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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19125: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (7): as "cunhas" e os TSF...(Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Trms, TSF, Piche e Bissau, 1970/72)


Porto > Ribeira > 27 de maio de 2015 > VI Encontro dos "Ilustres TSF" > Em baixo o C. Lã. De pé, da esquerda para a direita: A. Calmeiro (já entretanto falecido), M. Rodrigues, E. Pinto, J. Reis, H. Sousa, M. Martins, F. Cruz, e F. Marques. Faltou o  Nelson Batalha que   já não compareceu por razões de saúde, e que viria a morrer,  entretanto, um ano e meio depois (*)


Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comnplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Hélder Sousa:

[Foto à esquerda: O camarada, amigo, grã-tabanqueiro, colaborador permanente do nosso blogue Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72): desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970, e regressou 2 anos depois, exatamente a 10 de novembro de 1972. Ei-lo aqui, no "Pelicano", em Bissau, é o primeiro da esquerda, de perfil; à direita o Nelson Batalha (1948-2017) e ao centro  o Fernando Roque, que não era TSF mas TPF. A foto é do Hélder Sousa que é, também, o régulo da Tabanca de Setúbal, e tem mais de 140 referências no nosso blogue]


Data: domingo, 21/10/2018 à(s) 02:11
Assunto: As "cunhas"....

Caros amigos

Tenho acompanhado as várias publicações do nosso blogue e, dentro destas, esta última série, relacionada com o tema 'Então e depois? Os filhos dos ricos também vão p'ra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais iguais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada, que acho interessante e que pode ser tratada com mais ou menos ligeireza e com mais ou menos profundidade. (**)

Porque as escritas (e as leituras das mesmas...) serão mais eficazes se não forem muito extensas, vou tentar abordar o tema pelo prisma de forma "mais ligeira e menos aprofundada".

Cumprir ou não a "comissão de serviço por imposição" era um dilema que se colocava realmente mas não era tema alimentado por largas maiorias.

Havia quem entendesse que era dever defender os "seus" territórios ameaçados pela cobiça internacional. Conheci alguns.

Havia quem quisesse dar corpo à missão que a Pátria lhe impunha. Conheci alguns.

Havia quem pensasse que não deveria ir para África mas... o peso na consciência de "faltar ao dever", o anátema de "cobardia", o não saber quando e como voltar a estar com amigos e família, acabava por ter o peso suficiente para fazerem o "cruzeiro das suas vidas". Conheci bastantes.

Havia ainda quem achasse que sim, porque sim.

E havia também outros....

Nesta amálgama de possibilidades então muitos foram, pobres, remediados e ricos, e alguns, também pobres, remediados e ricos, 'não foram'. Refractaram-se, desertaram, ou ficaram por cá, resguardados...  Poderemos pensar que esses, os de cá, tinham "cunhas". Talvez, acredito que isso possa ter acontecido com muitos mas seguramente não com todos. Conheci alguns.

E então eu? Como foi?

Para mim foi um "percurso normal".  Fui incorporado no CSM em Santarém, na 3ª incorporação de 1969, em plena época de exames, a meio de Julho.

Vi recusado o pedido de dispensa para comparecer a exames na 2ª quinzena e por isso não me parece que tenha tido 'facilidades'.

No ano anterior, no Verão de 1968, com o dinheiro que amealhei na apanha do tomate, aproveitei o "Turismo Estudantil" e fui até Paris, Bruxelas e Londres. Menos "turismo" e mais "prospecção" para uma eventual "retirada da circulação". Quando chegou a incorporação, a opção foi "cumprir".

Fiz uma recruta empenhada, com bom aproveitamento geral, e já vos dei conta num 'post' daquela série "A terra que mais gostei ou odiei" (***),  que tive uma classificação tão boa que me colocou em condições de ser 'convidado' a passar ao COM mas não aceitei porque entretanto saiu a especialidade TSF, que me disseram ser muito boa, e como tal,  perante a quase certeza de poder vir a ser um "COM atirador"...., continuei o meu percurso no CSM.

Como me "saiu" TSF? Não faço ideia!

Os meus pais não tinham dinheiro suficiente para 'comprar' ninguém, não tinham conhecimentos capazes de o fazerem, por isso desconheço realmente como foi. Aliás, nesse Turno, em Santarém, apenas 'saíram' dois TSF, os outros 13 (pois o 2º Ciclo do CSM para TSF comportou 15 elementos) foram de Vendas Novas, Tavira e Caldas da Rainha.

Gosto de pensar que poderá ter sido numa informação que dei de ter construído,  com o meu vizinho do andar de baixo da casa onde vivia,  uma comunicação a partir de duas chaves de "morse" que um primo dele nos arranjou ...

Em Lisboa, no então BT [, Batalhão de Telegrafistas], fiz o 2º Ciclo, após isso fui fazer um estágio para Tancos, na EPE [, Escola Prática de Engenharia].

Findo o estágio houve exames para classificação. Dos 15 fiquei em 7º. Fui para o Porto, para o então RTm dar instrução.

Entretanto as mobilizações dos camaradas do meu Curso estavam a ser conhecidas a 'conta-gotas', pois do final de Abril de 1970 ao final de Agosto, dos 15 apenas tinham partido 6 e nós sabíamos que no dia 3 de Setembro entrariam todos os que estavam a acabar o seu percurso formativo e que assim estariam à nossa frente para 'marcharem'.

Pensava eu, assim, que tendo ainda dois dos meus camaradas à minha frente para serem mobilizados e com o acrescento dos que aí vinham, que a mobilização já não se daria e, caso isso tivesse acontecido, não teria havido "cunha" nenhuma... Mas não foi assim, já que no dia 1 de Setembro, dois dias antes do "reforço" da lista para mobilização, saiu a "rifa" a 7 de nós, do meu Curso, com passaporte para a Guiné.

Na Guiné, dos 7 que para lá foram, 3 arrumaram-se por Bissau.Eu e outros 3 fomos para o "mato". 

Não me parece que aqui tenha funcionado alguma "cunha". Fui para Piche com uma missão específica, que não vem agora aqui ao caso, embora o meu Capitão que chefiava o STM (Serviço de Telecomunicações Militares) onde me incorporei, tivesse garantido antes que nenhum de nós iria chefiar Postos em 'zonas problemáticas' e,  no meu caso concreto, em compensação, como a zona seria 'problemática', quando terminasse a missão iria para zonas mais pacíficas, como Bissau, Bolama, Teixeira Pinto, por exemplo.

Não foi assim! Quando regressei de Piche fui 'requisitado' para a Companhia de Transmissões para integrar o Serviço de Escuta. Esta história já dei conta em 'post' faz muito tempo. (****)

O meu desempenho na "Escuta" poder-se-à dizer que me foi agradável. Não me vou alongar em motivos, poderá ficar para outra ocasião, mas não foi por "cunha", foi bem vivido.

Portanto, quanto a mim, desconhecendo na verdade como me "saiu" TSF, foi um percurso 'limpo, sem cunhas'. 

Conheci "filhos de ricos" que foram mobilizados e que foram para a Guiné. Conheci "filhos de não ricos" que ficaram por cá, alguns talvez com 'cunhas', mas outros nem por isso. Conheci alguns "filhos de patriotas" que procuraram fazer as suas vidas em lugares mais saudáveis do que os difíceis climas africanos. E também outros "meninos de suas mães" que foram para fora.

Por isso digo: "há de tudo"!

