de 85 kg, no inventário do dia 17/6/1974 (Lista nº 1)...

A capacidade de frio, nos nossos quartéis, era muito limitada: não havia eletricidade todo o dia, os geradores eram ligados à noite, pelo que os frigoríficos e arcas frigoríficas tinham que funcionar também... a petróleo!

Em contrapartida, veja-se o peso das "massas" (1.225 kg) e das "salsichas" (meia tonelada), bem como da "marmelada" (mais de meia tonelada), das "conservas de peixe" (330 kg.)... Havia mais de 2,3 toneladas de feijão, na maior parte "seco" (1,9 toneladas)... Em relação ao  "feijão verde" (400 kg.) não sabemos a sua proveniência...

Nestas condições, era complicado para o vagomestre (que, além disso,  não era nutricionista, ou teria pouca formação em nutrição tal como os médicos da época...) fazer dietas equilibradas e saudáveis (, veja-se aqui, no sítio da Direção Geral de Saúde, a "roda dos alimentos", um instrumento de educação alimentar largamente reconhecido pela população portuguesa pela sua utilização desde 1977 na campanha 'Saber comer é saber viver').... 

Não sabemos qual era o recurso, no Gabu, a produtos frescos locais, provenientes do mercado local e da horta da tropa: refiro-me, por ex., às alfaces, as cenouras, às couves, às frutas tropicais, à carne (vaca, porco,cabrito) eao peixe...Comia-se mal, em quantidade e qualidade... abusando-se do "casqueiro", das massas, do arroz, dos  legumes secos, da banha,  e das conservas (chouriço, cavala, atum...).

A título exemplificativo, aqui vão outros itens a preços de hoje, por quilo (ou por litro, no caso do azeite e do vinho):

Azeite: 8,03 €

Batata: 1,37 €
Café: 1,87 €
Cavala (conserva): 11,94 €
Chouriço: 10,85 €
Feijão frade: 2,56 €
Grão (de bico):2,90 €
Margarina: 2,90 €
Massa: 2,03 €
Pescada-marmota: 3,36 €
Sal: 0,17 €
Sardinha (conserva): 8,97 €
Vinho: 1,94 €


Quanto às conservas (sardinhas, cavalas...),  tal como o chouriço, partimos do princípio que vinham em embalagens (latas) de quilo. Convertidos em euros (a preços de hoje),. os valores obtidos não nos parecem divergir muito do que se pratica hoje em relação a 1974...

Constatamos, por fim, que na "despensa" da CCS/BART 6523, havia tambêm, em existência, mercadorias que pertenciam a outras subunidades: CCAÇ 11, 1ª CART / BART 6523, 3ª CART / BART 6523...
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5 comentários:

Valdemar Silva disse...

Muito interessante haver uma listagem destas e, assim, podermos saber o preço da alimentação da rapaziada.
Faz-me uma certa curiosidade haver na lista Café da CCAÇ.11, que estaria em Paunca e que é descendente da minha CART.11 'Os Lacraus'.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já aqui contei, em tempos, que, destacado numa aldeia em autodefesa, na parte sul do regulado de Badora, recebi do vagomestre uma lata de cinco quilos de fiambre, para consumo de 2 miliares, eu e o operad0r de transmissões... O resto do pessoal da secção era "desarranchado"...

3 DE NOVEMBRO DE 2012
Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Curiosamente não temos, em tantos milhares de marcadores / descritores, o termo "petisco", elemento fundamental das nossas (con)vivências na tropa, na guerra e, depois, na vida civil... Somos um povo "petisqueiro"... Na Guiné, alé de "camaradas" (dormíamos no mesmo buraco, na mesma caserna, ), éramos "companheiros" (comíamos o mesmo pão à volta da mesa...).

O "petisco" não era só uma forma de "matar a malvada", era sobretudo uma forma de reforçar laços de camaradagem em tempo de guerra: partilhava-se os enchidos, os doces, o bacalhau que chegavam de "casa" (quando se vinha de férias...), mas também o leitão, o cabrito, o frango, a caça, etc que se "desenrascava" nas tabancas...

Havia, além disso, os pequenos luxos que o "patacão" comprava, quando se descia à "civilização", em Bissau, em Bafatá, em Bambadinca, em Nova Lamago, em Teixeira Pinto, em Mansoa, em Nhacra; as ostas, os camarões, os lagostins do rio, o bife com batatas fritas e ovo a cavalo...

Engana-se a fome de muitas maneiras... O "petisco", para os operacionais, era a nossa desforra em relação à "intragável" e "assassina" ração de combate (nº 20, nº 30...) a que tínhamos direito no mato, mas que eu dava aos meus soldados guineenses...Aprendi a gerir a fome e a sede na Guiné...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sobre o "petisco", ver aqui mais um texto do Zé Saúde, alentejano de Aldeia NOva de São Bento, Serpa... (Hoje a Aldeia passou a Vila, mas não perdeu o gosto do "cante" e do "petisco")...



