sábado, 25 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22845: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XV: Dezembro de 1966: a Op Harpa em que é ferido com gravidade o Quebá Soncó, que depois irá para o hospital de reabilitação de Hamburgo, na Alemanha


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadicna) > CCAÇ 1439 (1965/67) > Missirá > O alf mil João Crisóstomo e o régulo do Cuor, Malan Soncó, alferes de 2ª linha.

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)
(a viver em Nova Iorque desde 1977, 
depois de ter passado por Inglaterra e Brasil)



1. Continuação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)

Parte XV: Memórias do Quebá Soncó



Dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 1966

Realizou-se a Op FIFA no Chão Balanta que consistiu em emboscadas e batidas na região de Colicunda, Durante as emboscadas não houve contacto com o IN.

Foram capturados três elementos , sendo dois de menor idade e entregues ao posto Administrativo e o terceiro entregue ao BCAç 1888.


Dia 7 de Dezembro de 1966

Eu fiz parte desta operação, mas não me recordo de pormernores, excepto do momento em que Quebá Soncó foi ferido. Por isso transcrevo o que consta do relatório até esse momento, e falarei/lembrarei depois Quebá Soncó.

(...) A CCaç 1439 realizou a Op Harpa na região a N de Cherel, a fim de explorar uma informação dum prisioneiro que disse conhecer a casa de mato de Cubadjal.

O prisioneiro que serviu de guia não colaborou devidamente com a tropa, tendo conduzido por um itinerário muito vigiadoo pelo IN. Desta forma as NT foram detectadas a cerca de 1.000 metros do acampamento por uma a sentinela dupla que se encontrava colocada sobre uma árvore absolutamente camuflada. À aproximaçnao das NT a sentinela disparou várias rajadas de P. M. alertando desta forma todo o acampamento. Quando as NT, numa tentativa de aproximação rápida do referido acampamento o mesmo encontrava-se abandonado. Feita uma batida, foi encontrada uma tabanca a qual tinha sido da mesma forma abandonada." (...) 

"Resultados obtidos: Destruiram-se 13 casas de mato no acampamento IN e 10 casas na tabanca satélite.

Foi destruida grande quantidade de arroz e capturados 4 pentes de munições cal 7.9.

Baixas estimadas em número não estimado."


E o relatório diz então que, "quando a sentinela disparava sober as NT ( portanto no início da aproximação) foi atingido numa perna o caçador auxiliar contratado Quebá Soncó, evacuado para o HMP". 

E o relatório prossegue:

(...) "Mais uma vez foi distinguido o 1º cabo nº 5939264, Dionísio Lopes Ferreira, tendo demostrado a sua competência e sangue frio,  não abandonado o ferido mesmo debaixo de fogo IN,  prestando uma assistência permanente e cuidadosa." (...)

Lembro bem esses momentos e a dedicação e sangue frio do cabo enfermeiro, como vem descrito.

O que discordo é do momento e situação em que isso aconteceu. Se isto tivesse sucedido durante a aproximação, não teria havido mais esse assalto ao campo inimigo, deixando o enfermeiro a cuidar de Quebá Soncó.

Estas “rajadas de metralhadora” e o ferimento de Quebá Soncó foram depois do assalto quando já regressávamos e de repente começou um forte tiroteio, que era a uma distância razoável e que durou algum tempo. 

 Lembro-me que estava a disparar a minha G3 como um louco para onde me parecia vir o fogo IN, quando o o Quebá Soncó, que estava mesmo ao meu lado esquerdo,   foi ferido. E lembro que o fogo, embora de longe, ainda continuou por algum tempo, e de ver o enfermeiro Dionísio, ainda o tiroteio não tinha acabado, a ajudar o Quebá Soncó e logo a pedir que chamassem um helicópetro para o evacuar para Bissau.

Não sei se Quebá Soncó era considerado “caçador auxiliar contratado”. Ele era o filho do régulo de Missirá, Malan Soncó, a quem na devida altura iria suceder como régulo de Missirá. O que sei é que ele estava sempre connosco,  sempre com um grande sorriso contagiante e sempre voluntário inspirando com o seu exemplo o resto do pessoal da tabanca. 

Depois do meu regresso a Portugal,    escrevemo-nos por algum tempo. A sua volta à Guiné, em outubro de 1967.   simultânea com a minha ida para a Inglaterra,  ocasionou a perda de contactos. Mas lembro-o sempre assim, amigo e brincalhão também. E assim continuou, mesmo depois de ter sofrido a amputação duma das pernas. 

Uma das cartas que seguem, foi escrita já depois de ter regressado à Guiné  (, datada de Bambadinca, 18 de outubro de 1967). A outra carta que junto também, escrita quando ele estava na Alemanha Ocidental (, Hamburgo, 6 de agosto de4 1967), é uma boa amostra da sua jovialidade. Nunca mais o esquecerei. Já falei de Quebá Soncó numa outra ocasião (Vd. poste P21797)  (**)

Acabada a Guiné, quando voltei, logo que fui a Lisboa  fui visitá-lo ao Hospital Militar Principal.  Ficou contente de me ver e mostrou vontade de conhecer Lisboa antes de partir para a Alemanha onde ia para lhe porem uma perna artificial. E, mesmo na condição em que ele estava, de muletas  – ele insistia que não era problema e se podia movimentar – eu peguei nele e de taxi andei com ele  dum lado para outro  e mostrei-lhe Lisboa tanto quanto pude fazer.  Ele não o esqueceu e  depois de voltar à Guiné escreveu-me uma carta lembrando isso, carta essa que faz parte  do mencionado Poste de 23 /01/21 (**).


Dia 17 de Dezembro de 1966

No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta. Noto que esta operação é quase uma repeticão de uma que teve lugar em 10 de Junho, operação GOLO 1. A região era realmente muito perigosa, como tristemente e à custa de muitas mortes nas NT,  se viria a  confirmar depois da CCaç  1439 ter voltado, acabado o seu tempo de comissão na Guiné. E por isso a  frequente presença da CCaç 1439 nesta região, durante a nossa “comissão”.

Para que conste  transcrevo o relatório:

(...) "No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta, que  consistiu em montagem de emboscadas a N de Chubi e Sée seguida de batida às tabancas de Bissá, Funcor, Blassé, Sée e Chubi.

