sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22838: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória (Conclusão)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Foi esta a surpreendente viagem de Paulo, despedida e reconciliação, muita emoção e comoção, como se esperava. Encontrou destruições do conflito político-militar, encontrou muita gente desavinda, visitou os lugares mas sentiu que lhe faltara tempo para cumprir à risca o programa que desenhara. É no regresso que escreve a Annette, em breve partirá para a sua companhia, vivem dez anos de felicidade e parece que chegou o momento de esta cronista pôr termo ao pedido que Paulo lhe fizera de fazer cruzar a ficção com a realidade, romance dentro de romance, ainda não estão bem reformados, dispersam-se por diferentes atividades, a vida corre-lhes de feição, nunca se poderá ponderar a importância que teve na vida deles a Rua do Eclipse e o romance que lhe deve o nome.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Lisboa, 2 de dezembro de 2010

Ma gentille Pénélope, cheguei ontem ao amanhecer, o avião saiu de Bissalanca perto das três da manhã, vi o despontar do dia muito antes da chegada a Lisboa. Não te escondo que venho profundamente emocionado, fisicamente exausto. Mas rapidamente me restabelecerei, certo e seguro. Quando em março tomei a decisão de me ir despedir das minhas gentes no Cuor, em Bambadinca, e em regulados limítrofes, tu mostraste profunda apreensão, o que vai fazer este homem com 65 anos, põe-se ao caminho sozinho com o exclusivo propósito de uma derradeira visita? Falei-te no meu estado de alma de que sentira que chegara a hora da reconciliação plena, tu conformaste-me neste meu sonho. Tive sérias ajudas, é bem verdade. Um amigo embaixador deu conta da minha viagem ao atual embaixador português, que me recebeu com muita afabilidade e que me mandou pôr em Bambadinca. Um antigo embaixador guineense contactou o irmão em Santa Helena, na margem esquerda do Geba, em frente a extensa bolanha de Finete, para me dar guarida. Fodé Dahaba arranjou um daqueles carros desconjuntados onde cabem todos e mais algum e durante alguns dias foi agradável andar com velhos camaradas naquela carripana ainda útil para lugares acessíveis. Mas eu desejava vivamente ir a pontos remotos, como Madina e Belel, Buruntoni e Ponta do Inglês, ir até ao fundo do Corubal, lá consegui recrutar um jovem motociclista natural da Guiné Conacri que me acompanhou até 28 de novembro, data em que regressei a Bissau, aqui queria encontrar alguns dirigentes do PAIGC para falarmos desinibidamente do passado. Cumpriu-se o programa, despedi-me da Avó Berta na Pensão Central passava da meia-noite de 30 de novembro.

Quando saí daqui de casa na companhia do Abudu, era um carregamento de perto de 40 quilos, houve peripécias no check-in, quando eu parecia resignado aos 24 quilos prescritos, o Abudu fez-me ver que havia muita expetativa na minha viagem, que tivesse coragem e alombasse com o resto do peso até ao interior do avião, como aconteceu, e ainda bem.

Aqui tens imagens estarrecedoras do que foi o conflito político-militar de 1998-1999, aqui estão as marcas da destruição, do Palácio Presidencial, do Centro de Medicina Tropical, do Mercado de Bandim, do Grande Hotel. Visitei os Soncó, a mulher de Abudu e os filhos e Tumblo, o único irmão de Abudu, não sei se te recordas de uma fotografia que lhe tirei em Missirá era ele um miúdo de 10, 11 anos, e muito me impressionava vê-lo na picada, quando íamos em coluna até Bambadinca, com a Mauser a tiracolo.

Matei saudades, percorri o cais do Pidjiquiti, vi muita destruição, desapareceram hotéis e restaurantes, estão agora transformados em escombros, pus-me à porta do antigo Comando da Defesa Marítima, recordei que ali tinha visitado Teixeira da Mota, fui até à Pensão Central, aí houve choraminguice quando me reencontrei com a Avó Berta, ela anda de andarilho, no dia seguinte à minha chegada ali almocei a minha canja de ostra na companhia do embaixador Ricoca Freire. Entreguei as encomendas, depois telefonei-te na agora chamada Praça dos Heróis Nacionais, tinha tomado no Café Império uma bica, que alegria em falar com a minha adorada mulher de Bissau para Bruxelas!