Um abraço
Hélder Sousa
__________

Notas do editor:


(****)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

Vd. também  poste de 26 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

Ver ainda poste de 11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19118: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (6): Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Virgílio Teixeira, aspirante a oficial miliciano, com a especialidade de SAM - Serviço de Administração Militar. Foto para o BI militar. Junho de 1967.


Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentário ao poste P19106 (*):

Autor: Virgílio Teixeira (*), ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, set 1967/ ago 69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de de 90 referências no nosso blogue.

Há casos e casos, e lá vem o meu caso.
Não era rico, nem mais ou menos. Não era filho de General nem de Coronel. 200 contos [, na época,] era uma visão de uma estrela.

E mesmo assim, vou parar a uma coisa que alguns gostam de chamar de 'escritório' no meio do mato. 

Alguém tem de fazer esta função. Quem?  Aqueles que estão habilitados, se alguém tinha de saber alguma coisa e aplicá-la era no SAM - Serviço de Administração Militar.

Porque me calhou a mim? Na especialidade fui um zero, porque não ligava àquilo. Foram as provas físicas e militares, de tiro e aplicação militar que me deram as maiores notas, e assim puder passar o curso do COM [, Curso de Oficiais Milicianos].(**)

Mas tínhamos os psicotécnicos, faziam-se testes, tinha-se o curriculum. E o meu estava acima de qualquer suspeita. Já tinha 12 anos de trabalho em cima, com contribuições para a Segurança Social, a Caixa de Previdência, que muitos nem sabem o que isso é.

Passei pela Escola Comercial, passei pelo Instituto Comercial, estava na Faculdade de Economia [do Porto], que mais era preciso para ir para a minha especialidade?

Podem ser todos burros na tropa, mas não iam desperdiçar um 'quadro' já formado cá fora e mandá-lo para "infante" ou coisa melhor. 


Depois foi coisa de aprendizagem e para quem já tem as bases, não custa nada.

Um menino, vindo do Liceu, muito dificilmente agarrava esta especialidade, era assim tratada tipo elite, não tenho vergonha de o dizer, só tinha uma pessoa a mandar em mim, o meu Chefe, nem o comandante do batalhão me dava ordens.

Agora há outras coisas facilmente explicáveis, e isso já está atrás proferido nas insinuações e bem feitas. O meu Tesoureiro, por exemplo, fazia parelha comigo no CA ], Conselho de Administração], a função dele era ir uma vez por mês a Bissau levantar o p
atacão e distribuir pelas Companhias, nada mais. Trabalhamos dois anos e nas assinaturas nunca notei a designação dele. Eu assinava Virgilio Teixeira e por baixo, Alf Mil do SAM.

Esse cara, de que falei agora, vi nuns documentos passado quase 50 anos, que ele assinava 'Alferes Miliciano de Infantaria'. Fiquei pasmado. Consegui o email dele na Ordem dos Advogados, e perguntei-lhe assim directamente: "Como é que um alferes de infantaria vai para Tesoureiro do Batalhão?"

Ainda aguardo a resposta, e já lá vão uns 3 anos.

Mas ir parar à Guiné já é um grande castigo de Deus, e todos nós, de uma forma ou outra, levamos no pelo por causa disso.
Ainda tenho uma 'micose' qualquer aqui no pé, que trouxe da Guiné, dei por ela em 1969 antes de embarcar, devia ter feito o mesmo tratamento que tinha feito a outra, com tintura de iodo, mas não fiz e cá está. 

Uma lembrança da Guiné, com amor.(***)

Virgilio Teixeira
________________

(**) Vd. postes de:

2 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18704: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIII: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (I)

6 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18715: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIV: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (II)

Guiné 61/74 - P19115: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (5): José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70)


Guiné > Região de Tombali  > Cameconde > 1969 > Oficiais e sargentos: o primeiro da esquerda é o José Diniz Sousa e Faro, fur mil art, do 7º Pel Art;  à sua direita, em primeiro plano, o alferes médico; sentado à direita deste, o J. A. F. Chaves e depois o R. Carvalho, de costas: de pé, na outra ponta da mesa, o J. Lopes.  Cameconde era a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine..

Foto de cronologia da página do Facebook do Dinis Souza e Faro, que nasceu em Goa, em 21 de dezembro de 1945. Vive em Carcavelos. É membro da Magnífica Tabanca da Linha e da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário ao poste P19106 (*)

Autor: José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70) (*)

Ter uma "cunha" não é sinónimo de boa vida, no meu caso concreto na Tropa. Eis o meu Fado:

Os meus familiares, quer maternos, quer paternos,  são militares e uma mãe que se preze zela pela sua cria.

Em Abril de 67 estou na Recruta, no CSM [Curso de Sargentos Milicianos], nas Caldas da Raínha. Passado uma semana sou chamado ao Cmdt da 5ªCompª, onde sou informado que o meu primo Capitão pede ao seu camarada para ser exigente comigo para que possa honrar a tradição da Família... Era uma forma subtil de "Cunha". 


Pois bem, o efeito foi ao contrário passei a ser perseguido, pelo Alferes e pelos Cabos Milicianos. Era tudo a dobrar.
Fui para a especialidade de Artilharia de Campanha que na altura ninguém sabia o que era. Junho de 67 Vendas Novas. 

As dificuldades era iguais para todos, pois os Oficiais do Comando responsáveis pelo curso não faziam distinções. No meu pelotão de obuses havia de tudo, ricos, remediados e pobres. Mas eram os pobres que recebiam bons enchidos das suas terras.

Em Abril de 68 fui mobilizado para a Guiné, não disse nada a ninguém. Num jantar, um outro primo, Major, que estava Caxias nos Serviços Mecanográficos,  perguntou-me se gostava da especialidade e que poderia ficar descansado que se fosse para o Ultramar iria para uma cidade. 

A minha resposta foi curta e grossa. Então vá dizer isso ao Governador da Guiné que requisitou os Artilheiros e os Obuses todos. É provável que a cunha tenha funcionado pois fui e vim sem nenhumas mazelas e uma mão cheia de camaradas para o resto da vida, sobretudo os: Os Bandalhos, Magnífica Tabanca da Linha e Tabanca Grande. 

Forte abraço para todos. (***)

J.D.S.FARO
68/70.
___________

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19113: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (4): José Manuel Matos Dinis (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71)


Comentário, de 16 do corrente, do 
Magnífica Tabanca da Linha, 2012:
O Zé Dinis no uso da palavra. 

José Manuel Matos Dinis, ao poste P19106 (*)

(i) ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71;

(ii) nosso grã-tabanqueiro  de longa data, nosso querido amigo e camarada;

(iii) tem cerca de 220 referências no nosso blogue;   

(iii) depois do seu regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo da Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972;

(iv) viveu  e trabalhou na Lunda, na melhor empresa angolana na época, a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo;


 
Sobre o tema [, a "cunha" na tropa](*), nunca fui de pedidos ou de obtenção de vantagens, e encarei tudo na tropa como a minha fatalidade, comum a tantas outras.

Antes de ser mobilizado, estagiava num importante hotel de Lisboa, local onde se alojava quase semanalmente um governador civil de uma cidade do Norte, homenzarrão, mais gordo que forte, que falava grosso, e era amigo do Salazar, que visitava regularmente. 

Durante as primeiras férias que aqui passei, e em visita ao pessoal do hotel, aquele senhor encontrou-me no salão e dirigiu-se-me: 
− Ó rapaz, que é feito de ti, que há tanto tempo não te vejo? 