Durante esta operação não foram detectados quaisquer elementos supeitos. Verificou-se que a população  manifesta desejos de melhor colaborar com a tropa, dando a impressão de fadiga de descontentamento perante as atitudes do IN que visita aa tabancas, exigiundo tudo inclusive bufalos. As NT através de palestras e pequenos serviços de enfermagem continuous a exercer influência psicológica no seio da população.

 Dia 23 de Dezembro de 1966 : Ataque a Missirá (vd. próximo poste, Parte XIX)

 



Carta do (António Eduardo) Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo,  Datada de Hamburgo, 6 de agosto de 1967. Reprodução de alguns excertos:

(...) "Sr. Crisóstomo, recebi a sua carta, há já algusn dias, mas foi-me impossível respodner-lhe mais cedo, do que peço muita desculpa. (...) Fui operado à bexiga, pois apareceram-me uns micróbios nela: não é nada de grave, pois há me levanto e não dói quase nada..

"Logo que cheguei à Alemanha, dali por poucos dias, deram logo a perna [prótese] e agora ando a treinar a andar. Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês. Ainda me custa um bocadinho mas, depois de estar mais habituado,já não me vai custar tanto. No princípio custava-me muito mais porque a perna [prótese] estava um pouco grande, mas depois tiraram-lhe 2 centímetros e agora isto vai bem".

E depois acrescenta: "Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês."

Sabemos que partiu para a Alemanha a 23/6/1967, pela carta que escreveu nessa data ao João Crisóstomo, a despedir-se dele e a agradecer-lhe a sua amizade (**).   Deve ter regressado a Lisboa em setembro de 1967. Esteve no Depósito Geral de Adidos à espera de transporte para Bissau aonde chegou a 3 de outubro de 1967, conforme aerograma datado de Bambadinca, 18 desse mês e ano.

Sobre o hospital disse ainda o seguinte:

(...) "Isto aqui é muito bonito e muito bom. Eu logo que possa sair para a rua, ponho-me logo a mexer pois as meninas aqui são muito boas e andam quase todas de mini-saia (...)

"A assistência médica aqui é tão boa como em Portugal ou ainda melhor, estamos todos muito satiosfeitos (...).

"Sr. Crisóstomo, como o Sr vai para Inglaterra e não pode ir ver-me ao hospital em Lisboa, eu fico muito triste, palavra de honra. Aproveito para lhe desejar boa viagem e muitas felicidades na Inglaterra" (...)

 



Aerograma do Quebá Soncó, para o João Crisóromo, datada de 18 de outubro de 1967, quando o destinatário já estava em Inglaterra. Num português quase impecável, o remetente dá conta do seu regresso a Bissau, depois de ter estado internado no Hospital de Reabilitação de Hamburgo, Alemanha  (então Ocidental) e pede desculpa de não ter podido responder mais cedo ao João Crisóstomo:

 " (...) estive muito tempo no Depósito Geral de Adidos  [em Lisboa] e só cheguei a Bissau em 3 do corrente ".

E acrescenta: 

"Já estive com a minha família que ficou não só muito satisfeita por me ver como também ficou muito agradecida ao amigo João Francisco  [Crisóstomo ] pelas atenções que teve comigo quando da minha estadia na Metrópole. Eu também nunca esquecerei a sua amizade e toda a vida hei de recordar os belos passeios que me proporcionou"


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Guiné 61/74 – P22844: Agenda cultural (794): General Manuel Monge na apresentação do meu último livro (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem: 

E eis que a Pátria (do antigamente) ainda reconhece os seus já velhos combatentes 

Na apresentação do meu último livro com o General Manuel Monge 


Decorreu no último dia 11 de dezembro de 2021, sábado, no Cine Teatro Municipal Maria Lamas, em Vila Nova de São Bento, sendo que o evento resvalou, necessariamente, para um mar de saudades, de recordações literalmente eternas, ou não fosse a obra “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”, um “local” privilegiado para sentirmos, na sua essência, quem fomos, o que somos e de onde viemos.   

No anfiteatro juntaram-se muitos conterrâneos, sendo que o tema da conversa foi de elevada elegância. Abordaram-se temas, aliás, narrativas que o livro contém, falou-se em determinados pormenores da nossa terra e abordou-se a temática da guerra colonial. Aliás, já aqui tinha deixado exposto um texto sobre os mortos que minha querida Aldeia Nova de São Bento contabilizou nas três frentes de guerra -Angola, Moçambique e Guiné. 

O General Manuel Monge, natural de Aldeia Nova de São Bento, é uma pessoa que há muito estimo, e lá esteve na plateia acompanhado pela sua esposa, sendo que no final lhe autografei um exemplar, onde ele, por razões óbvias, merece toda a nossa consideração, tendo em linha de conta a sua condição militar na guerra colonial (duas comissões na Guiné), bem como a sua interferência na concretização do 25 de Abril, Revolução dos Cravos, de 1974.  

IV 

Gentes que deixam memórias   

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General Manuel Monge 

 

Detenho-me defronte a uma colossal personalidade militar, coloco-me na inflexível posição de sentido, faço-lhe a devida continência, peço, virtualmente, autorização para entrar, cuja sua autorização me terá sido permitida, e ouso viajar pela carreira de um homem que após ter passado pela Academia Militar, logrou atingir a especialidade de cavalaria e chegar a general. 

Manuel Soares Monge nasceu a 18 de Fevereiro de 1938 em Aldeia Nova de São Bento, e muito cedo se interessou por uma carreira militar. Razão esta que o levou até Lisboa, onde ingressou na Academia Militar e daí saindo como oficial de carreira.  

Na guerra colonial conheceu duas frentes de batalha onde os conflitos eram, de facto, terríveis: Angola e Guiné. Deste período horrendo e em que o clamor das armas não dava tréguas ao mais incauto militar, Manuel Monge regista no seu currículo duas comissões militares em Angola e outras duas na Guiné. 

Em 1968, o nomeado comandante-chefe da Guiné, António de Spínola, escolheu um lote de oficiais, sendo que o propósito passava por arranjar uma nova estratégica para a província, a qual estava à beira de uma derrota militar, presumia-se. Manuel Monge foi um dos eleitos e o então capitão foi colocado no sul, numa região assumida como um autêntico inferno. Assim, perante a missão que lhe fora atribuída, viajou para Gadamael, onde se bateu como um bravo, merecendo ovações de Spínola. 