12 DE JUNHO DE 2014
Guiné 63/74 - P13276: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (19): Divagando sobre IX Encontro Nacional, Noite de petisco, Cabrito assado no forno (José Saúde)




(...) Estava divinal! O jovem animal foi comprado na tabanca e não recordo quantos pesos terá custado. O banquete teve lugar na cantina dos soldados e assado no forno com o saber do mestre padeiro da unidade. O rapaz nunca se refutou a pedidos desta estirpe. Estava sempre disponível! A sua presença no repasto assumia-se como imprescindível e o seu trabalho reconhecido.

Uma mesa comprida, bancos alongados, uns sentados, outros em pé e com a inevitável presença das velhas sagres, a rapaziada comeu e bebeu que se fartou registando-se cenas hilariantes durante o beberete. O Santos, com um sorriso fechado, assemelhava-se a um emigrante desconhecido que parecia não entender o motivo da festança. O seu pensamento levava-o, talvez, a meditar num levantamento de uma mina anticarro que poderia, eventualmente, ser o seu próximo destino. O Rui, vagomestre da Companhia, mostrava os seus dotes de comediante. O ranger Rui, ao meu lado, desfazia-se com as brincadeiras. O Godinho, em frente, ria que nem um doido. Eu, já toldado, apontava a cara do homem de Coimbra e ele presenteava-me com caretas que faziam rir todo o grupo em período de dar ao dente.

A noite de petisco - cabrito no forno com batatas - foi francamente regada. Uma ideia que conheceu outros capítulos. A guerra naquela noitada foi outra: comida e bebida que chegou, e sobrou, e regalou os jovens combatentes. (...)

José Saúde disse...

Luís, camarada de armas e amigo

"UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74" é uma obra que deixa explícito em cada texto colocado as causas e efeitos de uma guerra que marcou gerações. Gerações que viveram intrinsecamente momentos de dificuldade e lazer nas frentes de combate.

Abraço, e até sábado, Luís Graça

Introdução
“UM RANGER NA GUERRA COLONIAL” é um livro que aponta para trazer à estampa pública um conjunto de temáticas vividas em Gabu, chão fula, onde as histórias avulsas narradas contemplam veracidades que a generalidade dos camaradas conheceram naquele solo guineense.
A Guiné apresentava-se então, para todos nós, como um universo de pesadelos nos verdes anos da nossa juventude. Neste contexto, receei que, quando chamado a cumprir serviço militar obrigatório, o meu puzzle de vida me destinasse uma mobilização para aquela antiga província Ultramarina.
Lembro que as conversas sobre a Guiné desembocavam, por regra, num folclore de cenários inquietantes. Nas décadas de 1960 e princípios de 1970 do século passado, as notícias diluíam-se em afloradas cavaqueiras. Vivia-se sobre um regime totalitário, o Estado Novo, que não dava tréguas a quem ousasse desafiar as “conversas em famílias” dos senhores do Poder. Nós, jovens, procurávamos ludibriar as intenções dos agentes políticos que honravam a defesa da Nação, mas, por outro lado, a chegada amiúde dos relatos da guerra e dos conflitos armados em terras de além-mar apresentaram-se para a rapaziada deveras apavorantes.
Em finais dos anos civis – Natal e Passagem para o Ano Novo – lá apareciam as habituais mensagens de soldados instalados pelos mais diversificados locais das então províncias ultramarinas que utilizando a nova caixinha mágica – televisão – deixavam cordiais saudações natalícias para gentes que viviam a escaramuça mas à distância.
Das três frentes da guerra a Guiné era a que trazia rumores de um maior impacto emocional, tendo em conta o conteúdo da guerrilha e o evoluir do conflito.
Em Moçambique, os sussurros da sociedade abatiam-se, essencialmente, sobre as minas anticarro e antipessoais por via da ação da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique); em Angola, os três movimentos, MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) dispersavam-se pelo confronto direto com as tropas lusas; na Guiné, o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) procurava exercer um domínio superior na guerrilha.
O terreno, as condições físicas e climatéricas proporcionadas, apresentavam-se como um trunfo capital para aqueles que sempre conviveram com essa realidade. Todavia, a tropa da metrópole respondia à letra no momento exato em que o IN procurava clamar vitória.
Cheguei à Guiné no dia 2 de agosto de 1973. O meu destino foi Nova Lamego (Gabu) onde me integrei na CCS do BART 6523. A comissão não foi longa: 13 meses. O 25 de Abril, Revolução dos Cravos, favoreceu o regresso dos militares que prestavam serviço nas antigas colónias. Regressei em 9 de setembro de 1974.
Em Gabu tomei conhecimento com as duas faces do conflito: a guerra e a paz. Guardo histórias de uma envolvência que literalmente muito me marcou. Puxando o fio à meada, narro nesta obra – na primeira pessoa e com uma escrita simples – pequenas memórias que assinalam, indubitavelmente, a presença em chão fula.
À tona de um inventário pautado por um mar de lembranças que ouso em não colocar na prateleira do esquecimento, destaco um texto onde pronuncio os “filhos do vento”, sendo o seu teor, embora arrisca-do, um tema que recolheu excelentes afetos, merecendo a história, por via da minha arrojada teimosia, as honras do jornal “O PÚBLICO” cuja autora da reportagem foi a jornalista Catarina Gomes, nota alta. Recorde-se que a temática resvalou para noticiários em canais televisivos que dignificaram a minha perspicaz obstinação.
José Saúde