Respondi que estava na Guiné em missão de soberania, ao que ele logo acrescentou: 
− Oh, oh, e porque é que não me disseste nada?

Fiquei a saber que, por vezes, pode valer a pena pedir qualquer coisa. Naquel altura, já era tarde, e eu já estava comprometido pela camaradagem.  (**)

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19111: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (3): Umaru Baldé (c. 1953-2004), "filho único de sua mãe"


Umaru Baldé (c. 1953-2004), soldado do recrutamento local,  nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo infantaria da CCAÇ 12 (1969-1972). Foi depois colocado, em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura  e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal onde teve grandes camaradas e amigos, solidários, que o ajudaram.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados . [Rfição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Envelope da carta enviada pelo Umaru Baldé ao José Valdemar Queiroz Silva, 5residente no Cacém  (foi deliberadamente rasurado o nome da rua do destinário)]




Recruta do CIM de Contuboel
(c. março de 1969)
Carta, datilografada,  sem data nem local, tem a foto do remetente, o Umaru Baldé, ao canto superior esquerdo. Excerto.

Fotos: © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. É um relato pungente de um miúdo, de etnia fula,  que deveria ter 15/16 anos, "filho único de sua mãe", quando foi recrutado, na sua aldeia (Dembataco, do regulado de Badora, no subsetor do Xime, setor de Bambadinca), em 12 de março de 1969. 

No Centro de Instrução Militar de Contuboel, o Umaru Baldé (c. 1953-2004)  fez a recruta e a especialidade, sendo integrado na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, como soldado arvorado, apontador de morteiro 60. 

Era um exímio apontador de morteiro 60, como o demonstrou em exercícios de fogo real, no CIM de Contuboel, ma presença do gen Spínola e seus acompanhantes (**), em inúneras situações em que esteve debaixo de fogo, durante cerca de dois anos e meio.

Depois da independência da Guiné-Bissau, e com justificado receio de represálias por ter servido o exército português,  atravessou quase metade de África para chegar a Portugal, em 15 de abril de 1999, tendo entretanto vivido ou sobrevivido no Senegal (11 anos), Mali (1 ano), Costa do Marfim (2 anos), Gana (2 meses), Burkina Faso (7 meses). etc, e passando por ainda Benin, Guiné-Conacri, de novo Guiné-Bissau, etc. e, por fim, Portugal.

É membro, a título póstumo, da nossa Tabanca Grande), Esta carta terá sido escrita  em meados ou finais de 1999 / princípios de 2000. Morreu de tuberculose e SIDA em 2004. Nunca escondeu o seu grande amor à Pátria Portuguesa que lhe foi madrasta. 

Este documento humano lancinante precisa de melhor conhecido, divulgado e comentado.

Excertos. transcrição, revisão e fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Vd. carta na íntegra aqui (**)


AMOR NUNCA ACABA

Amor nunca acaba,
ninguém esquece dos passados ceja [seja de] bem ou de mal,
eu me lembro de dia 12 de março de [19]69, quando foi [fui]
chamado para [a] vida militare [militar] Portugues[a].

Na verdade eu tinha pouco[s] anos de idade 
e eu era único filho de o meu pai, 
e na verdade minha Mamãe revoltou[-se], 
disse que eu não tenho [tinha] idade para ir na guerra, 
mas a pena [é que] Alferes que tinha vindo para nos levar, não podia ouvir esta revolta.

Alferes disse-nos [:]
todos somos Portugueses, 
saímos [de] muito longe para defender [a] Pátria Portuguesa, antão [então], para povo saber 
que [em] Portugal não há raça nen [gente] de cores, 
todos [todo] cidadadão tem que ir cumprir 
serviço militar português.

Minha mamãe chorou, 
disse [:] ai, meu Deus, tenho meu filho único
que vai me deixar para ir morrer na guerra.

Esta data era[foi] dia de tristeza i [e] lágrimas 
para [o] povo de Demba Taco e Taibatá, 
na verdade ficámos até às 4 horas das tarde 
[até] entramos no [nas] viaturas militares para Bambadinca.

Eu, com a pouca idade que eu tinha, 
o que podia fazer ? 
Todo como homem, que sou, 
quando foi [fui] na recruta [em Contuboel], 
foi [fui] o melhor apontador de morteiro 60 [...] 

Depois, na especialidade 
foi [fui] levado para [o] mesmo lugar [...]
na primeira companhia [que] foi na CCAÇ 2590 [/] CCAÇ 12] onde nunca esqueço [o] sufrimento [sofrimento] 
que sofri para [pela] Minha Pátria Portuguesa, 
na Guiné Portuguesa.

Na verdade, [em] dois anos e alguns meses 
que fez [fiz] como operacional, 
fez [fiz] 78 operações no mato do Xime, 
[na] zona do Xitole e até [em] Medina [Madina] do Boé, 
ao lado de Ganjadude [Canjadude]. 
Na minha companhia, durante dois anos 
só sofremos 5 soldados [mortos], 4 pretos e um vranco [branco].
Depois fui transferido para Bissau como primeiro cabo, 
onde fui colgado [colocado] no comando das transmissões
 [, quartel de Santa Luzia,] 
até ao fim de[da] guerra em 1974. [...] (***)
_____________

Notas do editor:
(**) Vd. poste de 29 de setembro de 2016 Guiné 63/74 - P16537: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte V): O Umaru Baldé que eu conheci... O "show" de morteiro 60 que o "puto" deu, no CIM de Contuboel, em exercício de fogo real, na presença do próprio gen Spínola em maio de 1969... (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19109: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (2): Virgínio Briote [ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e allf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos (Brá; 1965/67); coeditor jubilado do nosso blogue]

Guiné 61/74 - P19109: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (2): Virgínio Briote [ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e allf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos (Brá; 1965/67); coeditor jubilado do nosso blogue]


Guiné > Bissau > 1967 > O alferes miliciano comando Briote (ao meio), em final de comissão, com os alferes comandos Sampaio Faria e Ovídio (do lado esquerdo) na receção da 5.ª Companhia de Comandos, do cap Albuquerque Gonçalves (à direita).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Virgínio Briote ao poste P19106 (*)

Virgínio Briote, ex-alf mil cav,  CCAV 489 (Cuntima e alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67);  frequentou a Academia Militar nos anos letivos de 1962/63 e 1963/64; coeditor jubilado do nosso blogue

Crónica de uma mobilização

Set. 1964.

Embarcaram no N/M Carvalho Araújo cerca de 18 aspirantes milicianos, com destino ao BI 18, S. Miguel, e ao BII 17, Angra do Heroísmo, Terceira [, Açores].

Quando, um dia pela manhã, o navio aportou a Angra, algumas viaturas transportaram-nos até à Fortaleza de S. João Baptista, no Monte Brasil.

Recebidos pelo cmdt, tenente coronel Garrido Borges, depois das boas-vindas e de algumas informações gerais, um capitão comunicou a alguns dos recém-chegados que não valia a pena desfazerem as malas porque regressariam ao continente no próximo transporte, uma vez que tinham sido mobilizados para o Ultramar.

Depois, quase todas as semanas um era mobilizados.

Fui, que me lembre, o último a ser mobilizado, no início da 2ª quinzena de dezembro [de 1964]. Tinha começado por ser cmdt de um pelotão e acabei por ser cmdt interino de uma companhia, director da carreira do tiro, da secção técnica e certamente de mais qualquer departamento, uma vez que os únicos oficiais que lá se encontravam era o cmdt da unidade e um capitão com mais de uma dezena de anos no posto.