A 16 de Março de 1974, participou numa tentativa falhada de revolução, sendo a coluna, que vinha das Caldas da Rainha e por ele comandada, fora intercetada no caminho e o propósito previamente engendrado resvalou para o insucesso. 

A 25 de Abril de 1974, um mês e pouco passado, deu-se a Revolução dos Cravos e Manuel Monge foi membro do Movimento dos Capitães e da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas.  

Nesse tempo, Manuel Monge já tinha a patente de major, sendo assessor de António Spínola e de Mário Soares na Presidência da República. Entre 1980 e 1982 esteve no comando do Esquadrão de Reconhecimento no Quartel de Cavalaria de Santa Margarida. Foi, também, responsável pelo pelouro das relações com Macau, quando desempenhou as funções de secretário-adjunto do Governo.  

General Manuel Monge, como governador civil, quando fiz o lançamento de um dos meus livros na Biblioteca Municipal José Saramago, em Beja  

Em Setembro de 1996 foi secretário-adjunto para a segurança e promovido a brigadeiro. Hoje, Manuel Monge, está aposentado como general, tendo passado por Beja como governador civil. 

No campo das homenagens, Manuel Monge recebeu com os graus a grã-oficial da Ordem Militar de Avis, a 6 de Janeiro de 1992, sabendo-se que esta ascendeu a grã-cruz a 20 de Setembro de 2001, assim como a de grã-oficial na Ordem Militar de Cristo.  

O general Manuel Monge, nosso ilustre conterrâneo, reside na sua terra natal, Aldeia Nova de São Bento, sendo uma pessoa muito respeitada pelo povo.   

Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

5 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 – P22783: Agenda cultural (793): Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes, 10º livro do José Saúde: sessão de lançamento, 11/12/2021, 15h00, Vila Nova de São Bento. Apresentação do prof David Monge da Silva.

Guiné 61/74 - P22843: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XVIII: João Paulo da Veiga Pestana, alf inf (Funchal, 25/12/1895 - França, CEP, 9/4/1918


João Paulo da Veiga Pestana, alf inf (1895 - 1918)


Nome:  João Paulo da Veiga Pestana
Posto:  Alferes de Infantaria
Naturalidade:  Funchal
Data de nascimento: 25 de Dezembro de 1895
Incorporação: 1916 na Escola de Guerra (nº 530 do Corpo de Alunos)
Unidade:  4ª Bateria de Morteiros Médios
Condecorações

TO da morte em combate: França (CEP)
Data de Embarque: 9 de Setembro de 1917
Data da morte: 9 de Abril de 1918
Sepultura: França, Cemitério de Richebourg l`Avoué
Circunstâncias da morte: Faleceu na batalha de 9 de Abril ferido gravemente pelos fogos inimigos tendo o seu corpo sido encontrado em Laventie.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).


Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22842: Os nossos seres, saberes e lazeres (484): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (30): Lisboa no tempo de D. Manuel I, a cidade que ambicionava o mundo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Fui ao Museu da Cidade com o intuito de continuar a viagem, visitando o precioso acervo do 1.º andar, nada feito, está em obras de conservação. Mas não bati propriamente com o nariz na porta, estava já patente a exposição dedicada ao reinado de D. Manuel, a exposição é evocativa dos 500 anos da sua morte, mostra singela de alguns dos dados fundamentais deste reinado, o monarca faleceu quando o seu poder estava no auge. Conforme escreve na folha de sala o historiador José Manuel Garcia, "As riquezas de além-mar e da Europa continuavam a afluir a Lisboa, que enriquecia, bem como o resto do país; as armadas portuguesas saíam para todas as partes do mundo; as povoações do reino tinham forais novos passados entre 1500 e 1520; muitas delas tinham pilhas de pesos aferidos pelo de Lisboa, os quais foram mandados fazer em 1499; Portugal possuía ampla legislação impressa".
Edificante exposição que permite ver Lisboa no reinado do Venturoso através de iluminuras, gravuras, pergaminhos, réplicas, esculturas soltas, uma seleção harmoniosa que vai até ao falecimento do monarca no Paço da Ribeira em 13 de dezembro de 1521. A documentação oferecida na exposição é do maior interesse.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (30):
Lisboa no tempo de D. Manuel I, a cidade que ambicionava o mundo


Mário Beja Santos

De volta ao Museu da Cidade, fica-se um tanto descorçoado com a notícia de que há obras no primeiro piso, mas na receção anuncia-se surpresa, já está patente a exposição “Lisboa no tempo de D. Manuel”, na Sala dos Fundos deste Palácio Pimenta de quem já se contou um pouco da sua história, das famílias aristocratas e plebeias que aqui viveram, como se instalou em 1979 um vastíssimo espólio que vai da Pré-História, passando por Romanos, Visigodos, Muçulmanos, Medievos, Quinhentistas e Maneiristas, podendo desfrutar nesse primeiro piso a Lisboa Barroca, Pombalina, Oitocentista, com o Romantismo e a Regeneração à mistura, a alvorada republicana, não faltando aqui e acolá mostras de Arte Contemporânea de grande interesse.
Aproveita-se para recapitular e mostrar faianças policromadas de Jorge Barradas, duas figuras femininas, obras de 1959, saídas da Fábrica Viúva Lamego


