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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27150: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (43): Oficial e cavalheiro


Contos com mural ao fundo (43) > Oficial e cavalheiro


por Luís Graça


Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.

Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro. Na Costa Cantábrica. Limpavas a merda toda. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico.

Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.  

Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu,  todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.

Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino,  seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele. 

Há quanto tempo, Malan ? Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão".  A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta, mandinga, biafada, manjaco, papel...

Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".

Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes.  

"Certo ou errado, Malan" ? 

Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, silêncio" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão, "sim, alfero, Malan já pode falar". 

Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda".

O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele.  Mas a verdade é que  eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o terreno do subsetor que fora atribuído à companhia.

Mas sabes que no passado  eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã outros,  que a história é o soma-e-segue -come-e-cala. Ele era um obscuro biafada. Sabia lá o que era a história. Um carreiro de formigas, bera-bera (diziam os fulas), um jogo de soma-nula. E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos " cães  dos colonialistas" e julgamentos populares...

Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão.  Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta, trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo. Ainda hoje.

Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. A soberania portuguesa. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".

Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos.  Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias  vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra,  para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval.  E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, arrumado, acabado".  Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.

Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho quando regressares ao quartel ?"... Ou quantas semanas faltavam para as férias ? Gajas não havia. "Sim, meu capitão.  Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe. Vamos a eles, rapazes."

Com um jeitinho do 1º sargento (um homem temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971,  obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te. 

Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas  imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.

País em guerra ? Quando chegaste  ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).

O teu mano tinha ido,  pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira.   A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal  notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.

E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar. À despedida para Lisboa onde foste embarcar. Não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se notícia banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial. 

Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homnes. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem  nos amores.  Ias tendo sorte na guerra. Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas.  Nisso, eras um tosco.

No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste sempre a sempre remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM  ?  Foste para o COM por mérito.  E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco".  O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.

Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de tropa- fandanga. Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.

Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães.   E depois não entendias a política de gestão de pessoal. Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra? A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.

Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava. 

Férias, disseste tu ?   Se fosse hoje, escolherias Cabo Verde. Ainda não estava na rota do turismo, há cinquenta anos atrás. E porque não Luanda, que tinha ligação, em Bissau, pela TAP ? O teu mano falava-te das noites de Luanda, das miúdas, das discotecas, da ilha de Luanda, das mariscadas... E porque não a África do Sul ? Onde até tinhas uns parentes do lado materno. Sempre quiseste conhecer a África Austral... Fazias um safari, uma viagem pelo deserto da Namíbia...

Não te lembras sequer de chegar a pôr essa hipótese. África ? África do Sul ? Mas não estava tudo em guerra ?  Estavas farto de África, mesmo só com nove meses de Guiné. Pelo menos do pouco que já conhecias. A Guiné do pó, do tarrafo, dos rios, rias, braços de mar, das lalas, das bolanhas... Mas tinhas ideia de que a África Austral era a dos grandes espaços, das savanas a perder de vista, das manadas de búfalos e de elefantes...Não havia elefantes na Guiné.

Nessa época não se falava ainda de "apartheid". Nem tu tinhas consciência política, como dizia o "caixa d'óculos" do 2º pelotão. Aliás, quem tinha consciência política nesse tempo entre a tropa, os milicianos incluídos ?! 

Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.

Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra.  Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a  cena.

Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo.   Mas sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem podia ter-te escondido  no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda.

Ninguém desertava sozinho, dizia-te na galhofa um dos colegas do teu tempo de escola. Que acabou por ir para Paris quando os dois estavam a formar companhia no RC 3, em Estremoz. Foi cineasta, fez filmes de publicidade,  já faleceu. Mas tu não conhecias ninguém, não tinhas contactos. Nem cheta. Também não conheceras ninguém que tivesse desertado na Guiné. Muito menos oficial. O Exército  não fazia alarde desses casos.  E os gajos que tinham desertado eram uns pobres diabos. Sabias que havia casos pelas notícias (filtradas) que te chegavam. Tiveste conhecimento de um ou outro prisioneiro. Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros.

 Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço, tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.

Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ?  Sabias pouco, mas havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado. 

Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.

"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ? 

"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido.

Foste incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa, cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher, documentos  de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...

O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa e para mais de cavalaria.  Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger". De resto, tratava todos os seus subordinados por tu.

− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...

Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:

 − ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?

− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.

− Mas..., qual é então a minha missão ?

 − Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro,  apresentas as minhas condolências pessoais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.

O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança".  Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a máxima ou a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".

O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias  como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.

Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.

Ainda hesitaste:

− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou.  Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...

− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.

E prosseguiu:

 − Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.

Não tiveste coragem de  discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte. 

 Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara  com a viagem no " Niassa". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar. 

Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. O comandante de A..., o segundo comandante da companhia. Mais: o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha agora orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado.

Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros,  era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra. Pertencera à professora primária com quem ele depois viria a casar.

Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia.  Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido.

Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses. Por infeção respiratória.  Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo. Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.

O que lhes irias dizer ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os macabros pormenores.

Felizmente, ou do mal o menos, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraste, que o acidente tivesse sido considerado em serviço . A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época.  "Porca miséria!", pensas tu hoje.

Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares.  O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis.  Os dados estavam lançados.

Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"...), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... para mais uma rodada de uísque!

Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana. 

Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto.) Com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga vistosa. Algarvia do Barrocal. As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.


O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.
O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria", numa festa do concelho... O que era inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.
Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ?... O B... era de uma freguesia vizinha do A... Os dois eram conterrâneos. E já se conheciam quando foram formar companhia em Estremoz.

O B... jurou-te a chorar, que nem uma Madalena, que era amigo do peito do A...:

 − Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cebeça, desde que o filhinho lhe morreu... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.

Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.

E acabaste, em 1970, na tua vinda à metrópole por assumir, "por piedade e, vá lá, por camaradagem", a ingrata missão de levar o espólio (ou a parte mais íntima do espólio)  do A... à família. Mais uma carta do capitão.

Desconhecias o conteúdo da carta do comandante da companhia. Ficaste "entalado", quando deste com o envelope fechado. E se as duas versões, a tua e a do capitão, não batessem certo ? O capitão certamente por lapso não te chegou a falar sobre o que devias dizer à família e, em especial, à viúva.

O que iriam pensar aquelas pobres almas ? Ficaria a dúvida, a suspeição, quiçá o ódio contra a tropa, ainda forte no coração daquela pobre gente que há três meses acabara de receber um telegrama seco, desumano, a dar a notícia  da morte do seu ente querido, lá longe, na Guiné ?!... Que eles nem sabiam onde ficava.