Quando entrei no gabinete do cmdt, o tenente coronel [, de infantaria, Fernando Manuel] Garrido Borges, sorridente, comunicou-me que tinha chegado a minha vez. Mobilizado para Cabo Verde... 
−  Nada mau, aspirante Briote! Parabéns! Prepare-se, deixe tudo em ordem, ainda deve ir passar o Natal com a família.

Dia seguinte, a meio da manhã, chamada para ir ao gabinete do cmdt...
− Chegou novo rádio a comunicar que tinha havido erro na mensagem. O nosso aspirante  foi mobilizado
para a Guiné.

Desci as escadas e fui até ao bar do cabo João. (**)

V Briote
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19106: (Ex)citações (345): a Pátria, a classe social, a cunha, o mérito, os "infantes"... e que Santa Bárbara nos proteja!... (C. Martins / Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19108: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (1): Valdemar Queiroz (ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Intrução Militar (CIM) > CART 2479 / CART 11 > c. março/maio de 1969 > O instrutor (Valdemar Queiroz) e o recruta (Umaru Baldé, "menino de sua mãe")... Afinal, todos portugueses, todos iguais, mas uns mais do que outros...

Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada C. Martins (ex-alf mil art, cmdt, 23º Pel Art, Gadamael Gadamael, 1973/74),  citava há tempos o seu avô que, na inauguração da escola lá da terra, em pleno Estado Novo, ouviu da boca de um manda-chuva esta "verdade sociológica": "O escritório, para o rico; a enxada, para o pobre"... No fundo, é uma variante do ditado alentejano: "A rica teve um menino, a pobre pariu um moço"...

Não nascemos nem morremos iguais, embora sejamos todos feitos - com a sua licença, caro leitor -,  da mesma "merda"... E, ao longo da vida, há outros fatores que nos continuam a diferenciar...No caso da tropa, da arma e da especialidade, e da mobilização para o Ultramar, o estatuto sócio-económico dos pais, as habilitações literárias, os testes psicoténicos, o mérito, a instrução militar e o famoso factor C [,a "cunha") e, já agora, a "sorte" e os "santinhos"... ajudam a explicar muita coisa...

Com graça, mas naturalmente de forma redutora,  o C. Martins dizia que o "pobre" ia para atirador de infantaria, o "remediado" ia para cavalaria, o "remediado com estudos" para a artilharia... e os  "ricos" e os gajos com cunhas, esses, desenrascavam-se muito melhor: tinham especialidades que os livravam de ir para o Ultramar ("ir para fora"...) ou ficavam no "ar condicionado" de Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... 

O retrato pode ser grosseiro, mas, na época da guerra colonial, não andaria muito longe da "verdade sociológica"... Na sociedade portuguesa ser "filho de algo" sempre foi, historicamente, importante, se não mesmo decisivo. O mérito é uma noção recente, capitalista, burguesa, coisa de há menos de 100 anos... E a "cunha" (o factor C)  era como as bruxas: que as havia, havia, e toda a gente "mexia os seus pauzinhos"...

A este propósito o nosso editor, LG, lançou este desafio (que alguns poderão interpretar como uma "provocação", mas que não é: é amtes uma "provação", ou melhor, uma "prova de vida"...):

Camaradas: toda a gente, fosse "rico", "remediado" ou "pobre", do Exército, da Marinha ou da FAP, tem opinião sobre este "tópico"... Tirem a "máscara" e comentem... 50 anos depois não vale a pena levar segredos para a cova... E um gajo, a ter de confessar-se, deve ser agora, aqui e agora, à sombra do poilão da Tabanca Grande... antes do Parkinson, do Alzheimer, do AVC, da morte macaca ou do cancro da próstata... (De que Deus nos livre!)

Já começaram a aparecer os primeiros escritos, sob a forma de comentários... Outros se seguirão, mais curtos ou compridos, mais finos ou mais grossos... Vamos dar início a uma série, aproveitando a frase da mãe do Valdemar Queiroz que, resignada, comentou, ao receber a notícia da sua mobilização para o Ultramar:  "Então, e depois?... Os filhos dos ricos também vão pra fora!"...

De qualquer modo, há uns largos anos atrás, em 2009, tínhamos criado uma série intitulada "O trauma da notícia da mobilização"... Publicaram-se então nove postes...   A nova série de hoje  dá continuidade a essa...  LG


2. Depoimento do Valdemar Queiroz [ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70] [, foto atual à esquerda]

Sobre cunhas, principalmente em Especialidades com pouca rotação/mobilização (ex.: munições de artilharia, topógrafo de artilharia, transmissões de artilharia), a cunha estava feita para a Especialidade e, depois, se corresse mal havia os 'mata pra fora', ou seja quando havia um com boa nota e não se importava, a troco duns contos de réis, de ir 'pra fora' no lugar dele.

Aconteceu no RAP3, Figueira da Foz, com um cabo miliciano. meu conhecido, e um jogador de futebol dum clube grande. 

Mas, isto de Santa Bárbara, padroeira da Artilharia, bem se podia rezar por ela, que em novembro de 1967, todos os que estavam na EPA, Vendas Novas, ficaram com todas as fardas ensopadas durante três dias.

Quanto ao dia do conhecimento da mobilização estava no RAP3, já com 16 meses de tropa e não me lembro como foi passado. Apenas me recordo, ainda com muita mágoa, ter telefonado à minha mãe e ela me dizer:
- Então, e depois?, os filhos dos ricos também vão pra fora!...

Pobre coitada,  assim já tinha motivo pra rezar a todos os santinhos. (*)

Valdemar Queiroz
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sexta-feira, 3 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4134: O trauma da notícia da mobilização (8): Amado, volta já para o Quartel (Juvenal Amado)

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 1 de Abril de 2009:

Caros Carlos, Luis, Briote e restante Tabanca Grande.

Os traumas da nossa mobilização começaram muito antes de nós o sermos na realidade.
Os que foram mobilizados na mesma altura que eu, talvez não tenham sofrido o choque tão violento, pois tivemos anos para nos preparar para o facto. Ao contrários os mais velhos foram atingidos pelo desconhecido, pelas notícias de violência em terras tão longiquas e por vezes ampliadas pela distância.

De qualquer forma deixou marcas em todos os nós.

Um abraço para todos
Juvenal Amado
31.03.009


Amado, volta já para o Quartel

Desde o início da guerra ouvi falar de vários dramas despoletados pela mobilização para a guerra colonial.

Falou-se até em suicídios. Ou se for mobilizado mato-me.

O trauma da guerra na sociedade portuguesa, onde parece que nada acontecia, foi um choque violento.

Ainda garoto ainda intoxicado, com a visão do poderio Português no Mundo, onde éramos os mais fortes e mais valentes, pensava que a coisa ia ser despachada em três tempos.

Os valores da raça injectados na Escola Primária e na Mocidade Portuguesa, que nos faziam inchar de tanto orgulho em ser nascidos, neste jardim à beira mar plantado.

Enfim idealismos, que o tempo esfriou de forma bem rude.

A realidade era a extrema pobreza, analfabetismo, emigração a salto, e para quem por cá ficava, a repressão e a falta de direitos políticos, eram o pão nosso de cada dia.

Mas o meu irmão, acabou por ser mobilizado para Moçambique e a guerra entrou na minha casa.

Mais tarde quando eu fazia os impossíveis por chegar a Sta. Margarida, onde deveria ter chegado às oito horas vindo de um fim de semana e só cheguei ao meio dia, a guerra também me apanhou a mim.