O Museu da Cidade é multidisciplinar, o que na prática significa que aqui encontramos pintura, desenho, gravura, azulejos, escultura, cerâmica e algo mais. A coleção de azulejaria é riquíssima, espraia-se pelos diferentes pisos, temo-la logo na receção, no pátio que abre para o belíssimo jardim onde se procura respeitar inteiramente a sua traça primitiva. Deixam-se quatro imagens desta portentosa azulejaria que só por si vale uma visita.
O pintor Manuel Amado viveu aqui na sua juventude, antes do palácio mudar de proprietário. Deixará uma vasta obra dedicada às reminiscências da sua infância, mostrar-se-á atento à sua cidade como se pode ver neste óleo dedicado à Praça do Município.
É na Sala dos Fundos que está patente a evocação dos 500 anos da morte de D. Manuel I. Aqui se mostra a importância de Lisboa, fala-se das suas reformas, na sua autoproclamação imperial “Por Graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, D'aquém e D'além Mar em África, Senhor de Guiné, da Conquista, da Navegação e Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. A sua divisa era a esfera armilar, que tinha o duplo sentido de espera e esfera, já com uma direção apontada para o domínio universal. Legou a Lisboa o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, renovou a cidade, no seu reinado assistiu-se a uma política de intervenção em todas as partes do mundo conhecido. Mandou construir um novo palácio, ficará conhecido como Paço da Ribeira, será aqui que o monarca procurará controlar o afluxo de mercadorias e a construção naval na vizinha Ribeira das Naus, era um rei que ia assiduamente à Casa da Índia e Guiné ver a chegada das riquezas. Lê-se na exposição que o complexo arquitetónico manuelino ocupava uma área correspondente aproximadamente aos atuais Paços do Concelho e edifícios anexos localizados entre a Praça do Município, a Rua do Arsenal, a Rua do Comércio e a Rua do Ouro.
Réplica da estátua de D. Manuel I no Portal Ocidental da Igreja do Mosteiro dos Jerónimos. Este portal terá sido desenhado por João de Castilho, mas o trabalho escultórico ficou a cargo de outro artista notável do tempo manuelino: Nicolau Chanterene, que foi um dos responsáveis pela introdução de formas renascentistas na arte do tempo de D. Manuel. Este foi o primeiro portal de um mosteiro português a receber estátuas que representam os doadores.
Nau Brasão da Cidade de Lisboa, 1502, iluminura inserida no vulgarmente conhecido Livro carmesim
De entre as reformas operadas no reinado de D. Manuel I consta a revisão administrativa que levou a uma alteração profunda dos forais, atualizando-os no que dizia respeito à Justiça, às obrigações da população para com o rei, à tributação fiscal e a outros aspetos económicos, sociais e administrativos. Surgiu legislação moderna de pesos e medidas, como se mostra na exposição.
Lisboa e a região entre Santos e Cascais, gravura de 1572 e do lado direito uma gravura do Mosteiro dos Jerónimos
Pedra de Armas de Lisboa, séculos XV-XVI, proveniente de um prédio da Rua do Bem Formoso, a peça exibe as armas municipais de Lisboa: uma embarcação colocada em mar-alto, cujas velas são enfunadas pelo vento. É um tipo de representação em que surgem por vezes dois corvos à proa e à popa.
Mostra de um capitel manuelino
Azulejo com a esfera armilar (réplica de azulejo existente no Palácio Nacional de Sintra), proveniente da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha
O conjunto de objetos que podem servir de súmula do reinado do Venturoso, vice-reis da Índia, vários tipos de naus e outras embarcações, o enriquecimento dos edifícios com a recuperação azulejar.

A exposição detém-se, como é óbvio, nas duas obras emblemáticas, os Jerónimos e a Torre de Belém. Em 1496, com D. Manuel decidiu erguer os Jerónimos, ainda não podia imaginar que ganharia uma tão grande magnificência devido aos resultados da exploração do Caminho Marítimo para a Índia. A Torre de Belém, obra aparatosa e bem ornamentada, marcava uma das entradas da capital, sendo um dos testemunhos mais simbólicos do tempo dos Descobrimentos. A UNESCO classificou em 1983 o mosteiro e a torre como Património da Humanidade.

Torre de Belém, por John Thomas Serres, 1811, Museu da Cidade

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 18 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22818: Os nossos seres, saberes e lazeres (482): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (22): As surpresas que o Museu de Lisboa nos reserva (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22835: Os nossos seres, saberes e lazeres (483): Guerra e Desporto, mais um artigo de Alexandre Silveira publicado no Jornal Fayal Spor Club, enviado a partir da Mata dos Madeiros (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22841: O meu sapatinho de Natal (20): Cantando as janeiras: "Muita saúde nos traga / O ano que aí vem,/ E oxalá que também / Se vá de vez esta praga. / (Luís Graça, Alfragide, Lourinhã, Madalena, Candoz e Funchal...)

 
Madalena, V. N. Gaia > 23 de dezembro de 2021 > As rabanadas da tia Nitas...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Há um stress de Natal. No Norte, diz-se "freima". Há dias estava sentado a tomar um café a observar o "formigueiro humano" a entrar e  a sair de um dos "templos" da "nova religião" que é o consumismo... Tudo em passo apressado, como se participassem numa corrida em contra-relógio. Bolas, o Natal era só no dia 24/25 de dezembro, e a gente ainda estava na manhã de 19... 

É verdade que eu próprio ainda fui à FNAC com a minha lista de livros para fazer as últimas compras... Já estavam escolhidos, ao menos... Era só pegar, pagar e andar, embora de canadianas... Pela primeira vez na vida, senti-me discriminado pela positiva... Encaminharam-me logo (, um simpático e despachado funcionário com ar de gerente da loja)  para o guichê dos pagamentos, passando um bicha que dava duas voltas... Não dá grande jeito andar de canadianas nos centros comerciais na quadra natalícia, com cesto de livros, e muito menos é aconselhável.

Já fiz o meu Natalito, em 19 passado, em Alfragide, com o número máximo, recomendável, de pessoas à mesa para o tamanho da sala e da mesa: oito com a netinha, que tem dois anos e um mês... E tudo autotestado... Das cinco da tarde até às nove da noite de domingo, que o dia seguinte era de trabalho...

O Natal em stress é na cidade grande... Não havia nada disso na vilória onde eu nasci há mais de 7 décadas. Ainda o Pai Natal  não existia, pelo menos o Pai Natal da Televisão e dos centros comerciais. Não havia televisão, nem eletricidade nem centros comerciais. Muito menos corrida às compras, com medo que o mundo acabasse, o bacalhau desaparecesse, e as estantes do hipermercado ficassem vazias...

Mas nem por isso o Natal deixava de ter magia. Punha-se o sapatinho, limpo, engraxado,  na chaminé, para no dia seguinte, de manhã cedo, ir recolher a(s) prenda(s) do Menino Jesus... Que era tão pobre como nós, diziam  as nossas mães, mas a verdade é que ele já tinha uma fábrica de chocolates e de chupa-chupas, além de outra de fazer meias, o que fazia confusão aos putos naquele tempo. Como é que ele podia distribuir tantas guloseimas e outras prendinhas ?