Tiveste que abrir, com muitas cautelas, o envelope  e inteirar-te do conteúdo da carta. Afinal, o que o capitão escrevera, era lacónico, banal e sobretudo impessoal. Era apenas o elogio do "homem íntegro", do "militar brioso" e do "grande português", não respondendo a eventuais e legítimas dúvidas dos familiares sobre as trágicas circunstâncias do acidente. 

Por certo que a jovem viúva iria querer saber como tinha morrido o marido. E onde, e quando, e porquê. E mais: queria saber se tinha murmurado o seu nome e o do seu filho, antes de dar o último suspiro. E se tinha sofrido muito antes de morrer... Enfim, tinhas que estar preparado para todas as possíveis perguntas da viúvas  e demais familiares. Iriam perguntar pela certidão de óbito, de que tu não trazias cópia nem estavas autorizado a mostrar. Iriam inundar-te de perguntas sobre o comportamento dele naqueles escassos seis meses de permanência na Guiné. Se estava magro ou gordo, se comia bem, se andava triste ou alegre...

Embora fosse gente pouco letrada (os pais do A... nem sequer sabiam ler nem escrever), a viúva pelo menos achar-se-ia no direito de saber tudo sobre a morte do marido.

Estavas com receio de não estar à altura de satisfazer as expetativas de uns e outros, o teu capitão e os familiares do A.... Reconhecias que o Exército era "parco" na comunicação com os familiares, em casos de morte ou ferimento grave de um militar. "Parco" ? Avarento nas palavras, frio nos afetos.

E depois tu não sabias se, eventualmente, por intermédio de amigos, conhecidos ou conterrâneos, eles não estariam  já de posse de mais pormenores sobre o acidente... As más notícias chegavam sempre depressa. Farias figura de parvo. Tinhas que estar preparado para todas as hipóteses, perguntas, cenários...

No final da carta, o capitão depois de reforçar os seus "sentidos pêsames pessoais", transmitia também os do exército, do comandante do batalhão e até do próprio general António Spínola, "governador e comandante-chefe do CTIG", isto é, da Guiné. 

No último parágrafo, manifestava a sua intenção de louvar o 1º cabo A..., a título póstumo, por feitos em combate na Operação X...

Não deixaste a "ingrata tarefa" para o fim das tuas férias. O "berbicacho", como disseste lá em casa aos teus pais, intrigados com a tua agitação.

Logo no primeiro fim de semana, a seguir à tua chegada, decidiste levar a "carta a Garcia".  A morada era a que constava no processo do A... Não era muito precisa, estaria incompleta. Tiveste que passar, sábado, ainda de manhã, pelos correios da vila. O carteiro fez-te um croqui do monte onde a família do A... vivia. Não era longe, mas a estrada era péssima e poeirenta. Era terra batida, como nas picadas da Guiné. Não foi bom para a suspensão do teu pobre Mini.

Bateste à porta. Mas já os cães haviam dado conta da presença do intruso. Sempre odiaste cães. Felizmente não andavam à solta. Alguém, de súbito, espreitou  pelas cortinas da portinhola. Dois olhos negros e grandes como tições, fotografaram- te. Uma jovem mulher, vestida de preto, entreabriu a porta. Tinha traços típicos das mulheres do povo da região. Olheiras fundas. Pareceu-te curiosa e assustada ao mesmo tempo. 

Vinhas... fardado!... O boné com pala. Os óculos escuros,  Ray-Ban, devem tê-la intimidada!... Claro, era a viúva e tu eras o "mensageiro da morte"...Abriu a porta devagar, cautelosa...

Casa rural. Modesta. Limpa. Um centenário pinheiro manso dava-lhe sombra. E era uma das referências que te dera o carteiro...
 
Estendeste-lhe a mão depois de, estupidamente, lhe teres batido a pala. Não correspondeu ao teu gesto. Mais por timidez do que por descortesia. Mandou-te sentar numa cadeira de verga. Só havia uma. Sentou-se numa banqueta, junto à  lareira. Recatada. E ligeiramente ofegante.

Sem grande palavras, deste -lhe a pequena caixa de cartão com os objetos pessoais do defunto. Os de mais valor... Entre eles  um aerograma que o A... não chegara a ter tempo  de pôr no correio. (E que tu devias ter lido antes de lho entregar, mas achaste que não tinhas esse direito; nem sequer constava do auto.)

Leste a carta, seca, do capitão... O rosto dela, impassível. Nem uma lágrima. O silêncio estava, porém, a tornar-se pesado e intolerável. Não havia mais ningém na casa. Os sogros estavam fora, voltavam na segunda feira seguinte. 

A desgraçada não conseguiu acabar de ler o rascunho do aerograma do marido. Deu um grito lancinante de dor. Começou a chorar, sufocada. Acabou num pranto, arranhando a cara e puxando os cabelos.

Ficaste sem pinga de sangue. Não sabias como agir. Pegaste no aerograma que ela deixara cair no chão.  Num ápice deste conta que o A... tinha sido  cruel e injusto, no que escrevera... O marido, numa crise de ciúme patológico, declarava, preto no branco, que ela lhe era infiel. E acusava-a da morte do filho. 

De repente pareceu-te que ela ia desfalecer Fizeste um gesto para a amparar. Foi então que ela se agarrou a ti como uma lapa à rocha, na iminência da tempestade.

 − Cabrão...ão...ão...!!!... Eu aqui como uma monja à espera dele!...  E ele a dar ouvidos a gente bera, que só nos queria mal!

Tiraste um lenço do bolso para lhe enxugar as lágrimas... Não sem algum esforço, conseguiste sentá-la na cadeira de verga. Correste à cozinha para lhe arranjar um copo de água.  Havia uma pequena bilha de barro com cocharro em cortiça. Amparaste-a sob as tuas pernas.  Deste-lhe de beber. 

 − Por favor, agarre-me, abrace-me, beije-me...que eu vou morrer!... 

Puxou-te com toda a força bruta de uma mulher, viúva de vinte anos. As unhas cravadas nos teus braços. Procurava desesperadamemte os teus lábios.  Era de pequena estatura, só te chegava ao peito. 

 ... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido  inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português.  Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.

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Nota do editor:

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26204: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (10): paguei o mesmo que o Carlos Vinhal, na viagem de férias, ao Porto, em meados de 1971 (Esc. 6430$00, o equivalente, a preços de hoje, a 1944 euros), mas... em três prestações (António Tavares, ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72)




O miraculoso bilhete da TAP que dava "direito" ao tão almejado mês de férias na metrópole...Bilhete de avião Bissau - Lisboa - Porto - Lisboa - Bissau, 1971

Foto (e legenda): © António Tavares (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Ainda a propósito do nosso sagrado mês de férias na metrópole (luxo que era só para alguns),  o nosso camarada António Tavares (ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72; vive na Foz, no Porto, e tem 74 referências no nosso blogue, estando cá desde 24/6/2009) já aqui lembrou (*) que:

(i) em 3 de agosto de 1971 levantou, na  conhecida Agência Correia, de Bissau, o bilhete de viagem na TAP que lhe custou a exorbitância de  6430$80, que era então o custo da  viagem Bissau-Lisboa - Porto -. Lisboa - Bissau (a mesma importância foi já aqui reportada pelo  nosso coeditor Carlos Vinha, equivalente a 1944 euros, a preços de hoje) (**);.