O frio era terrível naquele Novembro de 1971. Eu conduzia o Comandante de um Batalhão que ia para Angola. A viatura deixava entrar o vento gélido. Nas pistas de combate o Batalhão chafurdava na lama entre explosões de petardos e rajadas de metralhadora obrigando os soldados a rastejarem por baixo de arame farpado. Só de pensar na lama gelada me dava arrepios. Só dei pela presença do meu camarada condutor, que comigo cumpria a diligência no CIME, embora pertencêssemos ao RI2 de Abrantes, já ele estava ao pé de mim.

Na verdade todos estávamos conscientes, que poucas hipóteses tínhamos de escapar, mas no fundo alimentávamos uma pequena esperança de pertencermos a uma minoria, que era bafejada pela sorte.

Quando o vi, vinha ele na minha direcção com um ar pesaroso, de quem já estava a olhar para um já meio morto.

Foi quase como quem pede desculpa por não ter sido ele . Amado volta já para o quartel, pois veio uma guia de marcha a dizer que foste mobilizado.

Regressei a Abrantes no mesmo dia. Estou alucinado. Parece que sou actor e espectador de um filme rasca. Os sargentos que regressam a Abrantes, fazem má cara por verem um praça partilhar o seu transporte com eles. Querem lá saber se fui ou não mobilizado, o meu lugar era na carroçaria de um qualquer transporte militar, nunca no seu autocarro.

Na secretaria recebo a notícia para onde ia. Então cheio de sorte hem. Gozava o sargento que tinha o documento na mão. Para a Guiné.

Apresento-me na Companhia e o Capitão pergunta-me com maus modos, onde raio tinha eu estado metido que à oito dias andavam à minha procura?

Não fui preso como desertor por mero acaso.

Vamos gozar férias, só penso como é que eu vou dizer em casa, que vou para a Guiné?

Quando virem os sacos, metade do trabalho estará feito. Depois só falta dizer para onde.

Juvenal Amado
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Nota de CV:

Vd. último poste da séri de 2 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4125: O trauma da notícia da mobilização (7): Não se pode mudar o destino (Pedro Neves)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4129: Estórias cabralianas (47): A minha mobilização: o galo dos Cabrais... (Jorge Cabral)

1. Mais uma estória cabraliana (desculpem os puristas da língua, mas o autor faz questão...). Só faltam três para as 50... O Jorge prometeu não se passar dos carretos sem chegar à meia centena (*)...

Não cometo uma inconfidência - imprescindível para se compreender o título e a moral da história - ao dizer que o Cabral é um homem de linhagem ilustre... e que o progenitor , ao que sei, era militar... de carreira. E a verdade é que, quem sai aos seus, não degenera...

Posso garantir que nunca o vi, nas terras de Badora e do Cuor, cantar de galo... Mas que sempre prezou a sua linhagem, isso é indesmentível e eu sou testemunha: costumava garantir, a quem o queria ouvir, que "na Guiné, Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum"...


Fanfarronice ou não, a coisa deve ter chegado aos ouvidos do Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, que nunca mais voltou a meter-se com Missirá...(LG)


Estórias cabralianas > A Minha Mobilização. Trauma?

por Jorge Cabral


Calma, simpática, acolhedora, a Vila de Vendas Novas. Bom vinho, petiscos, raparigas bonitas. Que mais podia aspirar o Aspirante? No Quartel fazia tudo, isto é, nada. Acumulara cargos, Justiça, Acção Psicológica, Revista, Cinema e ainda os discursos da Peluda.

Cumpria gostosamente um peculiar horário. Após o toque de alvorada, às vezes de ressaca, de cara por lavar e barba por fazer, corria para a Formatura Geral, onde... passava revista ao Pelotão. Meia hora depois, abancava no Bar e tomava um lauto pequeno almoço, antes de regressar à cama.

Por volta do meio dia, vestia-se com a farda de passeio e comparecia ao obrigatório almoço. Finalizado este, já elas o esperavam no Café. Conversa, Poesia, Estórias e um pouco de loucura animavam as tardes, até ao toque de ordem. Regressado ao Quartel, desfardava-se e com os amigos, partia com destino às jantaradas, Montemor-o-Novo, Évora, Setúbal...

De volta ainda havia lugar para a lerpa, onde alinhavam também alguns jovens tenentes. Perdia sempre (era o galo dos Cabrais, segundo se dizia...).

Pois foi numa dessas noites. Eram três da manhã. A sala fumarenta, as garrafas vazias. Eis que chega o Capitão, Oficial de Dia, com um papel na mão. Vem divertido, e dirige-se ao Cabral:
– Calcule que em Leiria no RAL 4 (** já pensavam que tinha desertado (O Aspirante pertencia aquela unidade onde nunca fora, pois se encontrava em diligência na EPA) (**).
- ...
-Olhe, foi mobilizado em rendição individual para a Guiné.

Continuaram a jogatana. Beberam mais um copo e o Aspirante ainda brincou:
- Porra que não é só no jogo, o galo dos Cabrais!.

No outro dia já elas sabiam. Foi apaparicado e mimado. Tanto que acabou na cama com uma e na noite seguinte com outra e ainda havia uma terceira mas teve de entrar de licença.

Trauma da Mobilização?

Tem pensado nisso. Já tentou várias vezes “ser de novo mobilizado” para informar umas damas. E nada...

Jorge Cabral

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série:

31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4114: Estórias cabralianas (46): Inspecção Militar: E todos os tinham no sítio... (Jorge Cabral)

(...) Pois, também eu naquela manhã de Junho me dirigi à Avenida de Berna, ao Quartel do Trem Auto, onde hoje funciona a [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da] Universidade Nova [de Lisboa].

Éramos mais de cem, altos e baixos, loiros e morenos, alguns mancos, pitosgas muitos, um quase corcunda, três gagos e dois tontos. Mandaram-nos despir e pôr em fila, numa literal e verdadeira bicha de pirilau. (...)

(**) Abreviaturas

RAL = Regimento de Artilharia Ligeira

EPA = Escola Prática de Artilharia

Guiné 63/74 - P4125: O trauma da notícia da mobilização (7): Não se pode mudar o destino (Pedro Neves)

1. Mensagem de Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCaç 4745/73 - Águias de Binta, Binta, 1973/74, com data de 30 de Março de 2009:

Camarada Luís Graça

Já refeito sobre as palavras do Sr. Gen. graças ao que despejei ontem no mail que enviei para a Nossa Tabanca Grande, aqui estou para contar como foi o meu percurso desde a inspecção, até à minha mobilização para a Guiné.

Não se pode mudar o destino

Fui aconselhado pelo meu padrinho (de baptismo), que era Oficial da nossa Marinha de Guerra, para quando fosse dar o nome para a tropa, não dizer quais eram as minhas habilitações literárias, porque depois ele tratava de manobrar as coisas, para ir para Paço de Arcos. Eu estava ligado ao ramo do Ar Condicionado e Refrigeração e era mais fácil, se fosse soldado ou cabo, a minha colocação e assim livrar-me do terror dos nossos tempos de jovens, que era a ida para a guerra. Mal sabia eu o que me esperava!!!

Apresentei-me no dia 9 de Outubro de 1972 no R.I.7, em Leiria, no Contingente Geral e aí iniciei a minha vida militar, com as primeiras fascinas, nunca me oferecendo para nada, seguindo os conselhos dos mais velhos e levando a minha vidinha descansada.