Hoje andamos todos a correr, porque os membros das  famílias já se não se podem juntar todos na Consoada: os filhos vão para as sogras... Quem tiver o azar de só ter filhos machos passa o Natal sozinho em casa... E depois temos que viajar para nos reunirmo-nos com a família alargada: há 45 anos que eu passo o Natal no Norte... E o meu filho  vai para a Madeira (via Porto)... Foi hoje.  

São as circunstâncias da vida atual. Não vale a pena chorar no molhado nem fazer comparações. Felizmente, que já não levamos um saco com cem prendas, gastando a guita do 13º mês... Agora no Norte cada um dá só uma prenda: os nomes são tirados à sorte... O A dá ao B, o B dá ao Cê, e por aí fora...Quando entrámos na CCE, em 1986, deslumbrámo-nos e achámos que estávamos ricos... Pobre ilusão!...

O mais importante do Natal, para além do "rancho melhorado", é a partilha de afetos (, e claro também a agradável surpresa das prendinhas,  sobretudo para as crianças...). Para mim, é o estar à mesa e depois à volta da lareira ou do recuperador de calor, beber um copo, repescar memórias, contar histórias, tocar e cantar, sem esquecer as janeiras... 

Não é preciso sair de casa, cantam-se as janeiras, logo na noite da Consoada... É preciso é que haja uma quadra para cada conviva...Faço isso há anos, e gosto de manter a "tradição"...Há sempre uma pontinha de humor, de verve, de ironia, de picardia em cada quadra, e sobretudo muita ternura, amor e amizade. 

Costumo ser eu a encarregar-me das "escritas", que às vezes levam um tarde ou uma manhã inteiras, se não falhar a inspiração. Outros/as tratam dos comes & bebes e de toda a logística natalícia: o bacalhau "lascudo" ou "lascoso" (dois adjetivos que não vêm no dicionário...) "com todos" (e as insubstituíveis "pencas de Candoz", mais os "grelhos"), servindo os generosos restos para fazer a "roupa velha" do dia seguinte, 25... E claro um bom vinho... E há discussões de grande profundidade enológica e organolética sobre se o vinho deve ser um branco ou um tinto... Com o molho em azeite e alho que aqui fazem (, com muito alho!), é difícil (se não inpossível) ao palato mais exigente saborear um bom tinto. Há quem prefira um branco com mais corpo e alma...

Nas nossas idades, o Natal (e em especial este Natal de 2021) tem restrições, contratempos, alegrias, tristezas, dúvidas, perplexidades: nos casais, nem todos estão bem de saúde, há sempre um mais frágil do que o outro, com uma doença, em geral, crónica, de evolução prolongada, degenerativa ou não... Ou acamado.. Ou já instucionalziado (nos cuidados continuados, no lar de idosos...). Há quem já esteja viúvo. Ou separadado. Ou divorciado, vivendo só...  

Enfim, há quem esteja só. Há quem esteja longe, ou com os filhos longe, no estrangeiro...E depois é o segundo Natal que passamos na pandemia provocada pela SARS-CoV2. Vai fazer oficialmemnte dois anos em meados de março de 2022. Equivalente a uma comissão na Guiné. 

Foi duro para todos nós, os meses e meses de confinamento e de restrições, e pior ainda para quem apanhou a Covid-19... Houve amigos e camaradas nossos que morreram. A mortalidade vai já em cerca de 5,4 milhões em todo o mundo, e o nº de casos de infetados está acaminho dos 280 milhões (em Portugal, 18,4 mil  mortos e 1,25 milhões de casos;  no nosso caso, quase o dobro dos mortos na guerra colonial, 10 mil em 13 anos.)

Dito isto (e o preâmbulo já vai extenso demais, para esta noite tão especial), só posso desejar aqui o melhor Natal possível a todos os amigos e camaradas que pertencem à nossa Tabanca Grande e a todos os que nos leem. E que são muitos: este ano, e até ao dia de hoje,  já tivemos mais de 900 mil visualizações de páginas, e publicámos 1115 postes....

E quero deixar aqui, no sapatinho de Natal, a minha prendinha, um excerto dos versinhos das "janeiras"... Descontando as particularidades do meu contexto familiar, pode ser que o exemplo inspire alguém que queira também fazer ainda umas quadras para ler na Noite da Consoada, que costuma ser longa e cheia de emoções...

Como é sabuido, as quadras populares são constituídas por quatro estrofes (linhas), cada uma com versos de sete sílabas poéticas,  e uma esquema de rimas tipo ABAB ou ABBA: o 1º verso rima com o 3º e o 2º com o 4º (ABAB) ou então o 1º rima com o 4º e o 2º com o 3º (ABBA)...

Este ano os versinhos sairam todos com o esquema ABBA. O meu robô é quem manda... Segue uma amostra das cerca de meia centena de quadras que fiz este ano, para duas ocasiões (o Natalito de Alfragide, em 19; e a "Consoada dos Primos", Madalena, V. N. Gaia, ontem,  23; amanhã fazemos, além da tradicional "roupa velha",  o peru à moda da "chef" Alice, só pernas, assadas no forno, e bem regadas com o bagaço do alambique: os "primos" ficaram fãs, desde há muito, deste prato do Sul).

Chicorações, para todos/as. Luís (e Alice)


As janeiras de Alfragide e da Madalena


"Não ao stress de Natal,
Não ao passo apressado,
Se não, fico bem tramado
E não chego ao Funchal.”

“Vou ao Porto consoar,
Com o bacalhau e os mimos
De tantos tios e primos,
É o meu Natal a dobrar.”

 Vem reclamar a Clarinha,
Do bacalhau lascudo,
“O papá já comeu tudo,
‘Inda come mais um nadinha”.

A carne de vinha d’alhos
É a receita da Madeira,
Diz a nossa cozinheira:
“Tudo tem os seus trabalhos”.

Mais o famoso bolo preto,
Para honrar a tradição,
Faço das tripas coração,
Já não sei onde tanto meto.

Eu, por mim, é penca ou troncha,
Cada terra com seu uso,
“Mas, se não for muito abuso,
Eu cá preferia a poncha.”

É o Stephen que assim fala,
Tem costela d’ irlandês,
… “No resto, sou português,
E gosto bué desta chavala”!

No Brasil com pai e mãe,
Não tem que ser convidada,
E à mesa já esta sentada
À nossa Urchi, também.