(ii) essa importància, vá lá, foi paga  em três prestações ("suaves"):
  • 4.430$80,  em 3 de agosto de 1971; 
  • 500$00,  em 22 de setembro de 1971;
  • 1.500$00, em 21 de outubro de 1971,
(iii) na cópia do bilhete (vd. imagem acima) consta uma taxa de aeroporto de 110$80;

(iv)  o escudo, na época,  era trocado, em Bissau, "com uma agiotagem de 10%.";

(vi) viajou a 4 de agosto de 1971 e regressou no dia 7 de setembro de 1971;

(vii) e ainda teve direito a um "saco de pernoita" (!);

(ix) ... "os camaradas mais atentos verificarão que acabei de pagar a totalidade das prestações depois da minha chegada de regresso ao CTIGuiné; porque o 'patacão'  não transbordava das algibeiras,  tinha de aproveitar todas as facilidades de pagamento autorizadas"

 (Ssleção, revisão / fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15216: O nosso querido mês de férias (18): Viagem Bissau-Lisboa-Porto-Lisboa-Bissau paga a prestações porque o patacão não transbordava das algibeiras (António Tavares)

(**) Último poste da série > 24 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26188: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (9): uma viagem na TAP, de Bissau a Lisboa, em finais de 1970, custaria hoje c. 1450 euros (Valdemar Queiroz); uma viagem de férias (ida e volta), c. 1900 euros, em fevereiro de 1971 (Carlos Vinhal)

domingo, 24 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26188: Cem pesos, manga de patacão, pessoal ! (9): uma viagem na TAP, de Bissau a Lisboa, em finais de 1970, custaria hoje c. 1450 euros (Valdemar Queiroz); uma viagem de férias (ida e volta), c. 1900 euros, em fevereiro de 1971 (Carlos Vinhal)



Bilhete de avião de regresso a Lisboa, em 18 de dezembro de 1970


Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Terminada a comissão,  o Valdemar Queiroz, que era de rendição individual (como todos os outros graduados e praças esepcialistas da CART 11), foi para Bissau onde gastou os últimos "pesos" (o patacão da guerra) e tomou o avião da TAP de regresso a casa, em 18/12/1970, como se pode comprovar no documento acima reproduzido.  

O bilhete,como era só de ida, custou-lhe a módica quantia de 4740 escudos, incluindo 80$00 (que deve ser o imposto de selo e  a taxa... "aeroportuária"). Lá se ia, quase todo, o "patacão" de um mês...




Recibo (?) nº 453, emitido pela agência de viagens Fernando S. Costa, Bissau, 13 de fevereiro de 1971

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Já o nosso coeditor Carlos Vinhal (fur mil art MA, CART 2732, Mansabá,1970/72, SPM 1388) veio de férias, em 15 de fevereiro de 1971, e pagou à agência de viagens Fernando S. Correia a importância de 6430$80 (vd. documento acima). 

Não sabemos se nesse valor estava incluído o preço da ligação aérea Lisboa-Porto (nem a comissão da agência).  De qualquer modo, para ir de férias, um furriel miliciano tinha que desembolsar mais do que o que ganhava num só mês.
 

3. Quanto valeria hoje esse patacão ?

(i) 4340$00 (em 1970) seriam hoje 1455 euros (!) (uma roubalheira ?);

(ii) 6430$80 (em 1971) equivaleriam  hoje a 1944 euros...

Fonte: Pordata > Simuladores > Simulador de Inflação > Quanto vale hoje o dinheiro do passado ?

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26187: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (8): uma viagem, de avioneta, nos TAGP, de São Domingos a Bissau, em 22/2/69, custava 224 escudos (ou "pesos"), o equivalente hoje a 70 euros (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24871: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VI: Cobumba... onde é que isso fica?


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956)  > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda,  Cobumba, Cufar e rio Cumbijã.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte VI - Cobumba? Onde fica isso?

(...) O pior da nossa comissão estava para vir.  No fim de março de 1973, a nossa Companhia foi informada que íamos ser transferidos para Cobumba, nome para nós desconhecido, mas logo nos disseram que ficava na zona sul,  próximo do Cantanhez, e estava tudo dito, uma das piores zonas de guerra na Guiné. (*)

Deixámos Mansambo, e depois de cerca de uma semana em Fá Mandinga e mais três ou quatro dias em Bissau, era chegado o dia de rumarmos ao Sul na LDG que nos haveria de levar até Cobumba. 

Iniciámos a viagem ao começo da tarde do dia 7 de abril de 1973, sábado, acompanhados daquilo que era indispensável para início da nossa instalação no terreno. Ao anoitecer chegámos algures à foz do rio Cumbijã e ali tivemos de ficar o resto da noite. 

Ao mesmo tempo que a LDG parava, levantou-se uma trovoada violentíssima ao ponto de ficarmos todos assustados com a agitação do mar que até aí tinha sido de calma absoluta, depois dos marinheiros terem descido as âncoras e a trovoada acalmar, passámos uma noite com a normalidade possível.

No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sítio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa. Chegámos ao início da tarde, estava na região muita tropa especial (paraquedistas, do BCP 12) mantendo segurança ao nosso desembarque. 

À medida que as quatro viaturas que levávamos (duas Berliet e dois Unimog 404) iam saindo da LDG, eram carregadas e seguiam fazendo uma pequena viagem de cerca de quatrocentos metros onde eram descarregadas.

As viaturas tinham sido dias antes levantadas em Bissau por quatro condutores que para esse efeito tinham saído mais cedo da Companhia. Durante a descarga foram esses condutores a manobrar as viaturas (eu, não indo a conduzir,  fui um dos que foram nas primeiras quatro carradas), à medida que descarregavam voltariam ao rio para novo carregamento.

Sendo eu o condutor que naquele momento estava mais próximo da primeira que descarregou, o capitão, comandante da Companhia, disse-me para eu seguir com ela para o cais, tendo eu perguntado ao condutor que fizera o primeiro trajecto se ele queria que eu fosse ao rio, respondendo-me que não, que ia ele. Com toda aquela confusão nem sequer pensávamos em minas, pois a estrada teria sido supostamente bem picada e já tinham passado as quatro viaturas uma vez.

O condutor Cabral, e o Varela.  das transmissões,  eram os únicos ocupantes que seguiam na viatura de regresso ao rio, percorreram cerca de trinta ou quarenta metros e a viatura acionou uma mina que,  pelo estrago feito,  talvez fosse antipessoal, mas mesmo assim ficou alguns dias inutilizada, tendo o Cabral e o Varela ficado feridos, e voltado logo para Bissau, rumo ao Hospital Militar num helicóptero que passados poucos momentos chegou ao local. 

O Varela,  não tendo nada de grave, no dia seguinte voltou para a Companhia; o Cabral não mais voltou, foi ferido com gravidade numa vista tendo sido enviado para o Hospital Militar Principal de Lisboa.
 
O desembarque do resto do pessoal e de carga continuou, mas com atenção redobrada dado as coisas começarem a correr mal logo de início; o resto da operação de desembarque decorreu sem sobressaltos de maior. 

Na primeira noite a Companhia ficou toda no mesmo sítio. Na manhã do dia seguinte quase toda a formação (criptos,  radiotelegrafistas, condutores, padeiros, mecânicos, enfermeiros, alguns elementos de transmissões, uma secção de artilharia tendo a seu cargo o morteiro de 107 milímetros, o comando da Companhia e mais dois pelotões de atiradores) foram instalar-se a cerca de quatrocentos metros. 

Os outros dois pelotões ficaram no mesmo sítio, assim como uma secção de especialistas de armas pesadas tendo como função ocupar-se de um canhão sem recuo, a precisar de reforma.

A cerca de trezentos metros do pessoal da nossa companhia estavam mais dois pelotões que, estando connosco,  pertenciam a outra companhia, ou seja, estávamos distribuídos em três sítios,  formando um triângulo separados por poucas centenas de metros, um desses três era como que o equivalente à CCS do Batalhão,  já que aí se situava o comando da Companhia, e quase toda a formação.

Depois foi instalarmo-nos o melhor possível,  o que não foi fácil, estávamos habituados a ter luz, abrigos com alguma segurança e menos guerra, ali tudo era diferente, houve que fazer valas apressadamente, montar tendas, fazer um forno para cozer o pão, tendo sempre como companhia a inseparável G3. 

No primeiro mês o PAIGC não nos incomodou… durante esse tempo foram feitos outros trabalhos, mas aquela calma… deixava antever qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que seria!

Entretanto,  conforme estava previsto, vim a segunda vez de férias à Metrópole; numa zona sem vias de comunicações viárias, isolada com guerra por todos os lados, restava-nos fazer o trajecto pelo rio ou via aérea("mas pelo ar só em casos especiais"), e lá fui numa coluna de pequenos barcos de fibra,  os “sintex”, até ao aquartelamento de Cufar, onde existia uma pista de aviação (creio ser a melhor do sul da Guiné). 

No mesmo dia embarquei num avião Nordatlas até Bissau, foi a aeronave mais barulhenta das sete em que viajei durante o meu tempo de guerra que foram: o DC 6, o Dakota, a avioneta DO 27, o Boeing 727, o Nordatlas, o Helicóptero, e o Boeing 707, que nos trouxe de regresso à metrópole no final da comissão.

Passados dois dias em Bissau, embarquei em Bissalanca rumo a Lisboa onde cheguei ao cair da noite: se da primeira vez que vim de férias,  o meu pensamento estava quase sempre no dia em que teria de regressar a África, agora a confusão era ainda maior; mesmo junto da minha esposa e do meu filho muitas vezes a minha ausência era quase total, foi um tempo de tal confusão que quase nada me lembro daquilo que por essa altura terá acontecido.

Se da primeira vez conhecia bem o sítio para onde iria voltar; da segunda apenas sabia ir para uma das zonas de maior actividade operacional do IN. Ainda bem que durante as férias não tive qualquer notícia daquilo que por lá se passava, pois se tal tivesse acontecido a partida teria sido ainda mais dolorosa.

Terminadas as férias lá fui uma vez mais rumo a Bissau onde cheguei ao fim da manhã, no mesmo dia tive transporte para Cufar e de novo no barulhento Nordatlas, como os homens por mais que fossem eram sempre poucos naquela zona, à tardinha arranjaram-me boleia para Cobumba, desta vez de helicóptero com uma breve passagem por Bedanda, onde o heli que me levava se manteve no ar enquanto o helicanhão foi a terra, cheguei a Cobumba ao fim do dia.  (...) (**)

(Seleção / revisão / fixação de texto /negritos: LG)
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Notas do editor:

(*) Excerto de 21 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23885: Notas de leitura (1532): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: O Prémio Governador da Guiné para o sold Baldé

 

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 4ª CCAÇ  > c. 1965/67 > O alf mil Oliveira com miúdos da tabanca. É um soldado do seu pelotão, o sold Baldé, quem ganha num dado mês de 1966 (presume-se) o Prémio Governador da Guiné, por atos de bravura em combate. O prémio consistia num mês de férias em Lisboa, com viagens pagas. A companhia, além de um  mês de pré adiantado, gratificou-o com "10 mil pesos" (ou escudos da Guiné, o que, a preços atuais, corresponderia,em 1966, a 3360 euros, considerando que no câmbio o "peso" sofria uma quebra de 10%)... Nessa época, dez contos dava para se passar umas boas férias em Lisboa e arredores... 

Foto (e legenda):  Manuel Andrezo . "Panteras à Solta", edição de autor, s/l, 2010, pág. 399 (Com a devida vénia...).

1. C
ontinuação da leitura do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). 

Ficha bibliográfica da edição de autor de 2010:

Título: Panteras à Solta
Publicação: Lisboa : Edição de autor, 2010
Desc. Físicia: 399 p. : il. ; 26 cm
Contém: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal
Notas
: Manuel Andrezo é pseudónimo do Tenente-General Aurélio Manuel Trindade

O ten gen ref Aurélio Manuel Trindade foi cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67. Irá completar 90 anos em 2023. Vive em Lisboa. Um exemplar do seu livro, impresso na Alemanha (c. 2020), foi-me gentilmente facultado, no verão passado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do Aurélio Trindade, seu amigo, datada de 13/12/2020. 

Já fiz uma meia dúzia de notas de leitura (*) deste livro que, infelizmente, está fora do mercado, por se tratar de edição de autor. Como já tivemos ocasião de o dizer, o livro pode ser considerado como um "diário de bordo" (com um sequência cronológica, embora não datada)  do autor (ou do seu "alter ego", o cap Cristo). 

O cap inf  Trindade foi  o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras").

Muitos "bedandenses" (e temos cerca de um vintena de camaradas, membros da Tabanca Grande, que estiveram em ou passaram por Bedanda, entre 1961 e 1974, mormente na 4ª CCAÇ e na CCAÇ 6),  têm mostrado interesse por esta obra, que temos estado a divulgar.   