Passados cerca de 15 dias, durante a formatura, fomos informados que os nomes de fulano e Sicrano (e o meu também), se deveriam apresentar após o destroçar na secretaria do Comando. Lá fomos, eu e mais três camaradas, intrigados e com algum receio, sobre a convocatória e o que estaria por detrás da mesma.
Fomos recebidos por um Major, que de rajada nos disse, que era crime, punível com prisão militar, a omissão das habilitações literárias e que teríamos de declarar imediatamente as mesmas, sob pena de que se não correspondessem às verdadeiras, esperava-nos a prisão. Estão a ver este vosso camarada, a declarar tudo e mais alguma coisa, faltando apenas os nomes dos meus professores, desde a instrução primária. Era sexta-feira e nesse mesmo dia recebemos as Guias de Marcha para nos apresentarmos na segunda-feira no R.I.5, nas Caldas da Rainha.
Fomos recebidos pelo terror de todos os recrutas que nesse tempo passaram pelo R.I.5, o famoso Ten. Varela que nos dias em que estava de Oficial de Dia, durante a inspecção para a dispensa do recolher, entre dezenas que tinham nota nos testes, só saíam meia dúzia ou menos. Nos dias em que ele estava de Oficial de Dia, eu não pedia dispensa de recolher!

Adaptado à minha nova vida de Instruendo, os dias iam correndo, até que um dia fomos informados que os nomes afixados na secretaria da Companhia iriam prestar provas para o C.O.M. e Comandos. O meu estava lá!!!
Depois de algumas provas físicas, que um Capitão dos Comandos de óculos Ray-Ban e blusão de cabedal verde, do qual não me lembro o nome (Almeida Bruno?), nos ministrou, mandou-nos subir ao pórtico. Eu que não estava minimamente interessado em ir para os Comandos, nem para qualquer tipo de tropa especial, disse que não era capaz, porque tinha vertigens, mas obrigou- me a subir e eu fiquei sentado lá em cima, a dizer que não era capaz!
Mentira, porque era um dos meus exercícios favoritos. Mandou-me descer e chamou-me tudo o que lhe veio à cabeça, que me ia lixar, porque tinha cara de homem destemido e não queria ir para os Comandos.
Quando saíram as especialidades, o meu destino era o C.I.O.E., em Lamego e logo pensei no que o gajo disse e lixou-me mesmo.
Puro engano meu, porque apesar da dureza do Curso de Operações Especiais, hoje tenho o prazer e a honra de ter pertencido aos Rangers e uma vez Ranger, Ranger para sempre!
Depois de concluir o meu curso Ranger, fiquei em Penude, como instrutor do 1.º Grupo de Cadetes e hoje tenho o prazer de ter alguns no meu lote de amigos.

Soube que estava mobilizado para a Guiné quando tinha um caso de namorisco com uma natural de Lamego. Corria o boato que quem andasse com ela, e fosse mobilizado para a Guiné não sobreviveria, porque o 1.º namorado dela tinha morrido na Guiné e todos os outros teriam o mesmo destino. Aí, fiquei acagaçado, mas foram só os primeiros dias ou quando as coisas lá na Guiné não corriam pelo melhor, (não era dentro do arame) é que me lembrava do tal boato, mas nunca passou disso, porque regressei vivo para contar o que foi o tormento da nossa juventude em terras da Guiné, pela qual tenho uma paixão enorme.

Cumprimentos para toda a tabanca grande do
José Pedro Neves
Ex-Fur Mil Op Esp
CCaç 4745 Águias de Binta

(Título da responsabilidade do editor)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4101: O trauma da notícia da mobilização (6): Trata de arranjar o caixão, disse-me o pobre do Zé... (Manuel Maia)

domingo, 29 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4101: O trauma da notícia da mobilização (6): Trata de arranjar o caixão, disse-me o pobre do Zé... (Manuel Maia)

O Manuel Maia à entrada da entrada da enfermaria subterrânea de Bissum Naga.

Foto: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados

1. Texto de Manuel Maia (*), ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine:

Assunto - O 'trauma' da notícia da minha mobilização (**)

Estava eu em Terras de Viriato, mais propriamente no RI 14, na qualidade de cabo-miliciano, (posto inventado pelas Forças Armadas Portuguesas para que o país tivesse sargentos a trabalhar pelo preço de soldados...), tendo por função a instrução de recruta a homens que na sua quase totalidade iriam "bater com os costados" numa das três frentes de guerra em que Portugal estava envolvido desde 61, quando recebi a notícia, esperada, da mobilização.

A "ordem de serviço" foi de 22.02.72 e no seu artigo V, da pag. 265, sob o título NOMEAÇÃO DE PESSOAL PARA O ULTRAMAR, reproduzia a imposição de qualquer olissiponense figura, em enviar este vosso amigo, primeiramente para a cálida planície alentejana - mais propriamente como inquilino temporário do antigo convento entretanto transformado em quartel designado por RI 16 - para aclimatação(?) aguardando voo para a nossa querida Guiné.

Acabaria por ser interessante a minha passagem por Évora, cidade de que aprendi a gostar, e tive a felicidade de conhecer o comandante da unidade mais castiço que se possa imaginar...

De nome J... A... Pinheiro, coronel, tinha a seu cargo a bandeira da defesa dos cabos-milicianos(ao que constava teria uma filha casada com um...) e algumas vezes fazia reuniões com todos os graduados do batalhão 4610, "obrigando" o seu ajudante de campo a ler as inúmeras exposições que fazia para o ministério da tutela,reclamando a extinção do posto e promoção automática a furriéis,logo que acabada a especialidade, dos formandos do curso de sargentos milicianos...

Era um homem bom que estaria, creio, já bastante perturbado, provavelmente pelos etílicos vapores e, porque não dizê-lo,reflectindo ainda a vivência de campanhas anteriores...

Naquele 22 de fevereiro fomos quatro os recrutados para África, o Moreira e o Martins para Angola, e este vosso amigo e o Navega para a Guiné.

Fomos muitos a tomar estes destinos bem como Moçambique, nos outros dias em que
nas secretarias das companhias, nos eram entregues as cópias das "ordens de serviço".

Ao meu grande amigo José Galeão, meu colega do Instituto Comercial do Porto calharia em sortes aquilo que sempre aspirara,Angola... Tinha lá familiares que depois lhe arranjariam colocação em zona de paz...

Quando me saiu Guiné na rifa,disse-me: "Trata de arranjar o caixão"... Coitado do Zé acabaria por morrer sob um montão de toros de árvore num estúpdo acidente...

No dia seguinte seria o Barbosa que foi para o Biambe e o meu homónimo de Coimbra que rumou para Encheia (as outras duas companhias operacionais do nosso batalhão de Bissorã).

Foi a sorte de cada um, pois o Maia de Coimbra acabaria por levar um tiro de ricochete que lhe anulou a visão de um dos olhos e criou problemas de mobilidade...

Penso nisto muitas vezes... E se não tivesse ido para a Guiné, como seria?

Necessariamente diferenta mas poderia ter sido bem pior,muito mais traumatizante...

Assim, a sorte, destino, acaso, eu sei lá que mais, proporcionou-me o prazer que hoje tenho de estar aqui a conversar com a malta da Guiné, coisa que não acontece com o "pessoal de Moçambique ou Angola" ...

As visitas ao novo país, já efectuadas por muitos camaradas, evidenciam uma diferença pela positiva no trato daquelas gentes e no seu relacionamento connosco.

Enquanto não for viável a concretização do sonho de lá regressar,um dia, vou podendo trocar impressões com os tabanqueiros graças ao Luís, ao Vinhal e ao Briote que nos facultam este espaço extremamente saudável que de quando em vez sofre um ligeiro abalo para comentar as atoardas dos bandos de Almeidas Brunos (...).

Tenho muito orgulho de ter sido um guinéu, combatente entre tantos. Se não fossem as sortes, não teria a sorte de ver o fabuloso Cumbidjã, o imenso Geba, e sobretudo a afabilidade daquelas gentes com quem lidámos.

Hoje estou agradecido ao destino por me facultar conhecer a Guiné. Apesar de ser considerada a pior das três frentes, não posso dizer que tenha ficado traumatizado...

Obviamente não gostei, teria preferido rumar a S. Tomé ou Timor, mas...

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

Vd. último poste da série > 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4095: O trauma da notícia da mobilização (5): Quatro depoimentos (Magalhães Ribeiro)

Guiné 63/74 - P4095: O trauma da notícia da mobilização (5): Depoimentos (Magalhães Ribeiro/Hélder Sousa/David Guimarães/Juvenal Amado/César Dias)

1. Mensagem de E. Magalhães Ribeiro, com data de 28 de Março de 2009:

Guiné 63/74 - P4072: O trauma da notícia da mobilização (1): A minha mobilização para a Guiné acagaçou-me (Magalhães Ribeiro)

Amigos Luís, Vinhal e Briote,

Recebi 4 e-mails do Hélder Valério Sousa, David Guimarães, Juvenal Amado e César Dias, em resposta à provocação que lancei ao pessoal sobre o tema do recente post em epígrafe, e que anexo abaixo.

Pelo interesse das achegas e esclarecimentos, e com a permissão dos mesmos, creio que poderia constituir para a publicação de mais um post, ou dois, complementar sobre esta matéria.

À vossa consideração.
Um abraço sempre Amigo do M.R.


1 – E-mail de Hélder Valério Sousa, em 20 de Março de 2009

Amigo MR

Pois é claro que muita coisa se passou e muitas vezes a realidade ultrapassa a ficção.

Olha, há um livro cujo autor é conhecido, mas agora não recordo, que tem o título traduzido para português como "O valente soldado Schveik" (não sei se é assim que se escreve) e que até já foi adaptado a teatro salvo erro pelo Raúl Solnado.

Esse livro relata as aventuras e desventuras do tal Chveik (*), oriundo, também se a memória não me atraiçoa, da Boémia, região hoje da República Checa, antes Checoslováquia e na altura integrada (anexada) no "Grande Império Austro-Húngaro".

Com as várias guerras travadas e/ou também forçadas a travar por esse Império, havia necessidade de incorporar cada vez mais elementos das várias regiões "integradas", em muitos casos, na maioria, combatentes à força, a verdadeira "carne para canhão", devido ao modo como então se combatia.

Pois o livro alterna entre o dramático, o irónico e o hilariante com as diversas situações do nosso "valente soldado" quer para tentar escapar das situações mais difíceis, com artimanhas várias, quer na lábia que utilizava para dizer o que os interlocutores queriam ouvir, nem que fosse a maior parvoíce ou situação afastada da realidade.

Então as várias situações de simulação de doença ou ferimento, até as situações de automutilação estão lá retratadas e, acredites ou não, eu cheguei a ler na esplanada do Bento, para alguns amigos, essas partes mais próximas das realidades que conhecíamos da nossa estada (mais ou menos profunda) em zonas do "Vietnam", como diz o Luís, e a gargalhada era geral.

O fulano que dava um tiro no pé, quem não o conheceu? O fulano que "entalava" uma mão ou outra parte do corpo para dar baixa à enfermaria ou mesmo evacuação para Bissau, quem não se lembra de ninguém assim? E aquela receita infalível para apanhar "três cruzes" de hepatite garantida com baixa e internamento em Bissau e, quem sabe, evacuação para a Metrópole, obtida com uma semana, mais ou menos, com uma ou duas "bazoocas" e duas ou três bananas em jejum? Nunca experimentaste?

Deram-me essa receita em Piche, mas felizmente a minha determinação e talvez também o facto de estar mais a recato das situações mais extremas, fizeram com que não passasse de apenas um dia para ver como sabia.

Bem, por hoje chega, vou fazer óó pois amanhã vou cedo para Lisboa.

Um abraço
HSousa


Karlovy Vary > República Checa, 2007 > Carlos Vinhal e o Valente Soldado Chveik


2 – E-mail de David Guimarães, em 20 de Março de 2009:

Bem vou falar sobre esta situação muito calmamente dizer o que me aconteceu a mim e o que na altura vi e pronto... acho que é importante não o meu caso que não serei exemplo, não sei se será bom ou não abordar este assunto - NO ENTANTO - sou suspeito sobre a matéria e direi porquê ou não - pode não ser conveniente e ser mal interpretado... Não quero polemizar as situações e contarei então que se passou comigo. Se achar oportuno darei razão por INTEIRO e eu mesmo antes da "merda" da guerra poderia ter usado todas as oportunidades e não usei, recusei e não sou herói, mas fui honesto com a minha consciência...

Um dia - já tinha a inspecção feita, por recomendação fui a uma consulta de psiquiatria, a um médico daqui do Porto célebre na Praça - já morreu...

Evidentemente que quando eu frequentava o sétimo ano (1968) comecei a ter comportamentos esquisitos. Bem, lá o médico me receitou isto e aquilo e fez-me uma recomendação - vai fazer um electroencefalograma e segundo a interpretação que lhe vou dar livro-o da tropa... Como é evidente fiz tudo e tomei os comprimidos - uns ainda hoje tomo (Diazepam 10) - mas o electro que se lixe... Ele leu e disse e eu ouvi e decidi - achei que o médico é que era maluco - e que não era bem acabado, não, isso garanto... NÃO TIVE O SENTIDO DE OPORTUNIDADE

Rejeitei totalmente na altura eu ser o único da família que não tivesse frequentado a tropa e fui claro - 22 de Abril de 1970, isso mesmo - rumo a Caldas da Rainha para o CSM - passados dois dias fiz 23 anos. Digo isto rejeitar porque - já consta no blogue o meu pai, herói de França, combatente na Batalha de La Lys (Sargento de carreira) meu irmão herói em Angola como Furriel Miliciano (Cruz de guerra) e eu... ficava em casa a beber copos de leite - coisa que nunca gostei muito... não...

Recruta nas Caldas, Especialidade em Vendas Novas e depois? Eu até tinha escrito num papel - RAP2 Serra do Pilar - V. N. Gaia. Aí a certa altura chamaram-me à Bateria e disseram - toma lá, amanhã vais para Minas e Armadilhas em Tancos. Bem no papel constava o seguinte: Por ter sido Mobilizado no BART 2917, segue para Tancos a fim de frequentar o Curso de Minas e Armadilhas o Furriel Mil... etc., etc., etc... Olhei para o papel e disse: - Porra, mobilizado para onde? Entretanto vi um camarada de recruta que tinha a Especialidade de IOL e estava a prestar serviço na secretaria do Comando - eu era Atirador. Fulano (esquece-me o nome) - vai ver para onde vai este BART 2917. Daqui a pouco, com ar pesaroso, chega-se à minha beira e diz:

- Guimarães, vais para a Guiné! - Melhor disse eu, a ter que ir que vá para a zona mais perto de Portugal.

Lá segui eu: como era evidente levei noutros nomes que eu conhecia rascunhados num papel. Cheguei a Tancos - Casal do Pote e pronto... toca a tirar o curso... entretanto tinha avisado os meus camaradas que estavam colocados na Pesada, mas tinham ficado nas unidades a dar instrução para onde era o destino deles... Éramos 200 Cabos Milicianos, nada de brincadeiras... Quase no nosso fim de Curso de Minas, sai à ordem na EPE (Escola Pratica de Engenharia) as mobilizações... Eu estava descansado outros que eu tinha avisado também, mas a maioria porra!!! Vi gente a chorar, vi gente a rir, etc., etc... Até cheguei a pensar que em Angola e Moçambique tinha acabado a guerra, porque os que riam eram esses que para lá iam e quem chorava eram os que iam para a Guiné... Mantive-me impassível e ciente só de uma coisa - todos íamos para a guerra...

Friamente terei que dizer fui e vim, outros lerparam e outros ficaram mutilados - fim.

Durante a comissão, dois pelo menos da minha Companhia vieram com a FIAAC - firma dos independente altamente apanhados pelo clima - era o que usávamos para o Xitole. Sim soldados, e foram dois, que nunca deveriam ter ido para a tropa e que já padeciam da cabeça antes de serem inspeccionados - mais nada. O resto foi e veio, salvo um Furriel que morreu - meu querido camarada Quaresma (de Algés) e outro que está cego, querido camarada Leones - vive em Lisboa - já falado no blogue ou na tabanca grande.

Vim e mantive-me a "tomar" o mesmo Diazepam - Valium 10...

Deu-se revolução dos cravos, tudo estava feliz e veio para rua... tanta burrice se fez, mas até entendo, porquê. Era o pássaro que estava na gaiola confinado a muitos limites e depois saiu - só que não soube avaliar os limites, o que era natural...

Foi só aí que se começou a ouvir falar em stress de guerra e veio lá das Américas dos veteranos do Vietname... Um dia pensei: - Se isto chega aqui aí vai haver "bichas" de stressados... adivinhei e não sou bruxo. Mais movimentos mais associações mais políticos e politiqueiros e aí está o resultado - todos temos uma pancada merecedora de um subsídio e tudo isto por causa da guerra... falo à vontade porque já fui chamado a testemunhar para um ex-militar que queria um subsídio só porque agora parece que sofre nem sei de quê... da cabeça já sofria ele então e que foi evacuado foi com uma hepatite...

Que se lixem os psicólogos, os médicos e muito mais gente que anda por aí nessas merdas... Um dos inquéritos que perguntei de imediato se estavam no gozo comigo, constava a seguinte questão: casas de banho, banhos e duches; águas e canalizações, etc., etc., etc... Perguntei ao Capitão que estava com esse processo: - Sr. Capitão quem foi o ignorante que fez esse inquérito? Possivelmente, respondeu ele a sorrir, um Alferes contratado de 22 ou 23 anos - isto foi no ano passado...

Vamos ser sérios, embora entenda que haja doentes mesmo de stress... mas não somos todos...

Porque assim não há direito... isto é uma síntese para responder e concordar com o Magalhães Ribeiro - doentes sim, mas se o oportunismo é doença então - está tudo lixado em Portugal.

NB - ENTENDO QUE ESTES ASSUNTOS DEVAM SER TRATADOS POR TU E DE CABEÇA FRIA COM O CORAÇÃO AO LADO.

AO MAGALHÃES RIBEIRO, NOSSO AMIGO, FAÇO UMA IDEIA DA DIFICULDADE QUE HÁ EM FAZER DESCER A NOSSA BANDEIRA - ISSO SIM ME FARIA MAIS DOENTE PELA CERTA.

Um abraço e preste a quem prestar este depoimento... Mas vamos ser sérios que isso sim - é dignidade que deve assistir a um antigo combatente - atendamos aos doentes claro, mas que ninguém se faça do que não é.

NOTA: A ZONA DO XITOLE FOI BEM VIVA EM GUERRA NAS DATAS QUE REFIRO 1970 A 1972... PARA QUE NÃO PENSEM QUE ESTIVE EM COLÓNIA BALNEAR.

David Guimarães
Fur Mil 17345368
At Art e Minas
Xitole 1970/1972


3 – E-mail de Juvenal Amado, em 20 de Março de 2009:

Meu caro Magalhães

Já estava preocupar-me contigo pois já há alguns dias, não aparecia nada com a tua assinatura.

Se temes ter uma tara em relação a falar da Guiné, então também eu sofro do mesmo mal.

Chego a telefonar aos meus camaradas do 3872 só para sentir a sua presença.

Em relação ao teu comentário vou tentar ler o tal poste e depois comentar. Depois te digo alguma coisa.

Um abraço
Juvenal Amado


4 – E-mail de César Dias, dia 20 de Março de 2009:

Olá MR

Tens razão, o stress começava bem antes. Quando íamos "dar o nome" para a tropa como diziam lá na minha terra (Chancelaria -Torres Novas), já a coisa começava. Depois na recruta havia gente a fazer tudo para passar aos auxiliares, um camarada do meu pelotão em Tavira andou a comer unicamente marmelada até baixar ao Hospital, conseguiu, nunca mais soube dele. Comigo parece que tudo acontecia como programado, era tudo previsível, até que um dia meti na cabeça que por ter ficado bem classificado no curso de especialidade de sapador, me livrava de embarcar porque o curso seguinte estava a sair, mas não tive sorte, o Homem do monóculo pediu dois batalhões de reforço e lá foi o Dias ainda mais rápido que o normal.

Quando cheguei a Mansoa, distribuíram-me um quarto onde sobre a porta tinha esta frase: "COM A SORNA COOPERANDO ME FUI DA LEI DA MORTE LIBERTANDO", não era bem o meu lema, mas lá me safei, como sabes nem todos encaravam a Guerra da mesma maneira, daí haver uns mais apanhados que outros, ou a fazerem-se apanhados. E HOUVE QUEM TENHA CONSEGUIDO OS SEUS INTENTOS.

Mas estás bem acompanhado com o Luís Nabais, ele está a par do que temos para ajudar os nossos camaradas que foram apanhados nessa malha.

Um abraço, Pira
César Dias
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Notas de CV:

(*) O Valente Soldado Chveik é um romance de autoria de Jaroslav Hasek, nascido em 1883 e falecido em Lipnice em 1923. Combateu sob a bandeira austríaca pela qual não nutria grande simpatia. Feito prisioneiro pelos Russos, alistou-se posteriormente no exército Checo. Foi jornalista e escritor, sendo este romance a sua principal obra.

Quanto ao soldado Chveik é a caricatura de um militar que tudo faz para fugir ao triste destino de combater pela bandeira austríaca durante a Primeira Guerra Mundial.

Quando recentemente visitei a República Checa, pude aperceber-me do sentido patriótico bem vincado naquele povo, que na sua história, conheceu a opressão do Império Austro-Húngaro, da União Soviética e ainda como território integrado, contra sua vontade, na então Checoslováquia. Voltando há poucos anos à condição de país livre e independente, como República Checa, exibe, a sua gente, um orgulho patriótico e uma cultura invejável. Um senão, a condição económica não ser muito favorável.

Guiné 63/74 - P4085: O trauma da notícia da mobilização (4): Ir em rendição individual e, para mais, 'substituir um morto'... (Henrique Matos)