Anda sempre numa fona,
A correr para as filmagens,
Mas queixa-se das sacanagens
E do tempo não é dona.

Muito sofre p’los seus canitos,
E um deles se chama Alfredo,
Se ela tarda, têm medo,
Ficam logo muito aflitos""

(...) “O meu avô, esse, coitado,
Já não pode com as muletas,
Por estar farto de tantas tretas,
Queria ser operado.”

(...) “Não gosto da brincadeira,
Não quero apanhar a peste,
Tenho que fazer o autoteste,
Antes de embarcar p’ra Madeira.”

“E o avô prometeu-me um conto,
Daqueles ‘Era uma vez…’,
Estou p’ra ver se no fim do mês,
Esse tal conto está pronto.”

 (...) “Parabéns, querida avó Chita,
Tenho muito que a aprender,
Contigo, a ver e a fazer,
Na cozinha és perita.”

“Obrigadinha p’las prendas,´
Os casaquinhos de lã,
‘Made in’ Lourinhã,
E outras coisas estupendas.”

Está na hora de ir dormir,
Já chega de lengalenga,
Diz a avó: “Se não, fico trenga,
Tenho mais p’ra onde ir.”

“P’ró Norte toca a marchar
Ajudar a mana Nitas,
Não é co’ as tuas escritas
Que ponho o peru a assar.”

Foi um Natal domingueiro,
Esteve cá a Joaninha,
Muito brincou co’a Clarinha,
E o jantar estava porreiro.

A Catarina ajudou
A fazer a nossa ponte,
C’o Funchal no horizonte,
A festa não acabou.

E imagino a netinha,
No fogo de fim de ano,
A pensar que era engano
O céu com tanta estrelinha.

(...) Muita saúde nos traga
O ano que aí vem,
E oxalá que também
Se vá de vez esta praga.

Foi o segundo Natal
Deste século com pandemia,
Não venha agora a anarquia
P’ra nos agravar o mal.

Cantadas estão as janeiras,
P’ra espantar os nossos males,
Seguem por montes e vales,
Acabam-se as brincadeiras…

(...) “Temos Natal a dobrar,
Com nossos filhos e noras,
Valem ouro estas horas”,
Diz a Nitas, a chorar.

Na Madalena há magia,
Na Consoada dos primos,
Mais que prendas, querem mimos,
E que acabe a pandemia.

(...) Estão bem cheias as baterias,
Que a vida é p’ra se viver,
Mesmo que tenha de ser
Com tristezas e alegrias.

“P’ra a semana se verá,
Quem mandam são as plaquetas,
Já estou farta de tantas tretas,
Mas ainda ando por cá.

“Três anos de tratamento,
Muitas horas no hospital,
Hoje esqueço, é Natal,
É o meu contentamento.

“E p’ró ano com novas pernas
Virá muito mais animado,
O Luís, nosso cunhado,
Com as suas rimas fraternas.”
 
Apontem na vossa agenda,
Que a vinte e cinco é rainha
A mãe da nossa Clarinha,
Com direito a uma prenda.

Faz aninhos no Funchal,
E a festa é a dobrar,
Parabéns lhe vamos dar,
No seu dia de Natal.

Já está longa a versalhada,
Boa noite, chicoração,
Amanhã há avião
E uma nova… Consoada!... (...)

Alfragide, 19, e Madalena, 23/12/2021

Guiné 61/74 - P22840: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIII: Atenas, Grécia, 2010







Grécia, Antenas, 2010

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 27 de setembro  último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já perto de 300 referências no blogue.


Atenas, Grécia, 2010


Na capital da pequena/grande Grécia, tentando desvendar esplendores do passado. Com o olhar, ouvir o testemunho de pedras com voz.

Em 2010, a Acrópole em obras, são vinte e cinco séculos de História levantada, esboroada no tempo. No Parténon, conto quarenta e seis colunas sustentando o azul do céu. Frisos depurados em queda, a memória de Fídias, o escultor, transformando o mármore em divindades perfeitas. As cariátades, damas como colunas segurando com a cabeça telhados de alabastro.

Aristóteles, Platão, Sócrates, a democracia, o governo pelo povo, excluindo parte do povo. Quase nada sei. Dos velhos deuses gregos sei que sei ainda menos. Infindáveis parentelas entre as divindades, exemplos de sinuosas e nem sempre edificantes vidas, mitologias de estranha exegese. Muitos destes deuses viajaram para Roma e mudaram de nome. Vénus é a Afrodite grega, que nasceu e cresceu nos arredores da velhíssima Atenas, contemplando o Olimpo. Amamentava o filho Eros, o Cupido romano, desenlaçava um cinto mágico, era esbelta e vingativa. O sinuoso enamoramento do mundo.

Passeio no coração da cidade moderna. Um Stadium, cópia do mesmo de outras eras, algumas igrejas ortodoxas, tudo de passagem. Nossa Senhora, grave e recatada, mais a solenidade faiscante de Jesus e os dourados de Deus, ao modo helénico.

Os guardas do Parlamento, na Praça Syntagma, usam indumentárias estranhas, gorros vermelhos, saias plissadas, meias altas de lã, pompons negros nos sapatos. Desconfio do zelo destes homens.

Bebo um cálice de ouzo, anisado grego para perfumar o sangue. Caminho ao acaso com sandálias de corda. Em Atenas, perto do mar, a sede dos dias, o descambar de utopias face à realidade, apenas o conforto de estar.

António Graça de Abreu
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Guiné 61/74 - P22839: O meu sapatinho de Natal (19): Em 1971 o MNF (Movimento Nacional Feminino) visitou algumas unidades no Ultramar e ofertou discos musicais pelas tropas (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, BráBachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Dezembro de 2021:

Mano Carlos, amigos e companheiros,
A nossa história, enquanto combatentes da Guerra do Ultramar, está recheada de peripécias e acontecimentos, um autêntico livro de memórias e recordações, que a neblina da memória não consegue apagar.
Em 1971 o MNF (Movimento Nacional Feminino) visitou algumas unidades no Ultramar e ofertou discos musicais pelas tropas. A minha companhia, na altura em Bissássema, foi uma delas. Porque eu já tinha rumado às tropas africanas não tenho essa relíquia como recordação.
Porque neste mundo há sempre alguém que guarda, após o meu pedido, vários elementos da CCaç 3327 e outros responderam à minha solicitação, fotos das ofertas recebidas. O Furriel Miliciano Enfermeiro da CCaç 3327, o Rui Esteves, foi muito mais longe do que eu esperava e presenteou-me com um bocadinho da história que ficou daquele Natal de 1971.
Que o vosso sapatinho familiar de Natal seja recheado com muita saúde. Haja Festas Felizes e Bons Anos.