Temos vindo, ao mesmo tempo,  a selecionar uma ou outra história ou episódio dos cerca de 70 capítulos, não numerados, que o livro apresenta, uns sobre a atividade operacional da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, outros sobre o quotidano da tropa e da população (incluindo a população do mato). (**)

2. Acontece que o nosso amigo (e camarada de armas), cor inf ref Mário Arada Pinheiro (ambos somos sócios do VIGIA - Grupo de Amigos da Praia da Areia Branca, e ele é casado com uma senhora lourinhanese) tem estado internado no Hospital ds Forças Armadas, e é provável que passe lá esta quadra natalícia. Falámos há dias ao telefone. E achei-o com ânimo, apesar das circunstâncias.

Ele tem um especial carinho pela Guiné (onde fez uma comissão de serviço, no tempo do gen Spínola, e outras duas em Moçambique). Disse-me que foi substituir o major inf  Carlos Fabião, tendo ficado por sua conta um número impressionante de militares (e mílícias) do recrutamento locla: qualquer coisa como 13 mil!... (Era também na altura major.)

Já aceitou o convite para integrar a nossa Tabanca Grande e, finalmemnte, ia-nos mandar as fotos da praxe e o resumo do seu CV militar quando teve o problema de saúde que o levou a ser internado no Hospital. 

Também em sua honra escolhi esta história do soldado Baldé que ganhou o prémio Governador da Guiné, ao tempo do gen Arnaldo Schulz... Tudo indica que a cena, que abaixo se transcreve, se tenha passado em 1996.
 
Uma das preocupações iniciais do cap inf Cristo, quando chega a Bedanda, em rendição individual, em julho de 1965, para comandar a heterogénea 4ª CCAÇ, é o reforço da coesão,  do espírito de corpo, da disciplina e da lealdade dos seus homens.  A notícia de que o sold Baldé (não sabemos se o nome é fictício) ganhara o Prémio Governador da Guiné é recebida com regozijo por todos, tratando-se para mais de um soldado do recrutamento local. 

É pena não sabermo resto da história (as eventuais peripécias do nosso Baldé em Lisboa), mas a cena da avioneta do correio que o levou até Bissau  por certo que é divertida, e apropriada a esta quadra  natalícia.  Reproduzimo-la, com a devida vénia ao autor. (No livro não há, infelizmente,  nenhum episódio passado na época do Natal, até porque a companhia tinha poucos metropolotanos; mas com um pouco de benevolência do leitor, talvez possamos ver neste Prémio do Governador da Guiné uma espécie de prenda do Pai Natal dos Trópicos...). 

Ao meu amigo e nosso camarada Arada Pinheiro só posso desejar rápidas melhoras. Quero dar-lhe um valente "quebra-costelas" logo que o veja, talvez agora só no inícío de 2023, já devidamente restabelecido e em boa forma. LG


UM PRÉMIO PARA O SOLDADO BALDÉ 

(pp. 258-259)

por Manuel Andrezo


Para os militares que mais se distinguiam em combate havia na Guiné um prémio especial. Era o prémio Governador da Guiné, independente de outros louvores ou condecorações, e constava de uma viagem a Lisboa paga pelo Governador. Poucos militares tinham acesso a esse prémio porque ele era em numero muito reduzido, e sendo muitos os que se distinguiam em combate a selecção era rigorosa.

Um dia chegou uma mensagem dizendo que o prémio tinha sido atribuído ao soldado Baldé, um militar nativo da secção da Casa Gouveia. Todos ficaram contentes por o prémio do mês ter vindo para alguém da companhia e ainda mais para um soldado nativo que não conhecia Lisboa. O capitão mandou chamar o soldado Baldé e o seu comandante de pelotão.

─ Baldé, estás de parabéns, ganhaste um prémio. O Senhor Governador atribuiu-te o prémio Governador da Guiné. Embarcas em Bissau para Lisboa na próxima quinta-feira. É uma honra para ti e para todos nós este prémio. São poucos os soldados que o recebem, e tu até vais a Lisboa. Espero que te divirtas por lá e que quando voltares venhas tão bom soldado como tens sido. Amanhã chega o avião do correio e tu embarcas nele. Tens aqui dez mil pesos da Companhia que em Bissau trocas por escudos de Lisboa para te divertires por lá. Além disso, levas um mês de vencimento adiantado. O nosso alferes vai ajudar-te a tratar e a arranjares as coisas que deves levar.

Podes ir embora. Bom dia.

─ Bom dia, nosso capitão.

Oliveira, vê a roupa que ele leva. O verão lá é sempre mais frio que aqui e eu não quero que o Baldé ande a mendigar roupa. Se for preciso comprar alguma coisa compras no Zé Saldanha que a Companhia paga. Explicas no teu pelotão o que se passa, de forma a criar neles o desejo de também ganhar o prémio Governador da Guiné. Dizes aos outros comandantes de pelotão para fazerem a mesma coisa. Vai lá tratar disso. Até logo.

─ Até logo, meu capitão.

No dia seguinte, com a companhia na pista, o soldado embarcou para Bissau onde ficaria uns dias antes de seguir para Lisboa. O avião do correio vinha de Bissau para Catió, onde deixava o correio e o recebia com destino às várias companhias, levantando depois voo para fazer o circuito tradicional ─ Catió, Cufar, Empada, Cabedú, Bedanda, Catió. Nas diversas companhias entregava e recebia o correio.

Recebia também os doentes ou outros passageiros urgentes até ao limite da sua capacidade. Em Bedanda recebeu o soldado Baldé. Ao chegar a Catió o piloto verificou que havia dois passageiros para embarcar com destino a Bissau e apenas um lugar. Ao saber disto informou o oficial de reabastecimentos e pessoal que só podia embarcar um dos passageiros, pois um dos lugares, inicialmente disponível, fora ocupado por um soldado de Bedanda. A decisão do oficial não se fez esperar e transmitiu-a ao soldado Baldé.

─ Tu aí, desce do avião para entrar o nosso furriel. Vais depois no próximo avião.

─ Eu não desço ─ disse o soldado. ─ Capitão de Bedanda que é capitão do mato disse-me que eu ia neste avião para Bissau para ir para Lisboa como prémio do nosso Governador. Tu és capitão da CCS. Capitão da CCS não dá ordens a soldado de Bedanda diferente da do capitão do mato. Capitão do mato manda mais do que capitão da CCS. Eu vou para Bissau neste avião como disse capitão de Bedanda.

─ Tens que descer. Quem manda no avião sou eu e não o nosso capitão de Bedanda, de quem sou muito amigo. Nosso capitão Cristo não me avisou da tua vinda e eu tenho que mandar o furriel que vai de licença.

─ Não, nosso capitão. Eu não posso descer. Se nosso capitão da CCS é amigo do nosso capitão do mato não dá ordens diferentes dele. Nosso capitão manda no avião e nosso capitão manda em Bedanda, e o avião também é de Bedanda. Eu vou para Bissau porque nosso capitão de Bedanda disse para eu ir, e também tenho de apanhar avião grande para Lisboa. Em mim quem manda é capitão do mato e não capitão CCS.

Dada a situação que foi criada, e porque nada demovia o soldado porque ele não aceitava sequer a ideia de alguém contrariar o seu capitão do mato, o oficial de reabastecimentos e pessoal foi falar com o comandante de batalhão a quem expôs o problema. E falou então o comandante do batalhão.

─ É bom ver um soldado nativo que acredita tanto no seu capitão que não admite que alguém possa contrariar uma ordem sua. O soldado vai para Bissau. Sai do avião o militar a quem não faça diferença embarcar no próximo, ou então só embarca umpassageiro para Catió. Lembra-te de que o soldado que aí vai é um herói. Vai para Lisboa como prémio dos seus feitos em combate. Isto é tão raro que este é o primeiro soldado do batalhão a ganhar tal prémio. Isso devia ser razão suficiente para não ter havido este incidente.

Deste modo, o soldado Baldé conseguiu que uma ordem do seu capitão fosse respeitada no Comando do Batalhão, e ele continuou a considerar o seu capitão como o melhor do mundo. Mundo pequeno, mas era o seu mundo. 

[Seleção / revisão e fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores com as nossas notas de leitura sobre o livro "Panteras à Solta";

9 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"

5 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23590: Notas de leitura (1489): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VII: A incrível história do soldado 25, cabo-verdiano, aliciado pela amante, uma "mulher do mato" de Cobumba, para cometer um acto de alta traição: tomar o quartel e matar todos os tugas...

1 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1485): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

31 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23573: Notas de leitura (1484): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte V: Bedanda, em meados de 1965

30 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1482): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...

29 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde

26 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23559: Notas de leitura (1480): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte II: "Homem gosta de ter mulher na cama, quando vem da guerra", lembra a "Tia", a mulher grande...

25 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

(**) Último poste da série > 12 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23871: Notas de leitura (1531): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 11 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

1. VIII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VIII - De novo, Guiné…

E os trinta e cinco dias de férias esgotaram-se, num ápice!

Preparei tudo para o regresso à Guiné, mas sem vontade nenhuma, claro, pois bem sabia para onde ia e o que me esperava, mas os homens mereciam toda a minha consideração e apoio…

"Imagino, Adolfo!
Depois de um ano naquela situação, deve ter sido difícil encarar novo período, com privações e riscos constantes…"


O meu irmão fez questão de me acompanhar e despedir-se de mim, assim como um colega e amigo dele da Força Aérea, o Zé Durães, de quem fiquei amigo.
Noite numa discoteca, melhor, boate, e eu enfrascado e bem enfrascado, a não querer ir para o aeroporto.

Lá me levaram e conseguiram meter-me na zona do check-in, onde fiquei, sentado no chão, de saquito da TAP na mão, enquanto eles batiam nas vidraças para que alguém tratasse de mim, ao mesmo tempo que riam e riam…

Passados uns minutos, aparecem um comissário e uma hospedeira, perguntam-me o nome e pedem-me o bilhete, ao mesmo tempo que vasculham o meu saquito da TAP, onde encontram a minha carteira e identificação.

Confirmaram que o passageiro que faltava era eu, um militar.

Não tinha o bilhete comigo, mas fizeram eles próprios o check-in e levaram-me para o avião.
Sentaram-me e fiquei sossegado, embora triste e contrariado.

Descolagem efectuada, avião no ar, quando alguém chama e diz que tem um bilhete daquele voo, que encontrou numa rua de lisboa - era o meu bilhete!

Chegada a Bissau, seguindo para o Depósito de Adidos, obrigatório, para registo de entrada e rotinas da praxe.

Mas pirei-me, logo a seguir, pois não tinha paciência para os serviços a que era obrigado.

Na cidade, em andanças pela avenida principal, conheci um mercenário francês, o capitão Charles André, capturado na operação Mar Verde, de que já lhe falei, pois estava ao serviço do PAIGC, na altura, em Conacry.

O Charles André, naturalmente, como prisioneiro de guerra, tinha a assistência própria de um prisioneiro de guerra, mas sob vigilância da polícia militar e da PIDE, vinte e quatro horas, prática corrente.

Com trinta e sete anos, mercenário de guerra desde os dezassete anos, em missões já dos tempos das guerras da Indochina, a designada Indochina francesa, território que incluía os actuais estados do Vietname, Laos e Camboja, também tendo passado pela guerra da Coreia.

Na Indochina, casou com uma indochinesa, a única mulher que o levou ao casamento, não só pela beleza, mas pela cultura, pela educação - dizia.

Durante uma flagelação ao aquartelamento, a mulher morreu, mas salvou-se a filha, ainda bebé, que ela tinha escondido debaixo de um caixote.

A filha, entretanto, já com doze anos, se bem me lembro, estava num colégio interno, em Lyon.

Fazia questão de me falar da cultura indochinesa, que considerava exemplar e digna de referência, em qualquer parte do mundo.

Por exemplo, quando um casal se passeava pela rua e aparecia um homem a olhar e apreciar a mulher, o marido parava, apresentava-se e agradecia o olhar do outro para a sua mulher, sem qualquer gesto de desagrado, sinal de que o marido tinha bom gosto.

Alguém que passasse na rua e olhasse para uma casa onde havia festa, se o dono da casa visse, saía e vinha convidar essa pessoa para entrar e participar na festa, no fundo, em sinal de solidariedade para com essa pessoa. Uma curiosidade: sempre que eu me referia à mulher e, por exemplo, dizia ‘a tua mulher era…’, logo reagia, com firmeza, e dizia ‘era, não, é…!’
Para ele, a mulher existia, apesar de morta…

Como o Governo da Guiné o hospedou no Hotel Portugal (uma espelunca) e, claro, lhe dava algum dinheiro, tudo controlado, logo me disponibilizou uma parte do quarto e pediu uma cama extra, para que eu não fosse obrigado a gastar os meus poucos pesos, uma vez que eu me recusava a dormir no Depósito de Adidos.

Repartia as refeições e cigarros comigo, o que evidenciava um autêntico espírito de partilha, solidariedade, digno de admiração, embora isso tivesse a ver com o que se aprende em cenário de guerra.

As provas de amizade e espírito de protecção foram evidentes e achava que a nossa guerra era estúpida e eu corria perigo de vida, pelo local em que estava - fronteira do sul, com a República da Guiné-Conakry, sede do PAIGC.

Quando saíamos para os subúrbios de Bissau, designados por ‘tabanca’, ‘poilão’ ou ‘pilão’, o Charles André logo se colocava em posição de segurança, embora desarmado, como que a proteger-me de uma qualquer eventual agressão.
Pudera, andava em guerras há vinte anos!

Falou-me em fugir e que eu deveria pensar nisso, também, pois era novo e tinha direito a viver, saudavelmente e em ambiente civilizado.

A saída seria pelo norte da Guiné, pelo Senegal e, depois, aventuras até chegarmos a França.
Frisou que tencionava passar o Natal com a filha, o que seria no mês seguinte, logo, dificuldade agravada.

Pediu-me que, caso lhe acontecesse alguma coisa, durante a fuga de Bissau, e eu pudesse passar por Lion, tentasse ver se a filha estava bem.

Claro que eu concordava com o que me dizia, mas só podia dizer-lhe que tinha homens à minha espera, em situação delicada, que não podia abandonar, além do enorme risco que correríamos na tentativa de fuga.

Como disse, eu deveria estar no Depósito de Adidos, enquanto em Bissau, em trânsito, sendo obrigado a fazer serviços de dia, mas continuava ‘desenfiado’.

Deveria fazer um trânsito curto, em Bissau, e regressar a Gadamael, o mais depressa possível, alugando avioneta civil ou aproveitando algum héli, mas não o fiz, pois sabia bem o que me esperava, em todos os aspectos.

Uma vez que fui ao Depósito de Adidos, só por precaução, fui informado que me enviavam rádios para Bissau a saberem de mim, mas era difícil encontrarem-me…
Doze dias em Bissau, escandaloso, e era hora de partir para Gadamael, onde era esperado, sabe-se lá como, pois o capitão andava em perseguição obsessiva…

Despedi-me do Charles André, que não correspondeu, pois dizia que não gostava de despedidas e insistiu que não aceitava que eu morresse naquele inferno.

Fui ao porto de Bissau e consegui lugar numa LDG que ia para sul e, depois, arranjei lugar numa LDM e batelão, até Gadamael Porto.

Já na LDG, quando abri o meu pequeno saco de campanha, encontrei um bocado de presunto e o cantil do Charles André, com um bilhete: ‘bonne chance et pensez à ma proposition’.
Mais tarde, soube que tinha sido executado pelos agentes da PIDE, durante a tentativa de fuga de Bissau!

Para estas acções, a PIDE tinha grande expediente, era organizada, inteligente, activa.
O mesmo não se podia dizer, quando eram necessárias informações concretas e indispensáveis à execução de operações militares, durante a guerra do ultramar…

Pode parecer lamechice, mas não mais esqueci aquele francês, apesar de mercenário, um homem direito, corajoso, resistente a adversidades, independente dos critérios que possamos ou queiramos ter em conta, um exemplo de solidariedade e espírito de grupo, além da particular preocupação que mostrava por mim, um menino de vinte e três anos, lançado às feras, embora consciente.
É com estes exemplos humanos que mais aprendemos e nos preparamos para a vida.

"Não vejo, apenas, sinto que o Adolfo vive as palavras, sempre que se refere a alguém, como exemplo que o marcou!"

A chegada a Gadamael Porto não foi seguida de uma boa recepção, por parte do capitão, bem pelo contrário, mas não esperava outra coisa.
Em contrapartida: uma calorosa recepção, por parte da companhia, que me deixou um pouco emocionado, mas sem conseguirem esconder a saturação e cansaço.

O capitão manda chamar-me e começam os ataques e as ameaças: ‘Cruz, tem aqui trinta e seis mil pesos para pagar, porque desapareceu uma data de material para o reordenamento!’
A minha reacção foi imediata: disse-lhe que fizesse o que entendesse.

Depois de explorar a que se referia, concluí que era material que vinha de Bissau, destinado a obras de reordenamento, um programa relacionado com a designada ‘psico’, e tinha desaparecido uma parte, o que era um hábito em qualquer ponto da Guiné, pois os diversos nativos eram conhecidos pela habilidade no desvio…
Ele ficava furioso, quando se reagia com indiferença à sua agressividade, apoiada nos galões, apenas!

"Falou em reordenamento e psico e gostava que me explicasse o que significam, realmente."

REORD, reordenamento, é uma acção estratégica que consiste na construção ou reconstrução de uma tabanca ou um conjunto de tabancas, visando a protecção da população e impedimento o seu contacto com o IN (inimigo).

Claro que esta e outras acções cabem no âmbito da designada ‘psico’, actividade que tem a ver com a captação da confiança e simpatia das populações indígenas, de forma que se sintam protegidas pelas NT (nossas tropas), importante para a nossa missão, como se entende.

Um dos dramas do capitão continuava a ser o facto de que a maioria dos graduados se mantinha afastada dele, mostrando-lhe indiferença, com evidente sinal de que o considerávamos ‘persona non grata’…
Daí, a sua obsessiva perseguição e agressividade, atitude contrária ao perfil de um líder.
Mas, afinal, além de o termos considerado um caso típico de sorte, pois nada lhe aconteceu, muitos de nós acabámos por sentir pena dele…
E continuámos a enfrentar o cenário de guerra, sem alternativa, claro, uns dias melhores do que outros.

Tínhamos ouvido qualquer coisa relacionada com tempos de estadia em determinadas zonas da Guiné, pela maior dificuldade operacional e psicológica, como era o caso de Gadamael Porto, o que significava o período máximo de doze meses para uma companhia completa, um pelotão de cavalaria e um pelotão de artilharia.
Assim, devia estar a aproximar-se a autorização de rendição da nossa companhia, pois já íamos em dezasseis meses.
Mas as coisas nem sempre acabam bem…

Uma das últimas operações, reconhecimento na zona de Sangonhá, pertinho da fronteira, saíram parte de dois grupos de combate, do segundo grupo, e do quarto grupo, o meu.
Tudo a correr bem, até que somos surpreendidos por mais uma emboscada, com alguma confusão, e o Fernandes, um dos furriéis do segundo grupo, é ferido, gravemente.

Foi a última ‘bofetada’ que levámos, naquela zona já tão massacrada e com tanto para contar!...


Finalmente, o prémio…

E
a ordem chegou: seríamos rendidos, brevemente!

Como faz parte das estratégias militares, há um período de sobreposição, para que a companhia a ser rendida possa ‘passar o testemunho’ à nova companhia.
A entrega de armas e sua localização, os pontos mais vulneráveis do próprio aquartelamento, os locais estratégicos de saídas e entradas do aquartelamento, as picadas e trilhos de conveniência dentro e fora das matas, os pontos de instalação das nossas armadilhas e minas, os detalhes sobre a comunidade indígena, enfim, a preparação mínima da nova companhia para o que a espera…
Como a companhia tem quatro grupos de combate, saem dois para o novo destino de operações e ficam os outros dois, que fazem a sobreposição.

Chegados os batelões, toca a embarcar e seguir o rio Cacine, transbordar para as LDM, já no rio Geba, seguindo pelo mar, até Bissau, o trajeto contrário ao de dezasseis meses antes.
Depois, de viatura até aos quatro destacamentos, na zona noroeste da Guiné, um grupo de combate em cada um, como ‘prémio’ da campanha em Gadamael Porto, demasiado longa e cem por cento operacional e dura, assim classificada.

A mim, tocou-me Ome/Bijemita, o segundo destacamento, a partir de Bissau.
Zona de etnias Balanta e Biafada, principalmente, embora por lá andassem outras etnias.
Notava-se um pouco mais de movimento e evolução, pois estávamos perto da capital.

A missão, agora, limitava-se à defesa da área de Bissau, cujas ‘operações’ se reduziam a pequenos reconhecimentos e patrulhamentos na zona, incluindo os patrulhamentos do rio Mansoa, uma chatice…
Como era da praxe e bem importante, a designada ‘psico’ estava presente, quer para captar a simpatia da comunidade indígena, pela sua protecção, além da imagem que as forças portuguesas queriam fazer passar.

Os outros três grupos foram colocados em Ponta Vicente da Mata, Quinhamel e Biombo.

Ainda chegámos a ter connosco, uns tempos, o tal célebre Marcelino da Mata, guerrilheiro que ficaria na história desta guerra, por inúmeras e difíceis operações em que participou, nomeadamente, na operação Mar Verde, de que já lhe falei.
Voltarei a falar dele, se tiver oportunidade.

As condições deste destacamento permitiram apreciar alguns dos costumes das etnias locais, principalmente, quando em festa, a que chamavam ‘ronco’, assim como as cerimónias fúnebres que envolviam cenas dignas de filme.

Também era possível dar umas saltadas a Bissau, em viatura militar, sem grandes riscos, nomeadamente, para adquirir bens que não nos eram proporcionados pelo exército.

Recordo-me de um dos patrulhamentos que fiz, no rio Mansoa, com os designados ‘sintex’, barcos de fibra com motor fora de bordo, salvo o erro, com cinquenta cavalos, a que chamávamos banheira, pela configuração.
Saímos da zona posterior do destacamento, entrámos no rio e rumámos para a foz, que chegava mesmo ao Biombo, onde tínhamos um dos grupos.
Mas a operação limitava-se a uma parte do rio, embora tenhamos continuado um pouco mais, e mais, sem repararmos na quantidade de gasosa que tínhamos de reserva.
E as águas revoltas confirmavam o que já tínhamos ouvido sobre a fauna que ali habitava, como tubarão e crocodilo.
Já perto da foz e quase a atingir o Biombo, tivemos de aproveitar a corrente do rio, para conseguir lá chegar, pois a gasosa tinha acabado.

Quando já perto da margem, um dos homens resolve saltar para a água para empurrar o ‘sintex’- má ideia!
Começa a ficar rodeado por umas coisinhas avermelhadas e o corpo cheio de manchas e borbulhagem vermelha, comichão desesperante, difícil de suportar, que só foi atenuada com umas pomadas que o enfermeiro do Biombo lhe pôs no corpo, chamavam flor do congo ou coisa parecida.

E o que nos valeu foi o grupo que estava no Biombo ter gasosa suficiente para nos dispensar, para podermos voltar ao nosso destacamento, graças à solidariedade do Campinho, o alferes comandante do terceiro grupo.
Estas situações não deviam acontecer, pois os riscos estão sempre presentes, com forte probabilidade de consequências graves, mas sabemos que acontecem…

E não posso deixar de recordar as caldeiradas que um dos nossos homens fazia, aproveitando as minúsculas tainhas que as bajudas balantas ou biafadas apanhavam, com redes artesanais, enterradas nas lamas do rio, aguardando a maré.
Claro que as tainhas só serviam para dar o sabor, pois eram difíceis de comer, só espinhas…
Isto passava-se às seis da manhã, já com um calor insuportável, e era o pequeno-almoço.

E, realmente, acreditei no que nos disseram sobre o facto de terminarmos a comissão nestes destacamentos, como ‘prémio’, pelo facto evidente de termos estado aquele tempo todo em Gadamael Porto.
E já íamos em vinte e dois meses, quando sempre tínhamos ouvido falar em dezoito meses de comissão, quando se tratava da Guiné.

Faltava a ordem de saída para o COMBIS (comando de bissau), onde aguardaríamos avião para regresso à Metrópole.

"O Adolfo fala em prémio, como se isso fosse, realmente, um prémio!
Mas acredito que assim considerassem, tendo em conta a diferença de cenário de guerra que passaram a experimentar, com melhores condições e menos riscos, se bem entendi."


Isso mesmo, Daniel, melhores condições e menos riscos, permitindo o descanso merecido a todos nós.
Além disso, a parte psicológica enriquecida, pelo facto de estarmos perto de Bissau, naturalmente, local de partida para o regresso a casa…

Mas esta última etapa, a partida, rumo a Bissau, apesar de ansiada e muito desejada, deixou-me triste e marcado por um episódio simples, mas recheado de emoção.
A lavadeira que eu tinha neste destacamento tinha um filho com cerca de oito anos, a quem eu me tinha dedicado, pela doçura do olhar, simpatia e esperteza, que aceitava pequenas e simples coisinhas que eu lhe ia arranjando, principalmente, comida e alguns pesos.
E aquela minha dedicação nada tinha a ver com carência afectiva da minha parte ou outro qualquer sentimento, mas talvez com uma forma de agradecer o facto de estar no final da comissão, sem grandes mazelas físicas próprias daquela guerra, apesar de reconhecer que as psicológicas acabariam por emergir, mais tarde ou mais cedo.
Além disso, com o facto de ter acumulado uma forte dose de revolta e frustração, pois tinha estado em teatro de guerra que, a certa altura, depois de acordar, reconheci como desnecessária e injusta.

Pois é, este menino não conseguiu aguentar mais e desabafou comigo, mais ou menos, isto: ‘mê furiel, a mi miste bá com bó pr’a Lisboa!’

É um murro grande no estômago, já tão debilitado!...
E tive de pensar bem nas palavras de resposta a este miúdo, com todo o cuidado para não lhe fazerem mal, bem bastava o cenário onde vivia, mesmo que integrado na comunidade onde tinha nascido!...

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Nota do editor

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