Não te vou contar pormenorizadamente todos os encontros que tive, na maior parte deles chorei desabridamente, deixei muita gente atónita, vi muita pobreza, não ignorava as tremendas condições em que vivem estes antigos camaradas, pediam-me constantemente ajuda, não poucas vezes me fui emocionalmente abaixo, eles então pediam desculpa e logo lhes respondia que era do cansaço, não tinha importância nenhuma, quem pedia desculpa era eu por ofertar insignificâncias. E houve o choque dos mortos ou dos ausentes: Mamadu Silá morrera na semana anterior à minha chegada, Serifo Candé, que eu estimava profundamente, quando lhe disse que o queria ir visitar a Bricama, logo me disseram que não valia a pena, falecera há anos. Jobo Baldé, o nosso padeiro de Missirá, vivia algures na região de Galomaro, não sabia onde, alguém lhe telefonara, não tinha dinheiro para a viagem e tinha vergonha que nosso alfero o visse velho e desdentado.

Inesquecível foi a viagem a Missirá e ao Gambiel, encontrarás uma fotografia com aproveitamento das chapas do meu tempo, usávamos folhas de Flandres, houve sábias reciclagens. Estive com a mãe de Abudu, adornou-se para a fotografia destinada ao filho, de repente apareceu-me Braima Mané, alguém que fora escorraçado pelo irmão que lhe queria ficar com a mulher, ele tinha então um braço tolhido, numa flagelação a Finete um estilhaço de granada de morteiro fendera-lhe os ligamentos. Consegui que fosse visto no Hospital de Bissau, perdera-lhe o rasto, saíra-me da memória de tão penosa situação. Ali em Missirá, avançou para mim e ergueu os braços como se fosse voar, quis surpreender-me com aquele braço ágil que eu conhecera inerte. Sabia perfeitamente que o meu irmão Bacari Soncó tinha falecido anos atrás, fui visitar o seu túmulo, voltei a desabar as emoções, vertiginosamente passaram-me as imagens de conversas, de patrulhamentos, de idas a Mato de Cão, das minhas estadias em Finete em que ele me falava da sua juventude com intensa alegria.

Não te escondo que o programa da minha viagem era excessivamente ambicioso: acabei por não visitar todo o Cuor, a picada entre Canturé a Gã Gémeos ainda estava cheia de água, gostava muito de ter ido a Gã Gémeos, usávamos este local como porto para o Sintex, aqui se deu um acidente que vitimou Cibo Indjai, alguém lhe desfechou um tiro por total imprevidência de uma arma que não estava em segurança, era o nosso exímio caçador e um excelente guia, e fora ele que na Operação Tigre Vadio, no final de março de 1970, levara a corta-mato um contingente de cerca de 300 homens depois da destruição de Belel; vi a correr os Nhabijões, é verdade que visitei o Xitole, o Enxalé, Madina e Belel, obrigatoriamente Mato de Cão, tirei imensas imagens, aqui vão algumas para mostra.

Dói o estado em que vi o país, ter encontrado tanta gente desavinda, enormes potencialidades ao abandono. Tinha partido ciente de ser confrontado com muita dor e muita miséria e muitas perdas. Como compreenderás, meu amor, não regresso confortado a não ser por se ter cumprido esta viagem em que sempre tenho contado contigo como escriba intransigente, rigorosa, exultante. Não ia à procura de alívio, mas testemunhar reconciliação, gravar algum dever de memória que me assiste às gerações futuras.

Há dez anos, Deus permitiu o nosso encontro e a nossa viagem em comum onde tão graciosamente coligiste este cadinho de lembranças de uma guerra que se vai apagando do sentimento geral dos portugueses, o tempo imperial não lhes diz nada e muito menos aquela gente africana que, por diferentes razões, nos acompanhou sacrificando a vida ou o seu futuro, destino trágico tiveram muitos dos meus soldados.

Deus permitiu que na velhice eu tenha voltado àqueles cheiros tropicais, a sentir o deslumbramento dos meandros do Geba ou do denso arvoredo da floresta de galeria, pasmado diante do poilão sagrado, sabendo que na Rua do Eclipse tu organizarás esta minha derradeira memória, chave de um passado digno de ser encarecido. Regresso dentro de dois dias para nossa casa, vou ainda aqui visitar os nossos netos, e estou também ansioso por visitar os nossos que aí vivem, uma doce alegria da nossa velhice, a estampa do nosso amor. Avec une tendresse très spéciale, Paulo.

FIM

O Palácio Presidencial como o encontrei em novembro de 2010
Era uma das mais úteis instituições de saúde de toda a Guiné, este Centro de Medicina Tropical, uma das pérolas da cooperação portuguesa, tinha sido seriamente afetado pelo conflito político-militar
A comida era muito boa, a dormida não tanto. Mas não merecia este final de vida, jamais se poderá entender porque se deixa destruir o que podia ser recuperado, vê-se à vista desarmada a qualidade dos materiais
O que fora o Mercado de Bandim: aqui a imagem, por si só, vale por mil palavras
Do mal o menos, é departamento da Marinha, e se por fora está deteriorado, é patente que não o deixaram cair em suave derrocada
Quantas vezes por aqui passei, por esta entrada para o quartel de Bambadinca, durante o dia era permitida a circulação de civis em direção ao mercado ou ao porto ou em sentido contrário, para o Bambadincazinho
Que dor, metíamos as botas neste enlameado, entrava-se na piroga conduzida por Mufali Iafai, ao fundo havia um estreito caminho que os hábeis condutores contornavam as terríveis ciladas do percurso, não poucas vezes se caía no charco e era um bico de obra pôr o guincho a tirá-lo da água fétida
Não me importarei que seja uma das últimas imagens da minha vida, depois de me despedir dos meus entes queridos, não conheço nada de parecido com este fim do dia em que escurece o coberto vegetal
Cancumba, foi uma das minhas alegrias, era povoação abandonada, quando aqui a visitei dispunha de um belo poço, graças à ajuda de uma ONG italiana, uma natureza cheia de vida onde outrora houve percursos de morte
O túmulo do meu irmão Bacari Soncó, valente e corajoso, meu fiel companheiro de armas
Missirá, vinte anos depois, o que gostei mesmo muito foi ver a reciclagem da folha de Flandres, mesmo que enferrujada
Quando vejo esta imagem só falta pôr-me em sentido, quantas vezes aqui vim para garantir, com os meus bravos soldados, que este rio pudesse ser navegável, que a pontos ermos chegassem víveres, armamento e tudo o que se carece para fazer a guerra
Chama-se Albino Amadu Baldé, tratava-o por Príncipe Samba, era o comandante efetivo das milícias de Missirá, tive a dita de o fixar nesta pose, é uma figura principesca e nada mais acrescento
É a foz do Corubal ou Cocoli, quando retive a imagem, sabe Deus porquê, só pensei no sofrimento que se viveu nesta região chamada Ponta do Inglês, destacamento de vida inglória, um local bafejado pela grande beleza, fazer como eu fiz o itinerário Xime – Ponta do Inglês com toda esta luminosidade vizinha certificou-me que a Guiné, digam o que disserem, tem alguns dos lugares mais vibrantes do mundo
É a despedida, os amigos do nosso alfero vestiram-se a preceito para o almoço, a guerra acabou, ficou esta cumplicidade, e o Branco de Missirá está-lhes eternamente grato
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Eduardo Estrela disse...

A leitura do texto e o visionamento das imagens, " obrigam-nos " a viajar pela querida Guiné e a lembrar as suas maravilhosas gentes, cultura, costumes, cores e cheiros.
Felizes os que tiveram oportunidade dum regresso em paz.
Obrigado
Eduardo Estrela