Um abraço transatlântico do
José Câmara


Convosco o MNF e o Natal de 1971 (Clicar na hiperligação e levar o cursor para o princípio):
https://www.youtube.com/watch?v=QOp5IgM5r5M&t=1345s

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22837: O meu sapatinho de Natal (18): Boas festas 2022: Patrício Ribeiro (Grupo de Bijagós com as suas tradições, Bubaque); Hélder Valério de Sousa; Tibério Borges

Guiné 61/74 - P22838: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória (Conclusão)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Foi esta a surpreendente viagem de Paulo, despedida e reconciliação, muita emoção e comoção, como se esperava. Encontrou destruições do conflito político-militar, encontrou muita gente desavinda, visitou os lugares mas sentiu que lhe faltara tempo para cumprir à risca o programa que desenhara. É no regresso que escreve a Annette, em breve partirá para a sua companhia, vivem dez anos de felicidade e parece que chegou o momento de esta cronista pôr termo ao pedido que Paulo lhe fizera de fazer cruzar a ficção com a realidade, romance dentro de romance, ainda não estão bem reformados, dispersam-se por diferentes atividades, a vida corre-lhes de feição, nunca se poderá ponderar a importância que teve na vida deles a Rua do Eclipse e o romance que lhe deve o nome.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Lisboa, 2 de dezembro de 2010

Ma gentille Pénélope, cheguei ontem ao amanhecer, o avião saiu de Bissalanca perto das três da manhã, vi o despontar do dia muito antes da chegada a Lisboa. Não te escondo que venho profundamente emocionado, fisicamente exausto. Mas rapidamente me restabelecerei, certo e seguro. Quando em março tomei a decisão de me ir despedir das minhas gentes no Cuor, em Bambadinca, e em regulados limítrofes, tu mostraste profunda apreensão, o que vai fazer este homem com 65 anos, põe-se ao caminho sozinho com o exclusivo propósito de uma derradeira visita? Falei-te no meu estado de alma de que sentira que chegara a hora da reconciliação plena, tu conformaste-me neste meu sonho. Tive sérias ajudas, é bem verdade. Um amigo embaixador deu conta da minha viagem ao atual embaixador português, que me recebeu com muita afabilidade e que me mandou pôr em Bambadinca. Um antigo embaixador guineense contactou o irmão em Santa Helena, na margem esquerda do Geba, em frente a extensa bolanha de Finete, para me dar guarida. Fodé Dahaba arranjou um daqueles carros desconjuntados onde cabem todos e mais algum e durante alguns dias foi agradável andar com velhos camaradas naquela carripana ainda útil para lugares acessíveis. Mas eu desejava vivamente ir a pontos remotos, como Madina e Belel, Buruntoni e Ponta do Inglês, ir até ao fundo do Corubal, lá consegui recrutar um jovem motociclista natural da Guiné Conacri que me acompanhou até 28 de novembro, data em que regressei a Bissau, aqui queria encontrar alguns dirigentes do PAIGC para falarmos desinibidamente do passado. Cumpriu-se o programa, despedi-me da Avó Berta na Pensão Central passava da meia-noite de 30 de novembro.

Quando saí daqui de casa na companhia do Abudu, era um carregamento de perto de 40 quilos, houve peripécias no check-in, quando eu parecia resignado aos 24 quilos prescritos, o Abudu fez-me ver que havia muita expetativa na minha viagem, que tivesse coragem e alombasse com o resto do peso até ao interior do avião, como aconteceu, e ainda bem.

Aqui tens imagens estarrecedoras do que foi o conflito político-militar de 1998-1999, aqui estão as marcas da destruição, do Palácio Presidencial, do Centro de Medicina Tropical, do Mercado de Bandim, do Grande Hotel. Visitei os Soncó, a mulher de Abudu e os filhos e Tumblo, o único irmão de Abudu, não sei se te recordas de uma fotografia que lhe tirei em Missirá era ele um miúdo de 10, 11 anos, e muito me impressionava vê-lo na picada, quando íamos em coluna até Bambadinca, com a Mauser a tiracolo.

Matei saudades, percorri o cais do Pidjiquiti, vi muita destruição, desapareceram hotéis e restaurantes, estão agora transformados em escombros, pus-me à porta do antigo Comando da Defesa Marítima, recordei que ali tinha visitado Teixeira da Mota, fui até à Pensão Central, aí houve choraminguice quando me reencontrei com a Avó Berta, ela anda de andarilho, no dia seguinte à minha chegada ali almocei a minha canja de ostra na companhia do embaixador Ricoca Freire. Entreguei as encomendas, depois telefonei-te na agora chamada Praça dos Heróis Nacionais, tinha tomado no Café Império uma bica, que alegria em falar com a minha adorada mulher de Bissau para Bruxelas!

Não te vou contar pormenorizadamente todos os encontros que tive, na maior parte deles chorei desabridamente, deixei muita gente atónita, vi muita pobreza, não ignorava as tremendas condições em que vivem estes antigos camaradas, pediam-me constantemente ajuda, não poucas vezes me fui emocionalmente abaixo, eles então pediam desculpa e logo lhes respondia que era do cansaço, não tinha importância nenhuma, quem pedia desculpa era eu por ofertar insignificâncias. E houve o choque dos mortos ou dos ausentes: Mamadu Silá morrera na semana anterior à minha chegada, Serifo Candé, que eu estimava profundamente, quando lhe disse que o queria ir visitar a Bricama, logo me disseram que não valia a pena, falecera há anos. Jobo Baldé, o nosso padeiro de Missirá, vivia algures na região de Galomaro, não sabia onde, alguém lhe telefonara, não tinha dinheiro para a viagem e tinha vergonha que nosso alfero o visse velho e desdentado.

Inesquecível foi a viagem a Missirá e ao Gambiel, encontrarás uma fotografia com aproveitamento das chapas do meu tempo, usávamos folhas de Flandres, houve sábias reciclagens. Estive com a mãe de Abudu, adornou-se para a fotografia destinada ao filho, de repente apareceu-me Braima Mané, alguém que fora escorraçado pelo irmão que lhe queria ficar com a mulher, ele tinha então um braço tolhido, numa flagelação a Finete um estilhaço de granada de morteiro fendera-lhe os ligamentos. Consegui que fosse visto no Hospital de Bissau, perdera-lhe o rasto, saíra-me da memória de tão penosa situação. Ali em Missirá, avançou para mim e ergueu os braços como se fosse voar, quis surpreender-me com aquele braço ágil que eu conhecera inerte. Sabia perfeitamente que o meu irmão Bacari Soncó tinha falecido anos atrás, fui visitar o seu túmulo, voltei a desabar as emoções, vertiginosamente passaram-me as imagens de conversas, de patrulhamentos, de idas a Mato de Cão, das minhas estadias em Finete em que ele me falava da sua juventude com intensa alegria.

Não te escondo que o programa da minha viagem era excessivamente ambicioso: acabei por não visitar todo o Cuor, a picada entre Canturé a Gã Gémeos ainda estava cheia de água, gostava muito de ter ido a Gã Gémeos, usávamos este local como porto para o Sintex, aqui se deu um acidente que vitimou Cibo Indjai, alguém lhe desfechou um tiro por total imprevidência de uma arma que não estava em segurança, era o nosso exímio caçador e um excelente guia, e fora ele que na Operação Tigre Vadio, no final de março de 1970, levara a corta-mato um contingente de cerca de 300 homens depois da destruição de Belel; vi a correr os Nhabijões, é verdade que visitei o Xitole, o Enxalé, Madina e Belel, obrigatoriamente Mato de Cão, tirei imensas imagens, aqui vão algumas para mostra.

Dói o estado em que vi o país, ter encontrado tanta gente desavinda, enormes potencialidades ao abandono. Tinha partido ciente de ser confrontado com muita dor e muita miséria e muitas perdas. Como compreenderás, meu amor, não regresso confortado a não ser por se ter cumprido esta viagem em que sempre tenho contado contigo como escriba intransigente, rigorosa, exultante. Não ia à procura de alívio, mas testemunhar reconciliação, gravar algum dever de memória que me assiste às gerações futuras.

Há dez anos, Deus permitiu o nosso encontro e a nossa viagem em comum onde tão graciosamente coligiste este cadinho de lembranças de uma guerra que se vai apagando do sentimento geral dos portugueses, o tempo imperial não lhes diz nada e muito menos aquela gente africana que, por diferentes razões, nos acompanhou sacrificando a vida ou o seu futuro, destino trágico tiveram muitos dos meus soldados.

Deus permitiu que na velhice eu tenha voltado àqueles cheiros tropicais, a sentir o deslumbramento dos meandros do Geba ou do denso arvoredo da floresta de galeria, pasmado diante do poilão sagrado, sabendo que na Rua do Eclipse tu organizarás esta minha derradeira memória, chave de um passado digno de ser encarecido. Regresso dentro de dois dias para nossa casa, vou ainda aqui visitar os nossos netos, e estou também ansioso por visitar os nossos que aí vivem, uma doce alegria da nossa velhice, a estampa do nosso amor. Avec une tendresse très spéciale, Paulo.

FIM

O Palácio Presidencial como o encontrei em novembro de 2010
Era uma das mais úteis instituições de saúde de toda a Guiné, este Centro de Medicina Tropical, uma das pérolas da cooperação portuguesa, tinha sido seriamente afetado pelo conflito político-militar
A comida era muito boa, a dormida não tanto. Mas não merecia este final de vida, jamais se poderá entender porque se deixa destruir o que podia ser recuperado, vê-se à vista desarmada a qualidade dos materiais
O que fora o Mercado de Bandim: aqui a imagem, por si só, vale por mil palavras
Do mal o menos, é departamento da Marinha, e se por fora está deteriorado, é patente que não o deixaram cair em suave derrocada
Quantas vezes por aqui passei, por esta entrada para o quartel de Bambadinca, durante o dia era permitida a circulação de civis em direção ao mercado ou ao porto ou em sentido contrário, para o Bambadincazinho
Que dor, metíamos as botas neste enlameado, entrava-se na piroga conduzida por Mufali Iafai, ao fundo havia um estreito caminho que os hábeis condutores contornavam as terríveis ciladas do percurso, não poucas vezes se caía no charco e era um bico de obra pôr o guincho a tirá-lo da água fétida
Não me importarei que seja uma das últimas imagens da minha vida, depois de me despedir dos meus entes queridos, não conheço nada de parecido com este fim do dia em que escurece o coberto vegetal
Cancumba, foi uma das minhas alegrias, era povoação abandonada, quando aqui a visitei dispunha de um belo poço, graças à ajuda de uma ONG italiana, uma natureza cheia de vida onde outrora houve percursos de morte
O túmulo do meu irmão Bacari Soncó, valente e corajoso, meu fiel companheiro de armas
Missirá, vinte anos depois, o que gostei mesmo muito foi ver a reciclagem da folha de Flandres, mesmo que enferrujada
Quando vejo esta imagem só falta pôr-me em sentido, quantas vezes aqui vim para garantir, com os meus bravos soldados, que este rio pudesse ser navegável, que a pontos ermos chegassem víveres, armamento e tudo o que se carece para fazer a guerra
Chama-se Albino Amadu Baldé, tratava-o por Príncipe Samba, era o comandante efetivo das milícias de Missirá, tive a dita de o fixar nesta pose, é uma figura principesca e nada mais acrescento
É a foz do Corubal ou Cocoli, quando retive a imagem, sabe Deus porquê, só pensei no sofrimento que se viveu nesta região chamada Ponta do Inglês, destacamento de vida inglória, um local bafejado pela grande beleza, fazer como eu fiz o itinerário Xime – Ponta do Inglês com toda esta luminosidade vizinha certificou-me que a Guiné, digam o que disserem, tem alguns dos lugares mais vibrantes do mundo
É a despedida, os amigos do nosso alfero vestiram-se a preceito para o almoço, a guerra acabou, ficou esta cumplicidade, e o Branco de Missirá está-lhes eternamente grato
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória